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Full text of "História natural illustrada. Compilação sobre os mais auctorisados trabalhos zoologicos por Julio de Mattos"

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OLNOHOL dO ALISHIAINN 


HISTORIA NATURAL 


HISTORIA 


ATURAL 


ILLUSTRADA 


COMPILAÇÃO FEITA SOBRE OS MAIS AUCTORISADOS 
TRABALHOS ZOOLOGICOS 


PoR 


SETE EE TIE TTOS 


TERCEIRO VOLUME 


PORTO 
LIVRARIA UNIVERSAL 
DE 
MAGALHAES & MONIZ — EDITORES 
12— Largo dos Loyos — 14 


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[MAY 23 1908 É 


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Nite 01198 


Porto — Imprensa Commercial — Rua dos Lavadouros, 16. 


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RUMINANTES 


(CONTINUAÇÃO) 


OS MOSCHOS 


Alguns naturalistas collocam estes ruminantes entre os veados de 
que se approximam pela elegancia de formas. A não-existencia porém 
de cornos é um caracter negativo que, quando outros não existissem, 
bastaria para fazer considerar arbitraria uma tal collocação. Fazemos 
pois dos moschos uma familia áparte, seguindo Brehm. 


CARACTERES 


- 


Os moschos não teem cornos, nem fossas lacrimaes, nem pêllos em 
tufo nas pernas posteriores. A cauda d'estes ruminantes é perfeitamente 
rudimentar; ou antes no logar de cauda existe um tuberculo, uma li- 
geira saliencia. Os machos distinguem-se de todos os outros ruminantes 
pela existencia de caninos salientes na maxilla superior, ora compridos 
e dirigidos para fóra, ora mais curtos e voltados para dentro. Teem os 
moschos quatorze a quinze vertebras dorsaes, cinco a seis lombares, 


6 HISTORIA NATURAL 


quatro a seis sagradas e treze caudaes atrophiadas. Pelas partes molles 
recordam os antilopes e os veados. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habitam a Asia central e meridional, as ilhas e a parte occidental 
da Africa central. 


COSTUMES 


Vivem nas regiões pedregosas das altas montanhas, raras vezes 
perto das florestas, e mais raramente ainda nos valles a que não descem 
senão quando um inverno rigoroso, roubando-lhes nas montanhas todos 
os meios de subsistencia, os forçam a procurar alimentos em regiões 
mais ricas de vegetação. 

De ordinario vivem solitarios; uma especie àpenas forma bandos. 

Dormem quasi todo o dia, apparecendo apenas ao fim da tarde, à 
hora do pôr do sol. 

São geralmente vivos e ageis; saltam e trepam admiravelmente. 
Caracterisa-os uma grande timidez; ao menor perigo deitam a fugir. São 
astutos; às vezes diante de um grande perigo simulam-se mortos. 

À femea pare um a dois fiihos de cada vez e com grandes inter- 
vallos. 


CAPTIVEIRO 


Embora timidos, domesticam-se facilmente, chegando a ter pelo ho- 
mem uma viva affeição. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


=] 


USOS E PRODUCTOS 


À carne é boa e a pelle aproveitavel, o que explica a perseguição 
de que são victimas estes ruminantes. Ha uma especie que produz al- 
miscar. 


O ALMISCAREIRO 
% 


Pertence a um genero cujos membros se distinguem pela existencia 


de caninos muito compridos, de um péllo duro e de uma bolsa umbilical, 
no macho, destinada à producção de almiscar. 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


Os gregos e os romanos, com quanto apreciadores distinctos das 
pomadas perfumosas que recebiam da India e da Arabia, desconheceram 
completamente o almiscareiro. Na China é, pelo contrario, conhecido ha 
muitos milhares d'annos. Existem descripções antiquissimas do animal, 
como as de Abou Senna, Mosadius e Marco Polo, todas mais ou menos 


deficientes ou phantasiosas. A primeira descripção reputada exacta é a 
de Pallas. 


8 WISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


O almiscareiro é um ruminante elegantissimo. Mede oitenta centi- 
metros de comprimento sobre sessenta e seis de altura. A parte poste- 
rior do tronco é um pouco mais elevada que a anterior; os membros 
são delgados, o pescoço é curto, a cabeça é alongada e o focinho arre- 
dondado. Os cascos são pequenos, finos, ponteagudos e susceptíveis de . 
se affastarem; as unhas, que são rudimentares, tocam o solo. Esta dis- 
posição permitte ao animal manter-se sobre os campos cobertos de gêlo. 
O corpo é todo coberto de pêllos abundantes, de um ruivo-trigueiro e 
mais compridos aos lados do peito, entre as coxas e no pescoço. Estes 
pêllos são compridos, rijos e crespos. Os caninos no macho fazem uma 
saliencia de trez a oito centimetros fóra da bocca; são dirigidos para 
baixo e para traz. Na femea estes dentes não excedem os labios. 

O almiscareiro entre a depressão umbilical e os orgãos genitaes 
apresenta uma bolsa arredondada, Mei de cinco a sete centimetros 
de comprido sobre trez de largura e trez ou quatro de altura. Esta bolsa 
é cercada de pêllos aos lados e tem na parte media uma certa porção 
desnudada, onde veem abrir-se dois canaes. Pequenas glandulas parie- 
taes segregam o almiscar que por canaes se despeja na bolsa. No ani- 
mal adulto, esta contem, termo medio, sessenta grammas de almiscar; 
algumas vezes encontra-se muito mais. Os animaes não adultos ordina- 
riamente não produzem mais do que oito grammas. Durante a vida do 
animal, o almiscar offerece a consistencia do mel e uma côr entre ver- 
melho e trigueiro; depois de morto o ruminante, a substancia odorifera 
torna-se n'uma massa granulosa ou pulverulenta, de um trigueiro ruivo 
que enegrece com o tempo. O cheiro diminue à medida que a côr escu- 
rece. Este almiscar é soluvel na agua, quente ou fria, e no alcool. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O almiscareiro habita todos os cumes das montanhas da Asia cen- 
tral, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL O) 


COSTUMES 


Vivendo de preferencia nas montanhas, conserva-se geralmente a 
uma altitude de mil a dois mil e trezentos metros acima do nivel do 
mar. É raro, muito raro, encontrar-se n'um valle a uma altitude inferior 
a trezentos metros. Vive solitario, excepção feita para a epocha do cio, 
e occulto o dia inteiro; só de noite vagueia. 

São rapidos e cheios de segurança os movimentos d'este ruminante. 
Corre com ligeireza egual à do antilope, salta com a destreza do bode- 
quim e trepa com a intrepidez do gamo. Sobre os campos cobertos de 
gêlo, onde a maior parte dos animaes a custo conseguem mover-se, o al- 
miscareiro corre com facilidade espantosa. Quando o attacam de perto, 
salta enormes precipicios sem se molestar, corre ao longo dos rochedos 
onde mal encontra espaço para poisar as patas ou, se tanto é preciso, 
attravessa a nado as correntes. 

Tem sentidos muito perfeitos, mas uma iatalicondia muito limitada 
e uma grande timidez de caracter. Quando o surprehende um perigo, 
foge, correndo desesperadamente sem bem saber para onde. 

A epocha do cio é em Novembro ou Dezembro. Realisam-se então 
entre os machos tremendos combates em que os dentes se tornam armas 
terríveis. Raros são os machos adultos que não apresentam pelo corpo 
largas cicatrizes, testemunhas d'esses renhidos combates. Durante o cio, 
o cheiro d'almiscar exalado pelos machos é de uma pasmosa actividade; 
dizem alguns caçadores que elle se sente a um quarto de legua de dis- 
tancia. Em Maio ou Junho, isto é seis mezes depois das relações sexuaes, 
a femea pare um a dois filhos, que nascem completamente formados. À 
mãe conserva-os junto a si até uma nova epocha de cio. Os novos seres 
ao fim de trez annos são adultos. 

O almiscareiro escolhe, sempre que ha logar para isso, as hervas 
melhores e mais succulentas. 


CAÇA 


À caça feita ao almiscareiro é das mais difficeis; concorre para isto 
a timidez excessiva do animal, a sua perpetua desconfiança, que poucas 


10) HISTORIA NATURAL 


vezes permittem ao caçador encontral-o ao alcance da arma. De ordinario 
a caça faz-se por meio de laços que se dispoem pelos caminhos que o 
almiscareiro tem de attravessar. Na Siberia apanha-se por meio de ar- 
madilhas a que servem de engodo os lichens. Ha logares onde se fecham 
os valles com estacarias altas de todos os lados, deixando aberta ape- 
nas uma fenda onde os laços se dispoem. N'outros pontos mata-se o al- 
miscareiro à flexa, attraindo-o por sons que lhe imitam a voz. «Acontece 
às vezes, diz Brehm, que, em vez do almiscareiro, apparecem um urso, 
um lobo ou um rapozo, enganados tambem pelo som.» * O almiscareiro 
tem o costume de voltar sempre ao logar que uma vez escolheu para 
repousar. É d'este costume, d'esta persistente tendencia que os caçado- 
res muitas vezes se aproveitam. 


CAPTIVEIRO 


As informações sobre este ponto são deficientissimas. Sabe-se ape- 
nas de dois casos de captiveiro, um realisado em Paris, outro em Lon- 
dres. Os animaes captivos não duraram muitos annos, mas viveram sem- 
pre alegres e com saude. O de Paris succumbiu a um desastre, a obs- 
trucção do pyloro por uma porção de pêllos que ingerira. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne do almiscareiro não é boa; o almiscar porém, é um bello 
producto de grandes resultados commerciaes. D'este almiscar ha muitas 
qualidades, sendo considerado o melhor e o menos sujeito a sophistica- 
ções o chamado Cabardin ou da Russia. A pelle serve para a fabricação 
de bonnets e vestidos. | 


| Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 464. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 11 


- O MOSCHO MENOR OU MINIMO 


É o mais pequeno dos ruminantes. Differe essencialmente da espe- 
cie anterior pela não existencia da bolsa de almiscar. 


CARACTERES 


Mede apenas cincoenta centimetros de comprimento, pertencendo 
quatro à cauda; a altura, medida ao nivel da espadua é de vinte e dois 
centimetros. A parte posterior do corpo é, como no almiscareiro, um 
pouco mais alta do que a anterior. O péllo é fino. A cabeça é ruiva com 
o vertice quasi negro; a parte superior do corpo é de um trigueiro ama- 
rellado com cambiantes ruivas e um traço negro ao longo da columna; 
os lados do corpo são claros e o ventre branco. Os machos teem cani- 
nos que excedem as gengivas de trez centimetros e que são fortemente 


recurvos, dirigidos para fóra e para traz. 
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 
cita Singaporo e Pinang são a patria d'este curioso animal. 
COSTUMES 


Vivem nas florestas espessas, preferindo as montanhas às planícies. 
Tem habitos solitarios; só no tempo do cio se encontram juntos ma- 
cho e femea. Vive o dia inteiro escondido nos arvoredos espessos, onde 


12 HISTORIA NATURAL 


em repouso se entrega à ruminação; ao cair da tarde sae em busca do 
alimento que consiste principalmente em folhas, hervas e fructos de toda 
a ordem. 

Os movimentos d'este animal são leves e graciosos; dá saltos rela- 
tivamente grandes e vence com destreza as maiores dificuldades. É 
muito ardiloso; quando se sente perseguido e tem poucas probabilida- 
des de escapar, fugindo, finge-se morto para desviar o inimigo e corre 
quando o sente a distancia bastante. Os indigenas quando querem desi- 
gnar de um modo expressivo um homem impostor, dizem delle: ma- 
nhoso como o moscho menor, phrase que corresponde à nossa: astuto 
como o rapozo. 7 

Sobre a reproducção d'este ruminante nada lêmos de authentico ; 
parece que a femea não produz em cada parto mais que um filho. 


CAPTIVEIRO 


Parece não soffrer muito com a perda de liberdade. Actualmente 
encontra-se em muitas collecções de animaes expostas na Europa. Tem-se 
conseguido mesmo a reproducção em captiveiro. 


USOS E PRODUCTOS 


Em Java a carne d'este ruminante é estimada como alimento. Os 
pés, finissimos e elegantes, engastados em ouro ou prata servem na con- 


fecção de alguns objectos de luxo e de gosto, nos cachimbos, por 


exemplo. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 13 


Os VEADOS 


Constituem pela sua reunião uma familia importantissima da ordem 
dos ruminantes e facil de conhecer e distinguir, como pelo estudo que 
vamos fazer se deprehendera. 


CARACTERES 


São ruminantes de cornos, de dimensões superiores às dos mos- 
chos, de caninos curtos, de corpo alongado, elegante, perfeito e rigoro- 
samente proporcionado, de pescoço vigoroso, de olhos grandes e vivos, 
de orelhas finas, direitas e muito moveis. Geralmente só os machos 
apresentam cornos, isto é prolongamentos ramificados do frontal e que 
todos os annos caem para ser por outros substituidos. A muda dos cor- 
nos está ligada à actividade sexual. Se um veado se castra e na epocha 
da operação possuia cornos, ficará perpetuamente com elles; se os não 
tinha n'essa occasião, não os readquire; se a castração foi unilateral, só 
do lado não operado tornam os cornos a reproduzir-se. No recemnas- 
cido nota-se desde logo no ponto de inserção dos cornos um insolito 
desenvolvimento do frontal. Aos seis ou oito mezes apparece no logar 
indicado uma saliencia ossea que persistirá toda a vida e da qual os cor- 
nos tomarão origem. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Existem hoje, como existiram já em epochas geologicas anteriores 
à nossa, em todas as partes do mundo, em toda a terra, excepção feita 
da Australia e de uma certa parte, aliás consideravel, da Africa. 


|4 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Encontram-se nos climas quentes como nos frios, nas planícies como 
nas montanhas, nos logares descobertos como nos bosques largamente e 
densamente arborisados, nas regiões seccas como nas pantanosas, em 
toda a parte e em todas as condições. 7 

São animaes sociaveis; muitos reunem-se em bandos numerosissi- 
mos. Durante o estio, os velhos machos, separam-se de ordinario das 
femeas e vivem ou a olitao ou unidos uns aos outros. 

Na epocha do cio juntam-se aos bandos das femeas e provocam os 
rivaes; é então que se ferem as luctas tremendas d'onde resultará a se- 
lecção sexual. 

São quasi todos animaes nocturnos; no entanto os que vivem nos 
logares desertos, tranquillos, procuram de dia mesmo o alimento. 

Todos estes ruminantes são vivos, ageis, um pouco timidos, rapidos 
em todos os movimentos e intelligentes. 

Alimentam-se exclusivamente de vegetaes e bebem muita agua. 

À femea pare um, dois e às vezes trez filhos, que nascem comple- 
tamente desenvolvidos e que ao fim de alguns dias seguem a mãe por 
toda a parte. À femea é de uma extraordinaria sollicitude pelos recem- 
nascidos, aos quaes defende contra todos os perigos. Especies ha em 
que o macho cuida tambem da prole com extremo desvello. 


GAPTIVEIRO 


U capliveiro é para estes ruminantes uma crueldade contra a qual 
perpeluamente se revoltam. Se é certo que em novos parecem affei- 
çoar-se ao homem e tributar-lhe uma grande dedicação, não é menos 
certo que progredindo em edade se tornam maos, colericos, indoceis. O 
rangifero, que ha muitos seculos vive captivo, esse mesmo não é, como 
podera suppôr-se, uma excepção; a sua domesticação é, no dizer de 
brehm e d'outros naturalistas, pronunciadamente incompleta. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 15 


USOS E PRODUGTOS 


Se fizermos uma excepção para o rangifero, cuja utilidade para a 
nossa especie é, como veremos, incontestavel, pode francamente dizer-se 
que a familia dos veados nos causa prejuizos apenas. É boa a carne? 
Tiramos proveito dos cornos? É a pelle susceptivel de utilisar-se? Pode 
decerto responder-se affirmativamente. Mas o que é tudo isto, se nos lem- 
bramos dos estragos produzidos por estes ruminantes nos logares cul- 
tivados? | 


Estão comprehendidos na familia que acabamos de descrever, como 
generos principaes: os alces, os rangiferos, os gamos, os veados propric- 
mente ditos e os zorlitos. D'estes generos passamos a occupar-nos. 


Os ALCES 


São os representantes mais notaveis em grandeza da familia dos 
veados. 


CARACTERES 


São fortes, pezados e muito altos. Teem cornos compridos, largos 
e muito ramificados. Não possuem caninos. A cabeça é comprida, a re- 


16 HISTORIA NATURAL 


cjão nasal muito desenvolvida, o labio inferior procidente e a cauda 
curta; Os olhos são pequenos e as orelhas compridas e largas. 


O ALCE MAIOR 


É um animal de grandes proporções. O macho adulto tem dois me- 
tros e sessenta centimetros a dois metros e oitenta de comprido sobre 
dois metros de alto. O comprimento da cauda é de dez centimetros. O 
pezo medio é de duzentos a trezentos kilogrammas, chegando alguns 
animaes já velhos a attingir quinhentos. O corpo é curto e grosso, o 
peito largo, a espadua elevada, formando uma ligeira corcova, e o dorso 
recto. Os membros são altos e muito fortes. Os cascos são finos, pro- 
fundamente fendidos e ligados na origem por uma membrana extensivel. 
À cabeça é grande, alongada, o focinho comprido, grosso, largo, obtuso 
e o pescoço curto, forte, muito vigoroso; o nariz é cartilagineo, o labio 
superior espesso, fendido, extenso e muito saliente. Os olhos são peque- 
nos e muito encovados. As orelhas são compridas e largas, mas termi- 
nando em ponta e moveis em todos os sentidos. Os cornos do animal são 
constituidos por hastes curtas que se alargam triangularmente. O péllo 
é curto e espesso. Sobre a nuca e pescoço este pêllo chega a attingir 
vinte centimetros de comprido, d'onde o nome de élan à crinitre dado 
pelos francezes a este animal. A côr do manto é um trigueiro ruivo bas- 
tante uniforme. A femea é mais pequena que o macho e é desprovida 
de cornos; os seus cascos são mais compridos e mais finos e as unhas 
mais curtas que as do macho. A cabeça da femea recorda a das mulas. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA Ê 


Habita as florestas do norte da Europa e da Asia. Na Europa esten- 
de-se até às costas do Baltico; encontra-se na Prussia oriental, na Lithua- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 17 


nia, na Livonia, na Suecia, em Noruega, em alguns pontos da Grande 
Russia, etc. Segundo Brehm, em 1746 matou-se o ultimo alce maior em 
Saxe e em 1760 o ultimo tambem na Galiza. 

É mais commum na Asia do que na Europa; em todos os pontos 
d'aquelle continente onde existem florestas, o notavel ruminante ahi 
existe. 


COSTUMES 


Os logares preferidos por este ruminante para habitação são as flo- 
restas, principalmente as dos logares desertos e pantanosos. De Abril 
até Outubro, o alce maior vive em logares baixos; depois, no inverno, 
procura as regiões elevadas, não expostas ás inundações e não cobertas 
de gélo. Quando o inquietam ou não encontra alimento bastante n'um 
local, muda-se para outro. 

É sociavel; vive geralmente em pequenos bandos compostos de 
quinze a vinte individuos; perto da epocha do parto, os velhos machos 
abandonam estes bandos, que ficam exclusivamente formados por femeas 
e pequenos machos, não aptos ainda para a reproducção. 

Se o não incommodam, se ninguem o inquieta, o alce maior va- 
gueia dia e noite, embora seja naturalmente nocturno. 

Alimenta-se de folhas, de renovos e de cascas d'arvores, o que o 
torna immensamente prejudicial. Quando se encontram n'uma floresta 
arvores despidas de casca, pode estar-se certo de que o alce maior não 
está longe; é assim que os caçadores sabem onde perseguil-o. Só im- 
pellido pela necessidade, procura alimentação vegetal differente da que 
referimos. Causa por isso mais estragos nos campos em cultura do que 
nas florestas. 

É menos agil e menos gracioso que os veados propriamente ditos; 
não se pense todavia que é moroso: calcula-se que pode percorrer n'um 
dia quatrocentos kilometros. 

- Passa por ser um bello nadador, que entra na agua não só quando 
o força a necessidade, mas por prazer. 

Quando corre, costuma erguer a cabeça de modo que os cornos lhe 
ficam em posição horisontal; esta attitude fal-o cair muitas vezes. Quando 
isto acontece, o animal, tentando levantar-se, agita muito as patas de 
deante e estende as posteriores até junto da cabeça. D'aqui uma fabula 


curiosissima, segundo a qual o ruminante soffreria de attaques epile- 
o 
VOL. III po 


18 HISTORIA NATURAL 


clicos, usando para a cura do processo singular de arranhar as orelhas 
até ellas verterem sangue! 

O ouvido e a vista do alce maior são sentidos perfeitissimos; o ol- 
fato é menos apurado. Não é intelligente, mas não tem tambem a timi- 
dez dos veados propriamente ditos. 

Vive em boa harmonia com os seus congéneres, excepto na epocha 
do cio, em que entre os machos se trava uma lucta tremenda para a 
posse das femeas e direcção dos bandos. O cio nas costas do Baltico rea- 
lisa-se em fins de Agosto, na Russia asiatica em Setembro e Outubro. 
Durante esse tempo de excitação, o alce maior é perigoso até para 0 
homem, attacando, se é ferido, o caçador que não logrou matal-o. 

A gestação dura trinta e seis a quarenta semanas. O primeiro parto 
dá geralmente origem à apparição de um filho só e os que se lhe se- 
guem à de dois, de ordinario de sexos differentes. Ao terceiro ou quarto 
dia de vida extra-uterina, os recemnascidos seguem já a mãe; a ama- 
mentação prolonga-se até à primeira epocha de cio que depois do parto 
tem logar para as mães. Estas defendem corajosamente os filhos, che- 
gando a proteger-lhes o cadaver. | 


INIMIGOS 


Os principaes são o lobo, o lynce, o urso e o glutão. O lobo dá-lhe 
caça no inverno, quando o gêlo é muito; o urso apenas attaca indivi- 
duos isolados; o lynce e o glutão lançam-se das arvores sobre o dorso 
do ruminante que passa, agarram-se-lhe ao pescoço e abrem-lhe as ca- 
rotidas. São estes ultimos os mais terriveis inimigos do alce. Do urso e 
do lobo defende-se com os cornos; em face do glutão e do lynce que o 
attacam d'alto, fica desarmado. 


Noutro tempo fazia-se a este ruminante uma grande caça a tiro, 
com laços e com armadilhas. Hoje essa caça diminuiu e ha mesmo loga- 
res em que está prohibida, como em Noruega, onde por matar um alce 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 19 


maior se paga ou se pagava não ha muitos annos a multa de duzentos 
e vinte francos. | 


CAPTIVEIRO 


Como todos os ruminantes da vasta familia dos veados, este domes- 
tica-se bem emquanto novo, mas acaba por se tornar mao, com os pro- 
gressos da idade. Ao principio parece prosperar no captiveiro, mas de- 
pois começa a emagrecer e muitas vezes morre dentro de um curto es- 
paço de tempo. É dificil conserval-o captivo por mais de trez a quatro 
annos; como o provam numerosos casos narrados pelos naturalistas, por 
melhores que sejam as condições de vida do alce captivo, por maiores 
que sejam os cuidados do homem, por mais abundante que seja o ali- 
mento, o animal não resiste à perda de liberdade. 


USOS E PRODUCTOS 


No alce maior teem utilidade a carne, a pelle e os cornos. A carne 
é melhor, mais tenra que a dos veados propriamente ditos e a pelle é 
melhor e mais solida. Os ossos duros e de uma grande alvura, são tam- 
bem muito estimados. N'outro tempo as differentes partes do corpo d'este 
animal entravam na manipulação de diversissimos medicamentos. É de 
notar que todas estas utilidades do animal estão abaixo dos estragos que 
elle produz. Nas florestas é um verdadeiro flagello. 


20 HISTORIA NATURAL 


O ALCE ORIGINAL 


É assim que denominam em França o ruminante de que vamos occu- 
par-nos. Não nos foi possivel saber se existe em portuguez algum nome 
especial para designal-o; por isso conservamos a designação estran- 
geira. ! 


CARACTERES 


Distingue-se da especie anterior pela existencia de chanfraduras 
mais profundas nos cornos, por menor abundancia de pêllo comprido 
sobre o pescoço e ainda porque a côr do manto é mais escura. No en- 
tanto a independencia especifica do alce original tem sido mais do que 
uma vez contestada. 

É mais alto que o cavallo. A cabeça tem mais de sessenta e seis 
centimetros de comprido e é pezada. Os olhos são pequenos e encova- 
dos; as orelhas assemelham-se ás do jumento; são como as d'este com- 
pridas e pelludas. 

É esta a descripção que do animal faz Hamilton-Smith. 


COSTUMES 


Os habitos de vida d'este ruminante são os mesmos que caracteri- 
sam a especie anteriormente estudada. O alce original muda os appen- 


“ t À cada passo luctamos com a difficuldade de saber a designação portugueza 


das especies. Conhece-se muitas vezes a descripção de um animal, mas não se lhe 


conhece o nome em lingua portugueza. As averiguações n'este sentido são difficeis 
de fazer. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 21 


El 


dices frontaes mais tarde que o alce maior, em Janeiro ou Fevereiro e 
mesmo, quando os invernos são rigorosos, em Março. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se ao norte e um pouco a leste da America. 


CAÇA 


O preconceito indigena de que quem come a carne do alce original 
fica habilitado a correr trez vezes melhor do que ingerindo outra carne 
qualquer, faz com que este ruminante seja tenazmente perseguido. Os 
indigenas dando caça a este animal, procuram principalmente fazel-o 
entrar na agua onde o seguem em canoas e onde lhes é facil matal-o. 


CAPTIVEIRO 


Como todos os ruminantes da familia, o alce original domestica-se 
facilmente em quanto novo, chegando a conhecer dentro de poucos dias 
o dono e a seguil-o por toda a parte; pouco e pouco porém, à medida 
que avança em idade, torna-se selvagem, colerico, perigoso. Andubon 
conta o facto de um alce original captivo que, ainda novo, parecia ser 
absolutamente indomesticavel. O caso é certamente excepcional, 


O 
“o 


HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


A carne é um alimento bom; com os cornos fabricam-se colheres e 
outros utensilios domesticos; a pelle contribue para a formação de ca- 
noas. Ha uma praça celebre entre os indigenas onde se eleva uma alta 
pyramide formada na maior parte por cornos de alce original. 


OS RANGIFEROS 


Na familia dos rangiferos ambos os sexos apresentam cornos, con- 
sistindo em uma haste cylindrica, muito curta, ramificada em dois gran- 
des galhos achatados, dos quaes um se eleva para 0 ar ramificando-se 
a seu turno e o outro se estende horisontalmente. Os cascos são muito 
largos. As formas são pezadas; a cabeça é sobretudo desgraciosa. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Pertencem exclusivamente às regiões frigidas do hemispherio bo- 
real, 


SU E RS e A a 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 23 


O RANGIFERO DA AMERICA 


Ha naturalistas que concedem ao rangifero da America as honras de 
especie à parte. Para fundamento d'esta opinião allegam que o rangi- 
fero da Europa differe do rangifero da America pela estatura, pela côr e 
pelo genero de vida. 

Será completamente assim? Não podemos dizel-o. O rangifero ame- 
ricano é certamente maior que o europeu, tem os cornos mais pequenos 
e o manto mais escuro; segundo naturalistas auctorisados, elle viveria 
solitario nas florestas e não emigraria. Ha porém observadores que con- 
sideram todos estes caracteres como secundarios e insignificantes e por 
isso não crêem possivel uma distincção de especies. Tal é o estado da 
questão. 


O RANGIFERO DA EUROPA 


4 


Este ruminante é conhecido desde uma remota antiguidade. Julio 
Cesar deixou-nos d'elle uma descripção muito exacta. Em 1675 Scheffer, 
de Strasburgo, publicou um livro de grande merecimento sobre a Lapo- 
nia, onde o animal é muito bem estudado. Linneu que o observou, elle 
proprio, minuciosamente, legou-nos a seu respeito um trabalho impor- 
tante que outros naturalistas completaram depois. Hoje pode conside- 
rar-se este ruminante como completamente conhecido, ainda nas maiores 
minuciosidades dos seus habitos de vida. 


24 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


Mede um metro e setenta centimetros a dois metros de comprido, 
tendo a cauda quatorze centimetros. À altura, medida ao nivel da espa- 
dua é de um metro e quinze centimetros. Os cornos são mais pequenos 
e menos bellos que os dos veados propriamente ditos. 

O tronco do rangifero não differe do tronco do veado senão em affe- 
ctar posteriormente mais largura; mas o pescoço e a cabeça são mais 
pezados, menos graciosos, os membros são mais curtos e os cascos me- 
nos elegantes. De resto, o rangifero está longe de ter o porte do veado. 

Na femea os cornos são mais pequenos e menos divididos que no 
macho, affectando sempre uma forma mais ou menos irregular. 

O manto do rangifero europeu é mais denso que o de qualquer ou- 
tro ruminante da familia. Os pêllos são ondulados, rijos é quebradiços; 
são mais compridos e mais flexiveis na cabeça, no pescoço e nos mem- 
bros do que em qualquer outra parte. Na parte anterior do pescoço, 
estes péllos formam uma especie de crina que algumas vezes desce até 
ao peito. No inverno o péllo cresce muito e isto explica por que o ran- 
gifero supporta frios excessivos, rigorosissimos. O rangifero selvagem 
muda de pêllo duas vezes por anno. O rangifero domestico apresenta-se 
de verão com o manto extremamente escuro; de inverno, pelo contrario, 
a côr geral do manto é clara. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita o norte da Ruropa sendo ahi vulgar em muitas regiões. 


COSTUMES 


Vive exclusivamente nas montanhas, nos pontos mais elevados e 
desguarnecidos de vegetação, onde a custo medra alguma rara planta. 


e E O a E TD 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 25 


Evita os logares baixos e as florestas. Apenas na Siberia, segundo infor- 
mação de Pallas e Wrangel, o rangifero habitaria as florestas, os logares 
largamente arborisados. No dizer d'este ultimo naturalista, o rangifero 
emprehende em Maio uma verdadeira emigração, abandonando as flores- 
tas onde se abrigou do frio, para partir em bandos para as regiões se- 
ptentrionaes, mais abundantes em musgos e lichens, e onde o não per- 
seguem os insectos. Nas florestas, com efeito, os mosquitos e outros 
animalculos allados, egualmente incommodos, atroam os ares. Os rangi- 
feros são às vezes forçados a attravessar cursos d'agua; escolhem então 
os logares menos largos e passam encostados uns aos outros, cobrindo 
quasi toda a superficie d'agua. Vistos de longe n'estas condições, pare- 
cem florestas errantes. 

Em a Noruega não se realisam estas emigrações. Quando muito, o 
rangifero ahi passa do topo de uma montanha a um outro. 

O rangifero selvagem é um animal em extremo sociavel; vive de 
ordinario em bandos muito mais numerosos que os formados por quaes- 
quer outros ruminantes da familia. Solitarios, encontram-se apenas ve- 
lhos machos expulsos dos bandos. 

O rangifero é um animal admiravelmente apropriado à vida dos 
paizes do Norte. Graças à conformação dos cascos, elle pode perfeita- 
mente correr pelos pantanos e pelo gêlo e bem assim trepar com extraor- 
dinaria facilidade pelos flancos das montanhas. 

Um facto muito curioso, muito interessante e que ainda hoje não tem 
uma explicação definitiva é que o rangifero em marcha faz ouvir a cada 
passo um ruido particular comparavel ao produzido por uma faisca ele- 
ctrica. Teem-se emittido ácerca d'este phenomeno muitas opiniões, accei- 
tando hoje alguns naturalistas a hypothese de que o ruido seja articular. 
É talvez a conjectura mais acceitavel. 

O rangifero caminhando sobre os terrenos pantanosos e sobre o 
gélo, alarga os cascos resultando d'ahi uma pista muito mais parecida 
com a da vacca do que com a do veado propriamente dito. 

O rangifero selvagem nada com facilidade extrema; attravessa rios 
larguissimos. O rangifero domestico, pelo contrario, não entra na agua 
sem uma repugnancia manifesta. 

Sob o ponto de vista dos sentidos, o rangifero é um animal admiravel- 
mente dotado. O olfato é muito fino, tendo o poder de apreciar os cheiros 
à distancia de quinhentos ou seiscentos passos; o ouvido é tão apurado 
como o dos veados propriamente ditos; a vista é de tal modo prespicaz 
que toda a prudencia é pouca ao caçador, mesmo quando mais occulto se 
imagina. O tacto é de uma sensibilidade extrema; o mais ligeiro insecto 
que pouse sobre o dorso do ruminante é por elle sentido. O palladar é apu- 
rado; por elle consegue o animal fazer uma rigorosa selecção de plantas, 


26 HISTORIA NATURAL 


O rangifero selvagem possue, no dizer de todos os caçadores, uma 
grande prudencia e até bastante astucia. Não tem medo dos outros ani- 
maes; o terror que o homem lhe inspira não é de modo nenhum ins- 
tinctivo, mas, pelo contrario, um resultado da experiencia. Ora para que 
a experiencia logre produzir n'um animal os seus beneficos effeitos, é 
mister admittir da parte d'elle uma certa intelligencia. 

No estio, quando os pastos são abundantes, o rangifero preocupa-se 
pouco com a alimentação; tem logar então de escolher plantas succu- 
lentas. No inverno, porém, carece para alimentar-se de desligar com os 
cascos os lichens e musgos que cobrem as paredes. Em Noruega, mesmo 
de inverno, evita as florestas, e busca os pantanos. Nunca remexe o solo 
com Os cornos, como erradamente se tem dito, mas só com os cascos. É 
de madrugada e ao fim da tarde que o rangifero procura o alimento. 
Durante o dia deita-se e rumina ou sobre o gêlo ou perto d'elle. 

Em Noruega a estação do cio para o rangifero é nos fins de Setem- 
bro. Ha então entre os machos longos combates impetuosos e terriveis. 
A gestação dura até meiados de Abril; o parto produz um filho apenas, 
muito gracioso, que a femea aleita durante muito tempo e a que tributa 
uma enorme affeição. Na primavera é vulgar encontrarem-se familias 
compostas exclusivamente de um macho, uma femea e um recemnascido. 
Só quando os filhos são grandes é que as familias se reunem em bandos 
de cuja direcção se encarregam naturalmente os velhos machos. Os ran- 
giferos velam cuidadosamente pela mutua segurança: em quanto o bando 
repousa e rumina um d'entre todos conserva-se erguido e vigilante; se 
este precisa de deitar-se, levanta-se logo um outro que o substitue. 


CAÇA 


Não é facil emprehender a caça do rangifero; Brehm diz que é pre- 
ciso ser-se um apaixonado naturalista para ter animo de arcar com as 
dificuldades de todo o genero que a perseguição a este ruminante acar- 
reta. É necessario, primeiro que tudo, possuir uma constituição robus- 
tissima; são precisos valentes pulmões para ascender aos topos elevados 
das montanhas, membros musculosos que- resistem às longas caminha- 
das, estomago que permitta soffrer privações alimentares sem quebra 
immediata da saude, um largo dorso emfim que permitta accommodar 
sobre elle as provisões de muitos dias, porque n'esta caça, como na do 
dromedario, é indispensavel levar o mantimento que em parte alguma 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 27% 


se encontra. E ainda não é tudo. Para caçar o rangifero é preciso ter a 
coragem de viver dias seguidos em plena solidão e de dormir sem com- 


modidades na primeira gruta ou na primeira cabana de pedra que se 


encontra. 

Para se deitar n'uma cabana de pastor, seria preciso ao que anda 
em caça descer quatrocentos ou quinhentos metros e subil-os na manhã 
do dia immediato. Seria um trabalho absolutamente impossivel; as com- 
modidades por tal preço degeneram naturalmente em violencias. De 
resto, na caça do rangifero é indispensavel da parte do caçador um 
enorme dispendio de attenção: é preciso observar cuidadosamente a di- 
recção do vento, a altura do sol, o bom ou mau tempo, conhecer os 
logares favoritos do ruminante, saber-lhe perfeitamente os costumes, se- 
guir-lhe escrupulosamente a pista, emfim não descurar a observação da 
circumstancia ainda a mais futil na apparencia—uma pedra deslocada, 
uma folha partida ou arrancada do tronco, etc. É pois como dissemos e 
como acaba de provar-se, uma caça difficil pelo conjunto enorme de con- 
dições que exige da parte do que a emprehende. Ha ainda a conspirar 
com todas as outras, uma difficuldade grande n'esta caça: é a circums- 
tancia de se harmonisar admiravelmente a côr do rangifero com a do 
solo por forma a ser precisa da parte do caçador uma vista extrema- 
mente prespicaz para descobrir o ruminante a distancia de podel-o ferir. 

Quando se encontra um bando de rangiferos é precisa toda a pru- 
dencia; o menor movimento bruscamente executado é motivo bastante 
para pôr os animaes em debandada. Para evitar este inconveniente, que 
implica nem mais nem menos que a annulação completa de todo o tra- 
balho anterior, é necessario que o caçador saiba esconder-se à vista dos 
ruminantes e marchar para elles, rastejando, sem ruido. Os caçadores 
norueguezes procedem assim e não atiram sobre os ruminantes senão à 
distancia maxima de cento e vinte passos, o que pode explicar-se pela 
pouca perfeição das armas de que usam. 

Na Siberia o processo de caça é outro. Ahi os caçadores, para quem 
a maior ou menor quantidade de rangiferos mortos decide da abundan- 
cia ou miseria da vida durante o anno, esperam o periodo de emigra- 
ção do ruminante para procederem ao attaque. Sabendo que os rangife- 
ros teem de attravessar em bandos um certo curso d'agua, occultam-se 
sob a folhagem marginal ou por traz de rochedos proximos e ahi aguar- 
dam pacientemente o momento de chegada dos animaes. Então, no ins- 
tante em que os rangiferos penetram na agua, os caçadores, abando- 
nando os escondrijos, penetram rapidamente em pequenos barcos e cer- 
cam o bando dos emigrantes; em quanto uns tomam a passagem aos 
quadrupedes, procurando suspendel-os, fazel-os parar, outros ferem-os 
com piques, especie de lanças compridas. 


28 HISTORIA NATURAL 


Esta caça, geralmente productiva, não deixa de offerecer grandes 
perigos. Os rangiferos perseguidos na agua tentam defender-se, arreme- 
tendo contra os barcos e procurando voltal-os. Se o conseguem, a silua- 
ção dos caçadores torna-se desgraçada, porque é então muito raro que 
consigam escapar a nado, tal é a perseguição que lhes movem os ran- 
giferos, servindo-se dos cornos e dos cascos para os obrigarem a mer- 
gulhar. Wrangel, que descreve esta caça, reputa desesperada a situação 
do caçador caído à agua; é-lhe quasi impossivel, diz o escriptor citado, 
sair do meio da massa d'estes animaes. 


INIMIGOS 


Além do homem, tem o rangifero outros inimigos. D'entre todos é 
o lobo o mais temivel, principalmente no inverno. Se o gêlo é muito e 
forma sobre o solo uma camada muito espessa, o rangifero não receia 
muito o lobo; mas se o gêlo é em pequena quantidade, se tem caído de 
pouco tempo, então a marcha é para o rangifero muito fatigante e o re- 
ceio de encontrar o lobo torna-se absorvente. Quando nas altas monta- 
nhas, os rangiferos se juntam em bandos, os lobos agremiam-se tambem 
e travam-se então entre as especies luctas vigorosas, tremendas. Os car- 
niceiros seguem os ruminantes que emigram, fazendo-lhes constante- 
mente uma guerra, cujo resultado é a diminuição do numero d'estes. 

O glutão, o lynce e o urso são tambem inimigos perigosissimos do 
rangifero. 

Os inimigos porém que incontestavelmente devemos reputar mais 
perigosos para o rangifero são trez pequenos insectos: uma mosca de 
ferrão comprido, perfurante e duas especies de tabão ou moscardo. Ou- 
çamos o que a este respeito diz Brehm: «São estas moscas que deter- 
minam a emigração dos rangiferos; é para lhes fugir que os miseros ru- 
minantes buscam as costas do mar ou os topos das montanhas; são ellas 
que os atormentam noite e dia, ou antes durante o longo dia que dura 
o verão inteiro. Para comprehender os tormentos por que passam os po- 
bres rangiferos, seria necessario ter-se experimentado uma applicação 
constante de ventosas durante dias e semanas. Os moscardos produzem 
aos rangiferos tormentos ainda maiores, mais crueis. Uma das especies 
deposita os ovos na pelle do dorso dos pobres ruminantes e a outra nas 
narinas; as larvas criam-se ahi. As da primeira especie furam a pelle, 
penetram no tecido cellular, alimentam-se ahi do pús que a sua pre- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 29 


sença determina, originam abcessos dolorosissimos, abrem caminhos sub- 
cutaneos e apparecem à superficie no momento de experimentarem as 
ultimas metamorphoses. As larvas da segunda especie mergulham nas 
fossas nasaes, furam-as, penetram no cerebro, determinando differentes 
formas de modorra ou coma ou attingem o palatino e impedem o ran- 
gifero de comer até que consiga expulsal-as à força de espirros. É em 
Julho ou começos de Agosto que a femea d'estes moscardos deposita os 
ovos e é em Abril ou Maio que as larvas se desenvolvem. A doença pode 
reconhecer-se desde o começo pela difliculdade que os rangiferos expe- 
rimentam em respirar; nos animaes novos a morte sobrevem rapida- 
mente. Para os desgraçados rangiferos ha uma especie de gralha que se 
torna então um verdadeiro bemfeitor. Caindo sobre o dorso do rumi- 
nante, extrae-lhe dos abcessos os vermes; os rangiferos que sabem 
quanto isto lhes aproveita, deixam a ave levar tranquillamente a cabo a 
melindrosa operação.» ! 


CAPTIVEIRO 


Quando se captiva novo ainda, o rangifero domestica-se depressa. 
No entanto não pode nunca ser comparado aos outros animaes domesti- 
cos; aflirma Brehm que mesmo os descendentes de rangiferos que se 
encontram reduzidos ao captiveiro desde tempos immemoriaes, perma- 
necem ainda n'um estado de semi-selvageria. Para a direcção dos reba- 
nhos não podem dispensar-se nem os homens, nem os cães. 

Observemos desde já que a vida do rangifero domestico differe 
completamente da que passa o rangifero selvagem. O animal em domes- 
ticidade é mais pequeno e mais feio; os cornos caem-lhe mais tarde; a 
reproducção faz-se n'uma estação differente; finalmente vive em perma- 
nentes viagens. Ás vezes vive inteiramente sob o dominio do homem; 
outras porém, procura elle proprio a liberdade, sendo então o dono for- 
çado a procural-o. O dono de um rebanho de rangiferos passa uma vida 
tormentosa, porque em vez de ser, como parece, o senhor dos seus ani- 
maes, é, pelo contrario, o escravo d'elles, sendo forçado a emigrar 
quando elles emigram, a viver nas alturas ou à beira do mar consoante 
apraz aos ruminantes e, o que muito custa, a defendel-os contra os atta- 
ques do lobo. O que vale ao homem n'estes trabalhos é o cão, que lhe 


1! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 486. 


30 HISTORIA NATURAL 


presta enormes serviços. Sem elle, o homem não conseguiria decerto 
manter em ordem rebanhos de rangiferos superiores muitas vezes a tre- 
zentas ou quinhentas cabeças. E o cão, que correndo vigilante em torno 
do rebanho, consegue impedir que alguns individuos se percam ou fazer 
que retomem o seu logar os que se tresmalharam. Ás vezes, completa- 
mente fatigado, exhausto inteiramente pelas viagens forçadas, o homem 
deixa-se repousar, adormecer, entregando exclusivamente aos cães a 
guarda dos preciosissimos rebanhos. 

Os serviços enormes que o rangifero captivo presta à nossa espe- 
cie serão estudados no capitulo que segue. 


USOS E PRODUCTOS 


À proposito, escreve L. Figuier: «O rangifero é um animal precioso 
para as populações desherdadas que vivem dispersas pelo circulo polar. 
Sem elle, a existencia do homem seria impossivel n'estes rudes climas. 
Custa a fazer uma idéa exacta dos serviços que o rangifero presta a al- 
gumas populações septentrionaes, nomeadamente aos Lapões. Para estes 
o rangifero representa simultaneamente de cavallo, de boi e de car- 
neiro. Com efeito, reduzido ao estado domestico, atrela-se como um ca- 
vallo e arrasta com rapidez trenós e carros; a velocidade de que dis- 
põe é mesmo superior à do cavallo, apesar de correr sobre o gêlo. 
Sobre um terreno solido, o rangifero pode percorrer sete a oito leguas 
por hora; geralmente percorre quatro ou cinco sem esforço n'aquelle 
espaço de tempo. No palacio do rei da Suecia existe o retrato de um 
rangifero que transportou um official encarregado de despachos urgentes, 
à distancia de trezentas e vinte leguas em quarenta e oito horas, o que 
representa uma velocidade constante de seis leguas e meia por hora. 
Chegado ao seu destino, o pobre animal caiu morto. 

«... Não assignalamos ainda a qualidade verdadeiramente essencial 
deste ruminante das regiões arcticas. A femea dá um leite superior ao 
da vacca, do qual se faz uma manteiga e um queijo de excellente gosto. 
A carne, que é magnifica, constitue um precioso recurso . alimentar, 
quasi o unico nas regiões polares. O pêllo do rangifero fornece cober- 
turas espessas e quentes e a pelle transforma-se em um coiro macio e 
forte, que serve admiravelmente para a fabricação de calçado. Com os 
péllos rijos das patas do rangifero guarnece-se as solas dos sapatos para 
impedil-os de escorregar. Os pêllos compridos do pescoço. utilisam-se 


NENE PE O PO VIM 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 51 


para a costura e os tendões fornecem um fio resistente. Com os cornos 
velhos do rangifero fabricam-se utensilios diversos, taes como colheres, 
cabos de facas, etc.; e, se são novos, extrae-se d'elles gelatina, fazen- 
do-os ferver em agua. Os proprios excrementos do animal, depois de 
seccos, servem ainda para se queimarem. Alguns povos aproveitam 
mesmo os lichens amolecidos que contem o estomago do ruminante. Os 
esquimós e os groelandezes junctam a estes lichens carne picada, sangue 
e gordura e poem a fumar esta mistura que para elles é uma verdadeira 
delicia. Os tongousas, habitantes nomades da Siberia adicionam à mis- 
tura bagas e fazem assim especies de bolos por que dão um grande 
apreço.» * 

Em vista das utilidades que tem para a nossa especie o rangifero, 
comprehende-se perfeitamente a razão de um facto archivado por Brehm; 
é que os lapões sendo incapazes de roubar ouro ou qualquer objecto 
precioso, não são todavia superiores à tentação de roubarem o rangifero. 
Tudo se pode confiar d'esses desgraçados habitantes dos climas frigidis- 
simos, menos um rangifero. Resistem à sedução do ouro, à sedução das 


“pedras preciosas, à de tudo quanto a maioria dos homens appetecem; não 


resistem à tentação de roubar os rangiferos. Não os condemnemos em 


“nome de uma moral absoluta e irracionalmente inflexivel; attentemos 


bem nas duras condições de vida d'esses desherdados e tenhamos para 
elles um intimo perdão. Roubando o rangifero, o lapão procura apenas 
—um companheiro. 


OS GAMOS 


Este genero é caracterisado pela existencia de cornos redondos na 
base e espalmados nas extremidades. Nos gamos a cauda é muito com- 
prida e o pêllo é malhado tanto nos individuos novos como nos adultos 
ou nos velhos. Na femea não ha cornos. . 


1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 269. 


52 HISTORIA NATURAL 


O GAMO 


Este ruminante é de menores dimensões que aquelles de que nos 
temos occupado. Desde o focinho até à raiz da cauda não mede mais que 
um metro e sessenta e cinco centimetros de comprimento, tendo de al- 
tura um metro. Distingue-se dos veados propriamente ditos pelos mem- 
bros que são mais curtos e menos fortes, pelo tronco que é menos ro- 
busto, pelo pescoço que é mais curto, pelas orelhas e pela cauda que 
são menos compridas e finalmente pela côr do manto. No estio, o dorso, 
as coxas e a extremidade da cauda são de um ruivo trigueiro; o ventre, 
a face interna das pernas são brancos e os olhos cercados de escuro; 
os pêllos do dorso são brancos na raiz, ruivos no meio e negros na 
ponta. No inverno, a cabeça, o pescoço e as orelhas são de um pardo 
trigueiro, o dorso e os lados do tronco negros e o ventre cinzento, por 
vezes com cambiantes ruivas. Ha gamos brancos, durante todo o anno. 
Os gamos inteiramente negros são raros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Créem alguns naturalistas ser o gamo originario das costas do Me- 
diterraneo, tendo-se pouco espalhado para o norte. Wagner, fundado em 
solidos documentos, faz remontar a apparição d'este ruminante aos tem- 
pos ante-historicos. Hoje o bello animal encontra-se em França, na Italia, 
na peninsula iberica e sobretudo na Inglaterra, onde existe em grande 
numero. 


COSTUMES 


Diz-se geralmente que o nome latino cervus dama, por que este 
animal é conhecido, o deve à circumstancia de ser ou ter sido uma caça 
favorita das senhoras. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 33 


O gamo prefere as regiões accidentadas, onde ha charnecas, bos- 
ques de terreno pedregoso ou florestas cujo solo se cobre de herva 
curta. Nos habitos de vida assemelha-se um pouco aos veados propria- 
mente ditos. Tem os sentidos perfeitos como os destes ultimos, mas não 
a agilidade d'elles. Os modos são graciosissimos: trota ligeiramente, 
salta barreiras de dois metros de altura e nada muito bem. O regimen 
alimentar do gamo é o mesmo que o dos veados propriamente ditos; 
tem no entanto uma maior inclinação a roer as cascas das arvores, o 
que o torna extremamente prejudial. Fallando do regimen, um facto de- 
vemos mencionar: é que o gamo come muitas vezes plantas venenosas 
que o matam. Ou o instincto n'este ruminante nunca possuiu aquelle grao 
de subtil desenvolvimento que o torna para o animal um guia seguro, 
o melhor de todos os guias, ou, por uma circumstancia qualquer, pela 
approximação do homem talvez, elle perdeu esse poder. Brehm conta 
que no jardim zoologico da Prussia um rebanho inteiro de gamos suc- 
cumbira à ingestão de cogumelos. 

O gamo é de ordinario fiel à morada que uma vez escolheu; em- 
bora a abandone por algum tempo, volta a ella. 

Durante o periodo do cio, o gamo reune-se aos companheiros para 
formar bandos ou rebanhos que se confundem por algum tempo, sepa- 
rando-se depois. N'essa epocha o animal apresenta-se excitadissimo; 
brame a noite inteira e entrega-se a combates encarniçados com os com- 
panheiros. Assim, nos jardins zoologicos é impossivel manter junctos os 
machos de edade superior a trez annos. Ordinariamente, um macho co- 
pula oito femeas. A quadra agitada dos amores é de curta duração; não 
excede quinze dias e realisa-se em meiados de Outubro. 

À gestação dura oito mezes; o parto tem pois logar em Junho, pro- 
duzindo um só filho, raras vezes dois, pelos quaes a mãe revela uma 
extraordinaria sollicitude. Aos seis mezes apparecem no gamo as salien- 
cias frontaes e aos oito rompem os cornos, que se vão lentamente des- 
envolvendo e complicando. 


Caça-se o gamo pelo processo da montaria e pelo da embuscada. É 
necessaria n'esta caça uma extraorninaria prudencia, porque o rumi- 
nante em questão é dos mais vigilantes e timidos. Uma circumstancia 


interessante e da qual muitas vezes se aproveitam os caçadores, é que 
VOL. II 3 


54 HISTORIA NATURAL 


o animal não foge diante dos homens que assobiam e cantam, assim 
como não foge diante dos cavallos ou dos carros. 

Esperar o animal de embuscada para matal-o, não é difficil, desde . 
que se conhece a pronunciada tendencia que elle tem a voltar à morada 
primitiva, ao logar primeiro escolhido para habitação. 

O processo da montaria emprega-se fazendo levantar em torno dos 
sitios habitados pelo gamo altas estacarias n'uma extensão circular de 
mais de uma milha, e perseguindo depois o animal no interior de modo 
a que elle não encontre por onde sair. Este genero de caça, aflirma Sa- 
muel Hearne, é ás vezes, extraordinariamente productivo. 


CAPTIVEIRO 


O gamo vive perfeitamente nos jardins zoologicos. Nem é astuto, 
nem mau, mas, ao contrario, alegre e amigo de brincar; apenas durante 
o mau tempo se conserva inquieto. Parece que o impressiona agradavel- 
mente a musica. Na epocha do eio apresenta-se um pouco irritavel; de 
resto, este estado é transitorio, dura muito pouco tempo. 


USOS E PRODUCTOS 


A pelle do gamo é nos usos industriaes preferivel à dos veados 

, propriamente ditos. A carne é boa, principalmente desde Julho a meia- 

dos de Setembro; na epocha do cio impregna-se de um forte cheiro a 
bodum, motivo por que então se não deve abater o ruminante. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


Ga 
QT 


OS VEADOS PROPRIAMENTE DITOS 


N'este grupo só o macho apresenta prolongamentos frontaes. As 
fossas lacrimaes são apparentes. Nos machos velhos e ás vezes, embora 
mais raramente, nas femeas velhas os caninos superiores são proemi- 
nentes. 


O VEADO ORDINÁRIO 


É um dos mais bellos exemplares do grupo. É forte, elegante, de 
um porte altivo e nobre. Tem dois metros e trinta centimetros de com- 
primento, não contando a cauda que mede quinze centimetros. A altura 
é, ao nivel da espadua, de um metro e cincoenta e, ao nivel do sacro, 
superior um pouco. N'este ruminante o peito é largo, as espaduas são 
salientes, o dorso é recto e chato, a região do sacro arredondada, o 
pescoço comprido, fino e comprimido lateralmente, a cabeça comprida, 
o focinho fino, o dorso do nariz recto, os olhos expressivos, de pupilla 
oval e alongada. As fossas lacrimaes são dirigidas obliquamente para o 
angulo da bocca; são grandes e formam uma cavidade estreita, alon- 
gada, cujas paredes segregam uma certa porção de massa gordurosa, 
que o animal expulsa exercendo atritos do corpo contra as arvores. Os 
cornos são extensos e muito ramificados. A haste principal ou tronco da 
arborisação cornea apresenta sulcos longitudinaes, uns rectos, outros si- 


“Nnuosos, existindo entre elles tuberculos alongados, arredondados ou irre- 


gulares. Os membros são de comprimento medio, finos, mas vigorosos; 
as patas apresentam cascos direitos, finos e ponteagudos. A cauda é co- 
nica, de extremidade aguda. O corpo é coberto de duas especies de 
péllo: um fino, outro sedoso, grosseiro e espesso. No estio o pêllo é 
mais raro e mais curto do que no inverno. A côr do animal varia se- 
gundo as estações, a edade e o sexo. De inverno os pêllos asperos são 


de um pardo trigueiro e no estio ruivos trigueiros; os péllos finos são 
* 


56 HISTORIA NATURAL 


cinzentos com a ponta ruiva. Os péllos que cercam a bocca são negros 
e os que contornam o anus, amarellados. O animal nos primeiros tem- 
pos de existencia é ruivo trigueiro com manchas brancas. De sexo para 
sexo, as variantes de côr são notaveis tambem. Os veados completa- 
mente brancos ou maculados de branco são raros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O veado ordinario existe em toda a Europa, excepção feita para o 
extremo norte, e bem assim n'uma grande parte da Asia. Nos paizes ha- 
bitados tem diminuido consideravelmente, havendo alguns, como a 
Suissa, d'onde tem completamente desapparecido. Na Polonia, na Galiza, 
na Bohemia, na Moravia, na Hungria, na Transylvania e no Tyrol não é 
raro, antes abundante; existe em grande numero no Caucaso. 


COSTUMES 


O veado ordinario prefere sempre as montanhas às planícies; mas 
o que principalmente e acima de tudo estima são as florestas de gran- 
des arvores copadas. É ahi que se organisam os grandes bandos em que 
entram individuos de todas as edades e d'ambos os sexos, assim como 
as pequenas agremiações simplesmente formadas de machos já velhos. 
De inverno, o veado desce à planicie, porque a isso o forçam circums- 
tancias superiores; no estio porém, sobe de novo às montanhas. Em ge- 
ral, e a menos que o não perturbem ou que lhe não falte o alimento, 0 
veado conserva-se fiel à habitação primeiro escolhida; na estação do 
cio, é verdade, affasta-se d'ella, mas sempre para voltar desde que a, 
excitação genesica passa. 

O veado ordinario conserva-se geralmente recolhido durante o dia 
inteiro no seu escondrijo; de tarde sae a procurar o alimento, o que 
faz mais cedo de verão do que de inverno. Observemos no entanto que 
nos Jogares perfeitamente tranquillos em que sabe que ninguem irá per- 
turbal-o, o veado ordinario vagueia mesmo durante o dia. Quando sae à 
busca de alimento, caminha a trote; de madrugada, volta marchando 


o Da O 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 37 


lentamente. No dizer de alguns naturalistas, o orvalho é-lhe extrema- 
mente desagradavel. 

No veado ordinario todos os movimentos são graciosos, elegantes e 
ao mesmo tempo revestidos de um certo caracter de nobreza. Marcha 
lentamente, trota com grande rapidez e corre com uma velocidade es- 
pantosa; quando trota, alonga o pescoço e quando gallopa, lança-o para 
traz. Dá saltos prodigiosos, vence os maiores obstaculos e attravessa 
sem hesitação rios e até braços de mar. 

O caçador experimentado reconhece pela inspecção da pista o veado 
e reconhece se se trata de um macho ou de uma femea e até mesmo 
determina com pequeno erro a idade do animal cujos vestigios no solo 
examina. Para os calculos em questão serve não só a inspecção dos ves- 
tigios que as patas deixam no solo, senão tambem a distancia Rec toca 
d'esses vestígios. 

O veado ordinario possue os sentidos do ouvido, da vista e do ol- 
fato extremamente desenvolvidos. Parece que os sons de alguns instru- 
mentos musicaes lhe produzem uma impressão agradavel, porque quando 
os ouve suspende a marcha, deixa-se ficar parado no logar d'onde prin- 
cipiou a escutal-os. 

O veado é extremamente timido. Parece porém, que a timidez não 
constitue n'este ruminante um caracter original, mas é simplesmente o 
resultado da experiencia que lhe ensina a precaver-se do homem, de 
quem ha muitos seculos se habituou a esperar apenas a dureza das per- 
seguições. O que nos confirma n'esta opinião é o facto de que os veados 
nos logares em que os não attacam, em que lhes não fazem caça, estão 
muito longe de offerecer a timidez de que vimos fallando e, pelo contra- 
rio, consentem que o homem se approxime d'elles até à distancia de 
trinta passos; ha-os mesmo que levam a confiança até se acercarem do 
homem, lambendo-lhe as mãos. 

No tempo do cio o veado é de uma irritabilidade extraordinaria. É 
então um animal perigoso, porque chega a arremetter contra o homem; 
os livros de historia natural archivam muitos destes factos desgraçados, 
succedidos uns nos bosques, em liberdade, outros em captiveiro, nos 
jardins zoologicos. A femea nunca experimenta estes accessos de furia. 
Segundo Dietrich de Winckell, a estação do cio começa em Setembro e 
termina em meiados de Outubro; mas, segundo o mesmo auctor, já em 
fins de Agosto os machos, quando estão muito gordos, entram em cio, 
fazendo ouvir altos gritos de uma tonalidade desagradavel. É então tam- 
bem que entre os machos se ferem os grandes combates de que deriva 


a posse da femea. Ás vezes os combatentes enlaçam, prendem os cornos 


por modo que se lhes torna impossivel separarem-se e acabam por mor- 
rer de fome no logar do combate. 


38 WISTORIA NATURAL 


A gestação dura quarenta a quarenta e uma semanas, parindo a fe- 
mea, conforme foi fecundada no começo ou no fim da epocha do cio, em 
Maio ou Junho um filho, raras vezes dois. O recemnascido é nos primei- 
ros trez dias de vida muito fraco; a mãe tem por elle uma extraordina- 
ria solicitude. Ao fim da primeira semana porém, o filho encontra-se já 
perfeitamente apto para seguir a mãe por toda a parte; a amamentação 
dura até à mais proxima quadra do cio que se realisa. 


INIMIGOS 


Além do homem que lhe move guerra, tem o veado por inimigos 
naturaes o lobo, o Iynce, o glutão e o urso. De todos, os mais perigosos 
são 0 lobo e o lynce; o primeiro, porque em matilhas persegue o veado 
no tempo das neves e o segundo, porque do alto das arvores se lhe atira 
de improviso sobre o dorso. 


CAÇA 


Foi uma diversão muito vulgar n'outro tempo a caça do veado. Hoje 
é rara e onde existe, parece ter-se tornado privilegio exclusivo de ricos 
proprietarios. O abandono da caça do veado é hoje tal que os naturalis- 
tas contemporaneos nem a descrevem. 


CAPTIVEIRO 


Nas primeiras edades, o veado domestica-se facilmente. Os machos 
porém, à medida que envelhecem, tornam-se maos e perigosos para as 
pessoas que d'elles se approximam; as femeas são doceis sempre. Po- 
de-se ensinar ao veado muitos Jogos de destreza; ha saltimbancos que 
os exibem perfeitamente educados n'esta especialidade. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 39 


DOENÇAS 


O veado, do mesmo modo que o rangifero, é vivamente atormen- 
tado por alguns insectos que lhe depositam os ovos na pelle, mais tarde 
dilacerada pelas larvas. Ainda o incommodam cruelmente alguns episoa- 
rios, para escapar aos quaes o ruminante se vê forçado muitas vezes a 
passar horas inteiras mettido em agua. Além d'estes males, que por si só, 
seriam sufficientes para tornal-o infeliz, o veado soffre outros muitos, 
entre os quaes avultam a gangrena do figado, a dysenteria, a carie den- 
taria e a phtysica. Estas doenças fazem nos rebanhos incalculaveis es- 
tragos. 


USOS E PRODUCTOS 


te 


Segundo alguns naturalistas, a utilidade que o veado pode ter para 
a nossa especie não compensa de modo nenhum os estragos de que é 
auctor. É precisamente por esta razão que em algumas localidades se 
tem julgado conveniente destruil-o. «Por elevado que seja, diz Brehm, 
o preço da carne, da pelle ou da armação do veado, por maior que seja 
o prazer de caçal-o, este animal será sempre mais nocivo do que util.» ! 
O mesmo escriptor que acabamos de citar afirma que houve um 
tempo em que a superstição fazia considerar todas as partes organicas 
do veado e até mesmo as suas excreções como de capital vantagem na 
cura de muitas doenças. E então, como facilmente se comprehende, o 
valôr do veado era muito maior do que é hoje. 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 500. 


40 HISTORIA NATURAL 


O VEADO DA BARBARIA 


A distincção morphologica a estabelecer entre esta especie e a pre- 
cedente deriva apenas da armação que é no veado da Barbaria menos 
complicada que no veado ordinario. 


Sob o ponto de vista dos costumes ha entre as duas especies uma 
semelhança perfeita. | 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita as florestas do noroeste d'Africa, sendo ahi muito commum ; 
com effeito os cornos constituem um artigo importante de exportação. 


O VEADO DE BENGALA 


Differe do veado commum em possuir uma estatura mais alta e um 


péllo mais comprido.. Os cornos tomam n'esta sepenio, a certa altura, 
uma direcção vertical. 


Os costumes não differem dos que caracterisam as especies estuda- 
das do mesmo genero. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 441 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Representa o veado commum nas planicies de Nepol. 


há O VEADO AMERICANO 


Distingue-se das especies precedentes em ser de mais avultadas 
proporções. Mede de altura, ao nivel da espadua, metro e meio e a ar- 
mação tem mais de um metro de comprimento. 

Os costumes não offerecem em relação ás especies precedentes dif- 
ferenças sensiveis. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À America septentrional é a patria d'este ruminante. 


OS ZORLITOS 


Não teem dentes caninos. A cauda é quasi nulla e os péllos da re- 
gião posterior do tronco são susceptiveis de se erriçarem sob a influen- 


49 HISTORIA NATURAL 


El 


cia da contração dos musculos cuticulares. Os cornos não são muito ex- 
tensos, nem experimentam mudanças bruscas de direcção; de resto, 
apresentam de ordinario apenas dois galhos terminaes, um anterior € 
outro posterior. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Pertencem à Europa e às regiões quentes da Asia. 


O ZORLITO COMMUM 


Podemos consideral-o o typo do genero. Por isso o descreveremos 
minuciosamente sob o ponto de vista morphologico. 


CARACTERES 


Mede cêrca de um metro e quinze centimetros de comprimento so- 
bre setenta e quatro centimetros de altura; a cauda encontra-se redu- 
zida a um coto de dois centimetros de extensão, apenas. À altura de oi- 
tenta centimetros e o comprimento de um metro e trinta centimetros 
que o animal chega a attingir, são dimensões excepcionaes. 

O zorlito commum é elegante. Differe do veado ordinario em ser 
mais pequeno e ter a cabeça curta e obtusa. A parte anterior do corpo 
do zorlito commum é mais vigorosa que a posterior, o dorso é quasi re- 
cto, a espadua acha-se collocada a um nivel menos elevado que o sacro, 
o pescoço é alongado, os membros são altos e delgados e os cascos finos, 
pequenos e ponteagudos. As orelhas, de comprimento medio são bastante 


a 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 43 


separadas e os olhos grandes e vivos. A armação cornea é sustentada 
por largas saliencias frontaes, sendo as hastes fortes. Segundo Orlasius, 
para avaliar pela armação a edade do animal é mais importante atten- 
der à forma d'ella e ás suas inflexões angulares do que ao numero de 
galhos ou ramos que varía muito de individuo para individuo. De resto, é 
quasi inutil observal-o, ha enormes deformações nos cornos do ruminante; 
muitas vezes, nas colleções apparecem formas extraordinarias e impre- 
vistas. A femea não costuma ter armação; no entanto Radde viu uma 
que apresentava um corno collocado ao meio da região frontal e Block 
viu outra que offerecia aos lados do coronal duas hastes do comprimento 
de seis centimetros. Factos d'esta natureza são excepcionaes, rarissimos., 

O péllo do zorlito é macio e varia com as estações. De inverno é 
mais comprido, especialmente nas partes inferiores, do que de verão. 
Os membros, o dorso e os lados do corpo são ruivos no estio e pardos- 
trigueiros no inverno; o ventre e a face interna das coxas são sempre 
de uma côr mais clara que a do resto do corpo. A região frontal e a 
parte mais anterior do focinho são quasi negros, os lados da cabeça de um 
ruivo amarellado e o mento é branco. De cada um dos lados do labio 
superior existe uma pequena mancha branca e no meio do labio inferior 
uma outra trigueira. A face externa das orelhas é sempre de uma côr 
mais accentuada que a de qualquer outra parte; a face interna é co- 
berta de pêllos de um branco amarellado. A parte posterior do corpo é 
amarellada no estio e branca no inverno. De resto, a côr varia extraordi- 
nariamente; assim existem zorlitos perfeitamente negros, outros inteira- 
mente brancos, etc. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Existe na Europa, excepto nos paizes do norte, e n'uma parte con- 
sideravel da Asia. Tem desapparecido de muitas regiões onde vivia. 


COSTUMES 


Habita de preferencia as grandes florestas, qualquer que seja a col- 
locação d'ellas, ou na montanha ou na planicie. A espessura, a sombra 
parecem ser 0 seu meio. 


44 HISTORIA NATURAL 


Comparando o zorlito commum com o veado ordinario, encontram-se 
crandes semelhanças e grandes differenças. Os movimentos do zorlito 
são vivos e graciosos como os do veado; como este, dá saltos enormes, 
salta grandes barreiras e nada perfeitamente. A vista, o ouvido e o ol- 
fato são no zorlito, como no veado, excellentes. Emfim o zorlito é, como 
o veado, de uma grande timidez. Só quando muito novo se domestica. 
Quando é surprehendido, solta gritos de terror e começa a correr desa- 
tinado sem saber para onde, indo assim facilmente cair nas mãos dos 
inimigos. Ácerca d'esta timidez do zorlito pode repetir-se o que foi dito 
a proposito do veado: que ella é, pelo menos em grande parte, um 
efeito da experiencia que ao animal revela os perigos immensos que o 
cercam. E tanto assim é que nos logares tranquillos, socegados, em que 
se não faz a caça do zorlito, a approximação do homem não é para este 
motivo de receio. 

A voz do zorlito varía muito de tonalidade e de expressão com as 
idades. 

O zorlito juntando-se aos seus congéneres não chega nunca a for- 
mar bandos ou rebanhos tão numerosos como os dos veados ordinarios. 
A maior parte do anno vive em pequenas familias compostas em geral 
de macho, femea e filhos. O macho é o guia, o guarda e o defensor da 
familia. 

A alimentação do zorlito é semelhante à do veado ordinario; gosta 
de folhas, de gomos, de cereaes ainda verdes, de hervas e em geral de 
todas as plantas delicadas. Dá tambem uma grande importancia ao sal e 
à agua fresca. 

Os zorlitos, quando em grande numero, podem causar estragos im- 


-. portantes nas culturas que ficam nas visinhanças das florestas. Se pene- 


tram nos campos, escavam o solo para colocar a nu as batatas, exacta- 
mente como o faz o veado. 

Relativamente ao cio do zorlito, parece dever admittir-se que elle 
se realisa em duas epochas differentes do anno, ou antes que ha um 
verdadeiro cio no verão, em Agosto, e um falso cio no inverno, em No- 
vembro. À femea quando está para parir distanceia-se do macho, isola-se 
d'elle completamente e vae procurar um sitio retirado, solitario, tran- 
quillo onde dá à luz. As femeas ainda novas não teem de ordinario mais 
que um filho por parto; as velhas produzem dois ou trez. A mãe é de 
uma sollicitude extraordinaria pelos filhos; procura com cuidado extremo 
collocal-os. ao abrigo de inimigos e se sente que estes se approximam, 
avisa d'isto os filhos batendo com as patas no chão ou soltando um grito 
particular, característico. Se alguem rouba à femea um filho, a inquie- 
tação d'ella é extrema. Dietrich de Winckell affirma que muitas vezes, 
impressionado pela viva inquietação das mães, se vira constrangido a 


o o a pd - 


MAMIFEROS EM ESPECIAL AB 


dar a liberdade a pequenos zorlitos que apanhára; compensava-o do sa- 
crificio feito o espectaculo da alegria extraordinaria da pobre femea, de 
novo em posse do filhinho. 

Ao fim de oito dias os novos seres estão aptos a acompanharem a 
mãe aos pastos e ao fim de dez ou doze acompanham-a já por toda a 
parte. É então que a femea volta a encontrar-se com o macho de que se 
separára na occasião do parto e que agora retoma a direcção da fami- 
lia. Os novos zorlitos, nascidos em Maio, mamam até Agosto ou Setem- 
bro; no entanto comem desde o segundo mez de existencia hervas que 
a mãe lhes ensina a escolher. Estes novos seres aos quatorze mezes es- 
tão aptos para a reproducção e tornam-se então chefes de uma familia. 

É ao quinto mez de existencia, isto é em Outubro, que apparecem 
as saliencias frontaes no zorlito; no inverno proximo apresentam-se os 
primeiros galhos da extensão de oito a dez centimetros. Em Março é a 
primeira muda de péllo e em Dezembro a primeira queda dos cornos. À 
muda do pêllo e a queda da armação relacionam-se com a actividade das 
funcções genitaes, porque se realisam depois do cio. A nova armação 
apparece no inverno e acha-se completamente desenvolvida quando o 
animal possue já o manto de estio. 


CAÇA 


A caça do zorlito faz-se pelos mesmos processos que servem à do 
veado commum. Na epocha do cio, os caçadores attraem muitas vezes o 
animal, imitando o grito da femea. 


INIMIGOS 


O lynce e o lobo são os principaes; no entanto o gato montez, o 
rapozo e, muitas vezes tambem, a doninha destroem os zorlitos ainda 
novos. 


46 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


Quando se apanha alguns dias apenas depois do nascimento, o zor- 
lito domestica-se com facilidade. É de notar que em captiveiro nunca 
chega a attingir as proporções que o caracterisam em liberdade. Win- 
ckell narra minuciosamente o caso de um zorlito-femea captivo que per- 
tencia a um dos seus irmãos; este ruminante acompanhava as pessoas 
da casa, como se fôra um cão, e vivia numa completa paz com todos os 
animaes domesticos. Na epocha do cio, embora se retirasse para a flo- 
resta, o bello animal não deixava de visitar todos os dias o dono; desde 
que se encontrava no estado de prenhez voltava definitivamente para 
casa. O famoso ruminante teve um fim desastrado, como quasi todos os 
que vivem em captiveiro e não receiam approximar-se do homem: foi 
morto a tiro. | 

Os naturalistas estão de accordo em aíffirmar que para a domestica- 
ção são preferiveis sempre as femeas aos machos, porque estes à pro- 
porção que envelhecem se vão tornando maos, irasciveis, impudentes, 
perigosos até para as creanças. Além d'isto, o zorlito macho não vive em 
captiveiro de boa harmonia com os animaes domesticos. 


USOS E PRODUCTOS 


O zorlito fornece-nos a carne, a pelle e os cornos e é menos preju- 
dicial que o veado ordinario. 


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A GIRAFA 


Magalhães & Moniz, Editores, 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 47 


AS GIRAFAS 


Comquanto ligadas aos veados e ás antilopes por numerosos cara- 
cteres aílins, as girafas constituem no entanto uma familia distincta. Dão- 
lhes direito a isso a singularidade das formas exteriores e a natureza 
dos cornos que são permanentes e cobertos de pelle. 

Esta familia comprehende um genero unico que a seu turno abrange 
uma só especie. D'esta passamos a occupar-nos. 


A GIRAFA AFRICANA 


O grande poeta latino, Horacio, via na girafa um mixto de panthera 
ec de camelo e, segundo Brehm, escriptores que vieram depois, encon- 
trando-a representada nos monumentos do antigo Egypto, consideraram-a 
como simples producto da imaginação artistica. Julio Cesar fazendo appa- 
recer este singular animal nos circos produziu uma viva impressão entre 
os romanos do seu tempo. À Miguel Baudier e a Belon, dois escriptores 
francezes do ultimo quartel do seculo xvr, se devem as primeiras des- 
cripções exactas do animal. 


CARACTERES 


Esta especie distingue-se por um pescoço de comprimento desme- 
surado, por membros altos, por um tronco volumoso, por um dorso in- 
clinado, mais alto na região anterior, por uma, cabeça elegante, emfim 
por dois cornos curtos e cobertos de pelle. A grande altura dos mem- 


48 HISTORIA NATURAL 


bros e a extensão desmesurada do pescoço fazem parecer a girafa, nota 
Figuier, um dos animaes mais altos e ao mesmo tempo mais curtos da, 
classe dos mamiferos. A girafa mede com effeito cêrca de trez metros e 
trinta centimetros de altura ao nivel da espadua e de cinco a seis me- 
tros e vinte e tantos centimetros ao nivel da cabeça; comtudo o tronco 
apresenta de comprimento nada menos de dois metros e trinta centime- 
tros. A cauda mede oitenta centimetros de comprimento, não incluindo 
os pêllos terminaes que a excedem muito. A parte posterior do dorso é 
sessenta centimetros, pouco mais ou menos, mais baixa que a anterior 
ao nivel da espadua. Da extremidade do focinho à raiz da cauda a ex- 
tensão é de quatro metros e trinta centimetros. 

Além das dimensões, outras particularidades existem que devemos 
fazer notar. Horacio quando dizia que a girafa era um composto de pan- 
thera e de camelo, tinha um certo fundo de razão; sómente o notavel 
poeta devêra ter ido mais longe ainda e ter aflirmado que na girafa ha 
todo um composto de muitos outros animaes diferentes. Ella tem com 
effeito, a cabeça e o corpo do cavallo, o pescoço e as espaduas do ca- 
melo, as orelhas do boi, a cauda do jumento, os membros da antilope 
e o péllo da panthera. Esta mistura dá ao ruminante em questão um as-. 
pecto monstruoso. A girafa é com effeito um animal desproporcionado, 
deselegante, em que tudo é feio excepto os olhos e o manto. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À girafa habita hoje a Africa central e meridional entre o decimo 
setimo grao de latitude norte e o vigessimo quarto de latitude sul; o li- 
mite de dispersão a oeste é desconhecido. No Congo e na Senegambia 
não existe, talvez porque estas regiões são montanhosas. 


COSTUMES 


A girafa captiva nos jardins zoologicos não pode bem ser avaliada. 
E em liberdade, é nas bellas florestas do sul d'Africa que ella deve ser 
vista para bem se estudar, diz Gordon Cumming. A girafa é o exemplo 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 49 


mais frisante que existe da conformidade ou adaptação de um animal ao 
meio em que vive. O auctor que acabamos de citar, afirma que é mui- 
tas vezes difficil e até em certas condições impossivel distinguir as gira- 
fas dos troncos d'arvores visinhas. Os selvagens mesmo, a despeito de 
uma vista excepcionalmente perfeita, teem muitas occasiões de se ilu- 
direm, confundindo as girafas com os troncos e os troncos com as gi- 
rafas. 

Este ruminante é sociavel; encontra-se sempre aos grupos de seis 
a oito individuos. Nos logares tranquillos e seguros reunem-se as girafas 
em maior numero, vinte e seis a trinta individuos, segundo Gordon Cum- 
ming. Brehm entretanto aífirma que nunca ouviu fallar senão de peque- 
nos grupos. Os movimentos da girafa, affirmam-o quantos teem visto 
este ruminante, offerecem alguma coisa de singular. | 

A marcha é lenta e a corrida é um galope pezado, mas rapido em 
virtude do comprimento desmesurado dos membros. O pezo da parte 
anterior do corpo é tal que o ruminante para se levantar precisa de 
pender o longo pescoço para traz, deslocando assim o centro de gravi- 
dade. De resto, o pescoço da girafa anda em constante movimento, di- 
zendo Lichtenstein que elle pode comparar-se ao mastro de um navio 
açoutado pelas vagas. Para alcançar uma girafa em corrida é preciso um 
bom cavallo; e quasi sempre, senão sempre o cavallo se fatiga muito 
antes da girafa. Quando bebe ou quando apanha qualquer coisa do solo, 
a girafa toma uma posição singularmente extravagante. Não se ajolha, 
como algumas vezes se tem dito, mas abre ou affasta consideravelmente 
os membros anteriores e estende o pescoço até tocar o chão com os 
labios. 

A girafa ordinariamente não repousa senão de noite; deita-se como 
o dromedario, caindo primeiro sobre as articulações dos membros de 
diante e dobrando depois os posteriores. Para dormir deita-se de lado, 
incurva os membros anteriores e inclina o pescoço para traz, repousando 
a cabeça sobre as coxas. O somno do ruminante é curto e leve; pode 
durante alguns dias seguidos deixar de deitar-se, repousando em pé. 

À girafa tem um regimen vegetal; em virtude da sua conformação 
particular não procura a herva do solo, mas as folhas d'arvores. Compre- 
hende-se perfeitamente, pelo que acima dissemos, quanta difficuldade 
teria o animal em procurar à superficie do solo a alimentação; pelo con- 
trario, é-lhe extremamente facil apanhar as folhas das arvores, ainda 
das mais elevadas. 

À lingua da girafa é de uma extrema mobilidade, o que certamente 
tem grande importancia para o effeito de apanhar as folhas. De resto, 
como se sabe, a lingua é na maioria dos ruminantes um orgão que serve 


para a prehensão das substancias alimentares. Na girafa este orgão é de 
VOL. UL A! 


50. HISTORIA NATURAL 


uma importancia capital e tem para ella os mesmos usos que para o ele- 
phante a tromba. O ruminante estende-a e apanha com ella os objectos 
ainda os mais pequenos e delicados. 

Quando procura o alimento, a girafa é guiada mais pela vista do 
que pelo olfato; e a prova é que não poucas vezes se deixa cair em illu- 
sões como a de apanhar uma flôr artificial confundindo-a com um pro- 
ducto da natureza. 

Ao sul da Africa as mimosas de espinhos constituem o principal ali- 
mento da girafa. Quando tem folhas frescas pode, como o dromedario, 
passar longo tempo sem beber; no tempo secco porém, quando as arvo- 
res se encontram já despidas de folhas e quando não ha senão hervas 
amarellentas, então percorre distancias grandes, de leguas ás vezes, para 
encontrar um curso d'agua onde possa mitigar a sêde. 

A girafa rumina de pé e parece executar esta funcção por um es- 
paço de tempo menor que. qualquer outro animal da mesma ordem. 

À girafa é intelligente e vive em boa harmonia não só com as con- 
géneres, mas ainda com outros animaes, se estes a não perturbam. Em 
occasiões de perigo, se algum carniceiro a attaca, a girafa defende-se 


vigorosamente, não com os cornos, mas a coice. Lembrando o vigor e. 


comprimento dos membros da girafa, facilmente se acredita que este ru- 
minante possa, como affirma Brehm, com uma pancada das largas patas 
matar um leão. ; É 

Na epocha do cio, os machos combatem para a conquista da femea. 
À gestação dura quatorze mezes e uma semana a quatorze mezes e meio. 
Nos jardins zoologicos de Londres e Vienna observou-se da parte das 
mães pelos recemnascidos uma grande indifferença, a ponto de ter de 
fazer-se alimentar os novos ruminantes por vaccas. Dez horas depois do 
nascimento a girafa corre já e ao terceiro dia principia a saltar. 


CAPTIVEIRO 


A girafa é geralmente estimada por toda a parte; d'aqui o desejo 
de mantel-a captiva. Não é difficil obter a realisação de tal desejo; não 
ha animal que melhor se domestique. Cria affeição ao homem e revela 
em todos os seus actos uma intelligencia notavel e uma illimitada con- 
fiança por quantos a cercam. Infelizmente o ruminante não pode subsis- 
tir por muito tempo nos climas da Europa; attaca-o uma doença que 
affecta o systema osseo e que tem mesmo o nome de doença das girafas, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 51 


a qual se deve talvez attribuir à falta de movimentos e de alimentação 
apropriada. Brehm crê que para atalhar ao mal seria necessario fornecer 
ao ruminante o tanino em altas doses, porque, diz este naturalista «as 
folhas de mimosa de que elle se alimenta na patria, são muito ricas 
desta substancia.» * 


USOS E PRODUCTOS 


À carne da girafa serve para alimento, a pelle dá um excellente 
coiro, Os cornos e os cascos emfim servem para a confecção de differen- 
tes utensílios. 


AS ANTILOPES 


Esta familia, constituida por generos na apparencia tão distinctos 
uns dos outros como os de que nos vamos occupar, é conhecida, pelo 
menos n'algumas das suas especies, desde a mais alta antiguidade. 


CARACTERES 


Dada a extrema variedade de generos e especies que esta familia 
abrange e, que estão longe de manter entre si grandes analogias de 
apparencia, é dificil estabelecer de um modo geral os caracteres mor- 
phologicos. Ha com effeito na familia em questão animaes que recordam 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.0, pg. 5241. 


52 HISTORIA NATURAL 


o boi, outros que lembram o zorlito, outros o cavallo, outros ainda o al- 
miscareiro. 

Em geral, pode no entanto dizer-se que as antilopes são animaes 
elegantes, de péllos curtos e de cornos mais ou menos tortuosos. A nuca 
é coberta de pêllo comprido que de ordinario se alonga em torno da 
bocca de modo a constituir uma verdadeira barba como nas cabras. 

A conformação interior das antilopes recorda, pode isto dizer-se de 
um modo geral, a dos veados. 

A femea tem duas ou quatro mamas, raras vezes cinco. Dá à luz 
um filho por cada parto, muito raras vezes dois. A gestação dura seis 
mezes e os filhos ao cabo de quatorze ou dezoito mezes, e às vezes 
mesmo de menos, encontram-se já perfeitamente aptos para a repro- 
ducção. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


As antilopes encontram-se em toda a Africa, na Asia e na Europa 
centraes e meridionaes e na America do Norte. 


COSTUMES * 


Na sua grande maioria, as antilopes vivem nas florestas; ha espe- 
cies no entanto que preferem as altas montanhas, elevando-se até ao li- 
mite extremo das neves perpetuas. Umas procuram as florestas pouco 
densas, outras as de arvores mais copadas, muitas emfim os pantanos 
ou as visinhanças dos cursos d'agua. As especies de grandes dimensões 
reunem-se em bandos muito numerosos; as de pequenas dimensões vi- 
vem em sociedades menores, de ordinario duas a duas. 

Os habitos das antilopes são ao mesmo tempo diurnos e nocturnos; 
n'isto se distinguem estes ruminantes dos veados. Os movimentos são 
vivos e graciosissimos. Um bando ou rebanho de antilopes constitue sem- 
pre para nós um espectaculo encantador, tanta é a belleza de formas 
destes animaes e tanta a elegancia de todas as attitudes que tomam, 
de todos os movimentos que executam. A deselegancia de contornos, o 
pezado dos movimentos são com effeito uma excepção n'esta familia. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 53 


Os sentidos são nas antilopes notavelmente desenvolvidos, princi- 
palmente a vista, o ouvido e o olfato. Não são decerto animaes muito 
intelligentes; são-o comtudo mais que muitos outros ruminantes. São 
curiosas, vigilantes e nunca se abandonam a um repouso descuidado; 
sabem aproveitar as lições da experiencia. Desde que se sentem perse- 
guidas, as antilopes não se entregam ao somno sem que alguma fique de 
sentinella para avisar do menor perigo. 

O regimen das antilopes é exclusivamente vegetal: comem folhas, 
hervas, gommos, rebentos, etc. Algumas especies são de uma grande 
sobriedade; contentam-se com lichens. Se encontram plantas verdes, po- 
dem passar muito tempo sem beber. As especies que habitam o deserto 
olferecem d'isto um exemplo frisante. 


CAPTIVEIRO 


À maior parte das antilopes supportam bem o captiveiro, reprodu- 
zem-se n'estas condições e são agradaveis ao homem. Algumas tornam-se 
verdadeiros animaes domesticos. 


USOS E PRODUCTOS 


As antilopes são animaes utilissimos. Não é possivel estabelecer con- 
fronto entre os estragos que podem causar e que são diminutos e os 
beneficios que nos prestam fornecendo-nos a carne, um bom alimento, a 
pelle e os cornos, de grande prestimo industrial. 


WISTORIA NATURAL 


a 
a) 


A CERVICABRA 


Assemelha-se um pouco ao gamo, sendo comtudo mais pequena, 
mais elegante e mais graciosa ainda do que elle. Tem pouco mais ou 
menos um metro e trinta centimetros de comprido, a cauda mede deze- 
seis centimetros e a altura, ao nivel da espadua, é de oitenta centime- 
tros. O corpo é delgado, o dorso recto e a parte posterior do tronco 
mais alongada que a anterior. À cabeça é arredondada, alta atraz, alon- 
gada adiante; os olhos são grandes e muito vivos. As orelhas são gran- 
des, ponteagudas, e as fossetas lacrimaes formam uma bolsa que o ani- 
mal abre ou fecha à vontade. Os membros são delgados, compridos, os 
posteriores mais altos um pouco que os anteriores. Os cornos são muito 
compridos; medem quarenta e quatro centimetros, são dirigidos de 
diante para traz a direito e contornados em passo de espiral. Muito pro- 
ximos um do outro na raiz, separam-se na extremidade por um espaço 
de trinta centimetros. Ao longo d'estes cornos existem saliencias annula- 
res que são tanto mais numerosas quanto mais velhos são os animaes. 

À côr do animal varia tambem muito segundo a idade e o sexo. Os 
velhos machos são muito escuros, quasi negros; as femeas são pardas e 
os individuos muito novos são trigueiros ou ruivos. Em torno dos olhos 
existe um largo circulo branco. Os péllos são curtos, lisos, espessos, um 
pouco rijos e crespos, como na maior parte dos veados. Os cascos são 
de um comprimento medio, ponteagudos e elegantes. | 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À cervicabra é originaria das Indias, onde habita em grande nu- 
mero; encontra-se principalmente em Bengala. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


Q 
OQ 


COSTUMES 


A cervicabra é um animal sociavel, vivendo aos grupos de quinze 
a dezeseis individuos, pouco mais ou menos. Estas pequenas sociedades 
são geralmente guiadas por um só macho e habitam de preferencia os 
logares descobertos. 

Este ruminante é de uma prudencia extrema. Affirmam os observa- 
dores que, emquanto um rebanho pasta ou descança, ha sempre alguns 
machos ainda novos ou algumas femeas já velhas que se conservam de 
sentinella, prestes a avisarem os companheiros do menor perigo. 

A cervicabra alimenta-se exclusivamente de hervas e plantas sabo- 
rosas; pode passar muito tempo sem beber. 

Ácerca da reproducção não encontramos informações exactas. Pa- 
rece que não existe uma epocha determinada de cio, mas que o coito 
se realisa indifferentemente em qualquer estação ou em qualquer mez 
do anno. Nove mezes depois da approximação sexual, a femea dá à luz 
um filho que nasce completamente desenvolvido. A mãe esconde o filho 
em um logar coberto d'arvores e amamenta-o, conduzindo-o depois para o 
“rebanho onde fica até ter a idade precisa para a reproducção. Por esse 
tempo, o macho que dirigia o rebanho, tomado de ciumes contra o in- 
truso, repelle-o, obriga-o a procurar outro rebanho. A femea está apta 
para a reproducção aos dois annos e o macho aos trez. 

Mao grado todos os cuidados de que se cerca e de que fallamos 
atraz, a cervicabra é victima não poucas vezes da panthera e do tigre. 


CAÇA 


À caça à cervicabra pelos meios ordinarios, como é facil deduzir 
do que dissemos sobre a timidez e prudencia d'este ruminante, seria 
quasi impossivel. O mais leve ruido desperta este animal, o mais pe- 
queno perigo obriga-o a fugir. O indigena não emprega pois os meios 
usuaes, vulgares; elle que conhece bem o animal não poderia fazel-o. 
Para a caça do famoso ruminante, o indigena serve-se de um meio en- 
genhosissimo: toma um macho domesticado, prende-lhe aos cornos mui- 


56 HISTORIA NATURAL 


tos laços corredios, dá-lhe depois a liberdade e procura approximal-o de 

um rebanho selvagem; desde que o ruminante domestico se defronta 

com Os seus congéneres livres, estes, machos e femeas, atiram-se contra 

elle n'um combate pertinaz, do que resulta que, no calôr da acção, mui- 

tos se prendem aos nós corredios e são então facilmente aprisionados. 
É este o melhor genero de caça conhecido. 


CAPTIVEIRO 


Domestica-se facilmente a cervicabra desde que se apanha nos pri- 
meiros tempos de existencia. Supporta bem e por muito tempo o capti- 
veiro, mesmo na Europa, vivendo em harmonia com os seus congéneres, 
com todos os animaes domesticos e dando provas de dedicação ao ho- 
mem. Quando se lhe concede um grande espaço, vive prosperamente; 
confinada, pelo contrario, dentro de estreitos limites, a cervicabra defi- 
nha, torna-se má e attaca muitas vezes os guardas. 

Nas Indias, este ruminante é tido na conta de sagrado. São encar- 
regadas mulheres de lhe darem o alimento, paga-se a musicos que tocam 
em sua honra e só os bhramanes podem comer-lhe a carne. | 


USOS E PRODUCTOS 


A unica utilidade que retiramos da posse da cervicabra é a do 
agrado que nos produz, das boas horas que passamos ao pé d'ella. No 
estomago d'este ruminante existem bezoartes ou concreções calcareas 
que n'outro tempo eram consideradas medicamentos poderosos. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 51 


A SAÍGA 


Pertence a um genero de antilopes que habita a Europa. 


“CARACTERES 


Tem a estatura do gamo, o nariz de notavel proeminencia anterior, 
as orelhas muito curtas e largas e o focinho curto tambem. O péllo é es- 
pesso, molle, um pouco mais comprido na região da nuca, no dorso e 
na parte anterior e inferior do pescoço que em qualquer outra parte. À 
cabeça e o pescoço são de ordinario cinzentos; as espaduas, o dorso e 
os flancos de um branco ou cinzento amarellado; o ventre e a face in- 
terna dos membros são brancos; finalmente a parte media do dorso é 
de um trigueiro accentuadamente escuro. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita a Europa oriental desde a Polonia até aos montes Altai. 


COSTUMES 


À saiga é sociavel; no outomno agremia-se em bandos de alguns 
milhares de individuos que se dirigem ás regiões mais quentes para pas- 
sarem O inverno, e voltam ao ponto de partida na primavera. 

Outubro é a epocha do cio; travam-se então entre os machos gran- 
des combates violentos para a conquista das femeas. Em Maio realisa-se 


58 HISTORIA NATURAL 


o parto, dando a femea à luz um filho unico. Ao fim do primeiro mez ap- 
parecem os cornos € ao quarto encontram-se já com metade do compri- 
mento que deverão attingir definitivamente. 

A saiga, como muitos outros animaes, gosta immensamente de sal e 
procura-o com tenacidade. Strabon, naturalista antigo, disse que a saiga 
quando bebe aspira a agua não só pela bocca como pelo nariz; Brehm 
confirma esta informação. 

Se um rebanho se apascenta, ha sempre uma saiga que vigia pelos 
companheiros; se esta se deita, ergue-se uma outra que a substitue. 

À vista não é boa n'este ruminante; em compensação porém, o ou- 
vido e o olfato são muito desenvolvidos. Á menor suspeita de perigo, a 
saíga junta-se às companheiras, olha em torno de si com inquietação e 
foge o menos ruidosamente possivel; o macho caminha na frente, ve- 
lando pela segurança do bando. 


INIMIGOS 


Os mais terriveis são o lobo e um insecto, o tabão. O lobo attaca os 
bandos, destroe-os ás vezes completamente e devora os individuos, dei- 
xando-lhes apenas o craneo. O tabão deposita .sobre a pelle da saiga os 
ovos, às vezes em quantidade tal que as larvas correspondentes deter- 
minam uma gangrena e produzem a morte do animal. Entre as aves en- 
“contra tambem a saiga um poderoso inimigo, a aguia. 


CAÇA 


Não é difficil a caça da saiga, por dois motivos differentes: porque 
este animal se cança com facilidade e porque o menor ferimento é para 
elle fatal. Persegue-se a cavallo e com o auxilio dos cães; o cavallo fati- 
ga-o pela corrida e os cães matam-o às dentadas. Tambem se caça a 
saiga com armas de fogo e com aves de rapina. Quando este ultimo caso 
tem logar, não é o falcão que se emprega, mas a aguia real que é por 
instincto um dos mais implacaveis inimigos do ruminante em questão. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 59 


CAPTIVEIRO 


Nos primeiros tempos de existencia a saiga domestica-se perfeita- 
mente. Segue o dono como um cão, não tendo mesmo duvida em attra- 
vessar atraz d'elle rios a nado. Diante dos seus congéneres selvagens, a 

“Saiga domesticada foge precipitadamente. 


A CERVICABRA DE PATAS NEGRAS 


É um animal elegante, de dois metros de comprimento sobre um de 
altura. Tem os cornos extensos, negros, caminhando até certa altura ver- 
ticalmente e formando depois um arco de concavidade interna. O péllo 
é ruivo ou amarello carregado; o ventre, o peito, a face interna dos 

“membros e das orelhas, os labios, uma pequena macula sub-occular e a 
face inferior da cauda são brancos. Ao longo do dorso corre uma facha 
escura que se divide na origem da cauda e desce para as coxas. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita o sul da Africa. 


60 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


E muito sociavel este ruminante; encontram-se às vezes bandos que 
os caçadores affirmam conter alguns centos de cabeças. De resto, não 
encontramos esclarecimentos de qualidade alguma sobre os habitos de 
vida d'este ruminante africano. 


AS GAZELLAS 


São animaes de extrema elegancia, de uma graça sem egual, de 
uma agilidade incomparavel. «No deserto, diz Brehm, a gazella é uma 
apparição encantadora, poetica; não admira pois que desde os mais re- 
motos tempos a tenham cantado com amor os poetas do Oriente. O es- 
trangeiro, o habitante das frias regiões do Norte, comprehendem, ao 
vêl-a em liberdade, porque é que tanto lhe querem os arabes.» ! E na 
verdade os arabes estimam a gazella acima de tudo; n'ella encontram 
um termo de comparação para tudo quanto é bello, para tudo quanto é 
encantador: um olhar que os fascina é um olhar de gazella, um pescoço 
bem contornado, elegante é um pescoço de gazella, etc. 

Os antigos Egypcios consagravam a Isis uma gazella. É tambem a 
este ruminante que se refere, comparando-o a um amigo, o auctor do 
Cantico dos Canticos, 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 532. 


ASSES 


H, Gobin del, Ê = ? pe 


Imp arame, a Paris, 


1. À CAZELLA 2. O ARGULL. 


Magalhães & Moniz, editores. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 61 


CARACTERES 


As gazellas teem os cornos em anneis, as orelhas compridas e pon- 
teagudas e a cauda curta, terminada por um tuffo de pêllos. 
Estudaremos uma especie unica. 


A GAZELLA 


“A grandeza maxima da gazella parece ser de metro e meio de com- 
prido, incluida a cauda, sobre sessenta e seis centimetros de alto, ao ni- 
vel da espadua. O corpo é refeito embora a altura dos membros o faça 
parecer delgado. A parte posterior do tronco é um pouco mais elevada 
que a anterior; a cauda é curta, os membros são altos e finos e os cas- 
cos elegantes. O pescoço é comprido. As orelhas teem uma extensão 
pouco mais ou menos egual a trez quartos da cabeça; os olhos são gran- 
des, vivos e ao mesmo tempo de uma extraordinaria doçura. N'esta es- 
pecie ambos os sexos apresentam armação; os cornos do macho são po- 
rém, mais fortes que os da femea. N'um e n'outro sexo, estes appendi- 
ces frontaes são inclinados para cima e para traz, mas com a extremi- 
dade livre voltada para diante e para dentro de modo a darem idéa de 
uma lyra. À côr do péllo é um amarello arenoso, em geral; no dorso e 
nos membros porém predomina o ruivo e no ventre, o branco. De resto, 
parece-nos inutil insistir, como fazem alguns auctores, sobre as cambian- 
tes mais ou menos pronunciadas ou ligeiras de côr, offerecidas por esta 
ou por aquella região do corpo, por isso mesmo que existem na especie 
muitas variedades sob este ponto de vista especial. 


62 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita o norte da Africa, o alto Egypto, a Arabia, o centro da «sia. 


COSTUMES 


À gazella encontra-se sempre nos logares desertos, nas planícies; 
nas montanhas e à beira dos rios é rarissima. Em Kordofahm encon- 
tram-se muitas vezes rebanhos ou bandos de gazellas de quarenta a cin- 
coenta cabeças; nos logares favoritos do elegantissimo ruminante é, to- 
davia, muito raro encontrar sociedades de mais de trez a oito indivi- 
duos. D'estas sociedades, as mais pequenas compoem-se ordinariamente 
de macho, femea e um filho—que os acompanha até à mais proxima 
estação do cio. 

A gazella vive em movimento quasi constante e é por isso que quem 
viaja pelo deserto tem a certeza de encontral-a passado pouco tempo; 
exceptuando na epocha do grande calôr o tempo que vae do meio dia 
às quatro horas da tarde, em que o animal rumina tranquillamente à 
sombra das mimosas, todo o resto do dia o passa em movimento. Note- 
mos com L. Figuier que, apesar de se encontrar a cada passo no de- 
serto, não é tão facil como poderia parecer o vêl-a distinctamente, pela 
razão de que o manto tem uma côr muito parecida com a do solo. E 
com effeito, o leitor decerto se recorda de que atraz dissemos que a 
côr fundamental do pêllo da gazella é um amarello arenoso. É por isso 
que a vista de um europeu não póde distinguil-a à distancia relativa- 
mente curta de um kilometro; os arabes, cuja vista tem um grande 
exercicio nas percepções a distancia, percebem a gazella a oito kilome- 
tros. 

As gazellas quando ruminam à sombra das mimosas procedem sem- 
pre com a cautella excessiva que a timidez naturalmente lhes inculca; 
d'entre todas ha uma que faz sentinella e que, emquanto as outras estão 
deitadas, se conserva de pé, attenta a quanto se passa para avisar do 
menor perigo. A um signal da sentinella todo o bando se põe em fuga. 

A vista, o ouvido e o olfato são sentidos perfeitissimos na gazella; 


nn di Aa e, 


E E Pq 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 63 


a memoria é excellente, o que lhe permitte tirar immensos recursos da 
experiencia. 

A gazella é inoffensiva e naturalmente timida, o que de modo ne- 
nhum significa que lhe falte a coragem nos momentos precisos. Nos ban- 
dos ou rebanhos é frequente, sobretudo na epocha do cio, ferirem-se 
tremendos combates em honra das femeas. No entanto a gazella vive em 
paz com os outros animaes e não é mesmo muito raro encontral-a arre- 
banhada com outras especies de antilopes. A timidez da gazella é antes 
prudencia. | 

O tempo do cio é variavel segundo as condições climatericas. Ao 
norte d'Africa realisa-se no mez de Agosto e prolonga-se até Outubro; 
nos tropicos principia ao declinar de Outubro e prolonga-se até fins de 
Dezembro. É por este tempo que se travam as luctas sangrentas e tena- 
cissimas em que não é raro que os machos combatentes partam a arma- 
ção. O vencedor, o mais forte é o preferido pela femea. Ao norte o parto 
tem logar nos fins de Fevereiro ou começos de Março e ao sul desde 
Março até Maio. A gestação dura cinco a seis mezes e o producto é um 
filho unico, extremamente fraco nos primeiros dias-de existencia. Esta 
fraqueza dos filhos impõe aos paes o dever de uma sollicitude continua, 
se me consentem a phrase. E de facto macho e femea vigiam o recem- 
nascido e o protegem contra os animaes ferozes. Esta vigilancia, este 
amôr, esta sollicitude, forçoso é confessal-o, nem sempre dão o resul- 
tado a que miram; metade talvez das gazellas nos primeiros dias de 
vida são victimas, affirma Brehm, dos carniceiros, o que não deixa de 
ser-nos util, porque a reproducção illimitada da gazella implicaria a ruina 
de toda a vegetação. 


CAÇA 


Caça-se a gazella com ardor, com verdadeira paixão. Isto explica- 
nos a multiplicidade de meios empregados na perseguição do animal. 
Com effeito, caça-se o animal usando das armas de fogo, empregando o 
falcão, recorrendo ao auxilio dos galgos ou ainda ao das aguias. 

A caça com o falcão e com a aguia é simples, é facil: o caçador 
leva preza a ave de rapina até avistar a gazella e larga-a então; a ave 
eleva-se na atmosphera até uma certa altura, fita d'ahi a preza e desce 
sobre ella lançando-se-lhe ao pescoço, abrindo-lhe as arterias, sangran- 
do-a até à morte. O homem n'este caso torna-se mero espectador; in- 
tervem apenas para apanhar e conduzir comsigo o animal abatido. À 


64 HISTORIA NATURAL 


caça pelas armas de fogo é um pouco mais difficil, o que naturalmente 
se comprehende recordando o que dissemos da rn dência da gazella. 
Neste processo de caça, todos os cuidados são poucos da parte do ho- 
mem para não se fazer sentir pelo ruminante antes de ter attingido uma 
distancia a que possa com segurança atirar. Brehm, no entanto, conta 
que n'uma excursão ao norte da Abyssinia lográra simplificar este pro- 
cesso de caça por um meio engenhoso. O naturalista ía a cavallo na com- 
panhia de um amigo e levando um creado: desde que avistavam um 
bando de gazellas, o naturalista desmontava, fazendo-se substituir na 
sella do cavallo pelo creado; o naturalista seguia a pé, rastejando na di- 
recção dos ruminantes, em quanto os dois cavalleiros, companheiro e 
creado, continuavam o caminho. As gazellas attentas à marcha dos ca- 
vallos, esqueciam-se de vigiar em torno; assim Brehm conseguia appro- 
ximar-se d'ellas até uma pequenissima distancia. A caça por este meio 
tornava-se às vezes muito productiva. 

Em alguns logares, quando muitos caçadores em perseguição das 
gazellas fazem ouvir de momento a momento as detonações dos tiros, é 
bello vêr os ruminantes correrem para as collinas, para os pequenos 
montes cobrindo-lhes rapidamente as eminencias, expiando d'ahi como 
de um observatorio todos os movimentos dos perseguidores. Sobre o azul 
do ceu desenham-se então nitidamente os contornos elegantissimos do 
animal e todas as suas formas se apreciam exactamente a distancia. 

Nos desertos não é raro que a gazella perseguida se esconda por 
traz de pequenas collinas de areia tão communs ahi. 

E digno de observar-se que a gazella quando perseguida pelo ho- 
mem, não foge com toda a velocidade de que é capaz; a carreira do ru- 
minante só se faz com toda a rapidez quando a perseguição é a de um 
cão de caça. Neste caso, a mea é extraordinariamente rapida; parece 
que a gazella voa. 

Os meios que acabamos de expor são os principalmente emprega- 
dos na caça do ruminante em questão; no entanto no interior da Africa 
emprega-se tambem as armadilhas. Cada um d'estes apparelhos é for- 
mado, segundo a descripção de Brehm, de um circulo de madeira offe- 
recendo um certo numero de ourificios nos quaes penetram outros tantos 
paus em direcção inclinada e convergente para baixo, sendo na extremi- 
dade livre ponteagudos. A cada uma d'estas armadilhas prende-se um 
nó corrente ligado a um grosso pau. A armadilha colloca-se n'um pe- 
queno fosso cavado na areia, nos logares que são transito habitual da 
gazella. O ruminante ao passar colloca uma pata sobre qualquer dos paus 
da armadilha, resvalla, cae ao fosso, magoa-se, procura desprender-se 
agitando-se, e assim serra o nó. Vendo-se preza a um grosso pau que a 
incommoda, a gazella foge, corre com toda a velocidade possivel, arras- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 65 


ta o pau e consegue apenas partir a perna enleiada. O caçador, quando 
vae examinar as armadilhas e descobre que uma gazella se deixou pren- 
der, colloca-lhe na pista um cão adestrado que vae descobrir o animal 
guiado pelo sulco que o pau deixou sobre o solo. 


INIMIGOS 


Além do homem, conta a gazella entre os seus inimigos mais terri- 
veis o cuguar e os cães do deserto. 


CAPTIVEIRO 


A gazella, apanhada quando nova, supporta bem o captiveiro e do- 
mestica-se mesmo com uma certa facilidade. Nas casas dos europeus ao 
norte e éste d'Africa vêem-se quasi constantemente gazellas domestica- 
das. Estas gazellas seguem o dono por toda a parte, como fazem os cães, 
entram pelas salas, rodam em torno da meza de jantar, implorando ali- 
mento, saem de casa, fazem excursões no deserto, mas voltam ao fim da 
tarde ou quando ouvem a voz do dono. | 

“Nos climas europeus é tambem possivel conservar a gazella longo 
tempo em captiveiro, desde que se lhe dá sufficiente campo e os cuida- 
dos precisos, especialmente os que se referem a preserverar o animal 
dos rigores dos frios. No estio é preciso fornecer ao ruminante espaço 
sulficiente para que elle possa desenvolver-se, caminhar em liberdade; 
no inverno é necessario fornecer-lhe um aido quente. Não ha decerto 
melhor ornato para um parque do que um bando de gazellas. 

Alimenta-se a gazella captiva de pão, feno, cevada, trevo e hervas 
verdes, se as ha. Gosta muito de agua com mistura de farello, como é 
uso vulgar dar ás cabras. Bebe pouco; um simples copo d'agua basta- 
lhe para um dia. Aprecia muito o sal. 

A gazella reproduz-se em captiveiro principalmente ao sul, desde 


que é bem tratada. Fornecem-nos a prova os jardins zoologicos euro- 
peus. 


VOL. III 5 


66 HISTORIA NATURAL 


AS CAMURÇAS 


Teem o porte das cabras, de que adiante havemos de occupar-nos, 
e são caracterisadas pela posse de cornos lisos, immediatamente collo- 
cados acima das orbitas, verticaes até certa altura e bruscamente recur- 
vos para traz na extremidade. Nas camurças, os appendices frontaes 
existem nos dois sexos e quasi com a mesma forma. A cauda é curta e 
as glandulas mamarias duas. 


Conhece-se uma especie unica de que passamos a fazer a des- 
cripção. 


A CAMURÇA DA EUROPA 


Assemelha-se muito às cabras, distinguindo-se todavia por um corpo 
curto, refeito, pernas compridas e fortes, pescoço alongado, orelhas 
ponteagudas e pela forma dos cornos. Mede um metro e vinte a um 
metro e vinte oito centimetros de comprimento, não incluindo a cauda 
cuja extensão é de oito centimetros; a altura, ao nivel da espadua, é 
de setenta e seis centimetros e a extensão dos cornos de vinte e oito a 
trinta. A região posterior do tronco é um pouco mais elevada que a an- 
terior. Um macho velho pode pezar quarenta a cincoenta kilogrammas, 
sendo todavia certo que raras vezes excede trinta. O macho tem os cor- 
nos um pouco maidres e mais afastados que os da femea. 

O manto da camurça da Europa varia muito de estação para esta- 
ção. No estio é de um trigueiro arruivado, passando a amarello claro 
no ventre. Ao meio do dorso ha uma linha de um trigueiro carregado. 
À garganta é amarella e a nuca de um branco amarellado. As espaduas, 
as coxas, O peito e as partes lateraes do tronco são de um pardo es- 
curo; a parte posterior do tronco é branca. A face superior e a raiz da 
cauda são de um pardo arruivado; a face inferior e a extremidade são 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 67 


negras. Uma facha negra, perfeitamente delimitada, parte da orelha e 
passa por diante dos olhos. Manchas de um amarello ruivo encontram-se 
no angulo anterior do olho, entre as narinas e o labio superior. 

No inverno a camurça é de um trigueiro muito escuro, tendo po- 
rém o ventre branco. A parte inferior dos membros é mais clara que a 
superior e offerece reflexos ruivos. Os pés e a cabeça são de um branco 
amarellado Uma facha longitudinal negra estende-se da ponta do focinho 
até às orelhas. 

A muda de pêllo faz-se tão insensivelmente que o animal só durante 
muito pouco tempo apresenta o manto de inverno, ou o manto de verão, 
taes como acabamos de descrevél-os. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


«A patria da camurça, diz Brehm, são os Alpes. Encontra-se este 
ruminante desde a Saboia até Abruzzes passando pelo sul da França; 
depois, para o sudoeste, atravez das montanhas da Dalmacia até á Gre- 
cia, sobre os rochedos de Veluzi; para o norte até aos Carpathos, em 
Tatra. Differirão especificamente as camurças dos Pyrineus, de Hespanha 
e dos Alpes? Não sabemos responder. Nos Alpes as camurças são vulga- 
res, exceptuando a Baixa-Austria onde se lhes faz uma guerra, uma per- 
seguição contínua. 

«Encontram-se ainda as camurças no Caucaso, na Georgia, na Sibe- 
ria; são porém pouco conhecidas, motivo por que nos abstemos de fa- 
zer-lhes a descripção.» * 


COSTUMES á 


A camurça prefere para viver as regiões elevadas, principalmente 
no estio. Ao amanhecer, a camurça desce, procurando pastos, pelos flan- 
cos das montanhas; ao meio dia deita-se à sombra de um rochedo ou 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 552. 


68 HISTORIA NATURAL 


de uma arvore e depois de um certo tempo, sobe de novo a montanha 
em demanda de um logar onde repouse mais longamente e onde ru- 
mine. Á noite, abriga-se entre os rochedos, nas grutas ou sob as salien- 
cias que elles offerecem, na vertente septentrional ou occidental da mon- 
tanha, se é no estio, na meridional ou oriental, se é no inverno. Quando 
a noite é clara, quando ha luar, vê-se a camurça pastar; não é pois um 
animal exclusivamente diurno. 

A camurça vive solitaria, excepto no tempo do cio. Então, reune-se 
às congéneres, formando-se bandos, que foram em outro tempo muito ' 
mais numerosos do qug são hoje. 

Pela rapidez dos movimentos, a camurça rivalisa com qualquer outro 
antilope das montanhas. Trepa com destreza, salta com segurança, corre 
com facilidade pelos logares ainda os mais perigosos, n'aquelles mesmos 
que as cabras se não atrevem a pisar. Quando marcha de vagar, tem 
alguma coisa de pezada, de deselegante; quando corre porém, quando 
foge, torna-se bella, graciosa, elegantissima. Os saltos que dá são admi- 
raveis; Wolten viu uma camurça captiva saltar um muro de quatro me- 
tros e meio de altura. O mesmo observador, medindo a distancia que de 
um salto pode percorrer a camurça, encontrou sete metros. Corre com 
segurança extrema por cima dos rochedos mais escarpados. Mesmo 
quando ferida, mesmo com uma perna quebrada, a camurça marcha por 
caminhos perigosos com assombrosa agilidade. 

Sómente no gêlo, diz Tschudi, a camurça marcha devagar, com 
precaução. É tambem ahi que a sua caça se torna relativamente facil. 

Schinz diz que ás vezes a camurça se aventura tanto na ascensão 
dos rochedos que chega a ponto de não poder nem continuar a marcha, 
nem retrogradar, sendo forçada pelo cansaço, pela fadiga a deixar-se 
cair nos precipícios. Tschudi contesta isto e assegura que em casos taes 
a camurça se não deixa cair, mas se atira ao precipício, qualquer que 
seja a altura, forcejando por tocar o solo de modo a molestar-se o menos 
possivel; para isso estende violentamente o pescoço para traz. Embora 
presinta, como deve presentir, que o salto lhe será fatal, nem por isso 
deixa de dal-o; é ainda Tschudi que o affirma. . 

A camurça tem admiravelmente desenvolvida a memoria dos loga- 
res. Conhece todos os caminhos que uma vez trilhou; conhece, pode di- 
zer-se, todas as pedras dos seus dominios. 

Os sentidos são excepcionalmente perfeitos n'esta especie; a vista, 
o ouvido e olfato attingem com efeito, na camurça o mais alto grao de 
desenvolvimento. Assim dotado, o famoso ruminante pode exercer, e 
exerce, em torno de si uma vigilancia constante; mesmo dormindo, pa- 
rece que os seus orgãos continuam a funccionar. Para descançar, raras 
vezes se deita; de ordinario toma a posição mais conveniente para poder 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 69 


fugir ao mais leve perigo sentido. Geralmente é sob as saliencias dos ro- 
chedos que se esconde, com o dorso coberto e os lados do corpo livres, 
de modo a abranger em torno de si um largo espaço. Quando um bando 
ou rebanho pasta, ha sempre uma camurça que faz sentinella, destacada 
ao longe, a distancia; essa sentinella que pasta só, ergue de instante a 
instante a cabeça, olha em todas as direcções, fareja em todos os senti- 
dos. Se sente um homem (e é capaz de sentil-o a uma distancia consi- 
deravel) não socega em quanto não consegue vêl-o. O bando, conhece- 
dor do perigo, agita-se, inquieta-se, corre de um lado para o outro, 
farejando, olhando sempre, procurando calcular a fuga. Se descobre o 
homem, a camurça olha-o com curiosidade e, se elle se não move, ella 
não se move tambem. Mas desde que o caçador executa a mais ligeira 
deslocação, a camurça foge, corre com espantosa velocidade em busca 
de um asylo qualquer, de um escondrijo proximo. «Quando o guia pre- 
sente um perigo, escreve Tschudi, assobia, como faz a marmota, bate 
no chão com uma das patas de diante e deita a fugir; os outros se- 
guem-o a galope.» |! 

Sob o ponto de vista das faculdades intellectuaes, a camurça é tam- 
bem perfeitamente dotada; é prudente, examina, considera, calcula an- 
tes de executar qualquer movimento. Tem uma memoria excelente; 
mesmo decorridos muitos annos, sabe onde a perseguiram, reconhece o 
logar onde encontrou abrigo. Ha regiões em que a caça da camurça é 
prohibida; ahi o ruminante é atrevido, cheio de confiança e abeira-se do 
homem como se quizesse conhecel-o de perto, tomar com elle relações. 
Pelo contrario, nas localidades em que a perseguem, a camurça foge do 
homem desde que o vê, embora a uma enorme distancia. 

No estio a camurça alimenta-se de plantas alpinas, nomeadamente 
das que crescem perto do limite das neves, rebentos de pinheiros e de 
abetos. No inverno é forçada a contentar-se com hervas que atravessam 
o gelo, com musgos e lichens. Não é exigente na alimentação e supporta 
às vezes por muito tempo a fome. À agua porém é-lhe sempre indispen- 
savel. Gosta muito de sal. Se os pastos são bons, a camurça engorda 
consideravelmente; na epocha do cio porém, e no inverno, quando uma 
espessa camada de gêélo cobre o solo, emagrece muito. Então desce ás 
florestas e ahi come os lichens que, como barbas, pendem das arvores. 
Estabelece-se perto dos pinheiros e desde que o tempo o permitte, vae 
d'arvore em arvore procurando alimento. Ha quem afirme que nos in- 
vernos rigorosos, as camurças morrem á mingua de sustento. Tschudi 
afirma tambem que às vezes a camurça procurando os lichens prende 


! Tschudi, Obr. cit., pg. 440. 


10) HISTORIA NATURAL 


os galhos aos ramos de alguma arvore, fica suspenso e ahi morre. O na- 
turalista que acabamos de citar encontrou o esqueleto de uma camurça 
assim morta. 

O cio principia em fins do outomno. Os velhos machos que durante 
todo o inverno tinham vivido solitarios, reunem-se então em bandos. É 
tambem então que teem logar as luctas tremendas dos machos, luctas 
em que de ordinario algum dos contendores é morto, se ellas se dão 
nas montanhas ou sobre precipicios. O mais forte consegue n'estas con- 
dições despenhar o mais fraco. O vencedor seguido da femea isola-se 
para viver com ella até ao meio do inverno, epocha em que todos os 
prres se agremiam em bandos. Vinte semanas depois do coito, em fins 
de Abril ou Maio, a femea pare um, raras vezes dous filhos. Poucas ho- 
ras depois de nascida, a pequenina camurça encontra-se já apta para se- 
guir a mãe e ao fim de alguns dias é quasi tão agil como ella. A solli- 
citude da mãe é extrema; pelo contrario, o pae não liga à prole a mi- 
nima importancia. A camurça conserva-se na companhia da mãe até ao 
fim de Maio. | | 

Antes de parir, a camurça tem-se separado do rebanho e procurado 
um logar proprio, solitario, no qual permanece com a prole. E' de vêr 
como ella ensina pelo exemplo ao filhinho tudo quanto elle carece de sa- 
ber: trepar, correr, saltar. De resto, o filho paga em dedicação todos 
os desvelos maternos. Muitos caçadores affirmam ter visto os filhinhos 
immoveis deante do cadaver da mãe. Os orphãos são recolhidos e cuida- 
dos pela primeira femea que apparece. 

O crescimento da camurça é rapido: aos trez mezes apparecem os 
cornos e aos trez annos está adulta. Pode attingir, segundo se pensa, a 
idade de vinte ou trinta annos. 


INIMIGOS 


São numerosos: os inimigos da camurça e terriveis os perigos que 
corre, desde as quedas de grandes penedos que matam muitos d'estes 
ruminantes até ás avalanches que sepultam rebanhos inteiros. O lIynce, 
o lobo e c urso são, entre os mamiferos, os mais temiveis perseguido- 
res da camurça. Os carniceiros aerios, a aguia por exemplo, são peiores 
ainda, porque o ruminante mal pode evitar-lhes o attaque. No entanto, 
segundo Brehm, o homem subsiste como o mais cruel de todos os ini- 
migos pela teimosia com que persegue o pobre ruminante. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 71 


CAÇA 


Está perfeitamente averiguado hoje que o numero de camurças foi 
n'outro tempo maior do que é hoje. A introducção das armas de fogo 
na caça, explica esta diferença. As perseguições à camurça teem uma 
longa historia. Desde os tempos mais remotos que taes perseguições são 
consideradas, na phrase apaixonada dos caçadores, um nobre prazer. Os 
homens mais altamente collocados da gerarchia social, imperadores, ar- 
cebispos, duques, archiduques, principes, todos mais ou menos e desde 
muito cultivaram o nobre prazer, repitamos a phrase. 

Ora, digamol-o desde já, a caça da camurça não é um exercicio fa- 
cil, ao alcance de todos; quem o tentar precisa de ser sobrio, robusto, 
infatigavel, pratico nas montanhas e conhecedor dos costumes do ani- 
mal. «O caçador carece, diz Tschudi, de uma vista excellente, de uma 
cabeça ao abrigo das vertigens, de um corpo solido, endurecido, capaz 
de supportar os caprichos atmosphericos das regiões geladas, de cora- 
gem, de presença de espirito, de uma intelligencia rapida, de muita de- 
cisão, e emfim de bons pulmões e de musculos infatigaveis. Não lhe 
basta ser um atirador excellente; é-lhe preciso ser tambem um trepador 
perfeito, mais atrevido que a mais atrevida cabra.» ! Se nos lembrar- 
mos das alturas a que é forçado a subir o caçador de camurças, se por 
um momento imaginarmos as posições extravagantes que é obrigado a 
tomar e os perigos por que passa, não acharemos hyperbolicas as pala- 
vras do auctor de Os Alpes. 

O caçador, segundo Brehm, veste um fato cinzento e quente, toma 
um pau gancheado e colloca ás costas um sacco com polvora, chumbo e 
mantimentos, geralmente pão, queijo e alguma bebida alcoolica. Ou ca- 
minha calçando uns grossos sapatos de montanha, ou, o que é talvez 
melhor, vae descalço, levando resina com que fricciona os pés para não 
escorregar. À arma é geralmente uma carabina, de coronha leve. É quasi 
indispensavel n'esta caça um bom occulo de alcance. 

O caçador antes de principiar a sua excursão venatoria n'um dado 
local, percorre-o pedindo informações aos pastores; se as pedisse aos 
caçadores não obteria resposta. Uma vez conhecido o local, que é ge- 
ralmente de algumas leguas quadradas, parte de noite para a caça de 


| Obr. cit., pg. 450. 


72 HISTORIA NATURAL 


modo a ter attingido as pastagens da camurça antes do erguer do sol. 
Caminha silencioso sempre, tendo em vista a direcção dos ventos, até 
se approximar dos logares, antes reconhecidos, em que a camurça re- 
pousa. Então esconde-se por traz de algum rochedo ou de algum matto, 
até romper o sol. N'esta occasião o guia do rebanho ergue-se lenta- 
mente; os companheiros imitam-o. É o momento em que o caçador pode 
escolher a victima, geralmente um macho que facilmente se conhece 
pelo tamanho e affastamento dos cornos. O caçador atira e o animal cae; 
os outros ficam por um momento espantados a olhar para o ponto d'onde 
parte o fumo, para fugirem logo depois. 

Ha um outro processo de caça que consiste em perseguir a camurça 
obrigando-a a subir até um ponto d'onde lhe seja absolutamente impos- 
sivel sair. Esta caça, comprehende-se bem, é difficil e perigosissima, mas 
em geral productiva; o rebanho de camurças, seguido pelo caçador, che- 
gando a um ponto para além do qual não pode passar, retrograda e 
vem assim passar ao lado do homem, ás vezes mesmo por cima do corpo 
delle. É então que o caçador pode matar muitos individuos. N'estas ex- 
' cursões 0 homem, tentado pela caça, commette verdadeiras impruden- 
cias; às vezes encontra-se em situações desesperadas em que toda a 
presença de espirito é pouca para salvar-se de uma morte imminente. 

A caça da camurça pelos tempos de gêlo na montanha é perigosis- 
sima. Quantos caçadores mortos n'estas inglorias e obscuras excursões! 
O frio, a queda de fragmentos de gêlo, a difficuldade de caminhar, o 
somno irresistivel, eis os perigos principaes, as causas de morte mais 
communs. De resto, um tal processo de caça é sempre pouco productivo, 
porque geralmente a camurça no tempo das neves abandona a montanha 
pelos largos descampados. | 

Hoje que o numero de camurças é diminuto, mal vale a penna ten- 
tar a caça. Tschudi affirma que, mesmo depois de ter atirado sobre uma 
camurça, se a não feriu de morte, o caçador passa trabalhos horriveis 
para a apanhar. Se a bala não partiu direita à cabeça, ao pescoço ou ao 
coração, a camurça consegue fugir com notavel rapidez e o caçador é 
forçado a seguir às vezes dias inteiros o rastro de sangue para apanhar 
o animal. Acrescente-se que o caçador que leva às costas uma camurça 
morta, carece de adoptar precauções de toda a ordem para não ser 
visto pelos caçadores das localidades que vae attravessando. Se é visto, 
a inveja e as rivalidades despertam-se, o que, não poucas vezes, occa- 
siona luctas bem pouco edificantes.- O naturalista que vimos de citar diz 
que os interesses colhidos hoje na caça da camurça não compensam de 
modo nenhum o trabalho e o tempo que ella exige. No entanto o ardor, 
o enthusiasmo dos caçadores parece não diminuir, antes augmentar à 
medida das dificuldades e da falta de lucros. Assim conta o mesmo au- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 73 


ctor a este respeito dois casos interessantissimos: um refere-se a um 
velho de setenta e um annos que soffreu a amputação de uma perna e 
que, não obstante, continuou a caçar, enviando ao medico dois annos 
depois da operação uma pelle de camurça por elle proprio morta; o ou- 
tro caso, não menos curioso refere-se a um rapaz que dizia a Saus- 
sure: «meu pae e meu avô morreram na caça da camurça e eu estou 
perfeitamente convencido de que me espera a mesma sorte; comtudo 
ainda quando me quizessem dar uma fortuna com a condição de renun- 
ciar à caça, não acceitaria.» 


CAPTIVEIRO 


A camurça, apanhada em quanto nova, domestica-se facilmente. 
Alimenta-se principalmente de leite de cabra, de hervas saborosas e de 
pão. Dá-se perfeitamente com as cabras, de que tem muitos costumes, e 
com os cães. Segue o dono e parece supportar muito bem o captiveiro. 
De resto, a sobriedade que a caracterisa, faz com que seja facil, pouco 
dispendioso o sustental-a. Devemos observar que à medida que a idade 
progride, a camurça vae-se tornando selvagem, usando muitas vezes 
das armas naturaes. 

São muito raros os casos de reproducção em captiveiro. A união 
sexual da camurça com a cabra domestica, é fecunda. 


USOS E PRODUCTOS 


À camurça fornece-nos a carne que é um bom alimento, a gordura 
que é de qualidade superior, melhor que a da cabra, e emfim a pelle 
que, como se sabe, é consistente, macia, de muita utilidade e que n'ou- 
tro tempo se empregava na confeição de vestidos. 


74 HISTORIA NATURAL 


A CONDOMA 


Este animal não é conhecido na Europa senão desde a ultima me- 
tade do seculo xvrrr. É certo que na Europa tinham apparecido por mui- 
tas vezes e desde a mais remota antiguidade os cornos d'este animal. 
No entanto não se sabia qual elle fosse, porque se não vira um exem- 
plar completo. Hoje o animal é muito conhecido e Brehm que o obser- 
vou vivo dá d'elle uma descripção completissima, superior a quantas co- 
nhecemos d'outros auctores. 


CARACTERES 


4 


À condoma é uma antilope muito maior que o veado ordinario. O 
macho adulto mede tres metros e trinta centimetros de comprido desde 
o focinho até à extremidade da cauda. A femea é mais pequena; raras 
vezes excede dois metros e sessenta centimetros de comprimento sobre 
um e sessenta de altura ao nivel da espadua. 

Nas fórmas a condoma recorda o veado. Tem o corpo refeito, o pes- 
coço de comprimento medio, a cabeça curta, a região frontal larga e o 
focinho ponteagudo. O labio superior é coberto de pêllos, os olhos são 
grandes e as orelhas mais compridas que metade da cabeça. Os cornos 
constituem para este animal, na phrase de Brehm, um ornamento es- 
plendido. N'um macho velho elles podem attingir cento e trinta e dois 
centimetros de comprido. Custa até a comprehender como o animal póde 
com elles e sobretudo como com taes appendices consegue atravessar os 
logares arborisados. Os cornos são inclinados para traz e um pouco para 
lóra; às vezes o affastamento entre as extremidades livres dos cornos 
chega a ser de um metro. Estes appendices frontaes são conformados 
em espiral, comprehendendo cada volta d'esta um terço do comprimento 
total do orgão. 

O manto d'este animal, formado de pêllos lisos, curtos e um pouco 
grossos, offerece uma certa belleza. A côr fundamental é dificil de ex- 
primir: é um composto de pardo, trigueiro e ruivo. A parte posterior 
do ventre e a face interna das pernas são de um branco pardacento. À 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 15 


cauda é de um trigueiro accentuado na face superior e branco na infe- 
rior, terminando por um tufo de pêllos negros. Os olhos offerecem um 
circulo ruivo. Sobre o trigueiro do tronco destacam-se sete a nove fa- 
chas transversaes brancas, algumas bifurcadas. Collocadas a egual dis- 
tancia umas das outras, estas fachas descem do dorso para as partes 
lateraes do tronco; as das femeas são mais estreitas que as do macho 
e as do recemnascido são mais numerosas que as do adulto. 


“DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita a Africa, sendo ahi abundante em todas as regiões. No Cabo 
da Boa-Esperança foi n'outro tempo mais vulgar do que é hoje. 


COSTUMES 


Ora habita as planicies, ora as montanhas, mas sempre as florestas, 
sobretudo as de arvores espinhosas. Os machos vivem solitarios e as 
femeas em pequenas agremiações de quatro a seis individuos. Comtudo, 
alguns caçadores aílirmam que os machos novos, repellidos dos reba- 
nhos pelos velhos, formam pequenos grupos onde invariavelmente reina 
uma grande alegria. 

A condoma offerece sob o ponto de vista dos costumes, notaveis 
semelhanças com o veado. Percorre grandes espaços e muda regular- 
mente de morada. O porte é tão altivo como o do veado e a marcha tão 
graciosa como a d'elle. Emquanto a não perturbam, a condoma segue ao 
longo dos flancos das montanhas ou nas planícies, evitando cuidadosa- 
mente picar-se ou prender a armação. Alimenta-se principalmente de fo- 
lhas e gomos d'arvores, sem comtudo despresar as hervas. Se por um 
motivo qualquer se amedronta, caminha a trote, raras vezes a galope. 
Mesmo quando este ultimo caso se dá, a velocidade nunca é muita. 
Nas florestas, a condoma quando marcha é forçada para se não prender 
a lançar para traz a cabeça até que as extremidades dos cornos razem 


a superficie do dorso. O macho não faz ouvir a voz senão na epoca do 
cio. 


76 HISTORIA NATURAL 


À quadra dos amores é em fins de Janeiro. O macho solta de tarde 
grandes gritos que attraem os rivaes à lucta. A parturição realisa-se em 
fins de Agosto; o trabalho de gestação dura pois sete a oito mezes. À 
femea alimenta, ensina, vigia o recemnascido; o macho não collabora 
n'esta empreza delicada. 

À condoma pela robustez de que é dotada tem poucos inimigos a 
temer; defende-se corajosamente dos carniceiros mais temiveis. 


CAÇA 


Ha um modo facil para caçar a condoma, desde que se possue uma 
boa arma de fogo: é a embuscada. Depois do meio dia, a condoma, que 
precisa de beber agua em grande quantidade, desce das montanhas em 
busca de um riacho, de uma corrente qualquer. Como n'estas excursões, 
a anlilope segue sempre os mesmos caminhos, um caçador que os co- 
nheça, espera-a e atira-lhe. Sendo a condoma um animal vigilante, muito 
bem dotado de sentidos, o caçador raras vezes poderá fazer-lhe fogo a 
uma distancia inferior a duzentos passos; é por isso que não pode dis- 
pensar-se uma boa arma de alcance. 

Os indigenas, usando de armas primitivas ou de má qualidade, não 
podem empregar este processo de caça. Adoptam um outro. Reunem-se 
a outros companheiros em grande numero, e perseguem a condoma na 
certeza de que em pouco tempo a fatigarão. A antilope perseguida de 
um lado foge para o opposto, onde todavia encontra tambem persegui- 
dores; obrigada a fugir de novo, acontece-lhe o mesmo que anterior- 
mente, até que o animal se fatiga e lucta, mas acaba por ser vencido e 
morto a golpes de frecha. 


CAPTIVEIRO 


A domesticação das condomas é facil em quanto são novas. Os na- 
turalistas que as teem visto n'estas condições são concordes em nol-as 
apresentar como animaes encantadores, alegres e doceis. Nos jardins 
zoologicos da Europa, estas antilopes são rarissimas. ut 


+ 
1 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


USOS E PRODUCTOS 


A carne da condoma é, segundo dizem, excellente; Brehm que a 
comeu, compara-a à do veado. A medulla dos ossos é para certas popu- 
lações africanas um acepipe de primeira ordem. A morte em caça de 
uma condoma é para os cafres e para os abyssinios um motivo de festa. 
A pelle é tambem muito estimada; fornece correias, coberturas para sel- 
las, chicotes, etc. Segundo Gerbe, os hollandezes pagam por altos pre- 
ços esta parte do animal. Os cornos servem ainda em algumas povoa- 
ções para reservatorios de mel, de sal, de café, etc. 


A ANTILOPE NEGRA 


Tem pouco mais ou menos as dimensões do veado. A côr geral do 
pêéllo é um negro lusídio, de grande belleza. Os cornos teem pelo menos 
duas vezes o comprimento da cabeça e são annelados nos seus dois ter- 
ços inferiores. Os cornos existem em ambos os sexos, sendo na femea 
mais delgados que no macho. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


É originaria do Cabo da Boa-Esperança. 


78 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Não encontramos indicações positivas sobre o genero de vida da 
antilope negra. Não sabemos quaes os logares que habita de preferen- 
cia, qual a epocha da reproducção, quaes os seus habitos emfim. A jul- 
gar pelo numero de mamas deve dar à luz dois filhos por parto. Gordon 
Cumming que a viu limita-se a represental-a como um bello animal, vivo, 
magestoso e timido. 


AS ANTILOPES ORYX 


Este genero é conhecido desde a mais affastada antiguidade. De uma 
das suas especies encontramos a imagem em diversas posições nos mo- 
numentos do Egypto e da Nubia. Ahi apparece às vezes com uma corda 
ao pescoço o que sem contestação indica que o animal era objecto de 
caça e de captiveiro a esse tempo. As lyras dos gregos eram feitas dos 
cornos d'estes animaes. 

Este genero comprehende tres especies, das quaes mencionaremos 
uma apenas, por mais importante. 


A ANTILOPE LEUCORYX 


Esta especie é tambem algumas vezes designada pelo nome de oryx 
da Nubia. É um animal pezado e muito caracteristico. A armação deste 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 19 


ruminante differe por tal fórma da de todas as outras antilopes que qual- 
quer confusão é impossivel. Os cornos teem pelo menos metade do com- 
primento do corpo; nos machos adultos medem, termo medio, um metro 
e quinze centimetros de comprido e apresentam vinte e seis a quarenta 
“anneis em toda a extensão. À espessura que é de quatro a cinco centi- 
metros na raiz, vae diminuindo pouco e pouco até à extremidade. Diri- 
gindo-se para fóra e para traz n'uma curva de grande raio e de conve- 
xidade superior, os cornos que na origem são muito proximos affastam-se 
mais nas extremidades. U péllo do animal é curto, grosseiro e espesso. 
A côr geral é um escuro fuliginoso com cambiantes ruivas e manchas 
trigúeiras mais ou menos numerosas nà cabeça, focinho e dorso. 


COSTUMES 


Os habitos de vida da antilope leucoryx são os mesmos que os das 
outras especies; relativamente ao captiveiro, à caça e aos usos e pro- 
ductos tambem o que se diz de uma especie diz-se de todas. Assim as 
considerações que seguem deve o leitor consideral-as como relativas a 
todas as especies de oryx. 

As oryx, segundo Brehm, encontram-se aos pares ou em pequenos 
bandos compostos de macho femea e filhos. Os grandes bandos de vinte 
e mais cabeças, como um que viu Gordon Cumming, são raros. Nos lo- 
gares desertos as oryx não são raras; comtudo, porque as caracterisa 
uma grande timidez, é difficil vêl-as; geralmente conseguem fugir antes 
que o observador tenha tempo ao menos de avistal-as. Parece, ainda se- 
gundo o observador citado, que estas antilopes evitam as florestas e pro- 
curam os descampados, as largas planícies, onde encontram alimento em 
abundancia. Quando chega o inverno e com elle a epocha da fome, as 
oryx teem conseguido accumular uma tal quantidade de gordura que 
podem muito bem fazer face à crise natural, alimentando-se quasi exclu- 
sivamente de ramos desfolhados d'arvores. Então com effeito, as mimo- 
sas constituem o unico alimento fresco de que lhes é possivel utilisa- 
rem-se. Quando se apascentam, appoiam os membros anteriores contra 
os troncos d'arvores para poderem attingir os ramos mais elevados. As 
oryx teem uma marcha, excessivamente rapida; só os bons cavallos con- 
seguem seguil-as. 

Das oryx umas vivem em boa harmonia com as antilopes, outras pelo 
contrario existem em hostilidade permanente contra todas as especies. 


80 HISTORIA NATURAL 


A leucoryx pertence a este ultimo grupo. As oryx não são tão timidas 
como as outras antilopes; desde que se sentem excitadas, precipi- 
tam-se furiosas contra o adversario, tentando feril-o. Defendem-se admi- 
ravelmente dos cães; pendendo a cabeça para diante, agitam os cornos 
com tanta violencia e com tanta rapidez para a direita e para a esquerda 
que se os cães não conseguem evitar a pancada, são traspassados. As 
oryx batem-se mesmo, não sem vantagem às vezes, com os carniceiros 
mais temiveis, com a panthera e o leão, por exemplo. 

A gestação no animal captivo dura duzentos e quarenta e oito dias. 
Sobre a reproducção do ruminante em liberdade faltam informações. 


CAÇA 


À caça das oryx só se faz a cavallo. Como estas antilopes são admi- 
ravelmente dotadas de sentidos, particularmente do olfato e como teem 
a marcha excessivamente rapida, a caça exige muitas precauções. O ca- 
cador para poder approximar-se das oryx precisa caminhar contra o 
vento e sempre fazendo o menor ruido possivel. Se assim não proceder, 
as antilopes em questão, sempre vigilantes, conseguirão fugir quando o 
caçador se encontra amda a uma distancia superior a quinhentos pas- 
sos. Quando se persegue uma oryx, deve ter-se a certeza de que só 
passadas algumas horas e depois de se terem cansado uns poucos de 
cavallos é que se consegue fatigal-a e attingir a approximação conve- 
niente para poder atirar com probabilidade de exito. 


CAPTIVEIRO 


Trazidas ao captiveiro, as antilopes oryx chegam a conhecer o 
dono; no entanto é necessario um extremo cuidado com ellas, porque 
são irritaveis e fazem dos cornos um uso pouco agradavel. Vivem em 
desharmonia permanente com todos os outros animaes captivos, ainda 
quando da propria especie. São teimosas; se, por exemplo, não lhes ap- 
petecer andar, nada ha capaz de fazel-as deslocar. Se se emprega a 
violencia, o unico resultado que se colhe é o irrital-as, fazendo-as em- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 81 


pregar os terriveis meios de defeza que possuem. Emfim, são animaes 
perigosos em captiveiro. Tem-se conseguido na Europa a reproducção 
de alguns individuos. 


USOS E PRODUCTOS 


“A carne das oryx utilisa-se como alimento e dos cornos fazem-se 
no Cabo pontas de lança. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Todas as antilopes oryx habitam os logares mais seccos e mais ari- 
dos da Africa. A especie leucoryx encontra-se na Africa central e septen- 
trional; as outras especies vivem ao sul do mesmo continente. 


O NYLGÓ 


Este ruminante é geralmente considerado entre os naturalistas como 
a transição do veado para o boi. É notavel tanto pelo porte como pela 
côr. Tem o corpo alongado, refeito e a parte anterior do corpo um pouco 
“mais alta e mais larga que a posterior. Entre as espaduas apresenta uma 
pequena bossa. O pescoço é de comprimento medio, a cabeça pequena, 
fina; as narinas são largamente fendidas, os olhos vivos e as orelhas gran- 
des e compridas. Os cornos são pequenos, conicos, de vinte centimetros 
de comprido e recurvados em semi-circulo; na femea, quando existem, 


são mais curtos que no macho. As pernas são altas e fortes, os cascos 
VOL. III ; 6 


82 HISTORIA NATURAL 


grandes e largos, a cauda que desce até à articulação tibio-tarsica é co- 
berta de pêllos curtos em cima e compridos na parte inferior. A femea 
apresenta duas mamas. Os péllos em geral são curtos e rijos; os da 
parte superior do pescoço formam uma crina levantada e os da parte 
inferior constituem ao meio um tufo comprido e pendente. 

A côr geral é um pardo trigueiro com um ligeiro reflexo azulado. 
A parte anterior do ventre, as pernas de diante, a face externa das co- 
xas são escuras e as pernas de traz são negras; os dous terços poste- 
riores do ventre e a face interna das coxas são brancos. 

Os machos adultos teem mais de dois metros de comprimento e um 


metro e trinta centimetros de altura ao nivel da espadua. 
p 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita as Indias orientaes. Raro nas costas, é vulgar no interior das 
terras. 


COSTUMES 


O que se sabe da vida do nylgó é muito pouco. Tem-se dito que elle 
vive perto dos juncaes, em cujo interior porém se não aventura, receioso 
do tigre. Sabe-se que os machos luctam pela posse das femeas em com- 
bates sempre mortiferos. O nylgó é talvez o mais resoluto dos represen- 
tantes da grande familia das antilopes. Quando o perseguem, volta-se ar- 
rojadamente contra o caçador, procurando feril-o, a despeito de todos 
os golpes de que o tornem victima. Mesmo submettido ao captiveiro, o 
nylgó é o terror dos guardas; embora se mostre docil, a verdade é que 
não devemos confiar: em apparencias, sobretudo na epocha do cio. 

Segundo informações dos viajantes, o nylgó vive o dia inteiro na 
floresta. Só de madrugada ou depois do pôr do sol procura o alimento. 
Produz grandes estragos nas florestas, motivo por que é geralmente de- 
testado. ] 

À gestação dura oito mezes; a primeira produz um filho e as outras 
dois. Em captiveiro o cio realisa-se em Março; em liberdade o parto tem 
logar no mez de Dezembro. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 83 


CAÇA 


| Os indigenas fazem a caça do nylgó com verdadeira paixão. Os pro- 

cessos variam segundo a posição social do que se propõe caçar; uns vão 
a cavallo, outros a pé, uns sós, outros com grandes sequitos, uns muni- 
dos das armas primitivas, outros com famosas espingardas modernas. 
Recordando o que dissemos do caracter do nylgó, facilmente se compre- 
hende que a caça d'este animal não é destituida de perigos. 


CAPTIVEIRO 


Dissemos a proposito dos costumes o bastante para dar idéa dos 
inconvenientes ligados ao captiveiro do nylgó. A domesticação é anti- 
quissima nas Indias. Na Europa o primeiro par domesticado que se viu 
foi em 1767, na Inglaterra. Antes do fim do seculo xvirr foram vistos 
outros na França, na Hollanda e na Allemanha. Hoje raro será o jardim 
zoologico europeu em que o nylgó se não encontre. 


O GNOU 


Constitue a unica especie de um genero que os antigos denomina- 
ram catoblepas. E um animal curioso, verdadeiro mixto de antilope, de 
boi e de cavallo ou, segundo a expressão de Brehm, «verdadeira cari- 
catura de todos estes animaes tão graciosos e tão nobres.» De resto, 
pelos costumes é tão singular como pela forma. 


84 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


O adulto mede dois metros e meio de comprimento, incluida a 
cauda que tem cincoenta centimetros de extensão; a altura ao nivel da 
espadua é de um metro e quinze centimetros. À femea é um pouco mais 
pequena. N'esta especie os cornos existem em ambos os sexos e são 
achatados e recurvados, primeiro para baixo e depois para cima e um 
pouco para fóra. Na femea são mais fracos do que no macho. A côr do 
manto é um trigueiro mais ou menos carregado consoante as regiões e 
passando ora para o ruivo, ora para o amarello, ora para o negro. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita o sul da Africa até perto do equador. Foi n'outro tempo 
muito vulgar no Cabo, d'onde todavia plain pen quasi. É commum 
ainda no paiz dos ottentados: 


COSTUMES 


O gnou é um exemplo notavel de mamiferos emigrantes. Todos os 
annos com efeito, realisa uma emigração que Smith attribue a um ins- 
tincto e que Brehm faz depender simplesmente da falta de alimentos no 
logar d'onde se retira. 

O gnou é muito agil, admiravelmente conformado para viver nas 
vastas planícies. 

Pringle affirma que o gnou fica como doido quando lhe mostram 
uma bandeira vermelha presa na extremidade de uma haste. Caminha 
para o homem, arremettendo, foge à menor ameaça, volta para de novo 
fugir e assim sempre emquanto a bandeira encarnada se agita. Ha n'isto 
alguma coisa que recorda as corridas dos toiros. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 85 


Gordon diz que o gnou não foge quando perseguido pelo homem. 
Segundo este escriptor os gnous cercam o perseguidor, saltando em 
torno, executando movimentos de um grande comico. 

Parece que os velhos machos vivem isolados ou em pequenos gru- 
pos de quatro a cinco individuos. À voz do gnou adulto recorda a do 
boi. 

Os sentidos da vista, do ouvido e do olfato são desenvolvidos n'este 
ruminante. A intelligencia não é muito grande. 

Nada se sabe relativamente à reproducção; nem se conhece a epo- 
cha do cio, nem o numero de filhos dados à luz em cada parto. 


CAÇA 


O gnou corre com extrema velocidade e por muito tempo, o que 
torna dificil a caça. Diz-se que, perseguido de perto, investe contra o 
homem procurando feril-o com os cornos e com as patas e que até, uma 
vez convencido de que não pode escapar pela fuga, se atira a precipi- 
cios ou à agua, para terminar por uma vez os soffrimentos. 
| Os hottentotes matam o gnou com tiros de frechas envenenadas e 
os cafres esperam-o de traz das arvores, attravessando-lhe o peito com 
lanças quando elle passa. Não é vulgar o emprego de armadilhas ou 
de fossos contra o gnou. - 


CAPTIVEIRO 


O gnou depois de velho é perfeitamente indomesticavel; conserva 
até morrer a selvageria do estado livre. Mesmo em novo, embora perca 
um pouco da rudeza brutal que o distingue, é sempre um mão compa- 
nheiro e, sobretudo, um companheiro perigoso. É indifferente às caricias, 
é desagradavel de vêr-se e não chega a reconhecer ou, pelo menos, à 
dar provas de que reconhece quem lhe distribue os alimentos. Preso, O 
gnou perde a faculdade de trotar e de dar os grandes saltos que no es- 
tado de liberdade lhe são tão proprios. 


86 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


A utilidade que retiramos do gnou é a mesma que retiramos de to- 
dos os animaes selvagens da Africa. Fornece-nos uma carne que é tenra 
e succulenta, uma pelle de que se faz um bom couro e emfim cornos que 
servem para cabos de facas, de garfos e para analogos usos industriaes. 


AS CABRAS 


Os ruminantes d'esta familia teem um tamanho regular, o corpo re- 
feito e vigoroso, as pernas fortes e pouco elevadas, o pescoço grosso, a 
cabeça relativamente curta, a região frontal larga, os olhos grandes e 
vivos e as orelhas direitas, terminadas em ponta e muito moveis. Ambos 
os sexos apresentam cornos com estrias, ora recurvados para traz em 
semi-circulo ora contornados no vertice em forma de lyra. Como quasi 
sempre, os cornos são no macho muito mais fortes que na femea. 

Fallando das differentes especies, completaremos o estudo dos ca- 
racteres morphologicos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habitaram originariamente o sul da Asia, a Europa e o norte da 
Africa. Hoje ha especies espalhadas em toda a superficie do globo. Existe 
uma especie propria da America do Norte. 


+ A O DE 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 87 


COSTUMES 


Vivem de ordinario nas montanhas, onde procuram os logares mais 
selvagens, mais solitarios. É espantosa a altura a que ascendem algumas 
especies. Onde quer que existam rochedos elevados é certo encontra- 
rem-se estes ruminantes. De inverno porém, descem às planicies. 

“Brehm descreve as cabras como animaes sociaveis, ageis, vivos, pru- 
dentes, astutos mesmo. Correm, saltam constantemente e apenas se dei- 
tam para ruminar. Marcham com extraordinaria segurança nos logares 
ainda os mais perigosos. Incapazes de sentirem a vertigem collocam-se 
nas arestas de rochedos e fitam indiferentes os abysmos mais profundos. 
São muito vigorosas e resistem por longo tempo à fadiga. E é por isto 
exactamente que ellas são proprias para habitar logares ingratos, onde o 
alimento só se obtem à custa de grandes esforços. Não deve confundir-se 
a prudencia das cabras com medo; porque a verdade é que, quando ha 
necessidade d'isso, ellas combatem com denodo, com coragem, com va- 
lentia, talvez até com prazer. 

Os habitos das cabras são mais diurnos do que nocturnos. 

Alimentam-se de plantas que brotam nas montanhas. Sabem esco- 
lhel-as e para encontrarem bons pastos obrigam-se muitas vezes a ver- 
dadeiras emigrações. Carecem muito d'agua e não podem viver, por isso, 
nos logares seccos. 

Os sentidos da vista, do olfato e do ouvido são desenvolvidos nas 
cabras; o primeiro d'estes porém, é talvez menos perfeito que qualquer 
dos outros. São intelligentes e sabem perfeitamente utilisar-se das lições 
da experiencia para evitar os perigos. 

O numero de filhos varia entre um e quatro. Os novos seres, pou- 
cos minutos depois de dados à luz, encontram-se em condições de segui- 
rem os paes ainda nos logares mais alcantilados e cheios de perigos. A 


epocha do cio e da parturição variam com as differentes especies, como 
veremos. 


USOS E PRODUCTOS 


Comparando os prejuizos que as cabras nos causam com os benefi- 
cios que nos proporcionam, vê-se que estes predominam. As cabras são- 


88 HISTORIA NATURAL 


nos uteis pela carne, pela pelle, pelos cornos, pelos péllos e ainda pelo 
leite que nos fornecem. 


Tem sido objecto de vivas discussões entre os naturalistas o esta- 
belecer o numero de generos e especies comprehendidos na vasta fami- 
lia das cabras. A nós que não temos em vista, nem podemos estudar to- 
dos os generos, nem todas as especies, essa discussão não nos preoc- 
cupa. Trataremos apenas de descrever as especies consideradas como 
mais importantes ou pela variedade dos costumes que nos apresentam, 
ou pelos productos que nos ministram ou emfim porque habitam logares 
mais conhecidos e mais accessiveis. 


O BODEQUIM DOS ALPES 


É um formoso e elegantissimo animal de um metro e quarenta e 
cinco a um metro e sessenta centimetros de comprimento sobre um me- 
tro de altura, pouco mais ou menos. O corpo é refeito, vigoroso, 0 pes- 
coço de comprimento medio e a cabeça relativamente pequena; as per- 
nas são vigorosas, os cornos extensos, recurvados para traz, fortes, e os 
olhos vivos, de uma expressão intelligente. O pêllo que é espesso, varia 
segundo as estações, sendo grosseiro, crescido e encrespado, no inverno, 
e curto, fino e brilhante no estio. A côr do manto varia tambem com as 
idades e as estações. No inverno predomina o pardo arruivado e no es- 
tio o pardo amarellado. No dorso existe uma raia trigueiro-clara, pouco 
pronunciada. A região frontal, o vertice da cabeça, o nariz e o peito são 
de um, trigueiro acentuado. Na maxilla inferior, por baixo das orelhas e 
por traz das narinas apparece um amarello arruivado. As orelhas são 
trigueiro-amarellas por fóra e brancas por dentro. As pernas são escu- 
ras e a linha mediana inferior do corpo é branca. Á proporção que o ani- 
mal envelhece, a côr do manto vae-se tornando mais uniforme. Existem 
cornos em ambos os sexos, sendo os do macho notaveis pelo tamanho e 
pelo vigor. Estes appendices são na raiz muito approximados; subindo, 
recurvam-se para traz em semi-circulo e affastam-se nas extremidades. 
Na raiz são consideravelmente mais grossos do que na ponta. Uma se- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 89 


cção horisontal d'estes orgãos representa um quadrilatero alongado; os 
circulos de crescimento são representados por nós e saliencias muito 
pronunciadas, sobretudo na face anterior e na parte media do orgão. Os 
cornos crescem indefinidamente; no entanto, o crescimento que nas pri- 
meiras idades se faz de um modo rapido, é muito vagaroso depois que 
o animal se torna velho. Esses appendices frontaes chegam a attingir 
um metro e quinze centimetros de comprimento e quinze kilogrammas 
de pezo. Na femea os cornos parecem-se mais com os da cabra domes- 
tica que com os do bodequim macho e são pequenos, cylindricos, ligei- 
ramente recurvados para traz. Os appendices frontaes apparecem ao fim 
do primeiro mez de existencia; a idade d'elles.e, portanto, do animal 
pode avaliar-se pelo comprimento e pelo numero de saliencias circula- 
res que no adulto chegam a ser vinte e quatro. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O nome de bodequim dos Alpes com que designamos este animal não 
quer de modo nenhum dizer, como à primeira vista pareceria, que elle 
é abundante n'estas montanhas. Damos-lhe aquelle nome principalmente 
para o distinguir de uma outra especie que habita a Hespanha. O bodequim 
de que nos estamos occupando não só não é vulgar nos Alpes, mas mesmo 
é ahi tão raro que durante alguns annos se suppoz extincto. A especie 
existe ainda nos Alpes, mas em numero limitadissimo. Já no seculo xv e 
no seculo passado foi preciso.tomar algumas medidas para obstar a que 
O formosissimo ruminante desapparecesse totalmente. 

Sabe-se por informação de historiadores antigos que o bodequim exis- 
tiu algum tempo em toda a immensa cordilheira dos Alpes. Era então 
vulgar, porque muitas vezes appareceram nos circos romanos cem e du- 
zentos individuos. Mas depois, porque a caça era muito activa, a espe- 
cie foi rareando, sendo já difficil na Suissa, no seculo xv, apanhar al- 
guns individuos. A caça foi nessa epocha prohibida, sob penas impor- 
tantes, o que de nada valeu, porque, a despeito das medidas tomadas, 
continuou sempre. No seculo xvr foram de novo tomadas algumas medi- 
das de protecção ao bodequim dos Alpes; a caça era permittida apenas 
a um numero limitado de pessoas. Como porém se acreditava então que 
as diflerentes partes do animal possuiam energicas virtudes therapeuti- 
cas, a caça continuou ainda, mão grado as multas impostas aos caçado- 
res. O numero de individuos foi decrescendo sempre e no seculo passado 


90 HISTORIA NATURAL 


foram retomadas as antigas medidas prohibitivas da caça, com pouco re- 
sultado, decerto, se nos lembrarmos de que no começo do nosso seculo 
se chegou a crêr que a especie desapparecêra completamente. Hoje exis- 
tem ainda alguns, segundo Tschudi, n'uma parte muito restricta dos Al- 
pes. Mas, como observa um notavel naturalista, são taes os premios of- 
ferecidos pelos muzeus zoologicos por um exemplar, que a caça conti- 
nua sempre e é bem possivel que n'um futuro, talvez não remoto, os ul- 
timos representantes da especie tenham desapparecido. Sendo o bode- 
quim dos Alpes tão bello como é, custa pensar que um dia virá em que 
tenha deixado de existir. Hoje que o preconceito das suas virtudes the- 
rapeuticas parece ter cessado, cremos que o unico incentivo à caça do 
“animal provém exclusivamente dos premios dados pelos muzeus zoologi- 
cos. Ora parece-nos e parecerá a toda a gente verdadeiramente estra- 
nho que sejam os proprios naturalistas, tão empenhados em conservar a 
especie, os mesmos que indirectamente estão contribuindo para extin- 
guil-a ! 


COSTUMES 


r 


O bodequim dos Alpes é sociavel; hoje porém, como o numero é 
muito restricto, não se encontram senão pequenissimos bandos. O logar 
que o animal prefere são sempre as alturas inacessiveis a quasi todos 
os outros animaes. Os machos, sobretudo, attingem elevações verdadei- 
ramente espantosas. Á noite os bandos descem para as florestas e vol- 
tam ao romper do dia para as alturas. No estio procuram as vertentes 
dos montes expostas ao norte; no inverno preferem as vertentes meri- 
dionaes. 

Todos os movimentos do bodequim são vivos e ageis. Corre com 
grande rapidez e trepa com uma ligeireza extraordinaria. Não é raro que 
o animal suba ao longo de paredes quasi verticaes. A mais ligeira rugo- 
sidade, a aspereza mais insignificante e que à vista do homem passa 
desapercebida, é para o bodequim um como degrao. Não é susceptivel 
de vertigens; fita com indifferença os precipicios, os abysmos mais pro- 
fundos e salta pelos rochedos collocados a seis mil metros de altura com a 
mesma segurança e a mesma distracção com que nós andamos pelas ruas. 

Ácerca deste famoso ruminante espalharam os antigos as fabulas 
mais disparatadas, algumas das quaes, transmittidas pela tradição oral, 
chegaram até nós. Segundo uma d'essas phantasias, o bodequim cairia 
sobre os cornos. 


e PP e Do O O qc O 


MAMIFEROS EM ESPECIAL, 91 


O olfato, a vista e o ouvido são sentidos muito perfeitos no bode- 
quim dos Alpes; a intelligencia é tambem desenvolvida. O bodequim é 
timido, o que, mesmo quando não fosse o effeito de um instincto, se ex- 
plicaria facilmente como resultado da caça secular e pertinaz de que é 
victima. | 

A alimentação do bodequim dos Alpes é-lhe fornecida pelas plantas 
mais succulentas e saborosas que crescem n'estas montanhas. 

A quadra do cio tem logar em Janeiro. Como acontece com muitos 
outros animaes, estes entregam-se então às grandes luctas que caracte- 
risam geralmente a selecção sexual. Attendendo a que estas luctas se 
realisam em logares perigosissimos pela altura, facilmente se compre- 
henderá como são terriveis para o mais fraco dos contendores e como 
muitas vezes a morte de um é o resultado final. Cinco mezes depois do 
acto sexual, isto é em fins de Junho ou principios de Julho, a femea dá 
à luz um filho unico, pouco mais ou menos do tamanho de um cabrito, 
mas admiravelmente proprio já para a vida das montanhas e dotado de 
uma extraordinaria coragem. A mãe é uma soberba educadora, cheia de 
desvellos, de sollicitude. O amor do filho é tambem notavel; se a mãe 
foi ferida, não sairá de ao pé d'ella e persistirá mesmo junto do seu ca- 
daver, embora no primeiro momento tenha fugido cheio de terror. 


INIMIGOS 


Os principaes inimigos do bodequim, sobretudo em quanto pequeno, 
são a aguia, o lynce e o lobo. D'estes o mais terrivel é sem duvida o 
primeiro. As femeas sabem honrar o sentimento materno, defendendo 
corajosamente e à custa da propria vida, os recemnascidos. 


CAÇA 


A caça do bodequim dos Alpes é ainda hoje duplamente attractiva 
— pelo preço estipulado para cada exemplar vivo ou morto e pelos pe- 
rigos que offerece. Quem não é caçador mal pode comprehender que o 
perigo possa constituir um attractivo; para o homem que uma vez ex- 


992 HISTORIA NATURAL 


perimentou as sensações fortes, inseparaveis da caça aos ruminantes 
montanhezes, a affirmação nada tem de estranha. Recorde-se o leitor do 
que atraz dissemos fallando da perseguição à camurça e perceberá que 
não é sem razão que os naturalistas consideram os perigos de uma caça 
como o mais poderoso incentivo para ella. Tschudi, o pittoresco paisa- 
gista de Os Alpes, dá-nos uma idéa dos perigos da caça ao bodequim nas 
palavras que seguem: «Passar a noite sem abrigo de especie alguma 
perto do gêlo, não ser possivel ao homem preserverar-se do perigo de 
morrer de frio senão entregando-se a um exercicio violento, são decerto 
motivos bastantes para tornarem bem amargos os prazeres da caça. Mas 
mil outros perigos veem ainda juntar-se a estes. Conta uma velha chro- 
nica que um caçador da camurça e do bodequim, ao attravessar 0 ge- 
leiro de Simmernalp, caíu n'uma fenda profunda aberta nos rochedos. Os 
companheiros de caça, suppondo-o perdido para sempre, encommenda- 
ram-lhe a alma a Deus e continuaram a marcha; ao voltarem da caça 
porém, tiveram a idéa de tentar um recurso qualquer para salvar o in- 
feliz. Correram na direcção de uma casa que ficava a uma meia legua do 
logar da queda, deitaram a mão a um cobertor, unico recurso que en- 
contraram, cortaram-o em longas tiras e partiram com a rapidez possivel 
para junto do desgraçado. Emquanto isto se passava, Staeri (era este o 
nome do caçador infeliz) soffria o mais tremendo martyrio: na occasião 
de cair, havia-se insinuado entre duas paredes de gêlo e ahi, fixado nos 
bordos pelos braços, mergulhado até ao peito na agua gelada, esperava 
que cada instante fosse o ultimo de vida para elle. Por fim os compa- 
nheiros chegam, a corda formada de tiras é atirada abaixo, Staeri con- 
segue amarral-a cuidadosamente em volta do corpo e principia a subir 
de vagar, guindado pelos companheiros. Mas quasi ao chegar acima as 
tiras rompem-se e o desgraçado candidato à morte (assim lhe chama o 
chronista) recae no abysmo. O que restava da corda já não era bastante 
para chegar até ao fundo e Staeri, além d'isso, partira um braço na 
queda. Os companheiros ainda assim não o abandonam; cortam em tiras 
mais estreitas o que lhes resta do cobertor e atiram a nova corda ao 
precipício. Staeri enrola este fraco liame em torno do corpo, tão solida- 
mente quanto lh'o permitte o braço partido. A ascensão recomeça, fa- 
zendo o infeliz os mais desesperados esforços para secundar os seus ami- 
gos. Por fim chegou acima. Uma vez salvo do perigo, o pobre caçador 
caiu desmaiado, sendo preciso transportal-o até casa. Em toda a sua vi- 
da, fallou sempre com terror dos momentos de agonia passados no fundo 
do abysmo, entre rochedos.» ! 


1 Tschudi, Obr. cit., pg. 650. 


Em 


Ú , ss ha é : 


Gogo e 


de 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 93 


Devemos notar com o naturalista a quem pedimos a citação ante- 


rior, que a caça do bodequim, dados os perigos sem numero que offe- 


rece, não está em relação com os lucros que produz. É pois incontesta- 
vel que são esses perigos mesmos que sollicitam o caçador, que é uma 
verdadeira paixão que o incita à perseguição do animal. Não insistire- 
mos mais sobre este ponto; o que escrevemos ácerca da caça da ca- 
murça é o bastante para comprehender-se quantos perigos, quantas pri- 
vações, quantas desesperanças, quantas hostilidades da natureza tem 
diante de si o que se aventura à perseguição do bodequim dos Alpes. 


CAPTIVEIRO 


O bodequim adulto não pode reduzir-se ao captiveiro. O novo apa- 
nha-se e conduz-se das montanhas para as casas, fazendo-o preceder 
por uma cabra domestica que o amamenta pelo caminho. É facil domes- 
tical-o. Vive harmonicamente com os outros animaes captivos, nomeada- 
mente com a cabra. As relações sexuaes entre o bodequim e a cabra 
são fecundas. Os mestiços que d'ahi resultam, são fortes e assemelham-se 
mais ao primeiro que ao segundo d'estes ruminantes. Quanto á côr, ora 
se parecem com o pae, ora com a mãe. Os mestiços são tambem fecun- 
dos; entrando em relações reproductivas com as cabras produzem filhos 
que, como elles, se parecem principalmente com o bodequim. Emfim os 
mestiços da segunda geração fecundados por um bodequim, dão filhos 
que a custo se differençam d'este. 

É de notar que o bodequim à medida que avança em annos vae per- 
dendo as boas qualidades que o caracterisam emquanto novo para se 
tornar selvagem, intratavel e muito perigoso até. 


94 HISTORIA NATURAL 


O BODEQUIM DE HESPANHA 


É conhecido tambem pelo nome de cabra dos montes ou cabra mon- 
tez. A denominação de bodequim de Hespanha não é perfeitamente justa, 
porque o animal não vive só n'este paiz, mas ainda em Portugal; deve- 
ria chamar-se antes bodequim da peninsula hispanica, porque existe effe- 
ctivamente e é até vulgar em quasi todas as altas montanhas de Hespa- 
nha e Portugal. Na serra Morena, na serra Nevada, nas montanhas de 
Andaluzia, na serra da Estrella, em todas estas paragens se encontra 
com frequencia. 


Os costumes d'esta especie são analogos aos da especie que acaba- 
mos de estudar e não merecem menção especial. 


Os mezes mais proprios para a caça d'este ruminante são Julho e 
Agosto, porque é então que se torna possivel passar as noites à altura 
de trez mil metros ou mais, sem receio do frio. 


À carne do bodequim de Hespanha é um bom alimento e a pelle, 
segundo Brehm, paga-se em Granada por vinte ou trinta francos. 


AS CABRAS PROPRIAMENTE DITAS 


São mais pequenas que o bodequim. Teem os cornos prismaticos, 
de bordos cortantes, sem nodosidades na face anterior, divergentes e 
munidos de saliencias transversaes. Pelos demais caracteres asseme- 
lham-se ao bodequim. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 95 


A CABRA SYLVESTRE 


É este o ruminante que, com taes ou quaes probabilidades, se consi- 
dera geralmente como o ascendente primitivo da cabra domestica. 

A cabra sylvestre tem com effeito os mesmos caracteres essenciaes 
que a domestica, diferindo della apenas pelo tamanho e pela direcção 
dos cornos. As relações sexuaes de uma com outra são fecundas; o cru- 
zamento dá um typo intermediario aos dois. 


CARACTERES 


A cabra sylvestre é mais pequena que o bodequim e maior que a 
cabra domestica. Mede cento e sessenta centimetros, comprehendida a 
cauda que tem vinte e dois, e um metro de altura ao nivel da espadua; 
O sacro fica um pouco mais elevado. O corpo é alongado, a cabeça cur- 
ta, a região frontal larga, o focinho obtuso e o dorso do nariz quasi re- 
cto. Os membros são relativamente altos e os cascos obtusos. Os olhos 
são pequenos e as orelhas de tamanho medio; a cauda é muito curta. Os 
cornos chegam a attingir nos velhos machos um metro e trinta centime- 
tros de extensão; são porém fracos e descrevem um arco de concavi- 


dade posterior. São muito approximados na raiz e divergem nas extre- 


midades, ficando separados por uma distancia de cêrca de vinte e cinco a 
vinte e nove centimetros. O manto é composto de duas ordens de pêllos: 
um fino, curto e outro comprido e rijo. Em ambos os sexos existe um, 
tufo volumoso de pêllos por baixo da mandibula e que constitue o que vul- 
garmente se chama barba. A côr geral do manto é um pardo arruivado 
ou um amarello trigueiro com reflexos ruivos, mais claro aos lados do 
tronco e no ventre. Sobre a linha media do dorso estende-se uma tira 
negra perfeitamente delimitada. Os membros anteriores são de um tri- 
gueiro escuro na face de diante e dos lados; por cima dos cascos exis- 
tem de ordinario, tanto nos membros anteriores como nos posteriores 
porções de péllo brancas. Os lados da cabeça são de um pardo arruiva- 
do, a região frontal é trigueiro-escura, bem como o são a raiz do nariz, 
o queixo e a barba. 


96 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se principalmente a oeste e ao centro da Ásia. Procura 
sempre os logares elevados, as montanhas onde ha neves perpetuas. 


COSTUMES 


À cabra sylvestre é, como todos os animaes da familia, muito so- 
ciavel. Encontra-se geralmente em rebanhos de dez a vinte individuos 
submettidos à direcção de um velho macho experimentado. 

Os habitos de vida da cabra sylvestre teem uma grande analogia 
com os do bodequim. Como elle, corre pelos caminhos mais perigosos 
com toda a segurança, fita durante horas seguidas os precipicios, sem 
vertigem, trepa admiravelmente e dá saltos assombrosos. É muito timida 
e muito vigilante, o que lhe permitte evitar numerosos perigos. 

O olfato e o ouvido são orgãos apuradissimos n'esta especie. 

À alimentação da cabra sylvestre consiste principalmente em plan- 
tas saborosas que crescem na montanha e em folhas d'arvores. De ma- 
nhã, muito cêdo, o ruminante abandona a floresta em que passou a noite, 
sobe aos logares mais altos das montanhas onde se apascenta o dia in- 
teiro até que, ao declinar da tarde, retoma o caminho da floresta. 

O coito realisa-se em Novembro. A femea pare em Abril dois filhos, 
raras vezes um só. Poucas horas depois do nascimento, os filhos encon- 
tram-se já em condições de seguir a mãe pelas montanhas. Crescem ra- 
pidamente e, uma vez reduzidos ao captiveiro, domesticam-se facilmente. 
Se na casa em que estão captivos ha cabras domesticas, a educação 
faz-se mais rapidamente ainda. Os captivos habituam-se facilmente aos 
novos companheiros cujos habitos imitam, saindo a pastar quando elles 
saem e entrando em casa quando elles entram. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 97 


CAÇA 


| “A perseguição da cabra sylvestre offerece difficuldades grandes que 
alguns naturalistas chegam a comparar às da caça do bodequim. Os lo- 
" ares perigosos que o ruminante habita, a timidez de que é dotado e 
principalmente a vigilancia que sem cessar exerce em torno de si, são 
- os motivos das difliculdades que andam inherentes a esta caça. 


E Vamos passar em revista as principaes variedades ou raças de ca- 
RE bras. 


E sis WA CABRA ANÃ 


o Ei LE; 
EO Não mede mais de sessenta e seis centimetros de comprimento so- 
End cincoenta de altura, ao nivel da espadua. Tem o corpo refeito, as 

pernas curtas e fracas, a cabeça larga e o focinho comprido. Os cornos 
e) stem nos dois sexos e são do comprimento de um dedo apenas, re- 
Eh ados primeiro para traz e para fóra e depois, no terço final, um 
juco | para, diante. O corpo é coberto por um pêllo curto, espesso, de 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


“Habita uma larga extensão do interior da Africa. Os limites de dis- 


* persão geographica não são bem conhecidos. 
VOL. III 7 


98 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Nas povoações marginaes do Nilo Branco é vulgar encontrar-se a 
cabra anã no estado domestico. É um ruminante alegre e que trepa ao 
longo dos troncos d'arvores com grande facilidade. Brehm que a viu de 
perto nas suas viagens à Africa, exprime-se assim: «Foi a cabra anã a 
que primeiro me provou, com grande admiração minha, que os ruminan- 
tes podem trepar às arvores. Nada mais gracioso do que vêr. oito a dez 
destes pequenos animaes comendo sobre o topo de uma grande mimosa. 
Muitas vezes as vi em posições que, se não fosse testemunha presencial, 
me pareceriam impossiveis. Pousavam as quatro patas sobre um ramo 
de modo que, por mais que se agitasse, guardavam sempre o equili- 
brio.» * 

Os donos d'estas cabras não teem grandes cuidados nem grandes 
trabalhos com ellas. Deixam-as sair de manhã muito cêdo e conservam- 
lhes à tarde a porta das córtes aberta para recolherem. 

Estas cabras, apezar de pequenas, produzem muito leite. 


A CABRA DE ANGORA 


Constituirá uma simples raça da cabra domestica, como querem al- 
guns, ou uma especie, como pretendem outros? Não nos parece possivel 
decidir desde já esta questão. Os que dão à cabra de Angora o titulo de 
typo especifico baseam-se sobre o facto negativo de serem estereis as 
relações sexuaes d'ella com a cabra domestica. Estes naturalistas acham- 
se dispostos a consideral-a como descendente do bodequim habitante das 
montanhas do Thibet com que tem muitas analogias morphologicas. 


1 Brehm, Obr. cil., vol. 2.º, pg. 595. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 99 


CARACTERES 


A cabra de Angora é um ruminante formoso e grande, de corpo re- 
feito, pernas fracas, pescoço e cabeça curtos, de pélio e cornos inteira- 
mente diferentes dos que nas outras cabras se observam. Os cornos 
existem em ambos os sexos; no macho são fortemente comprimidos, tem 
os bordos cortantes, a extremidade obtusa, separam-se ou afastam-se ho- 
risontalmente, descrevem em toda a extensão uma dupla espiral e teem 
a ponta dirigida para cima. Os da femea são mais pequenos, mais arre- 
dondados, de simples contorno e voltados para baixo, na direcção das 
orelhas que são pendentes, e tambem um pouco para fóra. Os pêllos do 
manto são compridos, espessos, molles, luzidios e um pouco crespos. Só 
no focinho, orelhas e parte inferior dos membros é que os pêllos são 
curtos e lisos. Ambos os sexos apresentam uma barba muito comprida, 
formada de péllos rijos. De ordinario estas cabras são inteiramente bran- 
cas; os individuos com manchas escuras são muito raros. 

Os pêllos extensissimos d'esta cabra não são, como algum tempo se 
suppoz, verdadeiras sedas; pelo contrario, elles encobrem as sedas. É 
precisamente o inverso do que tem logar n'outras especies de longo 
péllo e, como observa Brehm, este caracter pode servir para fazer dis- 
tinguir a cabra de Angora. No estio o pêllo cae por camadas, mas cresce 
logo depois com extrema rapidez. O pêllo desta cabra tem um pezo que 
oscilla entre mil duzentas e cincoenta e duas mil e quinhentas grammas. 


! 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Parece que os antigos não conheceram esta especie. Belon é o pri- 
meiro que no seculo xvr a menciona. O nome que designa este rumi- 
nante vem-lhe da pequena cidade Angora, na Turquia Asiatica, que ella 
habita e d'onde se tem espalhado pela Europa. 


100 HISTORIA NATURAL 
COSTUMES 


À patria d'este ruminante é secca e quente. Vem d'ahi a impossi- 
bilidade de. conserval-o em regiões frias e humidas onde, a despeito de 
todos os cuidados, não pode subsistir. Reduzida desde muito à domesti- 
cidade a cabra de Angora é admiravelmente bem tratada. Durante o es- 
tio o dono, para conservar-lhe a belleza do pêllo, não foge ao cuidado 
de laval-a e penteal-a algumas vezes por dia. 


USOS E PRODUCTOS 


O pêllo d'esta cabra é empregado em muitos usos industriaes e 
serve para a fabricação de luvas e de meias, de estofos, etc. O valôr de 
uma cabra varia, diz Gerbe, segundo os logares entre quarenta e cinco 
a sessenta francos. A tosquia tem logar no mez de Abril. O commercio 
do pêllo d'esta cabra é importantissimo. Segundo Gerbe, em Angora 
quasi todos os habitantes negoceiam em pelles, fazendo-se só ahi uma 
exportação no valôr de quatro milhões e cincoenta mil francos e ficando 
ainda para consumo do paiz um numero de pelles orçadas em quatro 
centos e cincoenta mil francos. 

A finura do pêllo diminue com a idade do animal. O péllo da cabra 
de um anno é o melhor e que mais caro se paga; o péllo da cabra de 
seis annos cessa de ter cotação em mercado, reputa-se inutil. 


AGOLIMATAÇÃO 


Em vista do alto valôr d'este ruminante teem sido feitas muitas ten- 
tativas para o acclimar na Europa, e algumas com extraordinario resul- 
tado. É assim que, segundo informações de Brehm, alguns centos de in- 
dividuos transportados em 1787 para os Baixos-Alpes francezes ahi pros- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 101 


peraram admiravelmente. Cem cabras que Fernando vir comprou e fez 
conduzir para perto de Madrid, multiplicaram-se ahi por forma tal que 
foi necessario transportal-as para as montanhas do Escurial. Levadas mais 
tarde para a Carolina do Sul, deram-se ahi perfeitamente. A Sociedade 
imperial de acclimatação importou para França um grande numero de ca- 
bras de Angora, que ahi teem prosperado. Diz-se mesmo que o péllo 
d'estas cabras é melhor ainda em França que no paiz natal. 

A influencia do clima francez fez-se sentir apenas sobre a epocha do 
cio, que, sendo primitivamente em Outubro, passou a ter logar em Se- 
tembro. 

O alimento d'estas cabras consiste essencialmente em feno, palha e 
farello; preferem os alimentos seccos aos pastos. São-lhes indispensaveis 
o sal e a agua pura e boa. É preciso preserveral-as da humidade e do 
frio, principalmente depois da tosquia. A falta de cuidado n'esta occasião 
implica a morte de muitos individuos. 

Os livros de historia natural, que tivemos occasião de consultar, não 
se referem a tentativas de acclimação em Portugal. Não sabemos se teem 
sido feitas ou não; o que porém pode aflirmar-se com probabilidade é 
que essa acclimatação devia realisar-se entre nós perfeitamente, melhor 
mesmo do que em França ou na Hespanha. 


A CABRA CACHEMIRA 


É de pequenas dimensões: o macho adulto mede um metro e vinte 
e cinco centimetros de comprimento sobre sessenta e seis centimetros de 
altura. Tem o corpo alongado, o dorso arredondado, a região do sacro 
ligeiramente mais elevada que a da espadua, as pernas fortes, grossas, 
os cascos terminados em ponta, o pescoço curto, a cabeça volumosa, os 
olhos pequenos, e as orelhas pendentes tendo de comprimento metade 
da cabeça. Os cornos são compridos, contornados em espiral, comprimi- 
dos e apresentando na face anterior um sulco em toda a extensão. Sepa- 
ram-se a partir da raiz, tomando uma direcção obliqua para cima e para 
traz; a ponta dobra-se para dentro. Apresenta esta cabra duas ordens de 
péllos: um curto, extremamente fino e molle e um outro, que cobre o 
primeiro e que é formado de sedas compridas, rijas, finas e lisas. À face 


102 HISTORIA NATURAL 


e as orelhas são cobertas de péllo curto. A côr do manto varia muito. 
Ha cabras cachemiras negras, trigueiras, e amarelladas; os exemplares 
mais communs são brancos. Algumas vezes as partes lateraes da cabeça 
são de uma côr differente da do resto do corpo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIITCA 


Esta especie é vulgar nas montanhas do Thibet. Foi acclimada em 
Bengala, onde existe comtudo em menores proporções. 


USOS E PRODUCTOS 


O péllo d'este animal é verdadeiramente precioso. Fabricam-se com 
elle tecidos finissimos de grande valor. A tosquia faz-se em Maio ou Ju- 
nho. Depois d'esta operação, separam-se cuidadosamente as duas espe- 
cies de pêllos a que acima nos referimos; as sedas reservam-se para 
tecidos grosseiros e os pêllos mais finos para tecidos mais delicados e, 
por isso mesmo, de muito mais valor. O pêllo utilisavel que uma cabra 
cachemira produz eleva-se de ordinario a cem ou cento e vinte gram- 
mas; cento e oitenta ou duzentas e cincoenta grammas é já um pezo ex- 
cepcional. O pêllo do macho é mais abundante que o da femea, mas de 
qualidade inferior a este. Houve tempo em que as pelles de cabra ca- 
chemira constituiram um importantissimo artigo de commercio; hoje, me- 
didas coercitivas de toda a ordem, restricções à liberdade de vender 
teem feito baixar consideravelmente este ramo de actividade mercantil. 
O mesmo tem acontecido, e por eguaes motivos, à industria de tecela- 
gem, outr'ora importantissima e hoje tão decaida que os operarios emi- 
eram por falta de obra. 

Para fazer-se idéa do valor desta cabra basta lembrar que, segundo 
Gerbe, um chaile de cachemira vale bem mil e quinhentos a mil e no- 
vecentos francos. Na Europa tem-se já conseguido fabricar chailes com 
a verdadeira là de cachemira e é isto o que tem feito baixar o preço de 
tal vestido à quantia que mencionamos; antes da concorrencia europeia, 
os preços eram outros, muito mais altos. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 103 


ACGCLIMATAÇÃO 


O valor da cabra cachemira estimulou naturalmente o desejo de ac- 
climatal-a na Europa, semelhantemente ao que se fizera em relação à ca- 
bra de Angora. Jaubert, posto ao serviço de Ternaux, introductor em 
França do fabrico de chailes, partiu em 1818 para a compra das cabras 
cachemiras; adquiriu mil e trezentas cabeças mas apenas pode desem- 
barcar em Marselha, em 1819, quatrocentas; as outras morreram na via- 
gem. As mesmas quatrocentas que chegaram, vinham muito doentes. Pela 
mesma epocha Diard e Duvaucel, naturalistas francezes, enviavam ao 
Jardim das Plantas uma cabra cachemira, macho; esta cabra deu-se bem 
no clima francez e copulando-se com as femeas compradas por Jaubert, 
teve uma extensa prole. 

As cabras cachemiras alimentam-se como as cabras de Angora. Exi- 
gem calôr no inverno e movimento no estio. Crescem tão rapidamente 
que ao fim de um anno se encontram perfeitamente aptas para a repro- 
ducção. 


+ À CABRA DA THEBAIDA 


É tambem conhecida pelo nome de cabra do Egypto. Pode conside- 
rar-se até certo ponto como constituindo a transição entre as cabras e 
OS carneiros. 

É mais pequena que a cabra vulgar de que em seguida nos occupa- 
remos, embora tenha os membros mais altos. O pêllo é mais curto que 
o desta ultima. O que n'este ruminante ha de mais caracteristico é a ca- 
beça. O dorso do nariz apresenta ao meio uma forte elevação que dá ao 
focinho uma apparencia inteiramente desagradavel. A pelle que cobre a 
maxilla superior e o labio são por este facto arrepanhados para traz de 
fórma que os dentes incisivos inferiores ficam à vista, desnudados. Os 
olhos são pequenos e as orelhas pendentes e muito alongadas, do tama- 


104 HISTORIA NATURAL 


nho da cabeça. Os cornos ou não existem em nenhum dos sexos ou, se 
existem, são muito curtos, perfeitamente rudimentares. Não ha barba 
n'esta especie. Comprehende-se pelo que deixamos dito quanto ha de re- 
pulsivo n'este animal. A côr mais vulgar do manto é o trigueiro ruivo 
quasi uniforme. Os individuos que apresentam maculas pelo manto são 
muito raros. As mamas nas femeas que aleitam, affectam a fórma de um 
sacco estreito em cima e largo em baixo e teem um comprimento ex- 
traordinario, quasi egual ao dos membros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 
Habita desde a mais remota antiguidade o Alto Egypto. 
CAPTIVEIRO 


O primeiro exemplar vivo d'este estranho ruminante veio à Europa 
no começo d'este seculo. Hoje a especie é frequente nos jardins zoolo- 
gicos. 


Sobre os seus costumes sabemos apenas que é um animal sobrio, 
docil e que reclama poucos cuidados. 


A CABRA DOMESTICA OU VULGAR 


Esta cabra differe da cabra sylvestre pelos cornos que, depois de se 
terem elevado e recurvado para traz, como n'esta, incurvam horisontal- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 105 


mente para fóra e um pouco para diante de modo a figurarem um co- 


meço de espiral. Estes appendices frontaes são arredondados nas duas 


faces, assim como nos bordos posterior e externo; o bordo anterior po- 


rém é cortante, desegual, e algumas vezes tuberculoso de espaço a es- 
paço. À superficie dos cornos apresenta em quasi toda a extensão anneis 
transversaes muito approximados. A femea apresenta ás vezes cornos 
como os do macho, apenas menos fortes e menos extensos; outras vezes 
não apresenta nenhuns. As côres mais vulgares n'esta especie são o 
branco e o negro, ora isolados, ora misturados. O pêllo é duro e de com- 
primento desegual nas differentes partes do corpo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A cabra domestica encontra-se hoje em toda a superficie da terra. 


COSTUMES 


A cabra vulgar é um animal essencialmente diurno. Passa a manhã 
e a tarde pelos montes procurando alimento e ao approximar da noite 
recolhe-se a casa, entrega-se à protecção do homem. É possivel conser- 
val-a captiva, como se faz na Allemanha, durante o dia inteiro; n'estas 
condições todavia, por abundante que seja a alimentação, o animal ema- 
grece, perde constantemente pezo, torna-se emfim, na phrase significa- 
tiva de um auctor allemão, «a sombra de si mesma.» Isto comprehen- 


-de-se facilmente. A cabra tem por meio proprio e habitual a montanha; 


quanto mais arida, quanto mais selvagem esta fôr, melhor o animal ahi 
se encontra. Gosta dos logares desertos, das paisagens tristes. Retel-a em 
casa é contrariar-lhe os instinctos. 

À cabra domestica é um animal vivo, muito agil, disposto, sobre- 
tudo em quanto novo, aos folguedos de toda a ordem e admiravelmente 
adaptado à vida vio. e hostil das montanhas. É sobria, é vigorosa, re- 
siste à fadiga e desconhece inteiramente a vertigem. À rá domestica, 
como todas as cabras, caminha com extraordinaria segurança pelos To- 


chedos mais altamente collocados em montanhas como os Alpes; fita os 


106 HISTORIA NATURAL 


precipícios com indifferença e sobe ás vezes a pontos que ao homem 
parecem absolutamente inacessiveis. 

A disposição aos folguedos que caracterisa a cabra domestica nos 
primeiros tempos de existencia, não pode dizer-se que cesse no animal 
adulto; embora com menor intensidade, essa disposição alegre continúa, 
a despeito dos progressos da idade, persiste, pode dizer-se, durante 
toda a vida do animal. É esta disposição particular que a leva a promo- 
ver às suas congéneres, aos outros animaes e até mesmo ao homem pe- 
quenas luctas nas quaes intenta, não ferir ou mostrar recursos de va- 
lentia, mas simplesmente agitar-se, fazer agitar os outros, divertir-se 
emfim. 

A cabra domestica é docil e revela mesmo pelo homem uma ex- 
trema dedicação. Se é tratada com desvello, se é acariciada pelo dono, 
este pode fazer d'ella quanto quizer, pode exigir-lhe toda a ordem de 
serviços na certeza de que será obedecido. É assim que se faz com que 
uma cabra puche durante horas inteiras um carro de creanças. 

A cabra domestica é muito intelligente e chega a comprehender a 
voz humana, submettendo-se às ordens que recebe. Esta intelligencia 
fala sentir amargamente a mais pequena injustiça de que a tornem vi- 
ctima. Se a maltratam, se a castigam sem razão, torna-se má, hostil, fa- 
cilmente colerica. Emfim, podemos fazer da cabra domestica um typo de 
docilidade e de paciencia ou de rudeza e hostilidade, segundo o modo 
por que a tratarmos. 

Nas montanhas hespanholas e nos Alpes francezes emprega-se a ca- 
bra domestica como guia dos rebanhos de carneiros. Prestam n'esta ta- 
refa serviços importantissimos e tornam-se auxiliares indispensaveis dos 
pastores. | 

Em alguns logares, nos Alpes por exemplo, deixam-se as cabras en- 
tregues a si mesmas. Um creado condul-as ás pastagens, abandona-as 
ahi e só volta a buscal-as no outomno; apenas uma vez por dia ou mesmo 
por semana vae um pastor levar-lhes uma certa quantidade de sal que 
ellas, pelo costume, veem buscar a um logar e a uma hora determi- 
nados. 

No interior d'Africa as cabras pastam livremente; mas ao declinar 
da tarde voltam para casa a recolherem-se n'um abrigo, que já tivemos 
occasião de descrever n'esta obra, e onde ficam resguardadas do attaque 
nocturno dos carniceiros. Como o leitor já sabe pelo que dissemos a pro- 
posito do leão e do lynce, esse abrigo nem sempre é tão seguro como o 
indigena quereria; já n'outro logar mostramos que não é absolutamente 
raro, mão grado todos os cuidados, que uma ou muitas cabras sejam 
roubadas durante a noite pelos carniceiros. 

À cabra domestica foi levada para a America pelos europeus e ada- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 107% 


ptou-se ahi perfeitamente. Brehm observa que a creação d'este utilissimo 
ruminante é muito descurada no Brazil, no Perú e no Paraguay, mere- 
cendo, pelo contrario, extrema attenção no Chili. 

Relativamente ao regimen alimentar é digno de menção este facto: 
muitas plantas, que para outros animaes são venenos, nas cabras não 
produzem o menor effeito deleterio; estão n'este caso, entre outras, a 
cicuta e o tabaco. A cabra em liberdade bebe apenas agua pura; em casa 
porém acceita agua tepida com farello em suspensão. 

A cabra ao fim de seis mezes de existencia está em condições de 
reproduzir-se. O cio na femea realisa-se duas vezes por anno: uma em 
Setembro ou Novembro e uma outra em Março. Estas epochas são para 
a cabra domestica de uma grande agitação. Se a copula não chega a 
realisar-sa a femea adoece. O cio no macho dura todo o anno, ou melhor 
— não ha para elle epocha do cio, antes está apto sempre a satisfazer 
as necessidades sexuaes das companheiras. Um macho vigoroso, entre 
os dois e os oito annos, basta para copular cem femeas. Depois de uma 
gestação que dura vinte e uma a vinte e duas semanas, a femea dá à 
luz um ou dois filhos, raras vezes trez e muito excepcionalmente quatro 
ou cinco. Quando este ultimo caso se dá, geralmente a mãe ou alguns 
dos filhos morrem depois da parturição. Os cabritos ao fim de dois dias 
acompanham a mãe por toda a parte. Crescem muito rapidamente; ao 
fim de dois mezes teem cornos e ao fim de um anno estão adultos. 


USOS E PRODUCTOS 


Fr 


A utilidade da cabra domestica é immensa; em muitas regiões é 
ella, segundo a expressão de um escriptor francez, «a riqueza dos po- 
bres». É um ruminante cuja alimentação custa muito pouco no inverno, 
não custa nada no verão e que, quando bem nutrido pode, segundo 
os calculos de Lenz, produzir oitocentos e cincoenta litros de leite por 
anno. Este bello ruminante fornece-nos ainda a carne, os cornos e a 
pelle, productos de indiscutivel utilidade. A carne, com quanto um pouco 
secca, é saborosa; a pelle serve para luvas, em algumas terras para 
calças e na Grecia para odres em que se conserva o vinho; os cornos 
emfim, torneados, servem para usos diversissimos nas industrias, ha- 
vendo até logares em que a medicina os aproveita à maneira de vento- 
sas para obter effeitos revulsivos. 


108 HISTORIA NATURAL 


OS CARNEIROS 


Os ruminantes que constituem esta familia distinguem-se das cabras 
pela região frontal que é chata, pelos cornos que são angulosos, trian- 
gulares, de rugosidades transversaes contornadas em espira e pela au- 
sencia de barba. São em geral animaes elegantes, de corpo fino, pernas 
altas e delgadas, cauda curta, olhos e orelhas grandes e péllo crespo, 
lanoso. | 

A comparação entre o esqueleto d'estes animaes e os das cabras 
não faz descobrir diflerenças muito salientes. Os carneiros teem treze 
vertebras dorsaes, seis lombares e sagradas e trez a vinte e duas coccy- 
gianas. 

A direcção dos cornos é caracteristica: n'uns, o corno do lado es- 
querdo é contornado para a direita e o direito para a esquerda, ficando 
as extremidades voltadas para fóra e divergentes; n'outros, o corno di- 
reito é contornado para a direita e o esquerdo para a esquerda, conver- 
gindo então as pontas para traz. Esta ultima forma recorda a das ca- 
bras. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os carneiros selvagens babitam as montanhas do hemispherio norte. 
Encontram-se na Europa, na Ásia central e septentrional, ao norte da 
Africa e na America septentrional. Pertencem na maior parte ao antigo 
continente. Cada grupo de montanhas apresenta as suas raças ou varie- 
dades particulares, distinctas d'outras raças ou variedades principalmente 
pela conformação dos cornos. 


COSTUMES 


São animaes montanhezes; alguns parece não viverem bem senão 
nas regiões mais elevadas. Ascendem muitas vezes a uma altura de seis 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 109 


mil e seiscentos metros. Nas planicies só vivem os carneiros domesticos. 
Estes mesmos comtudo, preferem as montanhas, vivem melhor ahi. 

Os carneiros selvagens procuram os logares em que ha hervas e é 
por isso que no inverno se encontram muitas vezes nas planicies. No 
estio as montanhas offerecem-lhes plantas saborosas; no inverno porém 
são forçados a contentar-se com lichens, musgos e hervas. Sabendo per- 
feitamente escolher os alimentos, se os ha variados e em abundancia, 
dão todavia provas de extrema sobriedade em epochas pouco ferteis; 
hervas seccas e cascas d'arvores parece bastarem-lhes então. 

Brehm faz notar que nos carneiros, melhor talvez do que em qual- 
quer outra especie, é visivel a influencia degradante do captiveiro. Na 
expressão d'este naturalista «o carneiro domestico é apenas a sombra 
do carneiro selvagem. A cabra, mesmo na domesticidade conserva 0 ca- 
racter independente; o carneiro, esse degenera n'um verdadeiro es- 
cravo. O carneiro selvagem é vivo e agil, reconhece e evita os perigos, 
é corajoso e gosta dos combates, das luctas. No carneiro domestico tudo 
isto desapparece: a vivacidade é substituida pela indolencia, a prudencia 
por uma incondicional confiança no homem, a coragem emfim por um 
medo, por uma espantosa pusilanimidade. O carneiro domestico, por: 
grande que seja, tem medo de um cãosito e o mais inoffensivo animal 
basta para atterrar um rebanho inteiro. Os carneiros domesticos mar- 
cham cegamente atraz do guia; se este o conduzir para um precipício, 
irão confiados, embora os espere a morte. Nenhum animal se domina, 
nenhum se guia tão facilmente como este; parece que a felicidade para 
elle consiste em encontrar quem tome sobre si todos os cuidados que 
lhe deveriam pertencer. | 

Os carneiros multiplicam-se rapidamente. Depois de uma gestação 
de vinte a vinte e cinco semanas a femea dá à luz um a dois filhos já 
sulficientemente fortes para a seguirem por toda a parte. A mãe, no es- 
tado selvagem, defende-os de todos os perigos, mesmo à custa da pro- 
pria vida; no estado domestico, pelo contrario, a mãe não tem pelos 
“recemnascidos senão a indifferença que a distingue ácerca de tudo quanto 
a cerca. Us filhos ao fim de um anno encontram-se aptos para a repro- 
ducção. 


CAPTIVEIRO 


Os carneiros selvagens trazem-se rapidamente ao estado domestico 
e conservam ainda atravez de algumas gerações a vivacidade nativa, 


10 HISTORIA NATURAL 


Reproduzem-se bem no captiveiro e habituam-se rapidamente às pessoas 
que d'elles se occupam, obedecendo-lhes quando escutam a sua voz e re- 
cebendo com prazer as carícias que lhes fazem. 


Os carneiros propriamente domesticos vivem sujeitos ao homem 
desde tempos immemoriaes. Não sabemos quaes fossem os antepassados 
desta especie, nem o primeiro logar que occuparam no globo; sabemos 
só que hoje se encontram em toda a terra, como companheiros constan- 
tes da nossa especie. 


USOS E PRODUCTOS 


Tudo no carneiro tem utilidade: a pelle, a la, os cornos, a carne e 
até os excrementos. 


O MUFLÃO AFRICANO 


Ha naturalistas que incluem esta especie na familia das cabras, por- 
que d'estas tem muitos caracteres. O muflão africano pode ser collocado 
ao lado da cabra da Thebaida, como constituindo a transição entre a fa- 
milia das cabras e a dos carneiros. Os cornos d'este animal recordam os 
das cabras, differindo d'elles comtudo: são primeiro horisontaes, incur- 
vando depois muito rapidamente para baixo e para traz. Apresenta ao 
longo da face inferior do pescoço, desde a maxilla inferior até à origem 
dos membros anteriores, uma porção de péllos compridos perfeitamente 
distinctos dos que cobrem o resto do corpo, que são muito mais curtos 
e menos claros. Os péllos da face inferior do pescoço, chegando à raiz 
dos membros de diante, como são muito extensos, prolongam-se até às 
“articulações dos joelhos, envolvendo-as; é por isso que ao muflão afri- 
cano se dá em França o nome de muflão de folhos. Os cornos teem ses- 


add ao di nãO mic e é DD a 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 111 


senta e seis centimetros de comprimento e apresentam na base quatro 
faces. O pêéllo, exceptuando o da face inferior do pescoço e o da extre- 
midade da cauda, é semelhante ao da cabra domestica. O dorso é ruivo 
ou amarello carregado e apresenta manchas. O ventre e a face interna 
dos membros são brancos; ao meio do dorso estende-se uma linha es- 
cura. 

O macho adulto mede dois metros de comprimento sobre um metro 
e quinze centimetros, approximadamente, de altura. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À area de dispersão geographica d'este ruminante é muito extensa. 
Vive nas montanhas das cercanias do Cairo, nas margens do Nilo, na 
Abyssinia, no Sinai, no Atlas, em Marrocos, na Algeria, etc. 


COSTUMES 


Segundo as informações do Dr. Buvry, o muflão africano habita de 
preferencia os rochedos das montanhas elevadas. Não vive em bandos ou 
rebanhos como a maior parte dos carneiros, mas isolado. Só no tempo 
do cio, que tem logar em Novembro, é que algumas femeas se juntam 
temporariamente a um macho. Durante esta epocha ha entre os machos 
os combates, a que tantas vezes nos temos referido, para a posse ou do- 
minio da femea durante a excitação genesica. Quatro ou cinco mezes de- 
pois da copula, a femea dá à luz um ou dois filhos que se conservam na 
companhia d'ella durante quatro mezes e que a abandonam antes de um 
novo periodo de excitação genital. 

No estio, o muflão africano alimenta-se, como as cabras, de plantas 
nascidas nas montanhas; no inverno, come lichens, musgo e hervas. 


112 HISTORIA NATURAL 


O mesmo naturalista a quem pedimos as informações anteriores, as- 
severa que a caça do muflão africano é dificil, não só porque o animal 
vive a grandes alturas, mas ainda porque é muito vigilante e se lhe torna 
facil, no meio do silencio que reina de ordinario nas grandes elevações, 
ouvir a distancia o mais leve rumor produzido pelos movimentos de quem 
caça. Ha ainda uma outra circumstancia que difficulta a caça d'este ru- 
minante: é que, tendo uma extraordinaria resistencia vital, ainda depois 
de gravemente ferido é capaz de fugir com extrema rapidez e por largo 
tempo às perseguições do caçador. O Dr. Buvry diz que, tendo lançado 
por terra com dois tiros um muflão, se dispunha a apanhal-o quando elle 
deitou a correr precipitadamente; o naturalista guiado pelo traço de san- 
gue do animal caminhou horas e horas antes que podesse encontral-o. 
E depois de todo este trabalho, depois desta immensa caminhada por 
atalhos e rochedos, em meio de perigos, foi o naturalista dar com o ani- 
mal no fundo de um precipicio onde caíra ou onde se atirára sendo pre- 
ciso que um companheiro indigena descesse cautelosamente para trazer 
acima o cadaver de que apenas se utilisou a pelle. 


CAPTIVEIRO 


O muflão africano dá-se bem em captiveiro e habitua-se perfeita- 
mente ao homem, como se vê nos jardins zoologicos. Supporta o clima 
da Allemanha do Norte e reproduz-se captivo, como se tem visto por 
muitas vezes em differentes paizes, nomeadamente em Bruxellas onde 
existe um par que todos os annos invariavelmente produz dois filhos. 
Brehm diz ter observado alguns exemplares que em captiveiro conser- 
vam toda a selvageria, toda a desconfiança que os caracterisa no estado 
da liberdade. A intelligencia do muflão africano é muito limitada. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 113 


USOS E PRODUCTOS 


Os arabes estimam muito a carne d'este ruminante; Brehm, que a 
comeu, acha-a excellente, mais delicada, superior mesmo á do veado. 
O pêllo serve nas mãos dos Arabes para o fabrico de cobertores e tape- 
tes; da pelle fazem, pela tanificação, marroquim. 


O MUFLÃO EUROPEU 


Tem de comprimento um metro e trinta centimetros, incluida a cauda, 
que mede oito ou dez; a altura é oitenta centimetros e o pezo varia de 
vinte e cinco a quarenta kilogrammas. Os cornos teem um comprimento 
de sessenta e seis centimetros e um pezo de quatro a seis kilogrammas. 
O corpo é muito refeito, muito vigoroso. O pêllo é curto e muito denso, 
principalmente no inverno. Não tem barba; os pêllos do peito são mais 
compridos que -os d'outras partes do corpo. A côr geral do pêllo é um 
ruivo que faz lembrar o da rapoza. A cabeça é cinzenta, o focinho, os 
bordos da cauda, os pés e o ventre são brancos. A linha media do dorso 
é escura. 

De ordinario só o macho tem cauda; ás vezes, porém, a femea tam- 
bem os apresenta em estado rudimentar. No macho estes appendices são 
compridos e fortes, muito espessos na base e delgados na extremidade. 
Na raiz são muito approximados; do meio por diante recurvam-se em 
forma de gancho. O corno direito é contornado para a esquerda e o es- 
querdo para a direita; os cornos apresentam trinta a quarenta rugosida- 
des irregulares que se estendem até à ponta. Na femea, os cornos, quando 
existem, affectam a forma de pyramides obtusas de cinco a oito centi- 
metros de altura. 


VOL. III 8 


114 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIICA 


O muflão europeu habita ainda hoje as montanhas pedregosas da 
Corsega e da Sardenha. Crê-se geralmente que elle viveu outrora em 
outros pontos do meio dia da Europa. O muflão selvagem da ilha de 
Chypre é uma especie distincta. 

Apezar da caça activa de que é victima, o muflão europeu é abun- 
dante; encontram-se ainda rebanhos de cincoenta a cem cabeças. 


COSTUMES 


Houve tempo em que a especie abundava por tal fórma que n'uma 
só caçada se matavam quatro a cinco mil individuos; hoje, pondo em pra- 
tica todos os meios, deve considerar-se feliz quem conseguir matar trinta 
ou quarenta. ; | 

O muflão da Europa, distanciando-se muito n'este ponto do muflão 
africano, vive em sociedades, cujo commando pertence ao macho mais 
velho e mais forte do rebanho. Na epocha do cio estas sociedades decom- 
poem-se em pequenas familias, formadas ordinariamente de um macho 
e de algumas femeas por elle conquistadas em combate. A quadra dos 
amores que tem logar em Dezembro e Janeiro, é agitadissima. As luctas 
dos machos são terriveis, acabam geralmente pela morte de um dos ad- 
versarios que é precipitado n'um abysmo. 

A gestação dura vinte e uma semanas; em Abril ou Maio a femea 
dá à luz dois filhos sufficientemente vigorosos para correrem desde logo 
atraz da mãe que, poucos dias passados, egualam em temeridade e prom- 
ptidão de movimentos. Ao fim de quatro mezes apparecem os cornos nos 
pequenos machos, que da idade de um anno estão aptos para a repro- 
ducção. No fim de trez annos teem attingido o maximo desenvolvimento. 

O muflão é um excellente trepador; nas planicies fatiga-se muito ra- 
pidamente e por isso um cão o apanha dentro de muito pouco tempo. 


Os principaes inimigos do adulto são o lobo e o lynce; os recem- 
nascidos são victimas ainda da aguia e do abutre. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 115 


CAÇA 


A perseguição do homem a este ruminante é porfiada. A melhor epo- 
cha de caça são os mezes' do cio; imitando a voz da femea, o caçador 
consegue attrair os machos até à distancia de poder atirar-lhes. Os adul- 
tos só por acaso se podem apanhar vivos; os recem-nascidos captivam-se 
facilmente, matando a mãe. 


CAPTIVEIRO 


O muflão, uma vez preso, habitua-se rapidamente às relação com 
a nossa especie, conservando sempre a agilidade e viveza que o cara- 
cterisam no estado livre. Chega a um grão de domesticidade tal que 
acompanha o homem por toda a parte como o cão. É no entanto um ani- 
mal desagradavel sempre no captiveiro, por dois motivos capitaes: por- 
que percorre constantemente a casa atirando tudo ao chão, mexendo em 
tudo e porque, à medida que avança em idade, vae readquirindo a sel- 
vageria primitiva, vae-se tornando mau, usando dos cornos contra o ho- 
mem, não só para se defender, como por prazer de attacar, de fazer 
mal. De resto, é pouco intelligente, mal dotado de memoria. 

As relações sexuaes d'esta especie com outras do mesmo grupo são 
fecundas; os mestiços que d'ahi resultam são fecundos tambem. As ten- 
tativas de cruzamento com a cabra domestica, ensaiadas em muitos jar- 
dins zoologicos, teem sido até hoje frustradas. 

“Um facto digno de notar-se é que algumas vezes os mestiços re- 
sultantes do cruzamento do muflão europeu com o carneiro domestico, 
apresentam quatro cornos. 

As especies mais visinhas do muflão europeu, quer morphologica- 
mente, quer pelos costumes, são : 

O MUFLÃO DE CHYPRE, que só n'esta ilha se encontra; 

O MUFLÃO DA PERSIA, que habita principalmente a provincia de Ma- 
candarim e as montanhas da Armenia; 

O MUFLÃO DO HIMALAYA, que vive no Pequeno Thibet e em Cabul; 


Finalmente o MUFLÃO DO CABO, que vive a éste do Cabo e na Serra 
x* 


116 HISTORIA NATURAL 


Moreh. Estas especies distinguem-se pela curvatura dos cornos e não 
merecem descripção especial. 


O ARGALI 


E o carneiro selvagem da Asia e é tambem o maior representante 
da familia. 


CARACTERES 


É um animal forte de dois metros e quinze centimetros de compri- 
mento sobre um metro e trinta de altura. Os cornos são tão grandes 
que o raposo azulado pode introduzir-se na cavidade d'elles. A estatura 
do animal indica força e vigor. Os cornos dão-lhe uma physionomia es- 
pecial. Na raiz cobrem completamente a parte posterior da cabeça. Muito 
approximados no começo, recurvam-se a pequena altura formando ver- 
dadeiros ss. O comprimento d'estes orgãos é de um metro e quinze cen- 
timetros a um metro e trinta e a circumferencia, na base, é de dezeseis 
a vinte centimetros. Estes appendices são cobertos em toda a extensão 
de rugostdades muito approximadas. O manto offerece péllos compri- 
dos e rijos que cobrem outros finos, molles e espessos. À côr varia 
com as estações; é trigueira escura no inverno e ruiva no verão. A fe- 
mea apresenta tambem cornos, mas mais delgados que os do macho e 
quasi rectos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita todas as regiões desertas das montanhas da Asia central. 
Existiu outr'ora em alguns pontos da Russia asiatica d'onde todavia des- 
appareceu completamente desde 1832. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL, 117 


COSTUMES 


Evita as montanhas humidas e muito arborisadas, assim como as 
grandes alturas. Prefere às elevações extraordinarias, em que tão bem 
se dão as cabras, as montanhas de seiscentos a mil metros de altura 
apenas. É ahi que elle vive de inverno e de verão. 

É sociavel; por isso se encontram bandos de oito a dez individuos, 
cuja direcção pertence sempre ao macho mais vigoroso. 

Na epocha do cio os combates dos machos são violentos; se o mais 
fraco não toma o expediente de fugir, será inevitavelmente atirado a um 
precipício onde encontra a morte. 

À femea dá à luz em Março um ou dous filhos, de pêllos pardos e 
crespos. Estes seguem desde o primeiro dia a mãe e com ella se con- 
servam até à primeira estação de cio, posterior ao nascimento. No ma- 
cho os cornos apparecem aos dois mezes. 

De verão, o argali alimenta-se de plantas que crescem nos valles 
adjacentes às montanhas que habita; no inverno, come musgos, lichens 
e hervas seccas. O frio não o incommoda muito; o manto que é espesso 
basta para o preserverar. 

“É muito timido; desde que vê um homem, deita a fugir, correndo 
com extraordinaria velocidade por logares alcantilados, perigosissimos. 


CAÇA 


Comprehende-se pelo que acabamos de dizer que a caça do argali 
seria difficilima se a curiosidade extrema do animal o não compromet- 
tesse a cada instante. Os caçadores suspendem ás vezes a roupa a uma 
haste vertical e emquanto o ruminante, levado pela curiosidade, fixa 
attentamente o espantalho, vão elles por outro lado approximando-se. 
- Nas planicies a caça faz-se com auxilio de cães, que suspendem a mar- 


cha do ruminante até que o caçador chegue. O uso das armadilhas é 
tambem frequente. 


118 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


' Emquanto novo, o argali domestica-se facilmente. É dificil porém 
conserval-o em captiveiro e muito mais fazel-o viajar. Não existe na Eu- 
ropa, pelo menos nos jardins zoologicos conhecidos. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne do argali é magnifica, a pelle serve para a fabricação de 
vestidos de inverno e outros agasalhos e dos cornos fazem-se utensilios 
de cosinha. 


O MUFLÃO AMERICANO 


O macho adulto mede dois metros de comprimento total e um me- 
tro e quinze centimetros de altura. A femea é mais pequena: não ex- 
cede metro e meio de comprido e um metro e dez centimetros de alto. 
O corpo é refeito e vigoroso e a cabeça assemelha-se muito à do bode- 
quim. Tem o dorso do nariz recto, os olhos grandes, as orelhas peque- 
nas, o pescoço curto, o dorso alongado, o peito forte e largo, a cauda 
curta, medindo apenas quatorze centimetros de comprido, as coxas vi- 
gorosas, as pernas fortes e curtas, os cascos curtos tambem e talhados 
quasi a direito anteriormente. Os cornos são fortissimos e extensos; me» 
didos ao longo da curvatura que formam, sobre o bordo externo, teem 
setenta centimetros de comprimento. A circumferencia é, na base de 
trinta e sete centimetros e no meio de trinta e um. A distancia de uma 


MAMIFEROS EM ESPEGIAL 119 


extremidade à outra é de cincoenta e oito centimetros. Os cornos, muito 
approximados na raiz, dirigem-se para fóra e para diante, voltam-se 
para traz e recurvam-se quasi circularmente para baixo e para diante, 
voltando-se de novo a ponta para cima e para Ífóra. Não são comprimi- 
dos e achatados, como os de tantos outros animaes, mas largos, cobertos 
de muitas rugosidades transversaes e apresentando saliencias finas em 
toda a extensão. O péllo é semelhante ao do bodequim. A côr geral é 
tambem, como a d'este ruminante, um trigueiro escuro. Os machos ve- 
lhos são muitas vezes cinzentos claros ou mesmo brancos. À femea apre- 
senta tambem cornos, que differem dos do macho em serem mais fracos, 
menos extensos, menos recurvados e semelhantes aos das cabras; recur- 
vam-se para traz e para fóra e terminam em ponta adelgaçada. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


“Segundo Richardson e Audubon este animal é vulgar na California. 


COSTUMES 


O muflão americano povoa sempre os logares mais selvagens da re- 
gião que habita, parecendo dar-se ahi admiravelmente. Nas montanhas 
encontra cavernas que lhe servem de abrigo e vegetaes para a alimen- 
tação. | 

Este ruminante é muito sociavel e, como a especie é ainda abun- 
dante, não é raro encontral-o em bandos numerosos, de trinta cabeças 
segundo uns, Richardson por exemplo, de oitenta segundo outros, como 
o principe de Wied, notavel naturalista muitas vezes citado n'esta obra. 
As femeas com os filhos constituem na maior parte do anno bandos à 
parte. Os velhos machos, a seu turno, vivem em bandos separados. Em 
Dezembro porém, que é o tempo do cio, os bandos de machos e femeas 
confundem-se, travando-se então entre os primeiros as grandes luctas 
caracteristicas da excitação genesica. 

A femea dá à luz em Junho ou Julho; o primeiro parto produz ape- 
nas um filho, os outros produzem dois regularmente. 


120 HISTORIA NATURAL 


O muflão americano é, como o bodequim, um excellente trepador ; 
é tambem, como todos os animaes da familia, excessivamente timido. 


CAÇA 


Para formar idéa das difficuldades de toda a ordem que se ligam à 
perseguição d'este animal, basta lembrar que elle habita montanhas onde 
os perigos se deparam a cada instante e que tem pelo homem tanto hor- 
ror como pelo lobo. Nunca foi possivel apanhar um d'estes ruminantes 
vivos, nem adulto, nem recem-nascido. Isto explica-se pelo facto de que 
a mãe, desde que o parto acaba, marcha com os filhos para logares 
inaccessiveis ao homem. Debalde muitos naturalistas teem promettido va- 
liosos premios aos caçadores indigenas por um exemplar vivo. Mao grado 
esforços de toda a ordem empregados por estes homens, de sobejo ex- 
perimentados na caça do animal, nenhum conseguiu até hoje o promet- 
tido e desejado premio. 


USOS E PRODUCTOS 


Fr 


À carne é utilisada como alimento; a do macho, principalmente na 
epocha do cio, tem um gosto semelhante à do carneiro domestico. Os in- 
digenas servem-se da pelle para fazer camisas; ella é forte e solida, mas 
muito macia. 


OS CARNEIROS PROPRIAMENTE DITOS 


Sob a designação de carneiros propriamente ditos comprehende-se 
em historia natural o conjuncto das raças ou variedades do genero que 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 121 


se tornaram domesticas desde uma data impossivel de fixar-se e que 
deve ser muito remota, attendendo a que os caracteres que apresentam 
são profundamente distinctos dos que distinguem as especies selvagens. 
Milne-Edwards crê que todos os carneiros domesticos se derivam do mu- 
flão europeu ou do argali. P. Gervais no seu livro Historia natural dos 
mamiferos 4 affirma, pelo contrario, que os carneiros domesticos são ani- 
maes de que é impossivel encontrar algures os representantes selva- 
gens. Segundo este ultimo escriptor, os caracteres mais salientes, que 
distinguem os carneiros propriamente ditos das especies selvagens, são: 
o comprimento da cauda, que de ordinario desce até abaixo da curva 
das pernas e a natureza dos cornos que são cheios e mais affastados na 
raiz do que nos muflões. Em algumas variedades faltam os cornos, mesmo 
nos machos. 

Ácerca da origem dos carneiros domesticos existem, além das opi- 
niões que acabamos de apresentar, outras ainda, segundo as quaes elles 
descenderiam do muflão africano ou de uma especie já extincta. A ver- 
dade é que nada de positivo se sabe sobre o assumpto. Acontece-nos 
aqui o mesmo que quando tratamos do cão e em geral de todas as es- 
-pecies domesticas; a origem escapa-nos inteiramente. 

O carneiro, como a cabra, como o boi, como o cão, existe sob 0 
dominio do homem desde os tempos ante-historicos; é d'ahi que vem a 
nossa ignorancia sobre a origem do animal. De resto, de todas as hypo- 
theses emittidas uma nos parece desde logo inadimissivel: a que faz pro- 
ceder os carneiros domesticos de uma especie unica, extincta. E recusa- 
mos à priori uma tal hypothese não só porque se não baseia n'um unico 
facto positivo de prehistoria, senão porque é impossivel acreditar que 
todos os carneiros domesticos, tão diversos uns dos outros, tenham at- 
tingido uma tal diferenciação pela simples acção accidental do meio cli- 
materico e da selecção artificial. Seja como fôr, sobre o assumpto em 
questão é melhor declararmo-nos ignorantes do que fazer conjecturas 
sem fundamento e sem verificação possivel. 

À base para estabelecer a differenciação entre as variedades ou ra- 
ças dos carneiros domesticos consiste no exame dos appendices corneos, 
do manto ou velo e do comprimento e fórma da cauda. 

Os appendices corneos fazem differenças verdadeiramente notaveis 
e caracteristicas entre as raças; o velo affecta tambem diferenças nota- 
veis derivadas do comprimento, finura e molleza dos pêllos; emfim a 


cauda pelas extensões differentes que apresenta é tambem um caracter 
diflerencial digno de attenção. 


t Vid. Loc. cit., tom. 11, pg. 192 e seguintes. 


* 


129 HISTORIA NATURAL 


Já acima dissemos que era notavel a influencia da domesticidade 
sobre os carneiros; que se os comparamos ás especies selvagens sob o 
ponto de vista dos costumes, somos quasi tentados a descrêr que devam 
ser uns e outros egualmente contidos n'um ramo unico de ruminantes. 

E aqui o logar de acrescentar ao que dissemos algumas indicações 
importantes. 

Os carneiros domesticos são animaes-sobrios, pacificos, soffredores 
e, sobretudo, medrosos e cobardes. Segundo Brehm, só na epocha do 
cio é que estes animaes apresentam alguma coisa de semelhante às es- 
pecies selvagens. Fóra d'essa quadra, são entes incaracteristicos, incon- 
dicionalmente submettidos à direcção do homem, degradados, sem intel- 
ligencia, sem iniciativa. O mais leve ruido apavora estes animaes; e nos 
dias de temporal, de trovoada e de relampagos, muitos correm como 
doidos e chegam a atirar-se à agua. Brehm conta que nas vastas plani- 
cies da Russia e da Asia os pastores são victimas da timidez ridicula dos 
carneiros: estes com effeito, na occasião das grandes tormentas de neve, 
ora correm desesperados a atirar-se à agua, ao mar até, ora se que- 
dam immoveis n'um sitio e se deixam com resignação cobrir de neve; 
assim perdem os pastores n'um só dia milhares de cabeças. Quando um 
incendio se declara n'um curral, é dificil, diz Lenz, salvar alguns carnei- 
ros; atterrados, ou se encostam uns aos outros de modo que é quasi 
impossivel separal-os, ou se atiram ás chammas. O mesmo auctor conta 
que tendo dois cães de caça entrado n'um estabulo, os carneiros que 
ahi se encontravam se atterraram tanto e se apertaram de tal modo uns 
contra os outros que a maior parte d'elles succumbiram à asphixia. 

Os carneiros preferem os logares altos e seccos aos baixos e humi- 
dos. Presentem com grande antecedencia as variantes de tempo. Já 
n'outro logar fallamos da alimentação d'estes animaes. 

O tempo mais apropriado às relações sexuaes d'estes ruminantes 
é, entre nós, Outubro. Nos paizes quentes ha duas epochas de cio em 
cada anno. A gestação é approximadamente de cento e cincoenta dias. 
Cada parto produz geralmente um filho; o numero de dois é raro. Os 
borregos que nos paizes quentes nascem de verão mamam de ordinario 
dois mezes, os que nascem no inverno mamam tres e mais. 

Até aos seis mezes, a cria chama-se anho, cordeiro ou borrego; de- 
pois do primeiro anno malato; o que fica para a cobrição toma o nome 
vulgar de sementão. 

A qualidade dos alimentos dados aos carneiros deve variar conforme 
se tem em vista obter boa carne ou boa lã. Ha paizes em que a carne 
é considerada como o producto principal; é o que acontece na Inglaterra. 
N'outros paizes, ao contrario, como em França, a lã é o producto mais 
importante e a carne é um producto de menor importancia, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 123 


A lã, segundo Figuier, ! pode ser fina, entrefina ou grosseira. O fio 
de diametro egual em toda a extensão é o mais estimado; se é recto a 
lã chama-se lisa e se é flexuoso a lã diz-se ondulada. Se as flexuosida- 
des são muito approximadas umas das outras, a lã é frisada. Na boa lã 
exigem-se como qualidades essenciaes a flexibilidade, a macieza, a exten- 
sibilidade e a elasticidade. Estas condições favorecem a fabricação dos 
estofos de lã. Segundo Figuier, a maior parte das propriedades a que 
acabamos de referir-nos parece dependerem da gordura que penetra 
mais ou menos no fio da lã e que se chama bedum. Se este é abundante 
à superficie do pêllo, communica à lã macieza e flexibilidade; se é es- 
pesso e fortemente corado torna as làs rudes, asperas, grosseiras. 

As lãs são brancas, ruivas e pretas. Estas ultimas são consideradas 
de pouco valor; as primeiras porém, as brancas, são muito apreciadas. 

“Dos carneiros poucos são os que se aproveitam para a reprodu- 
cção; os outros castram-se e a epocha propria para esta operação é a 
que decorre entre o quinto e sexto mez do animal. 

De Março ou Abril em diante ordenham-se as ovelhas para o fabrico 
de manteiga e dos queijos, operação que se prolonga até Agosto, de or- 
dinario. 

A tosquia tem logar geralmente em Maio. É n'este tempo que são 
precisos da nossa parte maiores cuidados em relação ao animal, que 
“então sente, como é facil prevêr, muito mais que em qualquer outra 
epocha as mudanças atmosphericas. 

O cordeiro logo depois de nascido apresenta oito dentes incisivos; 
ao fim de um anno ou de um anno e meio, os dois anteriores caem e 

“são substituidos por outros. No segundo anno caem os dois outros imme- 
“diatos, no terceiro anno mais dois e assim até que todos os primitivos 
tenham sido substituídos por outros. Os novos dentes vão-se tornando 
“amarellos com a idade e ao mesmo tempo vão-se descarnando. 

Dos usos e productos dos carneiros já n'outro logar tivemos occa- 
sião de fallar. 


 Resta-nos estudar algumas das raças mais importantes. 


1 Vid. Les Mammiftres, pg. 239, 


124 HISTORIA NATURAL 


O CARNEJRO MERINO 


É sem contestação a raça mais importante. Muito descurada até ao 
seculo passado, tem sido de então para cá objecto de extraordinarios 
cuidados. 


CARACTERES 


É de proporções regulares, refeito, solidamente organisado. Tem a 
cabeça grande, o focinho obtuso, a região frontal chata, o nariz um 
pouco arqueado, os olhos pequenos e as orelhas de tamanho medio e de 
ponta obtusa. Os cornos são muito fortes, recurvos em c e tendo ses- 
senta e seis centimetros, medida a extensão segundo a curvatura. As fe- 
meas muito raras vezes apresentam estes appendices frontaes. O pescoço 
é curto e oíferece inferiormente uma dilatação semelhante à papeira. 
Os membros são baixos, mas fortes e solidos e os cascos obtusos. O 
mais importante n'este animal é a lã, que é curta, macia, fina, crespa e 
branca amarellada. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Suppõe-se que o carneiro merino é originario do norte d'Africa, 
d'onde veio para a Europa. À especie é vulgar ha muito tempo em Hes- 
panha e Portugal. Existe tambem em abundancia na Australia. 


Os naturalistas costumam dividir o carneiro merino em duas gran- 
des classes: viajantes e sedentarios. Suppoz-se muito tempo que os car- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 125 


neiros viajantes tinham uma lã superior à dos sedentarios, mas não é 
verdade. 


O CARNEIRO DE CORNOS PONTEAGUDOS 


Uma raça tambem importante é a do carneiro de cornos ponteagu- 
dos. Este animal é de tamanho regular e apresenta cornos muito exten- 
sos, muito divergentes, contornados em espira n'uma direcção rectilinea 
e terminados em ponta aguda. O manto é claro; a cabeça e as pernas 
são escuras. O velo d'este carneiro é formado por duas ordens de pêl- 
los: uns compridos e rijos, outros finos, curtos; só estes ultimos se apro- 
veitam e ainda assim em estofos grosseiros apenas. Este carneiro cria-se, 
tendo em vista mais a carne que a lã. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita exclusivamente a Turquia da Europa e o Danubio. Vive em 
rebanhos numerosos, principalmente nas montanhas. 


O CARNEIRO DE GRANDES NADEGAS 


É uma raça curiosa. Este carneiro é um animal de grandes propor- 
ções e de apparencia repulsiva. Como o nome indica, é caracterisado 


126 HISTORIA NATURAL 


pela grandeza extraordinaria dos musculos nadegueiros, o que não pouco 
contribue para dar-lhe um aspecto altamente desagradavel. A cabeça é 
escura, volumosa e muito curta. Não apresenta lã capaz de fiar-se. O manto 
é formado por um pêllo curto e grosseiro como o das especies selva- 
gens. Só emquanto novo apresenta pêllo lanoso. Os cornos são muito 
curtos. 


“DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


É vulgar em toda a Africa central. 


Não nos occuparemos aqui das diversas raças francezas € ori 
Mencionaremos sómente as nossas. 

As raças portuguezas são : 

O BORDALEIRO SERRANO OU GALLEGO, preto ou branco, pequeno, de 
la feltrosa, isto é em que predominam os pêllos lanosos, ou churra, em 
que existem em maior abundancia os péllos rijos, semelhantes aos das 
cabras; 

O BORDALEIRO COMMUM, de maiores dimensões e de lã muito fri- 
sada, vivendo nos mattos do Alemtejo; | 

Emfim o CARNEIRO PORTUGUEZ DE TYPO MERINO, muito semelhante 
aos merinos hespanhoes e vivendo tambem no Alemtejo. 


OS BOVIDIOS 


Este grupo de ruminantes, ao qual pertence o nosso boi domestico, 
“é sem contestação o que abrange os animaes de maior utilidade de toda 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 127 


a classe. Vivos ou mortos, teem sempre utilidade para nós: vivos, collo- 
cam a nosso serviço todas as enormes forças de. que dispoem; mortos, 
offerecem-nos ainda em cada orgão um incontestavel valor. São mais do 
que auxiliares e collaboradores do homem; chegam a ser importantes 
companheiros. 


CARACTERES 


São animaes fortes, grandes e pezados. Teem cornos lisos e arre- | 
dondados, focinho largo, de narinas separadas, e cauda fina e comprida, 
terminada por um tufo de pêllos extensos. O pescoço que é forte e grosso 
apresenta inferiormente uma certa porção de pelle solta e pendente que 
que se chama papada. 

O esqueleto destes animaes é forte e pezado, e a região frontal 
larga; as orbitas são muito separadas e as saliencias frontaes de que 
nascem os cornos encontram-se nas partes lateraes e posteriores do cra- 
neo. O sacro é formado por quatro ou cinco vertebras soldadas; as ver- 
tebras caudaes podem attingir o numero de dezenove. Os dentes incisi- 
vos são grandes e largos, mas gastam-se depressa pelo attributo. Os 
mollares são em numero de quatro pares e extraordinariamente desen- 
volvidos; a fórma Na superficie de mastigação varia para as differentes 
especies. Os cornos são muito caracteristicos. Como deixamos dito, são 
lisos arredondados; se algumas vezes apresentam rugosidades transver- 
saes é apenas na raiz. De ordinario os pêllos são curtos; ha especies po- 
rém em que são muito compridos, pelo menos em alguns pontos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA 


A Africa, a Ásia central e meridional, a Europa e a parte septen- 
trional da America do Norte, podem ser consideradas como a patria dos 
bovidios. Hoje porém, encontram-se, ao menos no estado domestico, em 
toda a superficie da terra. 


128 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Às especies selvagens habitam logares, os mais diversos: as flores- 
tas ou os campos nús e desertos, as planicies ou as montanhas até uma 
“altura de cinco mil e quinhentos metros acima do nivel do mar, os loga- 
res pantanosos ou os logares seccos, emfim as regiões mais differente- 
mente caracterisadas. Uns levam uma vida errante; outros, em menor 
numero, são sedentarios. As especies que vivem nas montanhas descem 
aos valles no inverno; as que vivem ao norte dirigem-se, por esse 
mesmo tempo, para o sul, impellidas como as primeiras pela falta de 
alimento. 

Os bovidios são animaes sociaveis, que se reunem sempre em re- 
banhos numerosos, por vezes de milhares de individuos. Estes rebanhos 
são dirigidos sempre por um chefe, o mais forte e mais experimentado 
dos membros do rebanho. Os maos chefes são muitas vezes expulsos 
dos rebanhos. 

Estes ruminantes teem habitos diurnos. 

Apesar de pezados, podem mover-se rapidamente; às vezes mani- 
festam uma agilidade bem pouco a esperar d'elles. De ordinario porém, 
como é natural à corpulencia que apresentam, margham a passo, lenta- 
mente. Os que habitam as montanhas são habeis trepadores e dao saltos 
de uma extensão relativamente notavel. Todos nadam bem e todos dis- 
poem de uma força consideravel. 

De todos os sentidos é o olfato o mais perfeito; a vista é de ordi- 
nario má e o intendimento limitadissimo, principalmente nas especies 
domesticas, que não precisam de fazer esforços intellectuaes, porque o 
homem lhes supre a todas as necessidades. 

De ordinario os bovidios são de um caracter docil, cheio de con- 
fiança; ha-os porém selvagens, teimosos e de grande coragem. Excita- 
dos, attacam sem vacillar os mais poderosos mamiferos; servem-se dos 
cornos com tamanha agilidade que, mesmo em lucta com os animaes 
mais perigosos, são, não raro, vencedores. 


Normalmente os bovidios vivem entre si nas melhores relações de. 


harmonia; na epocha do cio comtudo, entregam-se a combates temiveis. 

N'algumas especies selvagens, o macho apresenta um cheiro de al- 
miscar sufficientemente forte para impregnar toda a carne tornando-a 
impossivel de comer-se. Nos bovidios domesticos este cheiro é quasi ina- 
preciavel. 


O E 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 129 


Mr 


Estes ruminantes alimentam-se de plantas de qualidades muito diffe- 
rentes. Comem folhas, gommos, rebentos, ramos, hervas, cascas, lichens, 
musgos e plantas aquaticas e dos pantanos. 

Em captiveiro comem hervas de todas as qualidades. Gostam muito 
de sal, como quasi todos os ruminantes e não podem passar sem agua 
em abundancia; alguns chegam mesmo a permanecer deitados durante 
horas inteiras em cursos d'agua ou em tanques. 

Nove a doze mezes depois da copula, a femea dá à luz um filho, . 
muito raras vezes dois. O bezerro ou novilho nasce completamente for- 
mado e em condições de seguir desde logo a mãe, que o aleita, que 
o trata com extraordinario carinho e que o defende nos perigos com 
uma coragem visinha da temeridade. O bezerro torna-se adulto entre os 
trez e os oito annos; é esta a idade em que se encontra apto para a re- 
producção. 

A duração media da vida dos bovidios é de quarenta e cinco a cin- 
coenta annos. 


CAPTIVEIRO 


As especies selvagens trazem-se com facilidade ao estado domes- 
tico. Submettem-se rapidamente ao dominio do homem e chegam a obe- 
decer a uma creança. Não teem maior dedicação pelo dono do que por 
qualquer outra pessoa; uma vez domesticados, os bovidios são egual- 
mente doceis e carinhosos para todos. 


CAÇA 


À caça ás especies selvagens é perigosissima. Dizem os naturalistas 
mais conhecedores do assumpto que nem um leão, nem um tigre são 
mais terríveis que um touro furioso, cego de raiva. É por isto mesmo 
que a caça é porfiada e constitue para alguns povos uma verdadeira 
paixão ou, como dizem os caçadores, uma nobre paixão. 


VOL. III E) 


130 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


Os bovidios selvagens causam, é incontestavel, uns certos estragos 
na cultura, roendo as cascas das arvores, devastando os prados, maltra- 
“tando as plantações. Se comparamos porém estes prejuizos às vantagens 
de toda o ordem que as especies domesticas nos prestam, pondo à nossa 
disposição as suas forças, fornecendo-nos a sua carne, os seus ossos, a 
sua pelle, os seus cornos, o seu leite, o seu pêllo, até mesmo os seus 
excreta, soberbo adubo para as terras, é impossivel deixar de ter os bo- 
vidios na conta de animaes utilissimos. Perfilhamos sem restricções a 
opinião de Brehm quando diz que, se se classificassem os animaes pela 
utilidade que teem, daria aos bovidios o primeiro logar entre os rumi- 
nantes. * 


b 
Os bovidios encontram-se hoje divididos em dez especies perfeita- 
mente authenticas, ou melhor —acceites por todos. Além d'estas porém, 
uma outra existe, que parece fazer a transição entre os carneiros e os 
bois e para comprehender a qual se estabeleceu um genero à parte. 
Começaremos por ella. 


O BOI ALMISCARADO 


- Este ruminante tem a cabeça volumosa e larga, o focinho curto e 
obtuso, inteiramente coberto de pêllo, os labios finos e o pescoço muito 


1 Vid, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 268. 


E E o 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 191 


curto. Os cornos são primeiro recurvados para baixo e para fóra e de- 
pois para diante, ficando as extremidades dirigidas para fóra e para 
cima. Estes appendices cobrem a região frontal e quasi toda a parte su- 
perior do craneo do ruminante; são comprimidos e grosseiros na raiz, 
lisos e arredondados na ponta. As pernas, que são grossas, terminam 
por cascos estreitos. O manto compõe-se em grande parte de sêdas 
muito compridas no pescoço e nas espaduas e muito curtas no dorso e 
na região lombar. Nos membros estas sêdas cobrem um péllo fino, cin- 
zento, que se forma no inverno, persiste durante toda esta estação e cae 
no estio para ser logo substituido por um outro. À côr geral é um tri- 
gueiro muito escuro, quasi negro nas partes inferiores do animal; no 
dorso ha uma pequena mancha clara e a extremidade do focinho, os la- 
bios e o mento são brancos. 

As dimensões do animal não são grandes; podem dizer-se interme- 
dias entre os grandes carneiros e os pequenos bois. 


DISTRIBUIÃO GEOGRAPHICA 


O boi almiscarado é proprio das regiões do norte da America 
septentrional. Este ruminante é conhecido desde as primeiras explora- 
ções do Novo-Mundo. 


COSTUMES 


O conhecimento dos costumes d'este ruminante deve-se principal- 
mente aos naturalistas Hearne, Richardson, Parry e Franklin. Segundo 
elles, a especie habita essas tristes steppes cobertas de musgo que na 
Siberia se designam pelo nome de tundra e que não são senão immen- 
sos pantanos, cheios de poços, attravessados em todos os sentidos por 
cursos d'agua, mais ou menos consideraveis, e de quando em quando 
interrompidos por algumas pequenas collinas. É ahi n'esses lugares in- 
fectos, inhospitos, onde voejam milhares de insectos importunos e onde 
vivem perigosas especies, é ahi que o boi almiscarado habita em mana- 
das de vinte e trinta cabeças cada uma. O manto espesso protege-os 


contra os rigores do frio, 
a 


132 HISTORIA NATURAL 


Durante o estio, este ruminante alimenta-se das hervas dos panta- 
nos e no inverno de lichens. 

O numero de machos é sempre muito inferior ao das femeas em 
cada manada. No periodo de excitação generica são, apezar d'essa cir- 
cumstancia, terriveis os combates que de ordinariamente acabam pela 
morte do vencido. 

A despeito da apparencia, este ruminante é agil, rapido em todos 
os movimentos; trepa e salta como as cabras. 

É mal dotado de sentidos e por isso pouco vigilante. É facil ao ca- 
çcador, marchando contra o vento, approximar-se delle quando pasta. 
Quando dois ou trez caçadores cercam a manada de modo a fazerem 
fogo em differentes direcções, os sitiados, em vez de dispersarem, 
unem-se uns contra os outros, fornecendo assim occasião propícia a no- 
vas descargas. O boi almiscarado que apenas é ferido, precipita-se con- 
tra o caçador e é perigosissimo porque sabe admiravelmente usar dos 
cornos. No dizer dos indigenas, mata muitas vezes os lobos e os ursos. 

A epocha do cio é para esta especie em fins de Agosto. 

O boi almiscarado em quanto não attinge a idade adulta apresenta 
a côr geral do manto muito mais clara que depois. | 


CAÇA 


Os esquimós caçam com ardôr este ruminante, principalmente no 


outomno. Os processos de caça variam. Uns empregam o arco e a fre- 


cha. Este meio produz poucos resultados, porque, mesmo a pequena dis- 
tancia, é difficil attravessar com a frecha o manto espesso do animal. 
Outros approximam-se valentemente das manadas, provocam o touro até 
que avance colerico para elles e então, negando-lhe o corpo, enterram- 
lhe uma lança nos flancos. Este meio, mais perigoso e mais cheio de 
dificuldades, porque exige uma grande coragem e uma grande agilidade, 
é todavia o unico verdadeiramente productivo. Um processo que não é 
usado pelos indigenas, mas que um inglez ensaiou com sucecesso, con- 
siste em fazer perseguir o touro por cães, atirando sobre elle a tiro em 
quanto dura a lucta do ruminante desesperado com os carnivoros que 
agilmente lhe evitam os golpes. Este meio parece efficaz e não apresenta 
em tão alto grao os perigos inherentes ao processo anterior. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 133 


USOS E PRODUCTOS 


O cheiro de almistar é tão forte no animal que impregna toda a 
carne, tornando-a inacceitavel aos paladares finos. Note-se porém, que 
nem a vacca nem o novilho apresentam esse cheiro; por isso os euro- 
peus lhes comem o, musculo. Os indigenas de um paladar grosseiro e fa- 
cil de satisfazer, utilisam egualmente toda a carne, venha ou não impre- 
gnada do vivo cheiro do almiscar. A pelle, a lã e o pêllo grosseiro do 
ruminante constituem para os indigenas outros tantos artigos de com- 
mercio, porque todas estas partes do corpo são utilisaveis: a primeira 
para o fabrico de calçado, a segunda para vestidos e a ultima para ca- 
belleiras. 


OS IACKS 


Este genero representa a transição entre os bovidios e os bufalos. 
Os cornos do iacks tem uma forma semelhante à dos bois; o craneo é 
arredondado na parte superior como o dos bufalos. A cauda é curta, 
mas terminada por pêllos muito extensos. 


O genero comprehende uma especie unica que vamos descrever. 


134 HISTORIA NATURAL 


O JACK GRUNHIDOR 


Este ruminante, que os antigos chamavam pophagus grunniens, é 
conhecido desde um tempo remotissimo. Eliano conhecia-o e deixou-nos 
delle uma descripção, mencionando mesmo o processo de caça empre- 
gado pelos indigenas para o matarem. Pallas, que aqui temos citado 
mais de uma vez, descreveu-o tambem no estado de captiveiro. 


CARACTERES 


Mede, pouco mais ou menos, dois metros a dois metros e trinta 
centimetros de comprimento. A cauda, incluindo os pêllos que a termi- 
nam, offerece uma extensão de meio metro. Pelo porte é como que um 
intermediario do bufalo e do boi domestico. Sob um ponto de vista mor- 
phologico, parece um composto do boi, do cavallo e da cabra. Do cavallo 
tem a redondeza do corpo, a cauda e a maneira de pisar, do boi a ca- 
beça e da cabra os longos pêllos sedosos que dos lados do tronco lhe 
descem até aos pés. O iack grunhidor é negro, excepto nos péllos com- 
pridos que em torno do corpo lhe formam uma como franja e nos da 
cauda que são perfeitamente brancos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A especie encontra-se no estado selvagem em uma parte muito ex- 
tensa da Ásia central, nomeadamente na Mongolia, no Thibet e no Tur- 
kestan, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL Í 


a] 
QT 


COSTUMES 


O ruminante quando no estado livre ou selvagem vive em logares 
elevados, embora para n'elles obter uma alimentação sufficiente lhe seja 
preciso percorrer enormes extensões. Parece que o iack não pode viver 
bem a uma altura inferior a dois mil e seiscentos metros acima do nivel 
do mar. Ora, como justamente observa Brehm, a presença. de um bovi- 
dio a uma tal altura tem, decerto, muito de excepcional, desdiz do que 
sabemos dos habitos de vida das outras especies. Á altura de dois mil 
e seiscentos metros a pressão atmospherica é metade da que se observa 
ao nivel do mar. 

- Os movimentos do iack são rapidos. Os sentidos são perfeitos: des- 
cobre de muito longe o inimigo. O iack é extremamente timido; mesmo 
nos logares em que não é perseguido, foge do homem como se delle 
esperasse alguma grande adversidade. 

O epitheto de grunhidor com que se designa este ruminante, foi-lhe 
dado em attenção à voz, que em verdade se não parece nem com o mu- 
gir do boi, nem com o balar do carneiro, nem com o relinchar do ca- 
vallo, mas precisamente com o grunhir do porco. 

O cio parece ser na primavera. A femea pare em cada parto um só 
filho que nasce tão agil e tão cheio de vivacidade que acompanha desde 
logo a mãe pelas maiores elevações e atravez dos mais perigosos cami- 
nhos. 


CAÇA 


Para obter os péllos extensos que franjam o corpo do iack, faz-se- 
lhe uma caça pertinaz, ora perseguindo-o com cães, ora atirando-lhe 
frechas. A caça é perigosa; porque, se o animal é apenas ferido, atirar- 
se-ha sobre o caçador com rapidez assombrosa e extraordinaria coragem. 


136 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


Quando velho, este ruminante é perfeitamente indomavel; em novo, 
pelo contrario, domestica-se com grande facilidade. Na Asia o iack copu- 
la-se com os outros bovidios, melhorando-se assim as raças domesticas. 
Marco Polo conhecia já este facto e afirmava que se reduzia o iack ao 
captiveiro, precisamente para este fim. O iack grunhidor domestico não 
differe physicamente dos seus congéneres selvagens a não ser na côr. 
Na domesticidade este animal não reclama senão pequenos cuidados, 
como são: ter sempre agua pura e ter sempre sal, quando se conserva 
nos estabulos. Mas de ordinario, vivendo quasi todo o dia fóra de casa, 
elle proprio se encarrega de procurar quanto lhe é preciso, sem o mais 
ligeiro incommodo para o homem. 


USOS E PRODUCTOS 


Para os thibetanos 0 iack é um animal utilissimo em domesticidade. 
Servem-se d'elle como de um cavallo para o montar e ainda como besta 
de carga. Obedece ao dono, mas mostra-se” desconhiado para com os es- 
tranhos, que sentem sempre uma grande difficuldade em o montar e em 
O carregar. 

O iack grunhidor supporta facilmente uma carga de cem a cento e 
vinte kilogrammas, attravessando com ella os logares mais perigosos e 
accidentados. 

Os viajantes que montam pela primeira vez este valente ruminante, 
ao verem-se por elle transportados à beira mesmo de terriveis precipi- 
cios, e por logares estreitos e perigosissimos, não podem ser superiores 
a um grande terror que os avassala; só a experiencia consegue intro- 
duzir no espirito do homem uma perfeita confiança nos admiraveis ins- 
tinctos deste bello animal. 

Segundo Gérard, ha regiões em que se obriga 0 iack a puxar pela 
charrua. 

À came d'este ruminante é, no dizer dos que a teem provado, ex- 
cellente, sobretudo quando o animal é ainda muito novo, porque é en- 


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E o. o o ua O a SN 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 137 


tão muito mais delicada, muito mais tenra. Da pelle fazem-se correias e 
dos pêllos fazem-se cordas. A parte porém, mais preciosa do animal é a 
cauda, que ha muito se toma como emblema de guerra e que no Oriente 
se paga por preços verdadeiramente fabulosos. 


DOENÇAS 


Todos os annos morrem numerosos iacks grunhidores, victimas prin- 
cipalmente dos epizoarios. A alimentação insufliciente ou variada de mais 
é tambem uma causa morbida frequente. Os exemplares trazidos para a 
Europa teem cá prosperado admiravelmente; provam-o sobretudo os jar- 
dins zoologicos de Amsterdam, de Francfort, de Munich, de Hamburg e 
o Jardim das Plantas de Paris. 


OS BUFALOS 


Estes ruminantes approximam-se mais do verdadeiro boi que os 
iacks. Teem o corpo refeito, a região frontal curta e redonda. Os cornos 
inserem-se nos angulos posteriores do craneo, são comprimidos lateral- 
mente, arredondados nas extremidades e cobertos de saliencias tuber- 
culosas ou de anneis irregulares na base; curvam-se primeiro para baixo 
e para traz, depois para fóra, e por fim para cima e um pouco para 
“diante. Em algumas especies, estes appendices dirigem-se quasi directa- 

mente para traz, descrevendo apenas um pequeno arco de concavidade 
anterior. O pêllo é grosseiro e quasi completamente negro. A lingua é 
lisa. 


138 HISTORIA NATURAL E 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os bufalos pertencem à Africa ce à Ásia. 


O BUFALO DA CAFRARIA 


E o maior, o mais pezado, o mais forte e o mais selvagem dos bu- 
falos. Os cornos (e é isto o .que de mais notavel offerece o animal) são 
muito largos, muito approximados e muito dilatados na base de modo a 
formarem por cima dos olhos uma especie de coifa protectora da cabeça. 
Os olhos são incovados e as orelhas, de mais de trinta centimetros de 
comprido, pendentes. O corpo é pezado, volumoso e os membros são 
fortes e vigorosos. À cauda é nua em toda a extensão, excepto na extre- 
midade onde apresenta, como o nosso boi domestico, pêllos extensos. À 
côr geral do ruminante é um trigueiro muito escuro. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Este bufalo encontra-se no Cabo e nas florestas do interior da Africa. 
Ão sul de Kordophan e nas florestas virgens das margens do Nilo Azul 
apresenta-se muitas vezes em manadas consideraveis, 


MAMIFEROS EM ESPEGIAL 139 


COSTUMES 


O bufalo da Cafraria é um animal furioso, mão. Os indigenas te- 
mem-o mais que ao leão ou ao elephante. Em Kordophan ninguem se 
atreve a caçal-o, mão grado o valor que tem. Os cafres teem por elle 
o mesmo receio que os habitantes de Kordophan. Kolbe escreve a res- 
peito d'estes bufalos: «São animaes perigosissimos. O que os incitar, 
mostrando-lhes um panno vermelho ou perseguindo-os, não pode contar 
com a vida; começam a mugir, a escarvar o solo e sem mêdo por coisa 
alguma, nada será capaz de retel-os. Qualquer que seja o numero d'ho- 
mens armados que se lhe opponham, precipita-se contra elles atravez da 
agua e do fogo.» Conta este mesmo auctor que um bufalo seguiu um dia 
um rapaz vestido de vermelho, atirando-se ao mar atraz d'elle e percor- 
rendo a nado uma distancia de meia legua. Se o não matam a tiro de 
um navio, quem poderia prever o desenlace desta situação delicada? 

Quando mata um homem, o bufalo da Cafraria leva ainda a malva- 
dez até ao ponto de o calcar aos pés e de o rasgar com os cornos. Este 
bufalo é de uma extraordinaria resistencia vital; não morre aos primei- 
ros golpes. Ainda depois de gravemente ferido, vive muitas horas e ataca 
violentamente o perseguidor. 

O bufalo da Cafraria gosta muito de se espojar na vasa e passa 
muitas vezes horas seguidas deitado na agua. 

Segundo Drayson, a pelle d'este bufalo é tão espessa que uma balla 
não a attravessa senão quando o tiro é dado a uma pequena distancia. 
Dos Dbufalos da Cafraria, ainda segundo o mesmo escriptor, uns, os mais 
novos, vivem juntos com as femeas em grandes bandos ou manadas, ao 
passo que outros, os velhos, repellidos por aquelles, vivem solitarios 
nas florestas. Os primeiros não attacam o homem que os não persegue; 
os segundos, pelo contrario, sendo de uma selvageria immensa, atiram-se 
de improviso sobre quem quer que vêem, ou seja um caçador ou um 
simples passageiro inofensivo. São estes ultimos que inspiram aos cafres 
um enorme terror. O bufalo da Cafraria é, além de mão, muito astuto, 
Simula-se às vezes morto para deixar approximar o caçador e feril-o en- 
tão à vontade. Drayson conta a proposito que um cafre, andando à caça 
na floresta, encontrára um velho macho solitario sobre o qual atirou. O 
bufalo ferido deitou a correr. O cafre na persuasão de que o ferimento 
tivesse sido mortal, foi-lhe no encalço sem precauções de especie al- 
guma, seguindo attentamente a pista do ruminante. Teria dado cem pas- 


140 HISTORIA NATURAL 


sos, quando de repente ouviu por traz delle um grande ruído e recebeu 
ao mesmo tempo um embate violentissimo dos cornos do animal, sendo 
arrojado a grande altura. Por felicidade caiu sobre os ramos entrelaça- 
dos de uma arvore, de sorte que o bufalo julgando-o perdido, desappa- 
receu na floresta. O pobre homem que na queda partiu duas costellas, 
desistiu para sempre de novas caçadas. D'esta curta narrativa de Dray- 
son deprehende-se que o bufalo ferido, simulára fugir para tomar, quando 
o caçador menos o esperasse, uma direcção nova e vingar-se assim trai- 
coeiramente. Algumas vezes acontece tambem, como o mesmo Drayson faz 
notar, que o bufalo mortalmente ferido emitte um grito que serve de si- 
gnal a outros bufalos, os quaes se precipitam então furiosamente sobre 
o caçador. 


CAPTIVEIRO 


Th. de Heuglin, chefe de uma expedição scientifica à Africa central, 
trouxe para a Europa um pequeno bufalo da Cafraria, que obtivera ao 
sul de Kordophan. Este bufalo, que ao tempo em que Brehm escrevia as 
Maravilhas da Natureza vivia ainda no Jardim zoologico de Schoenbrunn, 
era de uma extraordinaria docilidade e deixava-se afagar não só por 
Heuglin, mas por todos. Casanova trouxe tambem para a Europa úm bu- 
falo da mesma especie e, como o primeiro, muito docil. 


O BUFALO ARNI 


k notavel pelas dimensões; é o gigante da familia. Mede dois me- 
tros e trinta centimetros de altura ao nivel da espadua e tres metros e 
quarenta e cinco centimetros de comprimento desde o focinho até à raiz 
da cauda. No British Museum existe um par de cornos que teem, medi- 
dos de ponta a ponta segundo a curvatura, dois metros de extensão. São 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 141 


triangulares, rugosos, rectos nos primeiros dois terços e recurvos de- 
pois, ficando as pontas dirigidas para dentro e para traz. 


Dos costumes d'este curioso animal, sabe-se apenas que em liber- 
dade é ferocissimo, passando a caça d'elle pela mais perigosa de todas. 
Em captiveiro perde toda a selvageria primitiva; na India é empregado 
na agricultura e montado como o cavallo. 


O BUFALO ORDINARIO 


Tem o corpo alongado, um tanto redondo, o pescoço curto, grosso, 
liso e vigorosissimo. A cabeça é mais larga e mais curta que a do boi 
domestico. O focinho é tambem curto e as pernas, de comprimento me- 
dio, são fortes, vigorosas. À cauda é muito comprida, a espadua quasi 
elevada em fórma de bossa, o dorso inclinado, o peito fino e o ventre 
volumoso. Os olhos são pequenos, de expressão selvagem e má e as 
orelhas compridas e largas com pêllos curtos na face externa e compri- 
dos na interna e dispostos horisontalmente. Os cornos são compridos, 
fortes, muito espessos na raiz e depois successivamente adelgaçados, 
terminando em ponta obtusa. Estes appendices são dirigidos primeiro 
para baixo e para fóra, depois para cima e para traz e por ultimo para 
dentro e para diante formando assim um triangulo; só no terço final são 
arredondados. Na primeira metade toda a superficie apresenta rugosida- 
des transversaes; a ponta e a face posterior são lisas. Os péllos são ra- 
ros, rijos, quasi sedosos; os das espaduas, da parte anterior do pescoço, 
da região frontal e da extremidade da cauda são alongados. A côr geral 
do corpo d'este ruminante é o pardo escuro ou o negro; os exemplares 
brancos ou maculados são raros. 


1492 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie é originaria da India. 


COSTUMES 


O bufalo ordinario gosta muito da agua; é por isso facil encontral-o 
em logares baixos e pantanosos, onde se alimenta de plantas más, des- 
presadas por outros animaes. Os movimentos são pezados, mas energi- 
cos e firmemente sustentados por muito tempo. A natação é para elle 
um exercicio sobre todos facil. 

O ouvido e o olfato são os sentidos mais perfeitos n'este ruminante; 
a vista é má. 

O bufalo ordinario não cede a nenhum outro bovidio em selvageria 
e malvadez; nem mesmo em captiveiro chega a perder completamente 
estes dotes nativos. : 


CAÇA 


Stolz informa-nos de que na India o processo geralmente empre- 
gado na caça do bufalo ordinario consiste em circumdar um certo espaço 
de terreno por uma paliçada na qual existe uma abertura apenas e de- 
pois dispor, a partir d'essa abertura, em duas linhas formando angulo, 
um certo numero de homens que, postados em cima de arvores, agitam 
violentamente os ramos e fazem um grande ruido desde que um bando 
de bufalos se approxima e se interna no espaço comprehendido pelas 
duas linhas. Os animaes, espantados pelo inesperado ruido, penetram 
pela abertura unica no espaço fechado pela paliçada e ahi são prezos 
com laços e depois vendados. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 145 


COMBATES 


O bufalo é o inimigo natural do tigre; em combate com elle sae de 
ordinario vencedor. É tal a confiança na valentia e coragem do rumi- 
nante, que os pastores de bufalos domesticados não teem o minimo re- 
ceio de attravessar, montados n'estes animaes, os logares infestados pelo 
tigre. 

Conta o naturalista Johnson que tendo um tigre attacado o ultimo 
homem de uma caravana, um pastor de bufalos que estava perto correu 
em soccorro do desgraçado, ferindo o carniceiro com um sabre; este 
largou a primeira victima e atirou-se contra o pastor: os bufalos porém, 
vendo o dono em perigo, precipitaram-se sobre o tigre e começaram a 
atiral-o às cornadas uns para os outros, como se atira uma pella, aca- 
bando por matal-o. 

Os principes indianos aproveitando a natural animosidade entre bu- 
falos e tigres, teem instituido combates horrivelmente commoventes d'es- 
tas duas especies, tão distinctas no logar hierarchico da serie zoologica, 
mas tão proximas na ferocidade e na exaltação da lucta. Górtz descreve 
estes combates estranhos. N'uma arena, onde existem logares reserva- 
dos para as damas e para os grandes da terra, collocam-se duas jaulas, 
uma contendo um tigre, outra um bufalo selvagem. Abertas as jaulas a 
um signal dado, o tigre, saindo, precipita-se sobre o bufalo que se con- 
serva dentro das suas grades. O tigre, com a agilidade de felino, trepa 
ao pescoço do bufalo e consegue feril-o gravemente; este porém, batendo 
vigorosamente com o carnivoro contra as grades fortissimas da jaula, 
quebra-lhe os ossos, obriga-o a retirar-lhe as garras do pescoço, atira-o 
ao chão e acaba por matal-o, varando-o com os cornos extensos e pode- 
rosissimos. No Japão a jaula do bufalo nunca excede muito o tamanho 
do ruminante, precisamente para que elle saia victorioso; os japonezes 
que fazem do tigre o representante dos europeus e do bufalo o emblema 
da sua raça, teem o maximo empenho em que seja este o vencedor. 
Numa vasta arena em que os combatentes fossem um tigre e um só bu- 
falo, o tigre triumpharia, sem duvida, do contendor. Nas florestas a van- 
tagem constante do bufalo sobre o tigre provem-lhe da possibilidade que 
tem de chamar a si os companheiros, reforçando e multiplicando assim 
a propria valentia. 


144 HISTORIA NATURAL 


DOMESTICGIDADE = 


Com quanto, segundo o dizer de naturalistas auctorisados, se não 
possa pôr em duvida que o bufalo domestico é originario da India, o que 
é certo é que já ahi se não encontra no estado selvagem. Hoje encon- 
tra-se em outros paizes do Oriente, na Persia, no Egypto, na Syria e tam- 
bem na Europa, na Italia, na Grecia e na Turquia. 

O bufalo domestico gosta principalmente dos logares pantanosos, 
que na Italia, felizmente para elle e infelizmente para os habitantes do 
paiz, encontra em abundancia. No Egypto é um animal estimado. Em to- 
das as casas existe um tanque onde os bufalos passam uma grande parte 
do dia mergulhados até ao pescoço; as inundações tão vulgares n'este 
paiz e que são tantas vezes o desespero dos habitantes, são para o bu- 
falo um motivo de prazer. Foge então para os campos cobertos d'agua 
e só volta para casa quando as femeas, incommodadas pelo excesso do 
leite, sentem a necessidade de ser mugidas. O bufalo domestico é bom 
nadador; segundo a opinião dos que uma vez tiveram occasião de assis- 
tir a um tal espectaculo, nenhum ha superior ao de um grande numero 
de bufalos attravessando a nado um largo rio. Os pequenos pastores de 
oito a dez annos montam-se no dorso dos animaes e assim se deixam ir 
sem medo, quando mesmo as aguas estão agitadas. É, com effeito, per- 
feitamente admiravel a habilidade com que os bufalos nadam. «A agua 
parece ser, diz Brehm, o seu verdadeiro elemento; brincam, mergu- 
lham, deitam-se de lado, um pouco mesmo sobre o dorso, deixam-se ar- 
rastar pela corrente sem mover os membros ou a attravessam de lado 
a lado. Passam pelo menos seis a oito horas por dia na agua; ahi estão, 
ahi ruminam à vontade.» ! Se o privam d'agua por muito tempo, o bu- 
falo domestico torna-se inquieto e até mao. E prefere a agua pura e pro- 
funda à vasa dos logares pantanosos. No Egypto, diz Brehm, vê-se mui- 
tas vezes este ruminante partir a galope (o que só faz quando enfure- 
cido) na direcção do Nilo e atirar-se à agua. Segundo o escriptor que 
acabamos de citar, na India e na Italia não poucas pessoas teem sido 
victimas desta attracção do bufalo domestico pela agua; ahi, onde é cos- 
tume atrelar-se o bufalo aos carros, tem acontecido que, ao passar por 


1! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 642, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 145 


perto de um rio, o ruminante se atira a elle, desapparecendo sob a 
agua com carro e passageiros. 

Em terreno firme, o bufalo não é tão agil como na agua. A marcha 
é então pezada e a corrida, com quanto rapida, sempre mais ou menos 
penosa. Quando se enfurece ou procura a agua, caminha galopando, ou 
melhor — caminha rapidamente por uma successão de saltos bruscos e 
deselegantes; não sustenta porém esta marcha para além de duzentos 
passos. 

O bufalo domestico é para quem o vê pela primeira vez uma causa 
de terror, tanta é a selvageria do seu aspecto. Ninguem deixa de jul- 
gal-o um animal ferocissimo. No entanto, a opinião formada sob a influen- 
cia das primeiras impressões é perfeitamente illusoria. No Egypto, por 
exemplo, o bufalo domestico é tão docil que a guarda d'elle se confia a 
creanças. Brehm, diz ter visto infinitas vezes rapariguitas montadas so- 
bre o dorso do ruminante attravessarem o Nilo e acrescenta que nunca 
ouviu fallar de um accidente qualquer. De resto, o valente animal sub- 
mette-se resignadamente a todos os serviços que lhe impoem, aos tra- 
balhos agricolas, à conducção de carga, ao transporte de pessoas, exi- 
gindo apenas em troca: alimento e agua em que possa banhar-se algu- 
mas horas por dia. E não se pense que reclama uma alimentação abun- 
dante; é sobrio, tão sobrio que nem o camelo, nem o jumento o exce- 
dem. Não toca nas hervas tenras e saborosas que são o attrativo dos 
outros bovidios; procura antes os vegetaes mais seccos, mais duros, 
mais insipidos. Tambem se satisfaz com vegetaes dos pantanos, qualquer 
que seja a especie a que pertençam. E o que é certo é que um tal genero 
de alimentação, por insufficiente que pareça, lhe convem admiravelmente, 
como o prova a quantidade e boa qualidade do leite que produz a fe- 
mea, leite de que se faz excellente manteiga em abundancia. 

Este animal tão util, tão paciente, tão justamente considerado no 
Egypto, tem uma qualidade antipathica: é sujo; espoja-se na lama e fica 
depois tão satisfeito como se saísse de um banho. Os turcos odeiam este 
animal porque elle se atira furioso contra os estandartes vermelhos do 
propheta; julgam-o um animal maldito, que despreza as leis divinas. 
Pelo contrario, outros povos ha que o teem na conta de sagrado e lhe 
attribuem virtudes semelhantes às que os christãos concedem ao cordeiro 
symbolico, qui tolit peccata mundi, como diz a invocação. 

O bufalo domestico é silencioso; só as femeas quando aleitam e os 
touros em furia fazem ouvir a voz onde ha misturado o mugido do boi 
e o grunhido do porco. 

Ao Norte os bufalos entregues a si copulam-se na primavera, isto 
é em Abril ou Maio. Dez mezes depois, que tanto é o tempo que dura a 


gestação, a femea pare um filho unico a que dedica uma sollicitude 
VOL, III : 10 


" 
4 pó a 


Edo 


146 HISTORIA NATURAL 


enorme e que defende nos perigos com extraordinaria coragem. Aos 
quatro ou cinco annos o animal é adulto; a media da vida é para esta 
especie de dezoito a vinte annos. 

O unico inimigo sério da especie é, como issomogijá, o tigre. Além 
deste, poucos se atrevem a accomiiettel: -0 € Os que 0 fazem às vezes, 
como 0 lobo, são victimas da sua temeridade. 


USOS E PRODUCTOS 


Naturalistas ha que chegam a considerar o bufalo domestico mais 
valioso ainda que o boi; fundam a sua opinião em que o bufalo presta 
os mesmos serviços e dá os mesmos productos que o boi, sem exigir 
nem o alimento nem os cuidados d'este ultimo. Encontro n'este modo de» 
vêr um exagero. A carne do bufalo adulto é insupportavel, ao passo que 
a do nosso boi é em todas as idades excellente. Para ter carne de bu- 
falo capaz de ser comida é preciso matar o animal em pequeno, o que 
equivale a ter de prescindir de todos os serviços que, n'uma idade pos- 
terior, poderia prestar-nos. Não acontece o mesmo com o boi domestico ; 
e este facto parece-me de uma alta importancia e de certo modo atte- 
nuante da opinião que dá maior valimento ao bufalo do que ao boi, este 


» docil e paciente companheiro para o qual toda a nossa gratidão é pouca. 


OS BISONTES 


Foram conhecidos dos antigos que d'elles nos legaram descripções 
minuciosas e exactas. São animaes feios e disformes, grandes como os 
bois selvagens, negros e de cornos muito affastados. A descripção que 
temos de fazer das especies mais importantes dispensa-nos de proseguir 
em indicações relativas à generalidade. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL | 


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É, depois do elephante, do rhinoceronte e da girafa, o maior ma- 
mifero terrestre que actualmente existe. Este animal mede hoje ordina- 
“riamente um metro e sessenta e cinco centimetros de altura sobre dois 
metros e meio de comprimento; o pezo medio é de seiscentos kilogram- 
mas. Na Prussia porém, em 1555 matou-se um macho que tinha dois 
“metros e dezeseis centimetros d'alto sobre quatro metros e dezesete mil- 
limetros de comprido; o pezo d'este gigante era de novecentos e cin- 
coenta e dois kilogrammas. Estas dimensões e este pezo não são já hoje 
attingidos. A cabeça d'este ruminante é volumosa e larga, muito maior 
“que a do boi ordinario. 

O bisonte europeu é forte, refeito; a porção anterior do corpo é 
muito desenvolvida e faz parecer a posterior delgada. A espadua eleva-se 
em bossa de modo que o dorso desce em declive sensivel até à região 
sagrada. O pescoço é curto e grosso e a cabeça, como dissemos, volu- 
mosissima. Os cornos, que medem cincoenta centimetros de extensão, 
devem considerar-se curtos relativamente à cabeça. Nascidos quasi ao 


É ie “meio do craneo, estes appendices recurvam-se para fóra e para baixo, .. 
e depois para cima e para diante, apresentando as pontas dirigidas para. 
Ta dentro e para traz; na raiz offerecem rugosidades annulares, na ponta são 


Ê perfeitamente lisos. Os membros, sem serem grandes, são todavia mais 
: extensos e mais elegantes que os do boi ou do bufalo; os cascos são 
4 | grandes, largos e altos. À cauda com os extensos pêllos terminaes passa 
BN abaixo da articulação tibio-tarsica. Desprovida dos pêllos terminaes que 
y medem trinta e tantos a quarenta centimetros, a cauda chega apenas ao 
meio da tibia. Os pêllos do manto são em geral compridos; os da cabeça 
e das pernas são crespos, como que frisados. Ao longo da maxilla infe- 
rior, o bisonte europeu apresenta uma longa barba. Os pêllos da parte 
posterior do corpo são lanosos. De resto, as qualidades do pêllo variam 
com as estações; no verão o pêllo é menos comprido, menos espesso e 
menos luzidio que no inverno. A côr do péllo é no estio mais clara que 
na estação dos frios em que predomina o escuro. 


O macho differe da femea apenas na grandeza e na extensão dos 
cornos. 


148 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


O bisonte da Europa habita no estio e no outomno os logares mais 
humidos e occultos das florestas. No inverno prefere os logares elevados, 
expostos e seccos. Os machos velhos vivem solitarios; os novos vivem 
em manadas de quinze a vinte individuos, no verão, e de trinta a qua- 
renta, no inverno. Cada uma d'estas manadas, como nota Figuier, tem 
uns certos dominios fixos, que não ultrapassa nunca. Dentro de cada 
manada existe de ordinario, até à epocha do cio, a maxima harmonia; 
entre manadas distinctas, pelo contrario, as relações não são boas, ven- 
do-se geralmente a menos numerosa obrigada a separar-se, tanto quanto 
possivel, da mais forte. 

Não pode dizer-se que o bisonte europeu tenha habitos nocturnos; 
no entanto prefere pastar de madrugada e ao fim da tarde ou mesmo de 

noite. Cascas d'arvores, folhas, gommos e hervas, parecem constituir a 
sua alimentação. É-lhe ndipinia a agua fresca. 

Todos os movimentos do bisonte da Europa parecem pesados; o ani- 
mal porém é vivo. O passo é acelerado, e o galope um tanto pezado, 
mas rapido; quando corre abaixa a cabeça e levanta a cauda. 

O bisonte da Europa não accommette um homem inofensivo e mes- 
mo, no verão, evita encontrar-se com a nossa especie; mas se o ferem, 
se O incitam, encolerisa-se e é um perigosissimo inimigo. Enfurecido es- 
tende a lingua para fóra da bocca, move nas orbitas os olhos injectados 
de sangue e atira-se com extrema valentia sobre quem quer ou o quer 
que seja que o tenha exasperado. Como acontece nos bufalos, os machos 
solitarios n'esta especie são tambem aquelles que mais ha a receiar; at- 
tacam mesmo quem os não incita. 

O cio começa em Agosto ou Setembro e dura duas a trez semanas. 
Os combates dos machos para a posse das femeas são, como facilmente 
se prevê, dadas as forças extraordinarias do animal, horriveis e tenacis- 
simos. À morte dos contendores mais fracos não é um acontecimento 
raro. À gestação dura, como na especie humana, nove mezes; em Maio 
pois, ou começos de Junho, a femea realisa o parto. 

Antes do parto, a femea tem-se separado dos companheiros, procu- 
rando um logar solitario e perfeitamente tranquillo. Ahi occulta o filho 
durante os primeiros dias da existencia d'elle. A mãe defende o seu pro- 
ducto com enorme coragem, com risco mesmo da propria vida; é então 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 149 


perigosissimo approximar-se alguem da femea, ainda mesmo que a não 
hostilise, porque se enfurece e é terrivel. 

Nos primeiros tempos de existencia, o bisonte é um animal alegre 
e agradavel mesmo, embora os instinctos de ferocidade que mais tarde 
o hão-de caracterisar principiem desde logo a apparecer. Cresce lenta- 
mente; só ao fim de nove annos pode considerar-se adulto. Em compen- 
sação attinge a idade de trinta a cincoenta annos. As femeas duram or- 
dinariamente dez annos menos que os machos. Estes, quando envelhe- 
cem, tornam-se cegos ou perdem os dentes. Não podendo então alimen- 
tar-se bem, caem em progressivo abatimento e morrem dentro de pouco 
tempo. 

A reproducção n'esta especie é muito lenta. A femea só pare de 
trez em trez annos um filho unico; e ha uma epocha de alguns annos 
em que se conserva absolutamente esteril, antes que de novo entre em 
gestação. 


INIMIGOS 


Os que merecem pela sua importancia mencionar-se são o urso e 
0 lobo. O bisonte defende-se porém, admiravelmente. O urso e o lobo só 
conseguem matal-o, se o encontram só e esgotado pelas fadigas, dete-. 
riorado pelas fomes em tempo de gêlo. Deve pois ter-se como phantas-.. 
tica, perfeitamente falsa na generalidade, a crença de que trez lobos ma- 
tam um bisonte, attraindo-lhe a attenção um d'elles que se lhe colloca 
na frente, emquanto os outros dois o mordem no ventre. Trez ou mesmo 
quatro lobos são poucos para fazerem frente ao herculeo ruminante; só 
muitos conseguiriam (e parece que excepcionalmente conseguem) trium- 
phar de um só bisonte. 


CAÇA 


No tempo em que as armas de fogo eram inteiramente desconheci- 
das, considerava-se um grande feito, que os poetas celebravam, matar um 
bisonte da Europa. Comprehende-se perfeitamente quanta coragem era 
precisa para attacar um animal tão possante e tão feroz. Hoje que sobre 
elle se pode fazer fogo a distancia, a morte dada em caça a um d'estes 


150 HISTORIA NATURAL 


ruminantes, sem deixar de ser na maioria dos casos uma prova de cora- 
gem, perdeu muito do antigo valor. 

Na caça do bisonte europeu, empreza geralmente tentada apenas 
por gente rica, emprega-se um numero consideravel de homens e um 
apparato verdadeiramente espantoso. No seculo passado estas caçadas 
foram ainda mais apparatosas do que são hoje. Mesmo actualmente, po- 
rém estas caçadas são de um extraordinario apparato; entram n'ellas 
centos de pessoas e centos de cães. Já alguns dias antes de principiar 
um destes exercicios, centos de aldeãos são obrigados a afugentar os bi- 
sontes para o logar em que terá de realisar-se a caçada. Os caçadores 


teem sempre o cuidado de procurar uma collocação suficientemente res- 
guardada para não poderem ser attingidos pelo animal que perseguem. 


É por isso que Brehm chama à morte dada ao bisonte n'estas condições 
um assassinato. 

N'outro tempo a gente do povo, quando se propunha caçar o bi- 
sonte, ia a pé, tendo por unica arma uma lança. Os caçadores plebeus 
caminhavam sempre em numero de dois: um procurava, gritando e agi- 
tando um panno vermelho, attrair a attenção do ruminante; o outro era 
o encarregado de dar o golpe mortal. Os cães eram de ordinario um 
auxiliar d'esta ordem de caçadas, tão pouco apparatosas, mas tão cheias 
de perigos e tão ferteis em movimentos de assombrosa coragem. 


CAPTIVEIRO 


O bisonte europeu tem. sido muitas vezes reduzido ao captiveiro, 
mas não inteiramente domesticado. Por maiores que sejam os cuidados 
e attenções do homem por este ruminante, por longo que seja o tempo 
de captiveiro, a verdade é que elle não attinge nunca um perfeito es- 
tado de domesticidade e que nem mesmo aquelles que lhe dão de co- 
mer se podem julgar a salvo de qualquer tentativa de aggressão. 


Um facto, inesperado talvez, é que o bisonte em captiveiro se re-. 


produz mais rapidamente que em liberdade. Observações feitas nos jar- 
dins zoologicos vieram provar que era falsa a opinião geralmente acre- 
ditada de que o bisonte entrava como causa das modificações operadas 
nas raças dos nossos bois. A verdade é que o bisonte se não copula com 
as especies domesticas; pelo contrario, existe de uns pelos outros um 
odio nativo, uma invencivel repugnancia instinctiva. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 151 


USOS E PRODUCTOS 


À carne do bisonte europeu é geralmente muito estimada e, no di- 
zer dos que a teem provado, no gosto d'ella ha alguma coisa que lem- 
bra a do boi e ao mesmo tempo a do veado. A carne da femea ou do 
animal quando ainda muito novo, é, sobretudo, considerada excellente. 
Esta carne depois de salgada é na Polonia tida em conta de uma iguaria 
delicadissima. 

A pelle do animal dá um coiro de grande duração, mas muito po- 
roso, que apenas serve para fazer correias. 

Dos cornos e dos cascos ha paizes em que se fabricam vasos para 
bebidas; houve tempo em que a estas partes do animal se attribuiam 
virtudes therapeuticas. 


O BISONTE DA AMERICA 


É o maior de todos os mamiferos do continente americano. O macho 
atlinge trez metros de comprido, não incluindo a cauda que é de ses- 
senta e seis centimetros ou mais com os pêllos que a terminam. A al- 
tura é de dois metros ao nivel da espadua e de um metro e sessenta e 
seis-centimetros no sacro. O pezo varia entre seiscentos e mil kilogram- 
mas. À femea é mais pequena; não excede quatro quintos d'estas dimen- 
sões. 

Este ruminante assemelha-se um pouco ao seu congénere europeu; 
comtudo é facil, distinguil-os. O bisonte americano tem os membros e a 
cauda, relativamente curtos, a parte anterior do corpo mais desenvolvida, 
mas a posterior mais estreita e os pêllos do manto mais extensos. Tem 
a cabeça proporcionalmente maior, a região frontal mais larga, o pes- 
coço curto, a espadua muito elevada, a parte posterior do tronco estrei- 
ta, fraca e a cauda curta. Os cornos são curtos e grossos, recurvados 


o 


152 HISTORIA NATURAL 


para cima e para fóra e tendo a ponta dirigida um pouco para dentro; 
as orelhas são curtas e finas e os olhos grandes, escuros. 

Os pêllos da cabeça, do pescoço, das espaduas, do peito, da parte 
superior das coxas e da cauda são muito compridos; os péllos da cabeça 
são crespos e os que circumdam a maxilla inferior formam uma barba, 
Os péllos que cobrem o resto do corpo são espessos, mas muito curtos. 
Ão principiar a primavera os pêllos caem e os que os substituem mudam 
de côr. As partes do corpo em que os pêllos são mais compridos affe- 
ctam a côr negra; as outras partes são de um pardo-trigueiro uniforme. 
O manto do estio é mais claro; é de um trigueiro amarellado. Os cornos, 
os cascos e o focinho são de um negro accentuado. Os individuos bran- 
cos ou malhados de branco são muitissimo raros. 

É esta a descripção que Brehm faz do bisonte da America. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Este bisonte, outr'ora espalhado em abundancia por todo o conti- 
nente da America do Norte não existe hoje senão n'uma parte muito li- 
mitada, muito restricta d'elle. Todos. os annos é forçado a recuar diante 
dos homens, negros e brancos, e diante dos lobos; assim se encurta 
sempre e progressivamente a sua área de dispersão geographica. Ainda 
assim, a oeste do continente americano existe por milhares. Houve tempo 
em que este ruminante era vulgar nas costas do Atlantico; nos começos 
do seculo xvirr já ahi era rarissimo. No fim d'esse mesmo seculo era 
ainda commum em Kentucky e a oeste da Pensylvania; hoje é raro tam- 
bem n'estas paragens. Desde que os europeus começaram de estabele- 
cer-se na America do Norte, o animal rareia constantemente; e se existe 
ainda hoje por milhares, como dissemos, nas pradarias extensissimas de 
oeste, maior é, segundo Brehm, o numero de cadaveres que cobrem o 
solo. 


COSTUMES 


O bisonte americano é talvez o mais sociavel de todos os bovidios. 
Observemos comtudo que os sexos se não misturam senão na epocha do 


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: MAMIFEROS EM ESPECIAL 153 


cio e que de ordinario os machos formam agrupamentos separados d'ou- 
tros exclusivamente constituídos pelas femeas e os filhos não adultos. 
Estes agrupamentos seguem uns aos outros; e é por isso que à primeira 
vista parecem constituir todos uma unica manada de milhares de cabe- 
ças. 

O bisonte americano não vive sempre no mesmo logar, antes muda 
de sede segundo as estações. No estio procura os descampados; no in- 
verno busca de preferencia as florestas. Além d'isto, emprehende to- 
dos os annos, regularmente, grandes viagens, descendo em Julho para o 
sul e voltando na primavera para o norte. Estas emigrações fazem-se 
desde o Canadá até às costas do golpho Mexico e desde o Messuri até às 
Montanhas Petreas. Os bandos emigrantes são constantemente acompa- 
nhados de longe por lobos que vão marchando na esperança de apanha- 
rem algum retardatario cujos musculos lhes offereçam lauto banquete. 
Nuvens d'aguias e de abutres voam, seguindo os emigrantes; sollicita 
estes carniceiros do ar a mesma esperança que anima os de terra. Os 
caminhos que seguem os bisontes n'estas viagens são os mesmos sem- 
pre, e são por isso conhecidos pela designação de estradas dos bufalos. 
Eu advirto para comprehensão d'esta designação que na America o bi- 
sonte indigena é conhecido pelo nome de bufalo. Estas estradas são ge- 
ralmente parallelas entre si e extensissimas. 

Brehm explica a sociabilidade do bisonte como o effeito de duas 
causas concorrentes; a mudança das estações e a reproducção. À prima- 
vera dispersa os bisontes e se o anno fosse uma permanente primavera 
não os veriamos juntos; mas o outomno reune-os. A reproducção inci- 
tando os sexos a procurarem-se, é uma causa de sociabilidade mais po- 
derosa ainda. É em Julho ou Agosto que os machos se misturam com as 
femeas, procurando cada um a sua companheira. É tambem então a epo- 
cha dos combates e das luctas, terriveis decerto, mas que, no dizer de 
Audubon, nunca terminam pela morte de algum dos contendores. Ha 
muitas especies em que o contrario é, como sabemos, vulgar. O vence- 
dor, uma vez conquistada a femea, separa-se com ella dos companheiros 
e procura um logar tranquillo e isolado, onde se conserva até ao mo- 
mento da parturição. 

O cio dura, termo medio, um mez; os machos que não lograram 
encontrar femea n'essa epocha de ardor sexual, conservam-se ainda por 
muito tempo, por algumas semanas, furiosos e maos. Na quadra do cio, 
o macho exala um energico cheiro a almiscar que de longe o denuncia 
ao caçador; este cheiro, impregnando a carne do animal, torna-a detes- 
tavel, incapaz de ser comida por um europeu. A excitação nervosa d'essa 
Spot esgota o animal que se ERR de comer e emagrece então con- 
sideravelmente. 


154 HISTORIA NATURAL 


km Março ou Abril, isto é nove mezes depois da copula, a femea 
pare um filho unico. Algum tempo antes a femea separa-se do compa- 
nheiro e reune-se a outras femeas, como ella gravidas. Como em todas 
as especies de bovidios, n'esta os cuidados maternos são de uma extraor- 
dinaria solicitude; a mãe desconhece inteiramente toda a ordem de pe- 
rigos quando se trata de salvar o filho ameaçado. Este é sempre um 
animal vivo, alegre, disposto a todos os exercicios infantis. 

O bisonte americano, apesar da apparencia de preguiça e da estru- 
clura do corpo, é um animal de uma agilidade relativamente notavel. 
Percorre, a despeito da pouca extensão dos membros, grandes espaços 
com prodigiosa rapidez; nunca marcha lentamente como o boi domes- . 
tico: o passo é apressado, o trote vivo e o galope tão rapido como o de 
um bom cavallo. Nada vigorosamente e por um grande espaço de tempo; 
não vacilla em attravessar uma corrente d'agua, ainda quando ella apre- 
sente uma extensão de dois ou mais kilometros. 

No bisonte americano o ouvido e o olfato são os sentidos mais per- 
feitos; a vista é má. é 

Este ruminante, com quanto habitualmente timido, se o excitam en- 
colerisa-se, tornando-se então corajoso, temivel, ardente na vingança. 
De resto, longe de ser indomavel, como erradamente se tem dito, do- 
mestica-se com facilidade e chega a sentir por quem o trata uma grande 
dedicação. 

A voz do bisonte americano consiste n'um mugido surdo; quando 
muitos d'estes animaes soltam a voz ao mesmo tempo ouve-se um ruido 
só comparavel à trovoada. 

O regimen alimentar d'este bisonte varia um pouco com as estações: 
no estio o animal nutre-se de hervas succulentas; no inverno é forçado 
a contentar-se com hervas seccas, lichens e musgos. De resto, o animal 
é sobrio; satisfaz-se completamente com pouco e não escolhe mesmo a 
qualidade. 

Além do homem e de alguns carniceiros, tem o bisonte da America 
um terrivel inimigo — o inverno. Esta estação não é hostil ao animal só- 
mente porque é fria, mas ainda porque durante ella se torna difficil achar | 
alimento. É então que a lucia para a vida se torna mais difficultosa, 
mais aspera; o gêlo, cobrindo os pastos, deixa o animal em penosas con- 
dições. E embora o bisonte, com uma previdencia que faz honra às suas 
faculdades intellectuaes, tenha feito para esta penosa estação uma forte: 
reserva de gordura, é certo que ella se esgota e que o ruminante, for- 
cado a uma alimentação mesquinha, abate e emagrece consideravel- 
mente. Tambem muitas vezes acontece que o bisonte, caminhando por 
sobre a agua coberta de uma espessa camada de gêlo, porque este parte 
sob o pezo do corpo, vem a morrer afogado. Outros que veem cami- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 155 


nhando atraz d'elle, teem a mesma sorte; assim se perdem n'um só dia 
algumas dezenas de individuos. 


CAÇA 


Além do urso escuro e do lobo, devemos contar o homem como um 
terrivel, o mais terrivel inimigo do bisonte americano. «N'outro tempo, 
escreve Moellhausen, quando o bufalo podia ser de certo modo conside- 
rado como o animal domestico dos indigenas, não se notava que as ma- 
nadas diminuissem, antes a multiplicação era crescente e prospera. Desde 
o momento porém, em que os europeus, apparecendo na America do 
Norte, tomaram o gosto à carne do ruminante e acharam que lhes con- 


vinha o manto d'elle, espesso e abundante, trataram desde logo de es- 


tabelecer sobre estes dados um ramo de commercio. Ao mesmo tempo 
despertaram nos indigenas o desejo de possuirem alguns objectos bri- 
lhantes que inventaram e que começaram a offerecer-lhes em troca dos 
productos da caça ao ruminante; desde então a perseguição começou. 
Milhares de bisontes foram mortos desde logo para que os europeus lhes 
aproveitassem o largo manto. Em poucos annos diminuiu de um modo 
espantoso o numero de ruminantes. Talvez não venha longe o tempo em 
que o bello animal exista apenas na memoria dos homens e em que 
trezentos mil indigenas se vejam privados de alimento. Arrastados pela - 
fome tornar-se-hão, com milhões de lobos, um flagello para a civilisação 
visinha e será preciso então destruil-os.» É triste sem duvida este qua- 
dro, mas verdadeiro, decerto. 

O modo mais vulgar por que os indigenas fazem a caça ao bisonte 
americano, é a cavallo e à frecha. O cavallo deve ser bom, vigoroso, 
capaz de galopar horas inteiras sem fadiga; de ordinario o indigena es- 
colhe um que elle proprio tem encontrado em estado selvagem nas 
steppes. O cavalleiro carece de ser vigorosissimo tambem e de conhecer 
perfeitamente a arte de equilibrar-se sobre o animal quando este, para 
fugir ao bisonte enfurecido, pula e galopa tremendo de susto. Deve 
tambem o cavalleiro ser um admiravel atirador, porque tem de fazer 
pontaria ao bisonte de cima do cavallo que se agita em todas as direc- 
ções e procura evitar o embate do terrivel ruminante em colera. 

Actualmente na caça do bisonte empregam-se tambem as armas de 
fogo e assim se consegue matar um grande numero d'estes ruminantes 
n'uma só excursão. 


156 HISTORIA NATURAL 


O emprego do laço é tambem muito vulgar; o bom caçador atira-o 
com inacreditavel destreza de cima do cavallo em galope. 

Os differentes processos de caça que acabamos de mencionar, offe- 
recem um grande risco. Ás vezes o ruminante ferido atira-se contra 0 
cavallo que assustado salta e cospe da sella o cavalleiro; este umas ve- 
zes é victima da queda, outras do bisonte, que não lhe dando tempo 
para que se levante se precipita sobre elle e o mata ás cornadas. Os 
naturalistas Wyeth e Richardson contam alguns d'estes casos funestos. 

Os lobos perseguem o bisonte americano; raras vezes porém con- 
seguem sair da lucta triumphantes, mesmo quando em grande numero. 
O cão bull-dog é tambem um irreconciliavel inimigo do bisonte da Ame- 
rica; mas poucas vezes logra vencel-o. O bull-dog, adestrado n'estas lu- 
ctas, procura prender o bisonte pelos labios, porque é esta sem duvida 
a situação mais perigosa para este; ainda assim o ruminante encontra 
muitas vezes meio de salvar-se, erguendo os membros posteriores e 
deixando-se cair para diante com todo o pezo do corpo sobre o carni- 
ceiro que esmaga. 


CAPTIVEIRO 


À introducção do bisonte americano nos jardins zoologicos da Eu- 
ropa não é antiga; no de Hamburgo só ha um anno existe um par. O 
bisonte, com quanto timido nos primeiros tempos de captiveiro, acaba 
por adquirir confiança nos que d'elle se occupam e por se ligar ao ho- 
mem por laços de affeição. Prospera notavelmente desde que se lhe mi- 
nistra agua em abundancia e se lhe permitte viver ao ar, n'uma certa 
liberdade, n'uma independencia que elle aprecia mais que tudo. O bi- 
sonte tem-se reproduzido em captiveiro na Inglaterra e em Colonia. Os 
mestiços copulam-se com o boi domestico, sendo os filhos fecundos. 
Comprehende-se que o bisonte americano podesse tornar-se um excel- 
lente animal domestico. 


USOS E PRODUCTOS 


O bisonte é utilissimo. A carne secca, tal como se prepara na Ame- 
rica, é um artigo importante de exportação n'este paiz. A lingua gosa 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 157 


da reputação de um excellente prato. Da pelle fazem os indigenas vesti- 
dos, coberturas, sellas, cintos, etc. Dos ossos fazem facas e dos tendões 
cordas d'arco e fio resistente. Aproveitam-se ainda os cascos, a lã e até 
os excrementos que são um soberbo combustivel. 


OS BOIS 


“Os bois propriamente ditos tem a região frontal chata e extensa, os 
cornos grandes, pouco desenvolvidos e inseridos na base à altura da 
crista frontal. Teem de ordinario treze vertebras dorsaes, seis lombares 
e quatro sagradas. O pêllo é curto, mas espesso. É esta divisão dos bo- 
vidios a que, sem contestação, abrange as especies mais uteis ao ho- 
mem. 


Decomporemos, à maneira de Brehm, este grande grupo em trez: 
— bois selvagens ou bravos, bois que se tornaram selvagens e bois do- 
mesticos. 


| BOIS SELVAGENS 


O GAYAL 


Mede trez metros de comprido e um metro e sessenta centimetros 
de altura, ao nivel da espadua. A cauda é de oitenta centimetros. Tem 
o corpo volumoso e forte, o pescoço curto, a cabeça grande e larga pos- 


158 HISTORIA NATURAL 


teriormente, os cornos curtos, mas fortes, muito espessos na base, recur- 
vando-se em semi-circulo primeiro para cima e para fóra, depois um 
pouco para dentro, achatados de diante para traz na raiz, cheios de ru- 
gosidades transversaes, redondos e lisos na ponta. O pêllo é curto e es- 
pesso. Este boi tem quatorze pares de costelas, ao passo que as outras 
especies teem dezesete. Offerece cinco vertebras lombares, cinco sagra- 
das e cinco caudaes. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À especie habita as montanhas arborisadas do sul e do centro da 
India e da ilha de Ceylão a uma altitude de mil a mil e trezentos metros 
acima do nivel do mar. 


COSTUMES 


O gayal é vivo e agil como todos os animaes montanhezes. O ge- 
nero de vida deste ruminante não difere notavelmente do que caracte- 
risa os outros bovidios. Vive em grupos com os seus congéneres. Evita 
o calôr excessivo do sol e procura alimento de madrugada, ao fim da 
tarde e de noite, quando ha luar; rumina à sombra das arvores. Gosta 
muito da agua, mas, ao contrario de outros bovidios, evita a vasa e os 
logares pantanosos. É docil, evita o homem e nunca o attaca. Defende-se 
com notavel coragem dos carniceiros, pondo em debandada o tigre e 
a panthera. 


CAÇA 


À carne do gayal, que passa por ser excellente, constitue uma das 
causas, a principal talvez, da caça pertinaz que os indigenas lhe fazem. 
Não é dificil apanhar o animal vivo. Para o conseguirem, os indigenas 
numa certa epocha do anno permittem a juncção dos que possuem do- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 159 


mesticados com. os selvagens, lançando pelos caminhos umas bolas do 
tamanho de cabeças humanas, compostas de uma certa terra e de sal; 
os animaes selvagens misturam-se alegremente com os domesticos e for- 
mando assim um bando unico principiam a lamber as bolas salinas que 
são para elles um verdadeiro manjar. Os indigenas todos os dias, por 
espaço de um mez, continuam renovando a doze das bolas e vão-se 
pouco e pouco aproximando dos ruminantes que, entretidos como andam, 
não se lembram de fugir. Os domesticos deixam-se naturalmente afagar 
pelos donos e os selvagens, seguindo-lhes o exemplo, manifestam ao fim 
de poucos dias uma grande confiança pelo homem, permittindo que elle 
os acaricie tambem. Obtido isto, o indigena procura trazer a casa os 
animaes domesticos; atraz d'estes seguem os selvagens. Eis um processo 
bem simples de apanhar um boi bravo, valente, agil e vivo como é o 
gayal. 

Pela observação dos individuos reduzidos ao captiveiro, sabe-se que 
n'esta especie a gestação dura oito a nove mezes e que a femea dá à 
luz em cada parto, um filho sómente. O anno que segue ao da parturi- 
ção é sempre de esterilidade. 


O GAURO 


A semelhança entre o gauro e o gayal é tão grande que as duas 
especies teem andado desde muito confundidas. No entanto a confusão 
deve cessar, porque o gauro tem treze vertebras dorsaes, seis lombares, 
trez sagradas e dezenove caudaes e affecta uma conformação craneana 
muito differente da que caracterisa o gayal. O tamanho do gauro é tam- 
bem maior que o do gayal. Um gauro ainda não adulto pode medir trez 
metros e sessenta centimetros de comprimento e mais de um metro e 
oitenta centimetros de altura; os cornos d'este mesmo individuo podem 
medir quarenta centimetros de extensão e terem na raiz uma circumfe- 
rencia de trinta e trez ou mais. 

O gauro distingue-se em geral dos outros bois pelas pernas altas e 
pela elegancia relativa. Os péllos são em quasi todo o corpo curtos e es- 
pessos; mas os da cabeça e da cauda são alongados. A côr geral do 


160 HISTORIA NATURAL 


manto é um trigueiro escuro. As extremidades e a fronte são geralmente 
brancas. Os individuos ruivos são raros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À area de dispersão geographica do gauro parece ser limitadissima. 
Este ruminante com effeito, existe confinado na montanha Myn-Pâd da 
provincia Sergoja, na Ásia. 


COSTUMES 


O gauro vive nas florestas espessas e junto dos cursos d'agua da 
montanha que acabamos de mencionar. É sociavel e vive sempre em 
grupos de cem a cento e vinte individuos. Os velhos machos, expulsos 
das sociedades, passam uma vida errante e absolutamente solitaria. 

O gauro é timido; diante da nossa especie foge invariavelmente. 
Mas se é attacado, o mêdo cessa, e defende-se corajosamente do ho- 
mem ou dos mais terríveis carniceiros. 

A epocha do cio é em Agosto. Quanto tempo dura a gestação? Não 
se sabe ao certo: muitos crêem que doze mezes. 


CAPTIVEIRO 


Tem-se tentado muitas vezes domesticar este ruminante, mas balda- 
damente. Os individuos velhos são absolutamente indomaveis e os novos 
morrem ao fim de um curto tempo de captiveiro. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 161 


IL BOIS QUE SE TORNARAM SELVAGENS 


Esta divisão pode ainda dar logar à formação de pequenos grupos 
ou a uma subdivisão como a que faz Brehm nas Maravilhas da Natureza: 
bois da Europa que se tornaram selvagens ou errantes e bois da Ame- 
rica do Sul tornados tambem errantes ou selvagens. 

O estudo de todas as especies comprehendidas n'esta divisão tor- 
nar-se-hia extraordinariamente extenso e a utilidade que d'ahi poderia 
resultar para o leitor não o compensaria, decerto, do trabalho que im- 
plica a leitura de trinta ou quarenta paginas. Limitar-nos-hemos por isso 
à descripção de uma unica especie ha muito tornada celebre, mercê de 
um certo concurso particular de circumstancias. 


O TOURO HESPANHOL 


O touro de Hespanha tão estimado n'este paiz para os combates, 
para as decantadas corridas, descende, aflirmam os naturalistas, de bois 
domesticos. Vive porém uma vida perfeitamente selvagem; com quanto 
dependente do homem que o vigia e que o prende quando é preciso fa- 
zel-o figurar como principal actor nos combates dos circos, o touro hes- 
panhol não penetra nos estabulos nem acceita, senão forçado, o jugo da 
nossa especie. Ha pegureiros na Hespanha, é certo, encarregados de o 
velarem; esses mesmos porém conservam-se sempre a respeitosa distan- 
cia e sabem melhor do que ninguem quanto a presença do homem o 


irrita. Só acompanhado de numerosos e valentes cães e munido de uma 
VOL. III 11 


162 HISTORIA NATURAL 


funda que sabe manejar com extraordinaria facilidade e admiravel des- 
treza, é que o pegureiro se permitte defrontar com o touro. 

É principalmente na Andaluzia e nas provincias bascas que este ani- 
mal se cria. Não é grande, mas em compensação é elegantissimo, é 
vivo, é muito vigoroso e apresenta cornos compridos, ponteagúdos, re- 
curvados para fóra. As grandes manadas são constituídas exclusivamente 
por machos; a existencia n'ellas de femeas seria na epocha do cio uma 
causa inevitavel de destruição. 


4 


O touro hespanhol não é sómente vigoroso e valente; é tambem 
vingativo. Se alguem lhe bate, guarda por largo tempo a memoria da 
offensa e mata, desde que pode fazel-o, o aggressor. O pegureiro que 
vigia ou guarda as manadas conhece todos os individuos um por um é 
sabe dizer com precisão qual o mais apropriado para um combate. 

No estio o touro hespanhol procura as montanhas, donde se retira 
apenas quando as neves a isso O forçam; encontra-se muitas vezes a 
uma altura de trez mil metros e mais acima do nivel do mar. Evita cau- 


telosamente os logares povoados e se acontece de penetrar n'uma aldêa. 


arremette com os que passam, quando mesmo o não provoquem. 

Quando é preciso conduzir um d'estes touros para qualquer cidade 
onde tem um logar reservado n'uma corrida, é preciso para isso recor- 
rer ao auxilio de bois domesticos. O pegureiro caminha à frente mon- 
tado n'um cavallo, logo atraz seguem os bois domesticos e por ultimo o 
touro selvagem. 

Faz-se geralmente remontar a origem dos combates dos touros aos 
tempos Romanos, considerando-se estes espectaculos brutaes como um 
resto dos combates de circo com que, diz Brehm, «os vencedores do 
mundo procuravam distrair os povos subjugados dos ferros com que os 
sobrecarregavam». * Até ao tempo da conquista dos Mouros, os circos de 
Hespanha não eram exclusivamente consagrados aos combates dos touros, 
como hoje, mas a toda a ordem de animaes ferozes e de gladiadores. Os 
Mouros conseguindo exterminar no solo hespanhol a maxima parte d'es- 
ses combates crueis e desmoralisadores, não conseguiram fazer desappa- 
recer esse resto de primitiva barbarie: a corrida dos touros. Ha ainda 
hoje na Hespanha toda uma enorme multidão de refractarios aos pro- 
gressos da civilisação europeia, todo um mundo de homens atrazados e 
irrequietos que exigem o espectaculo do sangue, que se enthusiasmam, 


que se exaltam, que berram e gritam cheios de paixão nas corridas, esse 


velho residuo de tempos barbaros, esse triste legado de uma epocha em 


! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 670. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 163 


que o povo se commovia mais com a brutalidade das luctas que com a 
leitura dos poemas. Os touros da Hespanha actual são apenas os repre- 
sentantes dos leões da Libia e dos crocodillos do Nilo que a velha Hes- 
panha comprava a pezo d'oiro para divertir nos circos ao mesmo tempo 
a plebe miseravel e a corte luxuosa. 

Não nos deteremos aqui descrevendo, como Brehm o faz extensa- 
mente, um d'esses barbaros espectaculos que se chamam —corridas de 
touros. Brehm, escrevendo na Allemanha, tem razões para se alongar na 
exposição de um tal espectaculo. Para nós, que o temos presenceado, 
embora suavisado um pouco, seria inutil uma semelhante exposição. Co- 
nhecemos de visu O espectaculo em miniatura; ampliando o que temos 
presenceado, ficamos sabendo tudo. Imagine o leitor que em vez de tou- 
ros com os cornos embolados, como os que se exibem nas nossas praças, 
tem diante de si animaes capazes de attacarem e de se defenderem com 
as pontas agudas e perfurantes, taes como lh'as concedeu a natureza; 
imagine tambem que o pequeno enthusiasmo da nossa plebe se incen- 
deia e propaga até às altas camadas sociaes attingindo as proporções 
de um verdadeiro delirio, e terá feito idéa do que seja uma tourada, 
uma corrida em Hespanha. As scenas barbaras e repugnantes de edeafios 
que caem na arena deixando sair os intestinos atravez de largas feridas 
abdominaes, os casos dolorosos de toureiros que morrem na praça, o 
espectaculo odiento das damas que applaudem freneticamente todas es- 
tas miserias, arrancando dos cabellos as suas flores para as atirar aos 
cavaleiros do circo, tudo isto se imagina bem e tudo isto, porque é um 
pouco abjecto, dispensa naturalmente os apparatos de uma descripção 
demorada e minuciosa. 

Os touros que se procuram para estes combates são os mais selva- 
gens, aquelles precisamente que os pegureiros experimentados indicam 
como os mais ferozes. Ainda n'este ponto ha, como o leitor percebe, 
uma certa diferença entre as corridas de Hespanha tão cheias de com- 
moções vivas e as corridas portuguezas, comica reducção das primeiras. 


164 HISTORIA NATURAL 


HH BOIS DOMESTICOS 


As especies domesticas do vastissimo grupo dos bois são duas ape- 
nas: uma, o boi ordinario ou commum, animal cosmopolita, verdadeiro 
auxiliar de todo o homem, outra, que vive apenas na Ásia e na Africa e 
que alguns naturalistas consideram uma simples variedade da primeira 
— 0 boi gebo ou o boi de giba. 

Passamos a estudar estas especies. 


O BOI GEBO 


Ão numero dos naturalistas que não vêem no boi gebo mais que uma 
simples variedade do boi commum, pertence Cuvier. Este erudito inves- 
tigador acreditando que os dois animaes não differiam nem pela forma, 
nem pela estructura e não estando disposto a vêr na giba do ruminante 
africano um caracter especifico, juntou-os n'uma só especie. Investiga- 
ções posteriores, demonstrando que o boi gebo tem menos uma vertebra 
sagrada e duas vertebras caudaes que o boi ordinario, vieram dar a al- 
guns naturalistas o direito de combater a opinião de Cuvier. Brehm é 
dos que consideram o boi gebo como uma especie independente; diz 
este naturalista “que, não estando para elle provado que a selecção e a 
domesticidade sejam capazes de modificar a estructura de um osso, se con- 
sidera no direito de encontrar no esqueleto dos animaes os seus cara- 
cteres especificos, ou esses animaes sejam selvagens ou sejam domes- 
ticos. 

Mas não é só no esqueleto que o boi giboso differe do boi ordina- 
rio; differe delle ainda pela presença de um bossa na região da espa- 
dua e pelos cornos que são achatados e muitissimo curtos. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 165 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A patria do boi gebo é Bengala; d'ahi se espalhou na Ásia e n'uma 
grande parte da Africa. 


O BOI ORDINÁRIO 


O boi ordinario assim como o boi gebo acham-se reduzidos à do- 
mesticidade desde os tempos ante-historicos. Qual é a origem d'estes 
ruminantes? Accumulam-se as hypotheses, mas não ha resposta positiva 
“ao problema. Buffon inclinava-se a acreditar que o bisonte europeu fosse 
o ascendente das especies domesticas; Cuvier preferia dar estas honras 
ao boi fossil, bos primigenius, cujo craneo tem sido encontrado pelas 
excavações na Allemanha, na Inglaterra e na França e que parece ter 
desapparecido sómente no seculo xvr. 

Outros naturalistas, Brehm por exemplo, entendem que a larga dis- 
persão do boi ordinario é bastante para por si só combater a hypothese 
de uma origem unica e créem mais razoavel admittir uma pluralidade 
de especies ascendentes. Mas tudo isto são conjecturas e a verdade é 
que nós desconhecemos a origem do boi commum, como desconhecemos 
a de todas as especies domesticas. 

O boi ordinario já em tempos prehistoricos vivia sob o dominio do 
homem, como o provam irrecusaveis documentos. Nos tempos historicos 
fallam d'elle os mais antigos monumentos; no Egypto era objecto de um 
culto. Em todos os paizes antigos que honravam a agricultura, o boi era 
considerado como um objecto de veneração, havendo mesmo leis civis e 
religiosas destinadas a protegel-o. Matar um boi foi nas civilisações pri- 
mitivas considerado um crime. No Egypto o boi era um animal sagrado 
que só em sacrifícios podia ser immolado; ao que morria depois de ter 
experimentado o jugo e de ter trabalhado na agricultura, faziam-se fu- 
neraes. Na Libya não se matava o boi. Para os celtas bater n'uma vacca 


[66 HISTORIA NATURAL 


era um grande crime. Na India existem ainda hoje populações em que 
aquelle que mata uma vacca soffre a pena capital. 

Estas ligeiras informações bastam certamente para dar idéa do modo 
por que o boi domestico foi considerado na antiguidade. Hoje ainda, dis- 
sipadas as superstições dos periodos theologicos, o boi é justamente con- 
siderado em toda a parte como um animal dos mais dignos da nossa 
attenção. 


CARACTERES 


O boi ordinario apresenta dimensões muito variaveis mesmo, como. 


observa Brehm, em paizes limitrophes. Emquanto n'um certo logar uns 
offerecem notavel estatura, outros, muito perto, pouco excedem o tama- 
nho de um carneiro. 
Pode dizer-se de um modo geral que o corpo é volumoso, refeito e 
os membros curtos e robustos. A côr do pêllo é muito variavel; a pelle 
é forte e elastica. | 
À região frontal é chata e mais comprida do que larga. Os cornos, 


collocados nas extremidades da linha saliente que separa as regiões 


frontal e occipital, existem nos dois sexos; são occos, redondos, lisos e 
communicantes na base com os seios frontaes. Variam muito na dirécção 
e no comprimento. 

Na parte inferior do pescoço do boi commum, como nos outros bo- 
vidios, a pelle é pendente formando o que se chama papada. O esterno 
apresenta anteriormente uma peça ossea de articulação mobil. 

À vacca tem apparentemente apenas uma teta, munida de quatro 
mamilos dispostos de modo que distando lateralmente entre si só de cin- 
coenta e cinco millimetros, anteriormente distam de doze centimetros e 
posteriormente de oito. A dissecção da teta revela a existencia de duas 
glandulas mamarias distinctas, embora ligadas por tecido cellular. 

Os dentes incisivos são oito; os mollares são seis de cada lado das 
maxillas e o seu volume augmenta do primeiro até ao ultimo, de modo 
que o espaço occupado pelos tres anteriores é apenas metade do que 
occupam os tres posteriores. 


“MAMIFEROS EM ESPECIAL 167 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAÁPHICA | 


Não existe hoje parte do mundo onde o boi ordinario se não en- 
contre. 


COSTUMES 


Os movimentos do nosso boi domestico são de ordinario lentos, va- 
garosos, pezados; excitado porém, o que rarissimas vezes acontece, 0 
animal corre e salta com rapidez. Nada muito bem. O boi ordinario é o 
animal mais docil que pode imaginar-se. Confia-se a guarda d'elle a uma 
creança de oito annos que o encaminha, que o dirige para onde quer, 
que lhe bate mesmo, sem que o sympathico ruminante se lembre de 
reagir, sem que tente insurgir-se contra a dominação pondo em exerci- 
cio as enormes forças de que dispõe. Esta docilidade a que estamos ha- 
bituados, mas que nem por isso deixa de ser extraordinaria se nos lem- 
bramos das proporções do animal e da ferocidade que caracterisa as es- 
pecies bravas, é o effeito da castração, operação que tira ao animal os 
attributos do seu sexo. Os que não soffrem esta operação, aquelles que 
se reservam para executarem as funcções reproductoras, estão muito 
longe de apresentar a docilidade a que acabamos de nos referir. O nome 
de boi serve entre nós para designar particularmente o animal castrado 
e o de touro para designar o que se destina para a reproducção. O boi 
e o touro teem condições de caracter e costumes muito differentes: ao 
passo que o primeiro é docil, como dissemos, e se presta a toda a or- 
dem de serviços que d'elle exijamos, o segundo é hostil, desconfiado, 
naturalmente aggressivo e incapaz por isso de ser submettido a um tra- 
balho qualquer. | 

Sob o ponto de vista dos sentidos e das faculdades intellectuaes, as 
differenças não são menos accentuadas. O touro é mais intelligente e tem 
os orgãos dos sentidos mais perfeitos que o boi. 


168 HISTORIA NATURAL 


Sobre os costumes do boi não precisamos de insistir, porque o lei- 
tor decerto os conhece: é uma verdadeira machina de trabalho que o 
homem dirige como quer. Ácerca do touro porém, carecemos de fallar 
sobre a reproducção. O touro ao fim de dous annos está apto para a co- 
pula. A gestação é de duzentos e oitenta e cinco dias; o filho é objecto 
de carinhos de toda a ordem por parte da mãe, desde que nasce até 
que esta entra novamente em cio. À cria chama-se bezerro ou vitello. 

À idade do boi ou do touro pode perfeitamente avaliar-se ou pelo 
numero de anneis que apresentam na raiz dos cornos ou pelos caracte- 
res dos dentes. À contar dos trez annos o bezerro apresenta annualmente 
um novo annel; assim acrescentando trez ao numero de anneis que of- 
ferece n'uma epocha qualquer, temos a idade do animal. Os dentes in- 
cisivos com que o animal nasce são oito. Nos primeiros annos os dois 
medianos caem e são substituídos, aos dous annos cae o par seguinte, 
aos trez o terceiro e ao quarto o ultimo. Os dentes primitivos ou do leite 
são muito brancos ao passo que aquelles que os substituem são amarel- 
lados e caem ou partem entre os dezeseis e os dezoito annos. À vacca 
cessa então de dar leite e o touro torna-se incapaz de executar as func- 
ções de reproducção. Vê-se pelo que deixamos dito que dentro de cer- 
tos limites, a idade pode conhecer-se pela inspecção dos dentes. A dura- 
ção média do boi é de vinte e cinco a trinta annos. 

À idade em que de ordinario se submette o boi domestico ao traba- 
lho é a dos trez annos. 

O Doi contenta-se com hervas mais grosseiras que aquellas que se 
fornecem ao cavallo e ao carneiro; é todavia necessario que essas her- 
vas sejam compridas, porque a grossura dos labios e a ausencia de in- 
cisivos na maxilla superior impedem o boi de cortar hervas muito cur- 
tas. Assim para bem explorar um campo d'herva deve fazer-se pastar 
n'elle o boi, depois o cavallo e por ultimo o carneiro que ainda ahi en- 
contra alimento abundante. A agua pura: e o sal são indispênsaveis ao 
boi domestico. 


USOS E PRODUCTOS 


Desde a origem das sociedades humanas que o boi presta serviços 
relevantes à nossa especie como indispensavel auxiliar dos trabalhos 
agricolas. É possivel mesmo que este ruminante contribuisse notavel- 
mente para a fundação das primeiras colonias agricolas e, por isso, para 
a civilisação primitiva, Otto de Kotzebue fez notar que para as ilhas 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 169 


Sandwich principiou depois que ahi foi introduzido o boi uma era nova, 
- um verdadeiro começo de civilisação. Nos povos primitivos por ventura 
aconteceria a mesma coisa. O que o boi domestico é para nós sabem-o 
todos e pode resumir-se n'uma phrase — um instrumento de trabalho e 
uma machina de productos. Ainda pela morte nos é util, porque nos for- 
nece a pelle e a carne e os cornos. 


DOENÇAS 


“Poucos animaes estarão sujeitos a tantas doenças como o boi: a 
gastro-interite, a corysa, a laryngite, a bronchite, a congestão pulmonar, 
o tetanos, a pustula maligna, o rheumatismo, a pneumonia, a tuberculose 
pulmonar, a epilepsia, a encephalite, etc., são outras tantas doenças que 
affectam esta especie. 


O boi ordinario está dividido em um numero indefinido de raças; 
todos os paizes teem as suas. Não estudaremos este assumpto de um 
| modo completo, porque, se o tentassemos, seriamos forçados a escrever 
volumes. Não podemos todavia dispensar-nos de mencionar aqui as raças 
portuguezas mais bem caracterisadas, seguindo n'este ponto um traba- 
lho do snr. Pedro Posser baseado sobre o Recenseamento geral dos ga- 
dos em 1870 do professor de Zootechnia no Instituto de Agricultura, O 
snr. Sylvestre Bernardo Lima, 


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PIAS + md ACTA 


170) HISTORIA NATURAL 


RAÇAS BOVINAS PORTUGUEZAS 


1. Raça minhota ou galega 


Os bois d'esta raça teem, pouco mais ou menos, a altura de um me- 
tro e quarenta centimetros e as vaccas a de um metro e dezoito. À ca- 
beça é comprida e os cornos, de comprimento regular, são na origem 
projectados quasi horisontalmente voltando-se depois para cima e para 
fóra no ultimo terço. A côr geral é mais ou menos aloirada. 

Esta raça, como o nome indica, tem por area geographica toda a 
provincia do Minho. É eminentemente apropriada aos serviços de lavoura 
e à conducção de carros destinados ao transporte de pedra, de ferro, 
emfim de enormes cargas, que trez ou quatro cavallos a custo supporta- 
riam por espaço de horas e que dois bois sómente supportam dias intei- 
ros pelas calçadas ingremes das cidades e villas do Minho. Com vinte e 
cinco litros de leite de uma vacca d'esta raça fabrica-se um kilogramma 
de manteiga, que vale, termo medio, 700 réis, e que tem um largo con- 
sumo dentro e fóra da provincia. 


2. Raça barrozã 


yr 


À altura media é n'esta raça de um metro e dezoito centimetros a 
a um metro e vinte e trez. A cabeça é curta, a região frontal quadrada 
e o focinho negro; os cornos, com mais de cincoenta e seis centimetros 
de extensão, apresentam a forma de uma lyra. Estes cornos que nascem,' 
muito proximos, do alto da nuca, divergem depois de modo a existir en- 
tre as extremidades uma distancia de noventa e cinco centimetros. A 
côr geral é um castanho ora claro, ora escuro. 

Esta raça habita as montanhas de Barrozo, nos concelhos de Monta- 
legre e Boticas. É apta para o trabalho; as vaccas são pouco leiteiras. 
Ha individuos que chegam a attingir o pezo de novecentos e oitenta ki- 
logrammas, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 171 


3. Raca mirandeza 


É uma das mais corpulentas. A vacca mede um metro e vinte e sete 
centimetros de altura e o boi um metro e sessenta. À cabeça é comprida 
e 0 focinho negro, orlado de pêllos brancos. Os cornos, de extensão re- 
gular, são primeiro projectados para baixo, voltando-se depois para 
diante em sentido horisontal, levantando-se as pontas e revirando-se 
para fóra divergentemente. A côr geral é, como na raça anterior, um 
castanho claro ou escuro. 

Abunda esta raça em Miranda do Douro, achando-se porém o typo 
generalisado por outros pontos do paiz e dando as sub-raças: bragancez, 
mvirandez beirão e mirandez estremenho ou ratinho serrano. É uma raça 
vigorosissima. As vaccas são, como as de que anteriormente fallamos, 
pouco leiteiras. 


4. Raça arouqueza 


À altura media é para os bois de um metro e quarenta e nove cen- 
timetros e para as vaccas de um metro e dezoito a um metro e vinte e 
quatro. A cabeça é de comprimento medio, os olhos são suaves, bondo- 
sos e orlados de branco, o focinho é grosso e negro, e os cornos, de 
extensão media, são grossos na base e ligeiramente recurvos para fóra 
e para cima. A côr é aloirada. 

Como indica o nome, o solar d'esta raça é em Arouca, districto de 
Aveiro. Os bois d'esta raça são vigorosos e alguns ha que attingem o 
pezo de mil kilogrammas. As vaccas dão pouco leite, mas em condições 
taes que quinze a dezoito litros bastam para produzir um kilogramma de 
manteiga. É uma das nossas raças mais formosas. 


A 5. Raça brava do Ribatejo 


E A altura não excede n'esta raça um metro e onze centimetros a um 
| metro e dezenove. A cabeça é comprida e estreita na região frontal, os 
olhos são pequenos, os cornos curtos, ligeiramente recurvos e o fo- 
cinho é muito negro. A côr dominante é o preto; ha muitos individuos 
malhados. Os exemplares castanhos ou amarellados são raros. O cara- 
cter dos individuos d'esta raça, que vivem no campo, expostos à intem- 


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172 HISTORIA NATURAL 


perie, é bravio, desconfiado, indomito. É esta raça que fornece os touros 
para as nossas corridas. 

À producção do leite é nas vaccas d'esta raça tão limitada que ape- 
nas chega para as crias. 

O solar d'esta raça é o valle do Tejo nas lezirias contiguas ao rio 
desde a Gollegã até Alcochete, desde a Charneca até Povoa de Santa Iria. 


6. Raça turina 


A altura media é de um metro e vinte e sete a um metro e trinta 
e cinco centimetros. A cabeça é comprida e larga na região frontal e o 
focinho curto e negro; os cornos são pouco extensos, delgados e negros 
na ponta. Os individuos d'esta raça são ordinariamente malhados de 
branco e preto, havendo-os tambem malhados de branco e ruivo e, em- 
bora mais raramente, quasi todos brancos ou quasi todos negros. 

Esta nossa raça deriva de uma raça hollandeza é a creação della 
limita-se a Lisboa e suburbios. 

À vacca é a mais leiteira que possuimos. Dá por dia dez a dezoito 
litros de leite, conforme a alimentação. 


7. Raça alemtejana 


Um metro e vinte e nove centimetros e um metro e quarenta e 
cinco são alturas medias referentes a duas variedades geralmente co- 
nhecidas pelos nomes de raça pequena e raça grande. A cabeça é com- 
prida, estreita na fronte, quasi plana e direita desde o alto até à ponta 
do focinho. Os cornos são compridos, inclinados na origem para baixo e 
para traz e depois para cima e para fóra, sendo a distancia que separa 
as extremidades maior na raça grande que na pequena. 

Esta raça vive em toda a provincia do Alemtejo, predominando a 
variedade grande no districto de Evora e a pequena no districto de Beja. 
Os bois são robustos e proprissimos para os trabalhos pezados. As vac 
cas dão uma quantidade de leite que apenas chega para as crias. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 173 


8. Raça algarvia 


A media da altura não excede um metro e quinze centimetros a um 
metro e trinta. A cabeça é regular, de comprimento proporcionado e o 
focinho estreito pardo ou negro. Os cornos são de comprimento mediano. 
A côr geral é um castanho claro ou aloirado. 

Esta raça habita toda a provincia do Algarve. As vaccas dão sómente 
o leite preciso para as crias. 


“No que acaba de ser lido não se encontram certamente descriptas 
todas as raças bovinas portuguezas, mas apenas, como dissemos já, as 
mais bem caracterisadas. Quer tomemos a palavra raça no sentido lati- 
tudinario em que o vulgo a emprega, quer na accepção mais restricta 
que a sciencia lhe concede de ordinario, existe indubitavelmente em Por- 
tugal um maior numero de raças bovinas que as que descrevemos. As 
que mencionamos são as que mais nitidamente se differenceiam pela cor- 
poratura, pelo tamanho e direcção dos cornos e ainda pela quantidade 
de leite produzido. 


Resumimos em seguida n'um quadro eschematico as especies aqui 
estudadas da vasta ordem dos ruminantes, seguindo a disposição que 
lhes dá Figuier, o qual no seu livro Os Mamiferos catalogou todos os ru- 
minantes em cinco tribus: os camelianos, os ruminantes sem cornos, Os 
de cornos lisos e persistentes, os de cornos caducos e os de cornos occos. 
Segue o quadro: 


RUMINANTES 


po 


HISTORIA NATURAL 


DROMEDÁRIO 
CAMELIANOS ......., (CAMELO 
BRANEA O ra Mo UA SeRRS a alpaca 
! vicunha, 
TRIBU SEM CORNOS... MosCHOS.......cccril almiscareiro 
Moscho menor 


TRIBU DE CORNOS LI- 


AD pos Eb isa Ms NEC dh y Na, 
SOS E a id e a Girafa Africana 


/ 08 RANGIFEROS ......il da America 
da Europa 
OS: ALORÊ SS sto a Re a iai 
original 
TRIBU DE CORNOS CA- ordinario 
te ai ES Db OS. VBADOB E us o es RR da Barbaria 
de Bengala 
Americanos 
OS ZORLITOS | 
"OS GAMOS 
A CAMURÇA 
AS GAZELLAS 
à saiga 


a cervicabra 
a cervicabra de patas 


AR. ANTILOPES. Liss err ss ie cs 
negras 
a antilope negra 
“a antilope lencorix 
O NYLGÓ 
TRIBU DE CORNOS O0C-, 
COR sis vei 00 0. 0. A CONDOMA 
O GNOU 
dos Alpes 
O BOPAQUIM sas Reis cone E, 
da Hespanha 
| sulvestre 
| domestica 
AS CABRÁS ; cusns mis so. de Ang agudos 
cachemira 


da Thebaida 
van 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 175 


| P Africa 
08 MUFLÕES .... ......... 0. (da America 
: “da Europa 
O ARGALI 
merino 
OS CARNEIROS... .. 0.0... «+ 4 de cornos ponteagudos 
de grandes nadegas 


O BOI ALMISCARADO 


O YACH 
da Cafraria 
OS BUFALOS Er crnd 
TRIBU DE CORNOS OC- ordinario 


DR mae ed A o dio 6 é z 
BOIS SELVAGENS. «cc coco... O qual 


X BOIS QUE SE TORNARAM SELVA- 
GENS. .corrrcrrroor o. 0.0. touro de Hespanha 


RUMINANTES (continuação) 


a | de giba 
I8 DOMESTICOS +... escusos 
| ordinario 
Minhota 
Barrozã 
Mirandeza 
Arouqueza 
Do Ribatejo 
| Turina 
Alemtejana 
Algarvia 


RAÇAS DE BOIS PORTUGUEZES... 


ig ce Opa o— 


PACHYDERMES 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


Os pachydermes são os representantes de toda uma serie d'animaes 
gigantescos, outr'ora abundantes e hoje em via de desapparecimento. 
Muitos gigantes que foram seus contemporaneos, deixaram ha muito de 
existir; elles subsistiram porém, como o vivo testemunho d'essas creações 
extraordinarias d'epochas geologicas anteriores à nossa. Mortos os com- 
“ panheiros, esses typos descommunaes de grandeza e de força, cujos es- 
queletos nós fitamos com assombro nos museus archeologicos, elles fica- 
ram e existem, não sabemos por quanto tempo ainda, assim como isola- 
dos em meio da vasta creação. Do desapparecimento dos companheiros, 
resultou que as especies hoje existentes differem muito entre si; extin- 
guiram-se os termos de transição. Extinguiram-se, mas não se perderam; 
e a sciencia que investiga o passado com tanto ardor como o presente, 
descobrindo esses typos mortos veio mais uma vez provar o velho apho- 
rismo de Linneo: a natureza não procede descontinuamente. 


VOL. 1 12 


178 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


Os pachydermes são os maiores mamiferos terrestres que actual- 
mente existem. Distinguem-se pela estatura pezada, deselegante. Os mem- 
bros são relativamente curtos e volumosos; os pés terminam por trez a 
cinco dedos. Cada um dos dedos é cercado de um casco especial. Em 
quasi todos a região facial é alongada; n'alguns, o nariz é prolongado 
em forma de tromba. O pescoço é curto e mal se distingue do tronco. 
A cauda raras vezes attinge a articulação tibio-tarsica. A grandeza das 
orelhas varia muito; os olhos são geralmente pequenos. O corpo é co- 
berto por uma pelle forte, espessa, que dá à ordem o nome por que é 
conhecida; esta pelle é nua em grande extensão ou coberta aqui e além 
de sêdas rijas e pouco numerosas. Uma familia existe apenas, que re- 
corda ainda hoje os pachydermes de manto abundante anteriores à actual 
epocha geologica. , 

Os ossos, como naturalmente se prevê, são fortes, volumosos. As 
vertebras dorsaes são treze a vinte e uma, as lombares trez a oito, as 
sagradas quatro a oito, ordinariamente soldadas, e as caudaes sete a 
vinte e sete. As costelas são largas, de curvatura pouco pronunciada. 
À clavicula não existe. 

É muito variavel a dentição: de ordinario existem trez especies de 
dentes; muitas vezes porém, os incisivos e os caninos faltam, ao menos 
em parte. O estomago é simples e o tubo intestinal tem dez vezes o com- 
primento do individuo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A apparição dos pachydermes fez-se na epocha terciaria; grande 
parte d'elles haviam-se extinguido antes da epocha diluviana. Outr'ora 
estes animaes povoaram toda a superficie da terra; hoje encontram-se 
apenas nos paizes quentes, nas florestas virgens das regiões tropi- 
caes, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 179 


COSTUMES 


É difficil senão impossivel fallar em geral dos costumes dos pachy- 
dermes, porque as differenças existentes n'este ponto de especie a espe- 
cie são certamente maiores que as semelhanças. Fallaremos pois d'este 
ponto na especialidade. 


USOS E PRODUCTOS 


À observação que acabamos de fazer a proposito dos costumes, re- 
petimol-a aqui. Na especialidade teremos occasião de saber que utilidade 
nos pode provir dos animaes d'esta ordem. 


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PACHYDERMES EM ESPECIAL 


OS PROBOSCIDEOS OU ELEPHANTES 


Mao grado as dificuldades que hoje se encontram na classificação 
dos pachydermes, todos os naturalistas estão de accordo na formação da 
familia dos proboscideos de cujas especies vamos occupar-nos. 


OS MASTODONTES 


Pertencem à fauna extincta. Eram contemporaneos do mammouth e 
assemelhavam-se muito aos elephantes negros ainda existentes. Pelos es- 
queletos que se tem encontrado na Europa, na America e na Ásia, com- 
prehende-se que foi extensissima a área de dispersão deste proboscideo. 
Pelas differenças reconhecidas entre os esqueletos encontrados tem-se 
chegado à determinação de dez a doze especies. 


182 HISTORIA NATURAL 


OS ELEPHANTES PROPRIAMENTE DITOS 


Às especies vivas são caracterisadas por uma tromba muito mobil e 
pelas defezas, consistindo em dentes incisivos enormemente extensos. 

Teem o corpo curto e volumoso, o pescoço pequeno, a cabeça re- 
donda e cheia de bossas produzidas por elevações dos ossos craneanos. 
As pernas são altas, fortes; os dedos são cinco, soldados em cascos. 

O orgão mais importante, mais característico dos elephantes pro- 
priamente ditos é a tromba que consiste n'um prolongamento do nariz, 
notavel pelo comprimento, pela mobilidade, pela sensibilidade e princi- 
palmente pela presença de um appendice digitiforme que o termina. À 
tromba é ao mesmo tempo um orgão de olfato, de tacto e de prehensão. 
Segundo Cuvier, os feixes de musculos longitudinaes e circulares que a 
compoem são em numero de quarenta mil; é a esta estructura que o 
animal deve o poder de alongar ou encurtar e dirigir a tromba em to- 
dos os sentidos. A inserção d'este orgão tão importante faz-se nos ossos 
largos da face. Esta tromba que superiormente é connexa, inferiormente 
é plana e vae diminuindo de volume desde a inserção até à extremidade 
livre; interiormente apresentã um scepto, como o nasal, que a divide 
em duas cavidades, em toda a extensão. 

A dentição é notavel. A maxilla superior é armada de dois incisivos 
convertidos em defezas e apresenta, como a maxilla inferior, cinco ou 
seis pares de mollares. Os dentes n'estes curiosos animaes renovam-se 
seis vezes. Esta renovação não se realisa como na especie humana pela 
queda de um dente e lenta apparição posterior do que o substitue; nos 
elephantes, quando um dente se gasta pelo uso, um outro principia desde 
logo a formar-se por traz delle, funccionando antes mesmo da queda do 
primeiro. 

As defezas, esses enormes dentes incisivos, crescem constantemente; 
chegam a attingir uma extensão consideravel e um pezo de setenta e 
cinco a noventa kilogrammas. 

Neste genero estão comprehendidas especies vivas e especies extin- 
ctas. Estudaremos estas em primeiro logar. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 183 


O MAMMOUTH 


Encontram-se as sepulturas deste clephante no paiz dos ostiacos, 
dos tongousas e dos samoiedos, nas margens do Obi, do Iénisée, de 
“Léna, rios da Siberia cujas aguas vão perder-se no mar Glacial. Quando 
o desgelo principia n'estas margens arenosas, descobrem-se, na phrase 
“de Brehm, montanhas inteiras de dentes gigantescos a que se misturam 
ossos enormes. Ás vezes esses dentes encontram-se ainda solidamente 
implantados nas maxillas e até cercados de carne e de pêllos. 

Aos naturalistas do seculo passado, Pallas e Adams, se deve o co- 
nhecimento exacto dos restos fosseis do mammouth. Sabe-se pelos estu- 
dos d'estes investigadores que o elephante em questão era de uma grande 
estatura, que a pelle era coberta de péllos abundantes, dos quaes os do 
pescoço attingiam setenta centimetros, o que prova serem destinados a 
habitar os paizes frios. Os incisivos ou defezas eram muito mais curvos 
que os dos elephantes actuaes, chegando alguns a representar trez 
quartos de circulo. O comprimento era enorme; Adams viu-os que tinham, 
planificados, sete metros de extensão. 


O DINOTHERIO 


Calcula-se que tivesse seis metros de extensão. As defezas, que eram 
enormes, tinham origem na maxilla inferior e recurvavam-se para o solo. 
O omoplata era analogo ao dos animaes. que escavam a terra. 


Contam-se ainda no numero das especies extinctas—o elephas an- 


184 HISTORIA NATURAL 


tiquus e o elephas meridionalis, dos quaes o primeiro se sabe que cooexis- 
tiu com o homem. 


Às especies vivas são, segundo geralmente se admitte, duas: o ele- 
phante da Asia e o elephante da Africa. 


O ELEPHANTE DA ASIA E O ELEPHANTE DA AFRICA 


Comprehendemos n'um só artigo a descripção das duas especies, 
não porque os seus caracteres morphologicos ou os seus costumes sejam 
precisamente os mesmos, mas porque as semelhanças são muitas e as 
diferenças faceis de notar. 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


Os antigos conheceram muito bem as duas especies de que vamos 
occupar-nos. Os ethiopes faziam desde os mais remotos tempos um largo 
commercio do marfim extraido dos dentes d'estes pachydermes. Herodoto 
mencionou-os muitas vezes e Ctésias, medico de Artaxerxes Mnémon, 
descreveu-os d'aprês nature. Foi este auctor que espalhou o erro, ainda 
hoje recebido pelos ignorantes, de que os elephantes tinham pernas sem 
articulações, em resultado do que não podiam deitar-se e dormiam de 
pé. Dario serviu-se dos elephantes para a guerra. Aristoteles viu alguns 
e legou-nos d'elles uma descripção muito exacta. A partir d'esta epocha 
apparecem muitas vezes nos livros referencias a estes animaes. Figura- 
ram muito, tendo um grande papel a desempenhar, nas guerras do 
mundo antigo. Os romanos serviram-se d'elles nos combates dos circos 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 185 


e em exhibições publicas onde mostraram até que ponto se podia levar 
a educação d'estes animaes. Estes espectaculos ainda hoje nos são pro- 
porcionados pelos donos de collecções d'animaes; ainda hoje vêmos com 
pasmo as provas de intelligencia e, o que mais é, da agilidade destes 
pachydermes de apparencia tão pezada, tão deselegante, tão pouco pro- 
mettedora. 


CARACTERES 


Das duas especies a africana é a maior. 

O elephante d'Africa tem a cabeça chata, a região frontal inclinada, 
as orelhas grandes e immoveis, as defezas compridas e as laminas de 
esmalte dos mollares em fórma Pioinboidal: 

O elephante d'Asia tem a cabeça mais alta, a fronte vertical, as ore- 
lhas pequenas e moveis, as defezas menores que as da especie anterior 
e as laminas de esmalte dos mollares, transversaes. 

A pelle dos elephantes é ora clara, ora escura; a côr mais commum 
“é a de ardosia ou de terra. 

Tem-se exagerado um pouco a estatura dos elephantes, que é aliás 
notavel. De ordinario o elephante da Asia não mede mais de trez metros 
de altura, ao nivel da espadua ou do pescoço; o elephante d'Africa é 
maior e mede, ao mesmo nivel, cinco metros. O comprimento, compre- 
hendida a cauda e excluida a tromba, varia entre trez e cinco metros; 
desta extensão um metro e trinta centimetros pertencem à cauda. A 
tromba tem um metro ou um metro e sessenta centimetros de comprido. 
O pezo ordinario dos elephantes adultos oscilla entre quatro mil e qui- 
nhentos e cinco mil kilogrammas. Muitas vezes porém, excedem este 
pezo; Darwin viu um que pezava seis mil e quinhentos kilogrammas. O 
pezo da pelle, só esse, era de mil kilogrammas. As defezas do elephante 
d'Africa pezam mais de mil e quinhentos kilogrammas. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O elephante d'Africa encontra-se em todo o centro d'este continente, 
desde o Oceano Indico até ao Oceano Atlantico, desde o decimo sexto 


[86 HISTORIA NATURAL 


grao de latitude norte até ao vigessimo quinto de latitude sul. Existiu 
tambem no Cabo; hoje porém, desappareceu d'ahi. 

O elephante d'Asia encontra-se nas Indias, na Conchinchina, em Sião, 
em Pegu, no Industão e na ilha de Ceylão. 

O que vive em Sumatra é por alguns naturalistas considerado uma 
especie distincta, clephas sumatrensis. | 


COSTUMES 


No que respeita aos habitos de vida dos elephantes, os antigos, 
apesar de terem tido muitas occasiões de os observarem, legaram-nos 
descripções cheias d'erros. Muitas fabulas espalhadas por elles vieram 
até nós; e pode dizer-se que só ha poucos annos é que a historia dos 
elephantes nos é conhecida de um modo completo e exacto. Alguns au- 
ctores antigos legaram-nos, já o dissemos, descripções muito minuciosas 
e muito perfeitas d'estes pachydermes morphologicamente considerados ; 
quanto aos costumes porém, ou não fallaram ou disseram inexactidões, 
algumas das quaes de um verdadeiro comico. 

À especie asiatica é melhor conhecida que a africana. 

Os elephantes encontram-se, senão de um modo exclusivo, pelo me- 
nos de preferencia nas grandes florestas; e quanto mais ricas estas são 
em agua mais elles ahi abundam. Em Ceylão encontram-se principalmente 
nas regiões montanhosas. Vivem bem a uma altitude de dois mile seis- 
centos metros. 

Contrariamente à opinião geralmente recebida, os elephantes evitam 
quanto possivel os raios do sol, procurando os logares ensombrados, es- 
curos. Os habitos d'estes pachydermes são mais nocturnos do que diur- 
nos; com quanto procurem muitas vezes o alimento durante o dia, é 
certo que elles preferem sempre para este fim a noite. 

Um facto realmente singular que, no dizer de Tennent, surprehende 
muito o viajante é o dos movimentos estranhos que os elephantes exe- 
cutam: assim uns agitam a cabeça circularmente, outros abaixam e le- 
vantam alternativamente e de um modo perfeitamente mechanico um dos 
membros anteriores, alguns agitam as orelhas de um modo continuo, 
emfim outros balançam pendularmente um pé no sentido antero-poste- 
rior. O mesmo observador que vimos de citar aflirma que o simples as- 
pecto d'um elephante basta para convencer-nos da falsidade completa 
das narrações que fazem d'estes pachydermes animaes ferozes, maos, 


de 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 18% 


vingativos. Elles teem, pelo contrario, sentimentos de bondade que se 
lhes traduzem fielmente no olhar; de resto, são timidos até ao ponto de 
fugirem, mesmo quando são muitos, diante de um só homem. 

O que deixamos dito, applica-se egualmente às duas especies. O 
elephante d'Africa encontra-se ás vezes, como o da Ásia, a altitudes de 
dois mil e seiscentos ou mesmo de trez mil metros acima do nivel do 
mar. 
Nas florestas virgens, os caminhos seguidos pelos elephantes são 
caracteristicos e distinguem-se perfeitamente dos que abrem outros ani- 
maes, pela forma particular dos excrementos ahi depositados; só seguindo 
estes caminhos é possivel penetrar nas florestas. «Os elephantes repre- 
sentam ahi, diz Brehm pittorescamente, toda a administração de pontes 
e calçadas.» | | 

A falta de agilidade dos elephantes é apparente apenas. Embora ge- 
ralmente apresentem um andar vagaroso, lento, pezado, elles podem, 
desde que sentem necessidade d'isso, correr com notavel velocidade. 
“Além d'isso teem a faculdade de marchar sem ruido. Quando sobem ter- 
renos de grande declive, apresentam-se como verdadeiros animaes tre- 
padores. Dobram então prudentemente as articulações carpianas, abai- 
xando assim a parte anterior do corpo e deslocando para diante o centro 
de gravidade; depois como que deslisam sobre as patas assim dobradas, 
estendendo as posteriores. Para descer, ajoelham-se no alto da montanha 
de modo que o peito lhes toque o chão, depois estendem as patas ante- 
riores, fixam-as na terra e por um esforço chamam adiante as poste- 
riores; como que rastejam e conseguem assim descer perfeitamente sem 
deslocar o centro de gravidade, o que fatalmente aconteceria se mar- 
chassem em declive como por um plano. 

Não obstante todas estas precauções, dão algumas vezes os ele- 
phantes formidaveis quedas. 

Já atraz fizemos notar que ha muito quem creia que os elephantes 
se não podem deitar e são por isso forçados a dormir de pé. O que aca- 
bamos de escrever sobre o modo por que estes pachydermes sobem e 
descem as montanhas, é bastante para desmentir essa fabula espalhada 
por auctores antigos, menos conscienciosos nas suas observações. Os 
elephantes podem dormir e dormem muitas vezes de pé, como outros 
pachydermes o fazem; no entanto está provado que elles se deitam to- 
das as vezes que querem. É mesmo para notar que, a despeito do 
enorme peso que teem, os elephantes se deitam e levantam com uma 
agilidade relativamente notavel. 


| Brehm, Obr. eit., vol, 2.º, pg. 710, 


188 HISTORIA NATURAL 


Os elephantes nadam muito bem; fica-lhes de fóra da agua mais 
corpo que aos outros quadrupedes, vantagem que devem sem contesta- 
ção, à amplitude das fórmas e à capacidade do peito. Levantando a 
tromba, podem mergulhar por largo tempo sem receio de asphixia. As- 
sim, attravessam rios de grande largura sem hesitação, antes com ver- 
dadéira voluptuosidade. 

É com a tromba que os elephantes executam os mais extraordina- 
rios e variados movimentos: com este orgão elles podem egualmente 
apanhar uma tira de papel sem a amarrotarem ou partir o grosso tronco 
de uma arvore. Esta variedade assombrosa de movimentos da tromba, 
explica-se pelo numero immenso de musculos que a formam e pelo ap- 
pendice digitiforme que a termina. O appendice digitiforme dá-nos conta 
da segurança e delicadeza com que estes pachydermes apanham e ta- 
cteiam os mais finos objectos; os musculos da tromba explicam-nos a 
força extraordinaria e a multiplicidade pasmosa dos movimentos d'este 
orgão. . 

As defezas, que, como dissemos, não são mais do que dentes inci- 
sivos extraordinariamente desenvolvidos, empregam-as os elephantes 
para fins muito diversos. Servem-lhes para levantarem fardos, para deslo- 
carem enormes pedras, para cavarem a terra e ainda para armas offensivas 
e defensivas. Comtudo os elephantes poupam-as tanto quanto possivel, 
porque sabem bem que não é n'ellas que reside a sua grande força. 
Acontece às vezes que nas luctas de dois elephantes um parte uma de- 
feza ao outro com pancadas da tromba. 

Os sentidos do elephante, exceptuando a vista, são muito perfeitos. 
O tacto, o gosto, o olfato e o ouvido são apuradissimos. Da perfeição dos 
tres primeiros encontramos as provas mesmo nos animaes captivos; O 
gosto é notavel, o olfato é tão apurado como o dos ruminantes e, se- 
gundo alguns naturalistas, o appendice digitiforme que termina a tromba 
pode comparar-se ao dedo exercido de um cego. Da perfeição do ouvido 
nos elephantes dão-nos testemunho quantos os teem observado em es- 
tado natural ou selvagem. 

As faculdades intellectuaes dos elephantes são altamente desenvol- 
vidas e chegam a rivalisar com as do cão e do cavallo. E esta affirma- 
ção produzida por todos os naturalistas não se baseia apenas sobre do- 
cumentos colhidos no estado selvagem, mas ainda e sobretudo nas pro- 
vas que dão no estado domestico, a que rapidamente se adaptam. A fa- 
cilidade extrema com que os elephantes aprendem quanto se lhes ensina 
e a conciliação d'elles com a sociedade dos homens são provas de um 
grande intendimento essencialmente progressivo e perfectivel. Como ani- 
maes intelligentes, os elephantes são dotados tambem de uma notavel 
sensibilidade moral. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 189 


Figuier cita muitos exemplos comprovativos do que afirmamos. 
Transladaremos d'esses, alguns. Um certo elephante que vivia captivo 
em Sumatra tinha por costume, ao attravessar as ruas da ilha em direc- 
ção a um riacho em que um criado todas as manhãs o lavava, ir es- 
tendendo a tromba até à altura das janellas para que lhe dessem alguns 
fructos ou raizes. Um dia levantando a extremidade da tromba até à ja- 
nella da casa de um alfaiate, este, em vez de dar ao pachyderme o que 
elle naturalmente pedia, picou-o com uma agulha. O elephante simulou 
supportar com paciencia o barbaro insulto e continuou o costumado ca- 
minho para o riacho. Chegado ahi aspirou uma grande quantidade d'agua 
que conservou na tromba e ao passar de novo pela casa do alfaiate, ati- 
rou-lhe pela janella dentro tão grande e tão impetuoso jacto que o ho- 
mem e todos os officiaes que o rodeavam cahiram das cadeiras e ficaram 
cheios de terror. Um outro elephante procedeu de modo semelhante con- 
tra um guarda que tentava impedir o publico de dar-lhe alimentos. Buf- 
fon relata um facto não menos curioso. Um certo pintor, desejando de- 
senhar o elephante da ménagerie de Versailles com a tromba levantada 
e a bocca aberta, encarregou um creado de manter o pachyderme n'esta 
posição singular. Para isso o moço atirava à Dbocca do elephante alguns 
fructos; mas as mais das vezes apenas fazia menção de lh'os atirar. O 
elephante indignou-se com a simulação e, percebendo que o culpado era 
o pintor, dirigiu-se a elle e projectou-lhe sobre o papel uma certa por- 
ção d'agua que lhe inutilisou o desenho. O Dr. Franklin aflirma que os 
elephantes são de uma extraordinaria sollicitude pelas creanças e diz ter 
elle proprio colhido presencialmente as provas. Este auctor viu na India 
um elephante guardando uma creancinha que a mãe lhe tinha confiado. 
A sollicitude do enorme pachyderme era commovente; ora com a tromba 
partia os ramos e affastava todos os obstaculos que punham impedimento 
à marcha da creança, ora a tomava no mesmo orgão com immenso cari- 
nho, se ella chorava ou caía. A susceptibilidade dos elephantes é conhe- 
cida. O menor castigo, o mais ligeiro signal de mao humor que provo- 
quem no homem é motivo para se entristecerem, para se sentirem pro- 
fundamente. Apreciam muito a musica e marcam o compasso fazendo os- 
cillar rythmicamente a tromba. Mesmo em estado selvagem ós elephan- 
tes dão provas de um intendimento que lhes permitte aproveitar as li- 
ções da experiencia. É assim que, no dizer de Tennent, elles fogem em 
bandos das florestas para os largos campos sem arvores, nas occasiões 
de trovoada; ahi se conservam até que cesse a fusilaria dos relampagos. 
Os elephantes selvagens possuem, esses mesmos, uma certa doçura de 
caracter que os leva a não aggredirem nunca outras especies mas antes 
a evitar toda a especie de lucta mesmo com animaes fracos que natural- 
mente venceriam. Conscientes da enorme força de que são dotados, os 


190 HISTORIA NATURAL 


elephantes não a empregam senão quando isso é de absoluta necessi- 
dade. Devem ser tidas na conta de fabulas todas essas descripções que 
correm escriptas e que se ouvem da bocca dos domadores de feras, des- 
cripções segundo as quaes os elephantes luctariam habitualmente com o 
leão, com o tigre, com a panthera. Nem os carniceiros se atirevem a 
attacar os elephantes, nem estes, essencialmente pacificos e amigos da 
ordem, dão a nenhum animal motivo para colera ou para desejos de vin- 
gança. Ha mesmo animaes, aves principalmente, que vivem n'uma intima 
harmonia com os elephantes. Algumas d'estas aves vivem, habitam quasi, 
podemos dizel-o, sobre o dorso d'estes pachydermes entretendo-se a ex- 
plorar-lhes a pelle, a catar-lhes os insectos e vermes que se insinuam nas 
suas dobras como parasitas epizoarios. Um facto analogo se dá com os 
bufalos, sobre cujo dorso pousam aves que os collocam ao abrigo da 
vermina. 

Os elephantes vivem em familias compostas desde dez até cem ou 
duzentos individuos; os agrupamentos que mais vezes se encontram, cons- 
tam de trinta até cincoenta associados. O mais prudente é unanimemente 
reconhecido como chefe do bando. Tanto pode ser um macho como uma 
femea; as funcções que lhe competem podem todas resumir-se n'isto: ve- 
lar pela segurança geral. Este cargo é penoso; em compensação aquelle 
que o exerce tem o incondicional respeito de todos os subordinados. O 
chefe marcha em todas as excursões na frente e a uma grande distancia 
dos restantes membros da familia, para explorar terreno e examinar as 
condições de segurança. Só depois que o chefe ou arbitro dos destinos 
do bando (porque o é na realidade, tão submissamente o seguem os 
companheiros) se tem assegurado da não existencia de perigos, é que 
os outros se precipitam, confiados, na direcção que se propunham. A 
proposito transcrevemos de Skinner o trecho que segue: «Nas occasiões 
de grande sêcca estancam-se os riachos, os pantanos e os poços. Os 
animaes da India, soffrendo então muito com a privação da agua, reu- 
nem-se em grande numero em torno dos poços não seccos ainda. Na pro- 
ximidade de um, tive eu occasião de observar a prudencia surprehen- 
dente dos elephantes. De um dos lados do poço havia uma espessa flo- 
resta virgem; do outro estendia-se uma vasta planície descoberta. Era 
por uma noite de luar explendido, tão claro como um dos nossos dias do 
Norte; resolvi observar os elephantes. O logar era propício: uma arvore 
gigantesca, cujos ramos se estendiam por cima do poço, devia servir-me 
de observatorio; trepei a ella muito cedo e esperei. 

«Os elephantes estavam apenas a uma distancia de quinhentos pas- 
sos; no entanto só ao fim de duas horas logrei vêr o primeiro. Um grande 
elephante saiu da floresta a uns trezentos passos, pouco mais ou menos, 
do poço e parou para escutar. Tinha avançado sem produzir o mais li- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 191 


geiro ruido e conservou-se muitos minutos immovel como um rochedo. 
Avançou mais um pouco, parou de novo, e isto por trez vezes successi- 
vas, conservando-se de cada uma immovel alguns minutos e erguendo 
as orelhas para ouvir melhor. Chegou assim até junto da agua. Eu via- 
lhe a imagem reflectida na superficie; o pachyderme não bebeu, conser- 
vou-se apenas alguns instantes em observação. Depois, voltando-se silen- 
ciosa e prudentemente, tornou a entrar para a floresta pelo ponto por 
que tinha saído. | 

«Não tardou porém a reapparecer e d'esta vez com cinco compa- 
- nheiros. Todos caminhavam com egual prudencia, mas menos silenciosa- 
mente. O guia ou chefe collocou os cinco elephantes de sentinella, vol- 
tou à floresta d'onde, passado pouco tempo, saiu seguido de todo o bando, 
isto é de oitenta a cem companheiros. Caminhavam todos silenciosamente ; 
eu via-os bem moverem-se, mas não os ouvia. Pararam a meio do cami- 
nho. O guia adiantou-se um pouco, conferenciou com as sentinellas e, con- 
vencido emfim de que havia segurança, deu ordem para avançar. Então 
o bando, dissipado todo o receio de perigo, precipitou-se na direcção da 
agua. Todo o medo, toda a timidez tinham desappaxecido; todos confia- 
vam no guia. 

«Entregaram-se então ao prazer de apagar a sêde e de tomar ba- 
nho. Nunca vi tantos animaes juntos em tão pequeno espaço. Parecia-me 
que elles iam esvaziar o poço. Observei-os com interesse até que todos 
se dessem por satisfeitos. Desejando vêr então que effeito produziria um 
ruido insignificante, quebrei um pequeno ramo; immediatamente o bando 
deitou a correr para a floresta.» 

Quando procuram o alimento, os elephantes procedem com egual 
prudencia. As florestas que habitam são tão ricas que elles nunca che- 
gam a sentir fome. É esta abundancia de alimento que lhes tira toda a 
voracidade, tão caracteristica n'outros animaes. Os elephantes engolem 
ramos da grossura de um braço. «Nos seus excrementos, diz Brehm, da 
fórma de morcellas, com cincoenta centimetros de comprido e quatorze 
a dezeseis de espessura, encontrei pedaços de ramos de onze a qua- 
torze centimetros de extensão e de quatro a seis de diametro.» 

Todas as regiões apresentam umas certas arvores que são as pre- 
feridas pelos elephantes. A Africa central, por exemplo, tem a chamada 
arvore dos elephantes, vegetal espinhoso que preferem a todos; os espi- 
nhos são molles e não ferem a bocca dos pachydermes. É de notar que 
os elephantes preferem às hervas os ramos € raizes d'arvores. Ás vezes 
nas longas peregrinações nocturnas que emprehendem, os elephantes pe- 
netram nas plantações e ahi produzem grandes estragos. Observe-se po- 
rém que um simples espantalho, uma paliçada, por fraca que ella seja, 
bastam, as mais das vezes, para aflastar estes pachydermes. Na Ásia 


192 HISTORIA NATURAL 


os indigenas deixam pelo meio dos campos largos caminhos que ser- 
vem de passagens aos elephantes que vão beber, cercando as partes 
cultivadas de um muro de bambus. Uma só pancada da tromba de um 
elephante seria bastante para atirar a terra esse muro; a verdade po- 
rém é que nunca os elephantes se propozeram fazel-o. Este comporta- 
mento é no Sudan attribuido, não a timidez ou prudencia, mas a um sen- 
timento innato de justiça, que, diz Brehm, os indigenas suppoem existir 
em alto grao nos elephantes. 

A mudança de estações e a falta d'agua são causas frequentes de 
verdadeiras emigrações d'estes pachydermes; taes emigrações só se rea- 
lisam de noite. 

Os elephantes servem-se da tromba para beber. Aspiram a agua, 
enchem a tromba e esvaziam-a depois dentro da cavidade da bocca. 

A multiplicação d'estes enormes pachydermes é muito limitada. A 
epocha do cio reconhece-se, além d'outros caracteres, pelo facto de se- 
eregarem os machos um liquido fetido por duas glandulas collocadas-. 
atraz das orelhas. N'esta quadra os elephantes perdem a habitual tran- 
quillidade e tornamsse perigosos para o homem. Segundo observações de 
Corse, o cio tem logar em mezes differentes, em Fevereiro, em Abril, em 
Junho e mesmo mais tarde às vezes, em Setembro ou Outubro. A gesta- 
ção dura vinte e dois mezes e meio. A femea não dá à luz por cada 
parto mais do que um filho, que apparece com noventa e seis centime- 
tros de altura. 

Os elephantes crescem continuamente até aos vinte ou vinte e qua- 
tro annos; mas aos desasseis estão já aptos para a reproducção. 

Relativamente à dentição, sabe-se que a primeira muda, a dos cha- 
mados dentes do leite, tem logar aos dous annos, a segunda aos seis e a - 
terceira aos nove. j Se | 

A duração dos elephantes é assombrosa; no estado selvagem attin- 
cem a edade de cento e cincoenta a duzentos annos e, segundo alguns 
observadores, podem chegar à de cem ou cento e vinte em captiveiro. 


CAÇA 


Os elephantes pertencem ao numero dos animaes em via de com- 
pleto desapparecimento. Reproduzem-se com dificuldade, como vimos, e 
sao objecto de uma guerra de destruição tenacissima que a nossa espe- 
cie lhes move com o fim de adquirir o marfim precioso das defezas. E 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 193 


esta guerra, esta perseguição faz-se por tal modo, por processos de tal 
natureza, tão crueis e tão exageradamente destructivos que a desappa- 
rição d'estes sympathicos pachydermes que, prudentemente poupados, 
poderiam ser-nos utilissimos, não deve estar distante. Quando pensamos 
na perseguição cannibalesca e perfeitamente cobarde de que são victi- 
mas os generosos elephantes de que podiamos fazer verdadeiros animaes 
domesticos, companheiros uteis, serviçaes tanto mais preciosos quanto 
mais intelligentes, e nos lembramos de que uma sordida e estupida am- 
bição é o mobil unico de toda a guerra, chegamos a sentir pela sorte 
dos famosos animaes tanta piedade quanta é a repulsão que sentimos 
pelos que os matam. Pois o valor do marfim que podem fornecer as de- 
fezas é motivo que justifique uma guerra traiçoeira e indisciplinada em 
que se matam novos e velhos, machos e femeas e que, mais cêdo ou 
mais tarde, ha de forçosamente accarretar a extincção das especies? E 
não se creia que é o sentimento que nos revolta; colloquemo-nos n'um 
campo exclusivamente utilitario e veremos quanto, mesmo sob este novo 
ponto de vista, é injustificavel a perseguição aos elephantes. Não é certo 
que poderiamos, se ouvissemos os conselhos da prudencia e do simples 
bom senso, utilisar dos elephantes uma enorme multidão de serviços que 
no estado captivo elles são capazes de nos fornecer pela intelligencia e 
pela força e ainda, depois d'elles mortos, adquirirmos o marfim ? E mesmo 
matando-os para obter esse producto precioso, não valeria mais poupar 
as femeas, estabelecer à caça um tempo defeso e proceder do modo me- 
nos cruel possivel? Podiamos e decerto deviamos fazel-o. A ignorancia 
porém é ainda na especie humana uma triste fatalidade contra a qual 
reagiremos baldadamente por muito tempo. 

Os processos de caça aos elephantes variam muito; um ha porém 
absolutamente revoltante: o que consiste em fazer convergir para um 
certo espaço limitado um grande numero de individuos sobre os quaes 
se despejam balas de um logar elevado. A bondade generosa do va- 
lente elephante que protege uma creancinha deve fazer-nos córar de 
pejo, ao lembrar o espectaculo mesquinho. do homem fraco que à trai- 
ção e a sangue frio aponta sobre o que não provoca. E note-se que este 
processo repugnante de caça nem sempre é empregado com o fim de 
obter as defezas do elephante; fazem uso d'elle alguns caçadores euro- 
peus simplesmente para poderem escrever na carteira de viagem: «No 
dia... do mez... matei 20 elephantes.» Pensam cobrir-se de gloria! 
Gordon Cumming conta que tendo atirado sobre um elephante e partin- 
do-lhe o omoplata por fórma que inutilisou todos os movimentos do ani- 
mal e o atirou por terra, desejou saber quaes os pontos mais vulnera- 
veis do pachyderme e approximando-se lhe despejou em regiões diffe- 


rentes do corpo um grande numero de balas. «Lagrimas abundantes, 
VOL. III 13 


194 HISTORIA NATURAL 


diz o mesmo viajante, correram em fio dos olhos do pachyderme; abriu 
lentamente as palpebras e fechou-as de novo. Algumas convulsões agi- 
taram-lhe o corpo; depois deixou pender a cabeça para o lado e-—mor- 
reu.» Como isto é revoltante e deploravel! Que se faça soffrer um ani- 
mal para tirar d'esse soffrimento uma conclusão scientifica, que se lhe 
retalhem em vida as carnes e se lhe mergulhe um escalpello nos orgãos, 
como se faz nos gabinetes de physiologia, para esclarecer uma questão 
biologica, para encontrar uma base de discussão pathologica, para ex- 
plicar phenomenos ignorados ou para descobrir uma verdade, compre- 
hende-se e justifica-se: é um mal relativamente pequeno e em troca de 
um bem enorme. E, de resto, o vivissector, postos os olhos do intendi- 
mento no fim scientifico das suas experiencias, esquece-se das dôres do 
animal, como o operador não ouve os gritos do operado, fixa, como tem, 
a attenção, no resultado humanitario da sua obra. Tudo isto, que os 
ignorantes chamam crueldade, se justifica e merece um outro nome. 
Mas ferir um animal sem um fim alto, sem uma utilidade qualquer, vêl-o 
muribundo, perdido e incapaz de uma lucta e ir ainda n'estas condições 
perturbar-lhe e tornar-lhe mais dolorosa a lenta agonia para friamente 
examinar as lagrimas abundantes que elle chora, o abrir e fechar das 
palpebras que precede a morte e a convulsão final que lhe saccode o 
corpo ao expirar, é, sem duvida, revoltante, é cruel. 

O caçador de elephantes, digno d'este nome, procura os animaes 
nas florestas, vae-lhes ao encontro. N'estas condições, o caçador expõe 
a vida, porque nada lhe garante que todos os tiros serão empregados e 
que não ha de ser victima da colera do animal que tenha ferido sem con- 
seguir matal-o. A caça é assim uma perseguição e não um assassinato. 

Na Africa, segundo Chaillu, os negros entrelaçam ramos de cipó à 
maneira de nós corredios onde os elephantes são apanhados; feito isto 
matam a golpes de lança os maiores e mais fortes. O processo empre- 
gado n'outras regiões consiste em abrir fossos onde caem os elephantes 
em perigrinações nocturnas e onde morrem de fome ou são abatidos a 
golpes de lança pelos negros. 

Existem ainda outros processos de caça que, todavia, não merecem 
descripção especial, porque fundamentalmente se approximam dos que 
acabamos de mencionar. 

Attrahentes e dignos de menção especial são os processos empre- 
gados para reduzir ao captiveiro os elephantes selvagens de que o ho- 
mem deseja utilisar todos os serviços de que são capazes, em troca de 
boa alimentação e de bom tratamento. O fim a que visam esses proces- 
sos é, como se vê, essencialmente humano e civilisador. Civilisador, di- 
zemos, na rigorosa accepção da palavra, porque um dos meios empre- 
gados para se reconhecer o estado do adiantamento de um povo é o de 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 195 


inquirir até que ponto chegou o dominio d'esse povo sobre os elementos 
da fauna indigena. 

Os indios passam justamente por mestres n'esta arte; entre elles os 
caçadores de elephantes formam uma verdadeira casta. É admiravel a 
prudencia, a astucia e o arrojo com que procedem. Para dar idéa da ha- 
bilidade d'estes homens, basta dizer que elles roubam um elephante ao 
bando ou familia; parece incrivel que isto se faça, mas a verdade é 
que o conseguem os caçadores indianos. À sagacidade d'elles é perfeita- 
mente admiravel. «Seguem a pista de um elephante, diz Brehm, como um 
bom cão segue a de um veado. Reconhecem desde logo a força do bando, 
quaes as dimensões dos maiores e quaes as dos menores elephantes que 
o compoem. Signaes que escapam ao olho de um europeu são para elles 
como um livro em que léem correntemente.» * O mesmo auctor accres- 
centa: «N'elles a coragem rivalisa com a prudencia; fazem do elephante 
o que querem: espantam-o ou encolerisam-o à vontade.» 2 

A unica arma de que -estes caçadores se munem é um laço solido 
de pelle de veado ou de pelle de bufalo que elles prendem ao pé do ele- 
phante que querem apanhar. É admiravel e constitue para nós um ver- 
dadeiro enygma o saber como é que estes homens conseguem deslisar 
até junto de um animal tão timido como é o elephante. Em quanto um 
dos caçadores prende o pé do elephante com o laço, outro fixa a extre- 
midade livre do mesmo laço a uma arvore. O elephante, uma vez ca- 
ptivo, torna-se furioso; não obstante os caçadores conseguem domal-o 
em pouco tempo. Primeiro empregam os meios atterradores e depressi- 
vos, acendendo fogueiras, privando o pachyderme de comida e de be- 
bida, não lhe consentindo um momento de repouso, fatigando-o por to- 
dos os processos imaginaveis. Mais tarde mudam de plano e principiam a 
usar em relação ao pachyderme do melhor tratamento possivel. Pelo em- 
prego alternado d'estes processos, conseguem os caçadores reduzir á 
domesticidade os elephantes que os primeiros dias de captiveiro tinham 
enfurecido. Os europeus não podem acompanhar os caçadores indigenas 
nas excursões que acabamos de mencionar; a falta de pericia transtor- 
naria todos os planos d'estes ultimos. O naturalista é pois forçado, em 
parte, a contentar-se com simples narrações. 

Ha um outro genero de caçadas em que se apanham ás vezes cen- 
tenas de elephantes; nestas pode o europeu tomar uma parte activa. 
Tennent descreve-as assim: «Para estas caçadas destina-se a epocha que 
succede à colheita do arroz, porque então é menor o destroço nos cam- 


! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. TIT. 
2 Tbid. 


196 HISTORIA NATURAL 


pos. O povo, além da diversão que naturalmente lhe proporcionam estas 
caçadas, tem todo o interesse em vêr diminuir o numero de elephantes, 
por causa dos estragos que elles ás vezes lhes causam nas herdades e 
nos campos. Pelo seu lado, os sacerdotes incitam os caçadores porque 
os elephantes lhes comem as folhas de uma arvore tida em conta de sa- 
grada e, além d'isso, porque desejam possuir alguns d'estes pachyder- 
mes para o serviço dos templos. 

«Os ricos ostentam orgulhosamente n'estas caçadas não só o grande 
numero de creados que os servem, mas ainda as qualidades de elephan- 
tes domesticos que emprestam sempre n'estas occasiões. A gente pobre 
emprega-se durante semanas em metter estacas na terra, em abrir ca- 
minhos por entre os juncaes ou em substituir os batedores. 

«O logar da caçada escolhe-se sempre nas visinhanças dos caminhos 
mais frequentados pelos elephantes, perto de logares em que haja agua 
para que os animaes possam beber durante o cêrco e tenham onde se 
banhar em quanto se procede à sua domesticação. Quando n'um logar 
se trata da construcção do corral, ! poupam-se as arvores e o matto, 
sobretudo do lado da entrada, pela necessidade de encobrir a paliçada 
que o fecha. As estacas que se empregam teem, pouco mais ou menos, 
trez metros e trinta centimetros de espessura; enterram-se a um metro 
de profundidade, ficando acima do solo uma altura de quatro ou cinco 
metros. De uma estaca a outra medeia o espaço preciso para poder pas- 
sar um homem; as estacas entrelaçam-se depois com bambus e cipós e, 
para maior solidez, escoram-se. O recinto em que estive tinha pouco 
mais ou menos, cento e cincoenta metros de comprido sobre setenta e 
cinco de largo. Numa das extremidades ficava a entrada que em poucos 
momentos se podia fechar; os dois lados da paliçada que fechava o cor- 
ral, continuavam-se até uma certa distancia para além da entrada, com 
o fim de obrigar os elephantes, caso elles não entrassem logo e se des- 
viassem, a penetrarem pela abertura que lhes dava ingresso. Em um re- 
cinto cheio de arvores tinha-se construido um estrado para o governador e 
seus convidados, d'onde se dominava completamente a scena e d'onde 
era possivel assistir a todas as peripecias da caçada, desde o momento 
em que os pachydermes penetrassem no espaço que os esperava. 

«É quasi inutil .dizer que a paliçada, por mais forte que ella fosse 
não resistiria ao elephante que de encontro a ella se precipitasse com 
toda a força de que pode dispor. O caso tem-se dado algumas vezes, re- 
sultando d'ahi escapar todo o bando que se conseguira fazer entrar no 


1 Nome com que se designa o recinto destinado a receber os elephantes sel- 
vagens, que ahi se fecham e conservam presos para domesticar. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 197 


recinto; a verdade porém, é que em geral se conta mais com a timidez 
dos elephantes e com a habilidade dos caçadores do que com a solidez 
dos tapumes. 

«Uma vez concluido o corral, poem-se em campo os batedores, que 
muitas vezes teem de estabelecer um cordão de muitas leguas de com- 
prido, para que o numero de elephantes seja grande. Os batedores pre- 
cisam de ser prudentes e cautelosos, precisam de marchar cuidadosa- 
mente para não espantar os pachydermes e não os fazer seguir direcção 
differente da que se quer que elles sigam. 

«Como os elephantes, essencialmente pacificos e desejosos de que 
os deixem tranquillamente pastar, fogem mal se sentem perseguidos, é 
preciso aproveitar esta circumstancia para pouco e pouco os conduzir na 
direcção do corral. Quando se apresentam muito inquietos, muito agita- 
dos, promptos a fugirem, é então necessario empregar meios mais ener- 
gicos; em torno do logar que occupam accende-se de dez em dez passos 
uma fogueira que se alimenta constantemente, de dia e de noite. 

«O numero de batedores empregados n'estes preparativos de caçada 
eleva-se de dois mil a cinco mil. Abrem caminhos atravez dos juncaes 
para que a linha dos batedores seja continua; os chefes vigiam constan- 
temente que cada um se conserve no seu posto, porque uma negligen- 
cia, o abandono de um ponto pode dar logar a que escape um bando 
inteiro, inutilisando-se assim todo o trabalho de muitas semanas. Quando 
se suspeita que os elephantes tentam forçar um ponto qualquer da linha, 
concentra-se ahi um numero suficiente d'homens para os repellir. Quando 
as duas linhas de batedores chegam ao corral e se fecham, ficam estes 
esperando o signal. 

«Todos estes preparativos tinham consumido dois mezes; tinham 
acabado precisamente quando chegamos, indo tomar assento no estrado 
d'onde podiamos vêr a entrada do corral. Perto de nós, à sombra, es- 
tava um grupo de elephantes domesticados, que os sacerdotes e os prin- 
cipes tinham emprestado para auxiliarem a captura dos elephantes bra- 
vos. Trez bandos differentes, prefazendo o numero de quarenta ou cin- 
coenta individuos, estavam cercados pelas linhas dos batedores e occul- 
tos entre os juncaes visinhos do corral. Era interdicto o ruido; só se 
fallava a meia voz e o silencio dos batedores era tal que se ouvia o 
ruido de um elephante colhendo folhas de uma arvore. 

«De repente foi dado o signal, e o silencio que até então se manti- 
véra na floresta foi perturbado pelos gritos das sentinellas, pelo rufar 
dos tambores e pelas detonações das armas de fogo. O estrepito come- 
çou no ponto mais retirado para se obrigarem os elephantes a tomar a 
direcção do corral. Os batedores que se tinham conservado silenciosos 
até ao momento de passarem por diante d'elles os animaes, juntavam 


198 HISTORIA NATURAL 


então os seus gritos aos dos outros, por fórma que o estrepito crescia 
sempre; os elephantes tentaram por mais de uma vez romper o cordão, 
sendo porém constantemente repellidos pelos gritos, pelos rufos dos tam- 
bores e pelas detonações das armas de fogo. 

«Por fim, o estalar dos ramos e do matto advertio-nos de que se 
approximava o bando, e vimos então o guia sair d'entre os juncaes e 
vir até uns vinte metros da entrada do corral, seguido pelos companhei- 
ros. Passados instantes, todos deveriam entrar no corral; mas de subito 
desviaram-se para a direita e voltaram para os juncaes. O chefe dos ba- 
tedores veio-nos explicar o caso, como resultado da apparição inespe- 
rada de um javali que passára na frente do guia do rebanho. Acrescen- 
tou que em vista da excitação extraordinaria dos elephantes, os caçado- 
res pediam que se adiasse o trabalho para a noite, porque podiam então 
ser-lhes de utilidade o escuro, as fogueiras e os archotes. 

«Ao pôr do sol o espectaculo redobrou de interesse. As fogueiras 
que durante o dia apenas se denunciavam pelo fumo, começaram então 
a brilhar, espalhando nas trevas um clarão avermelhado que se proje- 
ctava phantasticamente sobre os differentes grupos. O fumo subia em 
turbilhões atravez das folhas d'arvores. Ouvia-se, apenas o volitar dos 
insectos. Subitamente ouvio-se rufar um tambor e logo depois um tiro: 
era o signal para recomeçar a caçada. Os batedores principiaram então 
a caminhar, soltando gritos. As fogueiras, alimentadas com folhas seccas, 
levantavam enormes labaredas, formando um vasto cordão luminoso; só 
o corral estava mergulhado na mais densa obscuridade. 

«Por fim os elephantes chegaram. O guia appareceu à entrada, pa- 
rou um instante, olhou em volta e por fim, com a cabeça baixa, preci- 
pitou-se no recinto, seguido de todo o bando. De repente e como por en- 
canto, o corral illuminou-se, porque os caçadores convergiram para elle 
com archotes que acendiam nas fogueiras mais proximas. 

«Os elephantes avançaram até ao fundo do corral e, encontrando 
um obstaculo, recuaram e procuraram ganhar a porta; mas acharam-a 
fechada e o terror attingio n'elles o maior grao. Principiaram então a 
correr em torno do cerrado; mas o fogo cercava-os de todos os lados. 
Procuraram derrubar a estacada; mas os caçadores, agitando os archo- 
tes, obrigaram-os a recuar. Em todos os pontos de que se approxima- 
vam, ouviam estrondo, detonações d'armas de fogo. Junctavam-se então 
em um grupo, conservavam-se immoveis um instante, para de novo ar- 
remetterem como se tivessem descoberto uma abertura. Repellidos po- 
rém ainda uma vez, juntavam-se para repousar no meio do corral. 

«Este espectaculo interessava não só os espectadores, mas ainda os 
elephantes domesticos. Á chegada do bando selvagem, excitaram-se; 
dois principalmente que estavam presos adiante, entraram numa tal agi- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 199 


tação que um d'elles, partindo as correntes, se precipitou ao encontro 
dos companheiros selvagens, derrubando uma arvore bastante grande 
que lhe impediu a passagem. 

«Por espaço de mais de uma hora percorreram os elephantes o cor- 
ral e, sem que o insuccesso os desanimasse, procuraram abalar a esta- 
caria. A cada tentativa frustrada, rugiam de raiva. Esforçavam-se cada 
vez mais por derribar a porta; dir-se-hia estarem convencidos de que 
no logar por onde tinham entrado devia haver uma saída; mas, aturdi- 
dos pelo estrepito, recuavam de novo. Assim as tentativas foram-se tor- 
nando cada vez mais raras e por fim apenas alguns elephantes corriam 
para um ou outro lado, vindo depois junctar-se aos companheiros. Em- 
fim, todo o bando, já fatigado e exhausto, se reuniu n'um unico grupo, 
ficando os mais novos no centro, e se conservou assim, perfeitamente 
immovel, no meio do corral. 

«Tomaram-se as precauções precisas para a noite. O numero das 
sentinellas foi triplicado em volta do recinto em que ficavam os elephan- 
tes e alimentaram-se successivamente as fogueiras para que ardessem 
até ao romper da manhã. 

«Os batedores tinham levantado trez bandos de elephantes, que toda- 
via se conservavam affastados uns dos outros. Um, apenas, tinha pene- 
trado no corral; e como a porta tivesse sido fechada, os outros conser- 
vavam-se fóra, occultos nos juncaes. Para impedir que fugissem, orde- 
nou-se aos batedores que occupassem o seu posto; accenderam-se de 
novo as fogueiras e, uma vez tomadas todas estas medidas de precau- 
ção, retiramo-nos para a nossa pousada que ficava a uns trinta passos, 
pouco mais ou menos, do corral. O primeiro somno foi-nos muitas vezes 
interrompido pelo estrepito dos homens na floresta, pelos gritos com ' 
que repelliam as tentativas dos elephantes para se escaparem. Ao rom- 
per do dia tudo estava tranquillo no corral e, quando o sol appareceu 
no horisonte, deixaram-se extinguir as fogueiras. As sentinellas rendidas 
dormiam perto da paliçada; em torno d'esta havia uma enorme multi- 
dão d'homens e de creanças, armados de chuços e de grandes varas, e 
ao centro os elephantes immoveis, sem forças, exhaustos e assombrados 
pelo terror. Eram nove sómente os prisioneiros, sendo trez muito gran- 
des e dois pequenos, de alguns mezes apenas. Dos grandes, um era um 
vagabundo, que não fazia parte do bando e que não fôra recebido no 
grupo, conservando-se por isso a uma certa distancia. 

«Tratou-se então de fazer penetrar no corral os elephantes domes- 
ticos, para, com auxilio d'elles, se prenderem os selvagens. Prepara- 
ram-se os laços, levantaram-se cautelosamente as traves que fechavam 
a entrada, e dois elephantes domesticos penetraram silenciosamente no 
recinto, cada qual montado pelo seu cornaco e por um creado e levando 


200 HISTORIA NATURAL 


ao pescoço uma forte colleira de que pendiam duas correias de pelle de 
antilope terminadas em nó corredio. Ao mesmo tempo, occulto por traz 
d'elles, entrou o chefe dos laçadores de elephantes, ancioso por apanhar 
o primeiro animal, Era um homem baixo, vivo, de setenta annos apro- 
ximadamente e que tinha recebido já duas distincções honorificas como 
recompensa de bons serviços. Era acompanhado por um filho, tão cele- 
bre como elle pela coragem e pela destreza. 

«N'esta caçada entraram dez elephantes domesticos: dois perten- 
ciam a um templo das visinhanças, tendo sido um d'estes apanhado no 
anno anterior, quatro eram propriedade de principes que moravam nas 
proximidades e os+restantes pertenciam ao estado. Dois destes ultimos 
foram os que primeiro entraram no corral. 

«Um d'estes elephantes domesticos era muito velho e havia mais 
de um seculo que estivera ao serviço do governo hollandez e depois ao 
dos inglezes. O outro, por nome Siribeddi, tinha pouco mais ou menos 
cincoenta annos e distinguia-se pela docilidade de caracter e pela intel- 
ligencia; era uma perfeita sereia e tinha um gosto decidido por estas ca- 
çadas. Adiantou-se silenciosamente no corral, com ar de indiferença, em 
direcção aos elephantes bravos, colhendo pelo caminho algumas folhas 
ou algum pedaço de herva. Assim se approximou dos elephantes selva- 
gens que lhe vieram ao encontro; o guia d'estes ultimos acariciou-lhe a 
cabeça com a tromba e voltou lentamente na direcção dos companheiros. 

«Siribeddi seguiu vagarosamente o guia do bando selvagem e foi 
postar-se perto d'elle; o velho laçador pôde então, passando por baixo 
do ventre de Siribeddi, e sem ser visto pelo elephante guia, prender a 
uma perna d'este o laço que já trazia preparado. O pachyderme deu logo 
pelo perigo e, sacudindo o lago voltou-se contra o cagador, que teria 
pago cara a temeridade se Siribeddi o não protegesse com a tromba, re- 
pellindo ao mesmo tempo o aggressor. Ainda assim, ficou ligeiramente 
ferido, sendo forçado a retirar-se e vindo substituil-o o filho, por nome 
Raughanie. 

«Os elephantes selvagens dispozeram-se em circulo, com a cabeça 
voltada para o centro; dois elephantes domesticos introduziram-se cora- 
josamente no meio do grupo, indo cada um d'elles colocar-se ao lado 
do maior dos congéneres selvagens, que era um macho. Este não oppoz 
resistencia à visinhança dos companheiros domesticos e limitou-se a ma- 
nifestar o seu descontentamento levantando alternadamente os membros. 
Raughanie avançou então, levando entre as mãos o nó corredio de que 
uma das extremidades se achava presa à colleira de Siribeddi. Aprovei- 
tando o momento em que o elephante levantava um dos membros pos- 
teriores, passou-lhe o nó, apertou-o e fugiu. Siribeddi, affastando-se do 
grupo e puxando pela corda, conseguiu affastar o animal preso dos com- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 201 


panheiros, ao mesmo tempo que o outro elephante domestico se mettia 
de permeio entre o prisioneiro e os outros pachydermes selvagens. 

«Era preciso prender o elephante laçado a uma arvore; mas isso 
não podia conseguir-se sem o arrastar a uns vinte metros de distancia, 
o que se não fez sem uma energica resistencia da parte d'elle, que ru- 
gia e calcava aos pés pequenas arvores como se fossem caniços. Sinri- 
beddi, puxando-o para si, conseguiu passar a corda em volta de uma 
arvore, mantendo-a sempre tensa. Para enrolar a corda foi-lhe preciso 
usar de muita prudencia. N'esta operação era forçado a passar entre a 
arvore e o elephante que devia conservar-se immovel; isto parecia im- 
possivel de obter-se, mas o segundo elephante domestico, notando a dif- 
ficuldade, veio prestar-lhe auxilio. Obrigando o captivo à recuar, conser- 
vou-o distante da arvore, em quanto Siribeddi enrolava a corda, sempre 
tensa, ao tronco, vindo o homem depois acabar de prendel-o. Um se- 
gundo laço foi ainda passado em torno do outro membro posterior e en- 
rolado tambem à mesma arvore. Por fim as duas pernas foram ligadas 
com cordas embebidas de gordura para evitar ferimentos e uma suppu- 
ração ulterior. 

«Os dois elephantes domesticos deram ainda occasião a que Rau- 
ghanie passasse o laço em torno dos membros posteriores do mesmo pa- 
chyderme e que o prendesse a uma outra arvore. Terminada a captura, 
caçadores e elephantes domesticos marcharam em procura de nova vi- 
ctima. Emquanto os dois elephantes domesticos se conservaram junto 
d'elle, o pobre captivo conservou-se immovel, sem fazer tentativas de 
resistencia; logo porém que se viu só, procurou soltar-se para reunir-se 
aos companheiros do bando. Tratava de, com a tromba, desfazer os nós 
e ora recuava para desprender os membros anteriores, ora avançava 
para desprender os de traz; os ramos da arvore tremiam, como se os 
agitasse a tempestade. Rugia, e umas vezes levantava ao ar a tromba, 
outras deitava ao chão a cabeça e fazia pressão com a tromba sobre o 
solo como se quizesse enterral-a. Ainda por algumas horas se debateu, 
erguendo a cabeça e os membros anteriores; por fim, perdida de todo 
a esperança, deixou-se ficar immovel, verdadeiro symbolo da prostração 
e do desespero. ? 

«Raughanie, no entretanto, approximára-se do estrado do governa- 
dor para receber o premio concedido ao que prendesse o primeiro ele- 
phante; recebeu-o uma chuva de rupias, depois do que voltou à sua pe- 
rigosa tarefa. j 

«O bando formava como que um todo compacto. Apenas de quando 
em quando, algum elephante, mais impaciente, se separava dos compa- 
nheiros alguns passos e olhava em torno. Os outros seguiam-o primeiro 
devagar, depois mais rapidamente e por fim todo o bando tentava mais 


202 HISTORIA NATURAL 


uma vez transpôr a paliçada. Estas tentativas tinham simultaneamente 
alguma coisa de magestoso e de ridiculo; apesar de toda a força empre- 
gada, a marcha dos elephantes era pezada e vacillante, e o impeto da 
investida transformava-se subitamente, de cada vez, n'uma retirada ti- 
mida. Arremessavam-se com o dorso arqueado, a cauda levantada, as 
orelhas retezadas, a tromba no ar, rugindo e soprando: um passo mais, 
e teriam atirado por terra a paliçada; de subito porém estacavam diante 
de umas varas brancas que lhes punham em frente e, espavoridos pelos 
gritos dos caçadores, corriam em torno do corral, acabando por volta- 
rem ao primitivo pouso. Os sitiantes, pela maior parte rapazes e crean- 
ças, denotavam uma grande perseverança, correndo promptamente ao 
ponto atacado pelos elephantes, apresentando-lhes as varas ás trombas 
e obrigando-os a fugir à força de gritos. 

«O segundo elephante que se separou do bando era uma femea e 
foi apanhado como o primeiro; mas quando lhe passavam a corda por 
um dos membros anteriores, apanhou-a com a tromba, levou-a á bocca 
e tel-a-hia cortado se um dos elephantes domesticos lhe não tivesse 
posto um pé em cima, baixando assim a laçada. Os caçadores escolhiam 
sempre, para prender, o elephante que commandára os companheiros na 
ultima tentativa de fuga; a captura d'elle não levava, termo medio, mais 
de trez quartos d'hora. 

«Um facto verdadeiramente singular é que os elephantes bravos não 
procuram nunca attacar ou atirar a terra os cornactas que vão montados 
nos elephantes domesticos, de sorte que embora estes se introduzam no 
meio do bando selvagem, o cavalleiro nada tem a soffrer. «Parece, diz 
o capitão Skinner n'uma carta, que se pode penetrar n'um corral, fican- 
do-se completamente ao abrigo de qualquer attaque por parte dos ele- 
phantes bravos, desde que se vae montado n'um individuo domestico. 
Bu vi uma vez no meio de um bando de elephantes selvagens o velho 
principe Mollegadde montado n'um elephante domestico tão pequeno que 
a cabeça do principe mal se nivelava com o dorso dos pachydermes. Eu 
tremia pela sorte do velho; nada porém lhe aconteceu.» 

«O bando, uma vez perdidos os chefes, redobrou de excitação; mas, 
qualquer que fosse o pezar d'estes animaes ao verem os companheiros 
presos, a verdade é. que não fizeram uma unica tentativa para os solta- 
rem. Approximavam-se d'elles, entrelaçavam-se mutuamente as trombas, 
lambiam-lhes o pescoço e os membros, davam as mais inequivocas pro- 
vas de tristeza, mas não tentaram uma só vez partir os laços que os 
prendiam. 

«ira então que podiam vêr-se as differenças de caracter d'estes 
animaes. Uns desistiam, deixavam-se ficar prostrados depois de uma 
fraca resistencia; outros atiravam-se ao chão com tamanha violencia que 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 203 


qualquer outro animal teria morrido. Descarregavam sobre as arvores 
proximas toda a colera; arrancavam-as pela raiz, partiam-lhes os ramos, 
destacavam-lhes as folhas e dispersavam tudo isto em volta de si. Alguns 
conservavam-se perfeitamente silenciosos; outros rugiam com furia, ex- 
pelliam gritos, até que por fim exhaustos, desesperados, deixavam ouvir 
apenas uns sons surdos e pungitivos. Muitos conservavam-se deitados, 
immoveis, deixando perceber o intimo soflrimento apenas pelas lagrimas 
choradas. Outros, no cumulo da raiva, executavam os mais singulares 
movimentos e tomavam attitudes que a nós nos pareciam tanto mais sur- 
prehendentes quanto é certo que tinhamos o elephante na conta de um 
animal pezado e pouco agil. Vi um que tinha a cabeça em terra, os mem- 
bros anteriores alongados para diante e o corpo dobrado de modo tal 
que os membros posteriores encontravam-se tambem adiante. 

«Agitavam a tromba para todos os lados, mas sem nunca se ferirem, 
ora batendo com ella no solo, ora alongando-a, ora recurvando-a como 
uma mola. Quasi todos calcavam o chão com as patas de diante e apa- 
nNhavam com a tromba porções de terra com que se cobriam. 

«O comportamento dos elephantes domesticos era verdadeiramente 
notavel; revelavam a mais perfeita intelligencia em todos os movimen- 
tos, sabiam o fim que se deviam propôr e os meios a pôr em pratica 
para o conseguir. Esta caçada parecia divertil-os muito, não por mal- 
dade, mas porque constituia para elles um passatempo. Não era me- 
nos surprehendente a prudencia de que usavam. Nunca o seu zelo 
foi em demasia, nunca provocaram desordem, nunca se enredaram nos 
laços, nunca, emfim, nas luctas que foram obrigados a sustentar feri- 
ram uma só vez os elephantes captivos. Mais de uma vez, quando al- 
gum d'estes estendia a tromba para agarrar o laço no momento de lh'o 
passarem aos membros, Siribeddi desviava-o. Um dos elephantes que já 
estava preso por uma perna, não consentia que lhe prendessem a outra, 
porque no momento em que lhe iam a passar o laço pousava o pé em 
terra. Então Siribeddi, aproveitando uma das occasiões em que o pachy- 
derme levantou a perna, collocou-lhe o pé por baixo e assim deu tempo 
a que O caçador preparasse o nó e prendesse o insubordinado. Dir-se-hia 
que os elephantes domesticos se divertiam com o terror dos companhei- 
ros selvagens, mettendo a ridiculo a resistencia d'estes. Se os elephantes 
bravos não queriam marchar para diante, os domesticos empurravam-os, 
se queriam fugir, retinham-os e se algum se deitava ao chão, immedia- 
tamente um dos elephantes domesticos ajoelhava sobre elle e o subju- 
gava até que houvesse tempo de prendel-o. 

«De todos os elephantes domesticos, um só, o mais temido pelo 
bando selvagem, possuia inteiras as defezas. Todavia nunca d'ellas se 
serviu como armas oflensivas e apenas as empregava ou para separar 


204 HISTORIA NATURAL 


dois elephantes por entre os quaes não podia introduzir a cabeça ou para 
mais facilmente levantar algum que se tivesse deitado. Ás vezes, se al- 
gum companheiro não conseguia dominar qualquer dos elephantes selva- 
gens, approximava-se elle e isto bastava para aterrar o insubordinado e 
vencer toda a resistencia. 

«Nestas caçadas a coragem e a pericia dos homens occupa um lo- 
gar secundario; o primeiro, o mais" proeminente pertence sem contesta- 
ção aos elephantes domesticos pelas altas qualidades que os caracteri- 
sam. É verdade que os caçadores precisam de ter uma vista perspicaz 
para aproveitar o mais ligeiro movimento do animal e passar-lhe o laço, 
manobra que requisita uma enorme destreza; não é menos verdade po- 
rém que o mais habil e o mais ousado dos caçadores não conseguiria, 
sem o auxilio dos elephantes domesticos, levar a cabo a empreza. 

«Estavam presos já todos os elephantes bravos, quando ao longe se 
ouviu o som de uma flauta, que sobre muitos dos captivos produziu uma 
singular sensação. Fitavam as orelhas na direcção do instrumento e os 
accordes musicaes calmavam-lhes a agitação. Os mais novos apenas con- 
tinuavam a mugir, lastimando a liberdade perdida, erguiam a tromba, 
apanhavam tudo o que encontravam ao seu alcance e levantavam em 
torno de si nuvens de pó. 

«Ão principio os mais velhos recusaram o alimento; alguns porém 
não souberam resistir à tentação que lhes apparecia sob a forma appe- 
titosa de uma arvore bem copada e começaram desde logo a partir os 
ramos e a mastigal-os tranquillamente. 

«Se, por um lado, a prudencia, o socego e a à inteligencia dos ele- 
phantes A drsntiBos nos surprehenderam, por um outro, não nos admi- 
rou menos o comportamento digno dos prisioneiros. Tivemos occasião de 
presenciar o contrario do que nos costumam afirmar os caçadores, 
quando nos pintam estes animaes como seres traiçoeiros, indomaveis e 
vingativos. De certo que, irritados e atormentados pelos inimigos, elles 
fazem uso da força e da intelligencia para escaparem ou para se defen- 
derem; mas no corral manifestaram apenas innocencia e timidez. Depois 
de uma lucta em que não manifestaram a menor disposição para actos 
de violencia e de vingança, abandonaram-se passivamente e sem espe- 
rança à sua sorte. A sua attitude fazia piedade, a sua dôr commovia e 
os surdos gemidos que soltavam iam direitos ao coração. Ninguem teria 
consentido que os atormentassem inutilmente ou que os maltratassem. 

«Os outros bandos foram, como o primeiro, impellidos para o cor- 
ral; e a entrada d'elles inquietou muito os captivos. O segundo bando 
entrou de dia e mais rapidamente que o primeiro; era conduzido ou 
guiado por uma femea de trez metros de altura. N'uma tentativa que 
esta fez para fugir, só foi possivel detel-a, atirando-lhe à cabeça um ar- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 205 


chote acceso. Os que vinham chegando não prestavam a minima atten- 
ção aos prisioneiros por cima de cujo corpo passavam. 

«A femea que conduzia o bando foi a primeira que se prendeu a 
laço. Quando lhe amarraram uma das pernas, reconheceu-se que ella pos- 
guia uma força superior à de Siribeddi. Este, para poder aguentar com 
a corda que a prendia, viu-se forçado a deitar-se-lhe em cima com todo 
o corpo. No entretanto'o elephante domestico que tinha defezas, obser- 
vando isto, foi collocar-se:-diante do animal captivo, forçando-o a recuar 
passo a passo, até que fosse possivel prendel-o a uma arvore. 

«Por ultimo, tratou-se de desligar os prisioneiros e de conduzil-os 
ao rio. Tendo-se-lhes lançado ao pescoço colleiras feitas de fio de côco, 
cada um d'elles foi collocado entre dois elephantes domesticos, tambem 
munidos de fortes colleiras, aos quaes se ligavam os prisioneiros. Depois 
tiraram-se a estes as cordas dos pés e conduziram-se para 0 rio onde 
se lhes deu banho; trazidos depois à floresta, foram presos às arvores, 
ficando cada um entregue a um guarda encarregado de lhe dar de comer. 

«O elephante não é difficil de domar. Ao fim de tres dias começa a 
comer com appetite, e dá-se-lhe então para companheiro um elephante 
domestico. Dois homens acariciam-lhe o dorso e fallam-lhe com bondade. 
À principio enfurece-se e dá com a tromba para todos os lados; mas os 
homens aparam-lhe a pancada na ponta de chuços até que a tromba seja 
ferida de modo que o animal renuncie a empregal-a como arma offensiva 
e aprenda a reconhecer a superioridadeido homem. Os elephantes do- 
mesticos auxiliam-nos grandemente na tarefa de educar o recempreso. 
Ao fim de trez semanas basta mostrar-lhe o chuço com que tem sido cas- 
tigado para o conduzir ao banho. As dimensões do animal parece que 
não influem sobre o tempo preciso para o educar; os machos resistem 
mais aos processos educativos do que as femeas. Os que se insubordi- 
nam mais ao principio são precisamente os que melhor e com mais faci- 
lidade se domam e que de ordinario se conservam mais submissos e 
obedientes. | 

«Ao fim de dois mezes, termo medio, a presença dos elephantes 
domesticos torna-se inutil e o cornaca pode sem receio montar o ani- 
mal; ao fim de quatro mezes pode-se submetter o animal ao trabalho, o 
que é preciso nunca fazer antes, porque mais de uma vez se tem visto 
elephantes, aliás fortes, cairem mortos quando pela primeira vez se car- 
regam. «Parte-se-lhes o coração», dizem os indigenas; nós ignoramos a 
causa d'este facto singular.» 1 


1 Vid. Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 717 e seguintes, 


206 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


O elephante captivo é um animal obediente e que à ordem do ho- 
mem chega a beber os mais horriveis medicamentos que os alveitares 
lhe propinam e se submette resignadamente ás mais dolorosas opera- 
ções cirurgicas. A voz do conductor habitual é sufficiente para o guiar 
por toda a parte. 

Quando é preciso submetter conjunctamente dois elephantes a um 
mesmo trabalho, o guia consegue harmonisar-lhes os movimentos por 
meio de um canto particular. 

Quando se utilisa o elephante como besta de carga, é preciso tra- 
tal-o com muita doçura e com muito cuidado, por que a pelle d'este pa- 
chyderme é extremamente sensivel, fere-se com facilidade e são terri- 
veis e muito duradouras as suppurações consecutivas. 

Houve um tempo em que na Europa eram muito vulgares os ele- 
phantes da Africa; hoje são rarissimos. Os que mais se encontram são 
da Ásia. Isto provém de que actualmente a caça dos elephantes na Africa 
se faz de ordinario com armas de fogo, não se apanhando estes animaes 
vivos, ao passo que na Ásia persistem as caçadas que descrevemos, ci- 
tando as palavras de testemunha presencial. 


USOS E PRODUCTOS 


Os elephantes prestaram n'outro tempo ao homem serviços que já 
hoje não prestam, porque se lhes não exigem. Estão n'este caso os ser- 
viços de guerra outr'ora tão importantes e hoje nullos. 

Em geral os elephantes empregam-se na caça, nas cerimonias reli- 
giosas dos templos 'da Asia, e ainda, as mais das vezes em trabalhos 
grosseiros, pezados, como o transporte de materiaes. Desempenham sem- 
pre as tarefas que lhes incumbem, com intelligencia, com cuidado, sem 
ser necessario que o cornaca os excite ao trabalho. Hoje porém os ele- 
phantes são pouco procurados como auxiliares do trabalho do homem; 
são sobretudo perseguidos e mortos, como dissemos já, por causa do 
marfim dos dentes incisivos superiores, ou defezas. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 207 


Tempo houve em que os principes africanos cercavam os seus pa- 
lacios com verdadeiras sebes de dentes d'elephantes; hoje porém essas 
muralhas preciosas tornaram-se raras, porque o marfim é principalmente 
mandado para a Europa onde tem um largo consumo. 

A maior parte do marfim que existe no commercio provém da 
Africa; a Siberia fornece tambem, mas em menor quantidade, o marfim 
fossil, de que já fallamos. A Asia exporta uma pequena quantidade. 


OS TAPIROS 


Esta familia comprehende um genero unico e trez especies, cujos' 
individuos se distinguem por dimensões relativamente pequenas e um 
corpo bem proporcionado. Teem a cabeça comprida e estreita, o pescoço 
fino, a cauda rudimentar e os membros vigorosos e de comprimento me- 
dio. As orelhas são levantadas, curtas e muito largas e os olhos peque- 
nos e obliquos; o labio superior é um pouco prolongado em forma de 
tromba. A pelle é espessa e lisa, sem escamas nem pregas profundas, 
como nos outros pachydermes se encontram. Os pêllos são curtos e es- 
pessos. 

Os tapiros teem quarenta e dois dentes: trez pares de incisivos e 
um par de caninos em cada maxilla, sete pares de mollares na maxilla 
superior e seis na inferior. O esqueleto é semelhante ao dos outros pa- 
chydermes, differindo apenas pela conformação menos pezada dos ossos. 
Teem vinte vertebras dorsaes, quatro lombares, sete sagradas e doze 
caudaes. À caixa thoracica é constituida por oito pares de costellas; tem 
ainda mais doze falsas costellas. A região facial é mais extensa que a re- 
gião craneana, que é muito reduzida. Os ossos nasaes são muito salien- 
tes, as arcadas zygomaticas fortemente recurvadas para baixo e para 
diante, as orbitas muito grandes e as fossas temporaes muito profundas. 


208 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O genero unico da familia abrange trez especies, das quaes uma é 
conhecida ha muito tempo e as outras ha poucos annos. Duas das espe- 
cies habitam a America e a terceira a Ásia. Uma das especies só desde 
1830 é conhecida como tal; até ahi era considerada uma simples varie- 
dade do tapiro americano. 


O TAPIRO ASIATICO OU DE DORSO BRANCO 


É o maior de todos os animaes da familia. Differe dos seus congé- 
nerés principalmente em ter a face mais estreita, a cabeça mais arre- 
dondada, a tromba mais forte e mais comprida, os membros mais vigo- 
rosos e a pelle branca n'uma parte da sua extensão. Segundo Brehm, a 
estructura da tromba é tambem caracteristica, porque ao passo que a do 
tapiro americano procede evidentemente do nariz e é arredondada ou 
tubulada, a da especie asiatica constitue uma continuação insensivel da 
parte superior do focinho e, como a do elephante, é arredondada supe- 
riormente e plana na face inferior; além d'isso ella termina por um pro- 
longamento digitiforme bem saliente, o que é mais um ponto de seme- 
lhança com a tromba do elephante. 

A côr do tapiro asiatico é muito especial: a tinta fundamental é o 
negro; no entanto o dorso é branco e alguns pontos do corpo são acin- 
zentados. O negro eo branco do manto formam um contraste que des- 
perta a attenção. 

Brehm que possuia uma femea viva, animal tão raro nas collecções, 
dá-nos as seguintes dimensões, colhidas por elle no seu exemplar: 
dois metros e quarenta centimetros de comprido desde a extremidade da 
tromba (estando esta contraída) até à extremidade da cauda; setenta e 
oito centimetros de comprimento da cabeça, medida desde a ponta da 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 209 


tromba até atraz das orelhas; seis centimetros de extensão para a tromba, 
quando contraída e quinze, quando alongada; sete centimetros de exten- 
são para a cauda; emfim, noventa e sete centimetros de altura ao nivel 
da espadua e cento e dois ao nivel do sacro. 


COSTUMES 


Os habitos de vida do tapiro asiatico em liberdade são inteiramente 
desconhecidos e as observações dos seus costumes em captiveiro insuf- 
ficientissimas. Já não acontece o mesmo em relação ao tapiro americano, 
cujos costumes estão hoje minuciosamente descriptos em muitos livros. 


O TAPIRO OU ANTA D'AMERICA 


Esta especie é conhecida ha muito mais tempo que qualquer das 
outras do mesmo genero. Pouco depois da descoberta do novo-mundo, 
fallaram os viajantes d'este animal embora de um modo extremamente 
incorreto. À primeira descripção exacta do tapiro americano data do se- 
culo xvrrr. A essa descripção, feita por Marcgrav de Liebstadt, juntaram 
naturalistas posteriores observações e minuciosidades notaveis, de sorte 
que a especie é hoje uma das mais bem conhecidas entre todas as da 
ordem dos pachydermes. 


14 


VOL, III 


210 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


Estabelecendo anteriormente as differenças capitaes entre o tapiro 
asiatico e o da America, dissemos uma parte dos caracteres d'este ul- 
timo animal. Pouco nos resta acrescentar. 

O tapiro americano é coberto por um pêllo muito uniforme, prolon- 
“gado apenas sobre a nuca em fórma de uma crina curta e aspera. A côr 
geral e dominante é um pardo escuro. Os lados da cabeça, o pescoço e 
o peito são um pouco mais claros; os pés, a cauda e a linha media do 
dorso e da cabeça são bastante escuros e as orelhas apresentam uma 
cercadura de um pardo muito claro. Encontram-se tambem exemplares 
amarellados, completamente pardos e cobreados ou trigueiros. Nos indi- 
viduos muito novos só o dorso é escuro; a face superior da cabeça é 
coberta de manchas brancas, arredondadas e de cada lado do corpo en- 
contram-se quatro ordens ou series não interrompidas de pontos claros 
que se prolongam pelos membros. Á medida que o animal cresce, estas 
manchas alongam-se primeiro e acabam ao fim de dois annos por desap- 
parecer completamente. Segundo Tschudi, este tapiro pode attingir dois 
metros de comprimento e um de altura. Um facto curioso: n'esta espe- 
cie a femea é maior que o macho. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie encontra-se n'uma grande parte da America do Sul, 
desde o isthmo de Panamá até perto de Buenos-Ayres e desde o Oceano 
Atlantico até ao Oceano Pacifico. É muito vulgar no Brazil. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 211 


COSTUMES 


O tapiro ou anta da America pertence ao numero dos animaes que 
evitam cautelosamente os logares descobertos e vivem de preferencia 
nas florestas. 

«Abre atravez dos mattos, diz Brehm, veredas que difficilmente se 
distinguem das praticadas pelos indigenas; um viajante inexperiente pode 
bem ser tentado a seguil-as. Desgraçado porém, se tal fizer! Poderá ca- 
minhar dias e semanas sem encontrar uma choça, uma creatura humana 
e ainda deverá considerar-se feliz se não morrer à fome e à sêde pelo 
caminho. Os tapiros percorrem estes caminhos em quanto se não sentem 
perseguidos; mas, se presentem algum perigo, precipitam-se na parte 
mais espessa da floresta, derrubando quantos obstaculos se lhes oppo- 
nham à passagem.» ! 

Os tapiros são animaes nocturnos. Tschudi affirma ter percorrido du- 
rante muitos mezes florestas virgens habitadas por milhares d'estes ani- 
maes, sem nunca ter visto um unico durante o dia. Parece que durante 
as horas de sol se escondem nos logares mais espessos da floresta, os 
mais sombrios e os que ficam perto de pantanos onde gostam de se es- 
* pojar. O principe de Wied aflirma-nos que nas florestas mais sombrias e 
completamente inexploradas onde sabem que ninguem irá perturbal-os, 
os tapiros americanos vagueiam mesmo durante o dia. Brehm acceita 
esta afirmação e diz que lhe parece encontrar uma confirmação della no 
facto de passearem os tapiros captivos durante o dia nos cerrados em 
que vivem. Verdade é, acrescenta o naturalista allemão, que elles evi- 
tam os raios do sol, procurando a sombra para fugirem ao calôr ou tal- 
vez mais ainda aos insectos que os atormentam. 

Diz o principe de Wied que os tapiros para evitarem as picaduras 
dos insectos se espojam na vasa, cobrindo-se assim de uma forte porção 
de terra que lhes adhere à pelle, constituindo uma verdadeira couraça. 
Tschudi é mesmo de opinião que as variedades de côr que se notam 
n'estes pachydermes não teem outra origem: são devidas à maior ou me- 
nor porção de terra que lhes cobre a pelle. 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 730. 


212 HISTORIA NATURAL 


Como animaes nocturnos, os tapiros da America saem sómente ao 
fim da tarde em busca do alimento e vaguciam toda a noite, no que fa- 
zem lembrar o javalí. 

Os tapiros da America não são sociaveis; não se reunem em grandes 
bandos, antes vivem, como o rhinoceronte, solitarios. O macho só no 
tempo do cio se junta á femea. É tão raro encontrar familias de tapiros 
que, se acaso deparamos com mais de trez d'estes pachydermes junctos, 
podemos estar certos de que foi uma pastagem abundantissima que os 
attrahiu simultaneamente e sem que uns soubessem dos outros. A agua 
pode dar o mesmo resultado: às vezes à beira de uma corrente encon- 
tram-se muitos tapiros junctos, sem que a reunião se explique por mo- 
tivos de sociabilidade, mas de precisão de satisfazer necessidades iden- 
ticas. 

Nos modos, nos movimentos os tapiros da America recordam os por- 
cos. Teem a marcha lenta e prudente; caminham com a cabeça muito 
perto do chão, agitando continuamente a tromba que fareja para a direita 
e para a esquerda e mexendo sem cessar as orelhas. Ao menor indicio 
de perigo param um instante agitando febrilmente as orelhas e a tromba 
e depois fogem em linha recta sempre, atravez dos mattos, dos pantanos, 
dos cursos d'agua. Por mais rapida que seja a marcha d'estes animaes, 
um bom cão apanha-os dentro de pouco tempo. 

Os tapiros americanos são bons nadadores e mergulhadores; attra- 
vessam rios de uma grande largura e teem o poder de caminhar pelo 
fundo d'agua como o hippopotamo. É o que se tem visto em animaes ca- 
ptivos. 

Relativamente aos sentidos, não pode dizer-se que os tapiros da Ame- 
rica sejam mal dotados, porque, se a vista não é boa, como a pequenez 
dos olhos mesmo indica, o ouvido, o olfato e o tacto são desenvolvidos. 
O orgão deste ultimo é a tromba. A sensibilidade geral é tambem grande, 
como o prova não só o receio do sol e dos insectos, mas ainda o vivo 
prazer que sentem quando se lhes coça a pelle. 

A voz dos tapiros é um assobio agudo, particularissimo que, segundo 
Azara não está de modo algum em relação com as dimensões d'estes ani- 
maes. Este naturalista pensa que os tapiros só se fazem ouvir na epocha 
do cio; Schomburgk, pelo seu lado, affirma que só os tapiros muito no- 
vos assobiam. Segundo Brehm nenhuma d'estas opiniões é exacta; por- 
que, diz este naturalista, que os tapiros tanto americanos como asiaticos, 
que possuiu em captiveiro, assobiavam em todas as idades e em todas 
as epochas. 

Todos os tapiros são animaes timidos e socegados que só em casos 
extremos fazem uso das suas armas. Fogem diante de todos os inimigos, 
mesmo de um cãosito. O homem, cujo poder por experiencia conhece, 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 213 


inspira-lhe um grande terror. Perto das plantações são mais prudentes e 
mais desconfiados do que nas florestas onde os não perturbam. 

Ha casos porém em que os tapiros se defendem com extraordinaria 
coragem e se precipitam sobre o inimigo com furia, procurando atiral-o 
a terra e servindo-se contra elle dos dentes, como faz o javalí. É assim 
que a femea defende os filhos quando os vê ameaçados pelos caçadores ; 
expõe a vida então, esquece toda a prudencia, perde toda a timidez. 

De ordinario os tapiros da America alimentam-se de plantas, princi- 
palmente de folhas d'arvores. No Brazil preferem as folhas novas e tenras 
das palmeiras; quando às vezes penetram nos campos cultivados, mani- 
festam um gosto extraordinario pelas cannas de assucar, pelos melões e 
outros fructos. Nas grandes florestas alimentam-se ás vezes durante mui- 
tos mezes consecutivos de fructos que caem das arvores e, nos panta- 
nos, de plantas aquaticas. Gostam muito de sal e é por isso que nas re- 
giões baixas do Paraguay onde o solo contem sulphato de soda ou clo- 
roreto de sodio, se encontram os tapiros em grande numero; ahi vivem 
lambendo a terra impregnada de saes. 

O cio realisa-se antes da estação das chuvas. Quatro mezes depois 
do coito a femea pare um filho que apresenta maculas e listras como as 
dos javalis; aos quatro mezes estas manchas principiam a desapparecer 
e aos seis o novo animal apresenta o mesmo manto que os paes. 


CAÇA 


Para obter a pelle e a carne dos tapiros faz-se-lhes uma caça per- 
tinaz. Os processos empregados variam muito. Umas vezes utilisam-se 
Os cães que espantam os tapiros e os forçam a sair para fóra da flo- 
resta, dando assim logar a que se lhes atire melhor; outras vezes espe- 
ram-se de embuscada n'algum dos logares por que costumam passar, fa- 
zendo-se fogo sobre elles a uma pequena distancia. Tambem é d'uso no 
Brazil surprehender estes animaes de noite ou de madrugada quando na- 
dam nos grandes cursos d'aguas; os caçadores embarcam em pequenas 
canoas que dirigem a remo na direcção dos nadadores; estes, sentindo-se 
perseguidos, mergulham e os caçadores esperam a occasião de elles vi- 
rem à superficie respirar para então fazerem fogo. Ora, como em vez de 
bala se emprega o chumbo, acontece que este processo de caça é mo- 
Toso e que os tapiros resistem às vezes por muito tempo ao fogo. Os in- 
digenas empregam tambem, em vez de espingardas, as frechas. 


214 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


Os tapiros teem uma apparencia de grande estupidez; em realidade 
porém, são mais intelligentes do que seriamos levados a crêr pelo as- 
pecto exterior. Brehm aflirma que todos os que teem lidado com tapiros 
captivos chegam a convencer-se de que estes animaes offerecem um des- 
envolvimento intellectual superior ao dos rhinocerontes e dos hippopota- 
mos e que lhes permitte rapidamente distinguir as pessoas e reconhecer 
entre muitas o guarda. Segundo Rengger poucos dias de: captiveiro são 
precisos para que os tapiros quando novos se habituem ao homem e à 
casa que elle habita, d'onde não tornarão a sair. 

Os tapiros em captiveiro mudam muito os seus habitos de vida: 
principiam a dormir durante a noite e habituam-se à alimentação do ho- 
mem. De resto, são animaes doceis e que vivem n'uma inalteravel har- 
“monia com os outros animaes, companheiros de prisão. O que lhes fica 
sempre, como residuo dos tempos livres, é uma grande preguiça e uma 
necessidade imperiosa d'agua, em que se banham por largo tempo e com 
verdadeira voluptuosidade todos os dias. Sendo bem cuidados e collo- 
cando-os no inverno n'um logar quente, ao abrigo das intemperies, po- 
dem supportar por muito tempo a perda de liberdade. 

Não se tem até hoje conseguido fazer reproduzir os tapiros em ca- 
ptiveiro. 


USOS E PRODUCTOS 


A pelle do tapiro americano é muito estimada por causa da resisten- 
cia e da espessura que offerece. Tanificada e partida em tiras serve para 
chicotes e cordas de arcos de frechas. 

Os orientaes com a pelle dos tapiros da Asia fazem coberturas e col- 
chões. Elles crêem geralmente que esta pelle não só preserva da humi- 
dade, mas ainda dos maos ares. Estes mesmos povos attribuem ainda às 
unhas e aos péllos do tapiro virtudes medicamentosas. Os cascos são 
aproveitados para castanhetas. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 215 


O TAPIRO VELLOSO 


À descoberta d'esta especie pertence a Hernandez; no entanto, pos- 
teriormente, em 1829 Roulin no seu livro Historia Natural e Recordações 


de Viagem descreveu-a como nova. 


CARACTERES 


O tapiro velloso deve o nome por que é conhecido ao pêllo abun- 
dante que lhe cobre o corpo. A côr geral é um trigueiro escuro; mas à 
metade do labio superior, o bordo do inferior e o mento são brancos e 
as orelhas apresentam uma orla ou cercadura clara. Aos lados do sacro 
existe uma pequena mancha amarella. O tronco e o pescoço são cylin- 
dricos. O animal tem um metro e oitenta centimetros de comprimento e 


noventa de altura. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À àrea de disperção geographica do tapiro velloso não está deter- 
minada. Sabe-se porém que este animal não é raro no Peru a uma alti- 
tude de dois mil e trezentos a dois mil e seiscentos metros. Ahi o matam 
os indigenas que lhe chamam vulgarmente vaca dos montes. 


216 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Nada se sabe ao certo dos habitos de vida do tapiro velloso; alguns 
auctores, fundados sobre as analogias que tem com o tapiro americano, 
créem que os costumes devem ser os mesmos. 


OS HYRACES 


«Nas montanhas desertas e pedregosas da Africa e da Ásia desco- 
bre-se em certos pontos uma população animada. Mamiferos do tamanho 
de coelhos aquecem-se ao sol sobre os rochedos. À apparição do homem 
espanta-os; e então, soltando um grito como o do macaco, deslisam ra- 
pidamente ao longo das pedras, escondem-se em buracos e d'ahi obser- 
vam curiosos e inofensivos, essa extraordinaria apparição. São os hyra- 
ces, tambem chamados teixugos ou baixotes dos montes, os mais peque- 
nos exemplares dos pachydermes ainda vivos.» * Assim principia Brehm 
a descripção destes animaes tão pequenos que à primeira vista ninguem 
os diria representantes de uma classe que abrange os elephantes e os 
rhinocerontes. 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 735. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 217 


CARACTERES 


A classificação dos hyraces foi por muito tempo um problema obs- 
curo, uma questão agitada. Estes animaes, mal conhecidos ao principio 
nos seus caracteres essenciaes, foram alternativamente incluidos na or- 
dem dos roedores e na dos marsupiaes. Tanto basta para que nos con- 
vençamos de que não havia sobre elles um estudo sério. Foi Cuvier quem 
detidamente os estudou, incluindo-os definitivamente na ordem dos pachy- 
dermes. 

As indecisões taxonomicas a proposito dos hyraces comprehendem-se 
perfeitamente, justificam-se quasi. Elles são indubitavelmente pachyder- 
mes. Mas quem havia de acreditar, antes de um minucioso estudo, que 
à ordem que em si contem os maiores mamiferos terrestres, os gigantes 
da creação, como os elephantes, os hippopotamos, os rhinocerontes, per- 
tenceriam animaes da grandeza de um coelho, de pêllo molle e fino, de 
labio superior fendido e tendo por habito deslisar pelos rochedos como 


- um lagarto? Para os naturalistas se convencerem de que essa incorpora- 


ção dos hyraces na ordem dos pachydermes é legitima, era preciso que 
elles conhecessem morphologicamente as especies extinctas, das quaes 
umas possuiam um manto abundante e outras tinham as dimensões mi- 
nimas da lebre ou do coelho. Restabelecida, ao menos em parte, a serie 
dos pachydermes pela descoberta dos fosseis, a opinião de Cuvier foi 
acceite pelos zoologistas. 

O manto dos hyraces é formado por duas ordens de pêllo: um rijo, 
sedoso, outro fino, molle. A columna vertebral é formada de dezenove a 
vinte e uma vertebras dorsaes, nove lombares, cinco sagradas e dez cau- 
daes. Nos membros anteriores os hyraces apresentam cinco dedos, sendo 
o pollegar rudimentar e sem unha; nos membros posteriores os dedos 
são apenas trez. Quanto à dentição os hyraces apresentam dois incisivos 
triangulares, separados por uma lacuna e sete mollares augmentando de 
volume de diante para traz. 


218 HISTORIA NATURAL 


O HYRACE DA ABYSSINIA 


A familia ou genero dos hyraces comprehende muitas especies que 
entre si não apresentam, ao menos sob o ponto de vista dos costumes, 
grandes differenças. Por isso é quasi indifferente descrever uma ou outra.- 

Estudaremos o hyrace da Abyssinia. 


CARACTERES 


Este animal tem meio metro de comprimento. O péllo é molle e denso; 
o dorso é pardo trigueiro e o ventre da mesma côr, mas menos accen- 
luada, mais clara. As orelhas e a cauda desapparecem quasi completa- 
mente no meio do pêllo. Os olhos são grandes, vivos e de uma expressão 
suave. U nariz é nú, negro e conserva-se constantemente humido. Os de- 
dos são curtos, largos, envolvidos, cada um, n'um casco fino, arredon- 
dado, não saliente; comtudo o dedo interno dos pés posteriores tem ape- 
nas uma unha obliqua e recurva. As variações na côr são muito nume- 
rosas. Muitas vezes o ventre é branco amarellado e uma listra branca 
estende-se pela parte anterior das espaduas. 


COSTUMES 


O hyrace da Abyssinia é, como todos os congéneres, um habitante 
das montanhas, principalmente d'aquellas em que abundam os rochedos. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 219 


Ahi passa os seus dias; ahi o vê quem passa pelos valles, deitado volu- 
ptuosamente ao sol. N'isto differe, como o leitor vê, d'outros pachyder- 
mes, uns nocturnos, outros, que não o sendo, evitam comtudo cuidado- 
samente o sol, a luz directa. 

O hyrace da Abyssinia é timido; o mais ligeiro ruido o amedronta. 
Ás vezes, todos os individuos d'uma grande sociedade fogem assustados 
pela presença de um europeu e desapparecem n'um momento. E dizemos 
de um europeu, porque realmente elles não temem os indigenas. Na 
Abyssinia, com effeito, ninguem, nem mahometanos, nem chistãos, perse- 
gue o hyrace; o animal sabe-o bem por experiencia e por isso se appro- 
xima das habitações humanas. Os cães e os outros animaes inspiram-lhe 
em geral um grande terror; e até as pequeninas aves, uma pega ou uma 
andorinha, por exemplo, são motivo sufficiente para o obrigar a fugir. 
O peor inimigo da especie é o leopardo. 

O hyrace da Abyssinia não abandona os rochedos, senão forçado; 
quando a herva está toda comida e é impossivel já encontrar alimento 


“nas rochas das montanhas, familias inteiras de hyraces descem aos valles, 


onde passam a viver por algum tempo, tendo o cuidado de deixar sen- 
tinellas por todas as elevações proximas; ao menor signal de perigo to- 
dos fogem precipitadamente para os rochedos. 

O hyrace da Abyssinia é um excellente trepador, o que se explica 
pela conformação especial dos pés, cuja planta é molle e rugosa; ascende 
um plano fortemente inclinado ou até uma parede vertical com a mesma 
segurança e agilidade com que o faz um reptil. É tambem um bom sal- 
tador; atira-se de rochedo a rochedo, attravessando de um salto distan- 
cias de cinco metros ou mais. N'uma planicie porém, a marcha do hyrace 
é pezada e lembra a dos grandes pachydemes. 

O hyrace da Abyssinia é um animal docil e extremamente sociavel. 
Assemelha-se aos seus gigantescos congéneres em comer extraordinaria- 
mente. N'um certo movimento de lateralidade que dá à maxilla inferior 
quando mastiga, lembra os ruminantes. Bebe muito pouco ou mesmo, se- 
gundo alguns, não bebe. Esta aflirmação basea-se no facto de habitar ás 
vezes o hyraee da Abyssinia montanhas separadas dos cursos d'agua por 
vastas planícies que nunca ninguem o viu attravessar. O orvalho que 
cobre as hervas é-lhe liquido bastante para occorrer à sêde. 

Sobre a reproducção d'este animal nada se sabe de positivo; uns af- 
firmam que a femea pare um grande numero de filhos de cada vez, ou- 
tros asseveram que pare um sómente. Brehm declara não ter podido 
obter a este respeito esclarecimentos dos indigenas. 


220 HISTORIA NATURAL 


CAÇA 


A caça ao hyrace é facil, principalmente nas regiões em que não 
está habitualmente exposto a perseguições. À caça faz-se por processos 
diferentes, consoante se pretende obter o individuo vivo ou morto; em- 
pregam-se as armas de fogo e as armadilhas. De resto, a perseguição a 
esta especie é pouco pertinaz, está muito pouco generalisada. 


CAPTIVEIRO 


Tem-se visto algumas vezes na Europa hyraces captivos. São seres 
inoffensivos, extremamente limpos e que na convivencia do homem con- 
servam de ordinario a timidez que em liberdade as caracterisa. Dei- 
xam-se, é certo, acariciar pelo dono ou por quem lhes dá o alimento, 
chegam mesmo a corresponder ao chamamento d'essas pessoas; mas em 
face de outras quaesquer amedrontam-se e fogem. O conde Mellin com- 


para o hyrace domesticado a um urso que tivesse as dimensões de um 
coelho. 


USOS E PRODUCTOS 


À guerra que n'algumas regiões se move ao hyrace, a caça que se 
lhe faz é promovida particularmente pelo gosto que teem os indigenas 
d'essas regiões pela carne fresca ou secca do animal. 

Os habitantes do Cabo faziam e fazem ainda hoje uma massa produ- 
zida pelo conjuncto dos excrementos e da urina do hyrace, considerada 


e empregada, mesmo na Europa para onde era exportada, como reme- 
dio contra as doenças nervosas! 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 221 


OS PORCINOS. 


As formas exteriores d'estes animaes são geralmente conhecidas; 
não insistiremos na sua descripção. 

Estudemos o esqueleto e alguns orgãos internos de maior impor- 
tancia. 

Na columna vertebral dos porcos ou porcinos encontra-se treze ou 
quatorze vertebras dorsaes, cinco ou seis lombares, quatro a seis sagra- 
das e nove ou vinte caudaes. 

O diaphragma insere-se à decima primeira vertebra dorsal. 

As costellas são estreitas e arredondadas. As maxillas apresentam 
trez ordens de dentes, como em todos os omnivoros. Os incisivos são em 
numero de dois a trez pares; caem geralmente quando o animal enve- 
lhece. Os caninos apresentam ás vezes um extraordinario desenvolvi- 
mento; são triangulares, fortes, recurvos para cima e os inferiores mais 
vigorosos que os superiores. Constituem a mais terrivel arma d'estes 
animaes. Os mollares são comprimidos, multituberculados e em numero 
muito variavel. 

As glandulas salivares são notavelmente desenvolvidas; o estomago 
é arredondado e o intestino dez vezes mais comprido que o corpo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Vivem em todos os pontos do globo, exceptuando a Nova-Hollanda. 


COSTUMES 


Tendo de estudar estes pachydermes em especial, limitar-nos-hemos 
aqui a indicações muito ligeiras. 
Quando vivem em liberdade, preferem sempre as grandes florestas 


2292 HISTORIA NATURAL 


humidas e as regiões pantanosas. Procuram sempre as visinhanças da 
agua, porque o seu maior prazer, a sua irresistivel tendencia, que nem 
mesmo na domesticidade perdem, é espojarem-se na vasa. 

São animaes sociaveis; no entanto nunca as suas aggremiações são 
muito numerosas. 

Teem habitos geralmente nocturnos, de modo que nos logares em 
que se encontram em liberdade, só de noite vagueiam. À corrida é mais 
rapida do que naturalmente se inferiria das formas pezadas, deselegan- 
tes que affectam. Nadam bem, com quanto, de ordinario, não possam 
prolongar por muito tempo este exercicio. 

Dos sentidos, o ouvido e o olfato são os mais desenvolvidos; a vista, 
o olfato e o gosto, são muito obtusos. São estupidos; e a domesticidade 
não implica para elles, como toda a gente sabe, um desenvolvimento no- 
tavel de faculdades. 

São timidos; é certo porém que attacados de frente se defendem co- 
rajosamente. Se lhes perseguem a femea e os filhos, manifestam um arrojo 
enorme, usando então dos caninos com tanta destreza como valentia. 

São rigorosamente omnivoros e são vorazes. Não podem passar sem 
agua. | 

Entre os mamiferos de grandes proporções distinguem-se pela grande 
fecundidade. | 


CAÇA 


Os individuos selvagens causam estragos notaveis nos campos culti- 
vados e é por isso que se lhes faz uma guerra desapiedada. Da Europa 
teem desapparecido quasi completamente. 

Não é sómente o homem que os persegue; os grandes felinos, nas 
regiões do sul, são-lhes inimigos terríveis. | 


CAPTIVEIRO 


Poucos animaes se reduzem ao estado domestico com tanta facilidade 
como os porcinos; mas tambem poucos passam tão rapidamente, desde 
que são collocados em liberdade, ao estado selvagem. Tem-se mesmo 


1: O Ponco Ss Oavair 


Magalhães & Moniz, Editores 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 223 


observado que os que viveram captivos e readquiriram a liberdade são 
mais ferozes e mais corajosos que os propriamente selvagens. 


USOS E PRODUCTOS 


No estado selvagem os estragos que produzem são, indubitavelmente, 
superiores à utilidade que d'elles podemos tirar. Em captiveiro porém, 
são-nos sómente uteis, pelo que se tornaram animaes estimados, quasi 
indispensaveis na economia domestica. 


A classe dos porcinos está dividida em dois grandes grupos: os 
porcos bravos ou javalis e os porcos domesticos. : 
1. Os porcos bravos ow javalis 


As differentes especies d'este grupo assemelham-se tanto na confor- 
mação e nos costumes, que apenas estudaremos a que segue. 


O JAVALÍ ORDINARIO OU JAVARDO 


Mede dois metros de extensão, não contando a cauda que tem mais 
de trinta centimetros; a altura é de um metro, ao nivel da espadua. 
Estes numeros exprimem apenas approximações, porque o tamanho dos 


224 HISTORIA NATURAL 


javardos varia segundo as differentes regiões que occupam e segundo o 
alimento que encontram. 

O javalí ordinario, considerado por muitos naturalistas o ascen- 
dente do porco domestico, assemelha-se muito a este; as differenças 
que apresenta e que são insignificantes resumem-se todas em que pos- 
sue um maior desenvolvimento e um maior vigor em todas as partes do 
organismo do que o porco domestico. A côr do manto, que se compõe 
de sedas rijas e de pêllos macios, varia muito: ha individuos completa- 
menta pretos, o que é o caso vulgar, e ha-os tambem pardos, ruívos, 
brancos ou maculados. Na face inferior do pescoço e no baixo-ventre as 
sedas são dirigidas para diante; no resto do corpo dirigem para traz e 
são mais abundantes sobre o dorso. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O javalí ordinario é o unico pachyderme da Europa. 

Diz Brehm que, com grande alegria dos cultivadores e com grande 
magua dos caçadores, o javardo está ameaçado de uma proxima desap- 
parição. Outr'ora existiu muito espalhado; hoje porém existe em numero 
relativamente pequeno. Na Europa existe sómente em alguns pontos, na 
Africa vive só ao norte; na Ásia é ainda hoje vulgar. Falta absolutamente 
em todos os paizes que ficam ao norte das costas do Baltico, n'uns, por- 
que foi destruido, n'outros, porque nunca existiu. Na Allemanha é raro; 


é-o menos na Polonia, na Galliza, na Hungria, no sul da Russia, na Gre- 
cia e na Hespanha. 


COSTUMES 


O javardo procura de preferencia os locaes humidos e pantanosos, 
as florestas e as regiões em que abundam os cannaviaes. Gosta muito de 
se espojar na lama e é isto precisamente o que explica a decidida pre- 
ferencia que concede aos logares humidos, onde faz o seu covil. O ja- 
valí é sociavel; apenas os velhos machos teem habitos solitarios. 

No estio penetra muitas vezes nos campos cultivados, em que faz 
incalculaveis destroços e d'onde não é facil obrigal-o a sair. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 225 


O javalí ordinario é omnivoro; tanto lhe servem para alimento os 
vegetaes como as carnes dos cadaveres que encontra, quando mesmo 
sejam dos seus congéneres. É certo porém que nunca attaca nem aves 
nem mamiferos vivos para os devorar. | 

O javali offerece muitos pontos de contacto ou de analogia com o 
porco domestico. Tem, como este, movimentos impetuosos, bruscos, em- 
bora deselegantes e pezados. Marcha sempre com a cabeça” baixa, com o 
focinho perto do solo, farejando em todos os sentidos. Nada muito bem: 
a conformação do corpo e a espessa camada subcutanea de tecidogeor- 
duroso permitte-lhe suster-se na agua com extraordinaria facilidade, de 
modo que um ligeiro movimento de membros é o bastante para que 
possa rapidamente avançar. 

O javali ordinario é prudente e vigilante, mas não é timido e sabe 
bem confiar na propria força, nas armas formidaveis que possue. Ouve 
bem e tem um olfato apurado, mas vê mal; se o caçador se conserva 
perfeitamente tranquillo e contra o vento é facil que um javalí, não dando 
pela presença delle, se lhe approxime até uma pequenissima distancia. 
Isto prova a deficiencia da vista; os guias unicos do animal são o ouvido 
e o olfato. O paladar e o tacto são sentidos obtusos no javalí ordinario. 
A intelligencia é muito limitada; menos porém do que teem dito alguns 
auctores, dispostos naturalmente a fazer d'este animal o typo da estu- 
pidez. 

O javalí ordinario não é propriamente o que se pode chamar um 
animal feroz; não attaca nem o homem, nem os outros animaes quando 
a elle o não attacam tambem. Pode uma pessoa passar-lhe tranquilla- . 
mente por perto, na certeza de que não o irritando, o javalí lhe não 
fará mal. 

Excitado porém, é um inimigo terrivel, porque é corajoso e valente. 
Quando um homem tem inconsideradamente irritado um javalí, para evi- 
tar-lhe o attaque precisa de esconder-se por traz de uma arvore ou, 
quando o animal arremette, saltar para os lados, aproveitando assim a 
dificuldade com que o javalí se volta ou emfim, se estes meios não po- 
deram ser empregados, deitar-se ao chão; o javalí, se é um macho, não 
fere com os terriveis dentes de cima para baixo, mas só de baixo para 
cima. 

A femea encolerisa-se mais dificilmente do que o macho, mas não 
é menos corajosa do que elle; diante da femea não vale ao homem o re- 
curso de atirar-se ao chão. 

Os dentes do javalí são armas terriveis. Apparecem aos dois annos 
e aos trez os da maxilla inferior atlingem um grande desenvolvimento, 
dirigindo-se para cima e recurvando-se ligeiramente; os superiores re- 
curvam-se tambem para cima, separando-se da maxilla, mas não chegam 

VOL. HI 15 


226 HISTORIA NATURAL 


a ter metade da extensão dos inferiores. Os dentes são muito brancos e 
ponteagudos. Quanto mais velho é o animal, mais pronunciada é a cur- 
vatura e mais fortes e compridos são os dentes, Os ferimentos produzi- 
dos por estas armas são perigosissimos. 

Os javalis grandes, quando se encolerisam, chegam a attacar ani- 
maes muito mais maiores do que elles, por exemplo um cavallo a que 
podem rasgar o peito e o ventre. 

Nos casos de risco os javalís prestam-se mutuo auxilio. A mãe de- 
fendes sempre com coragem os filhos ameaçados por um perigo. 

À voz do javalí ordinario é perfeitamente semelhante à do porco 
domestico. Quando caminha faz ouvir, como este, um grunhido constante. 
“As femeas e filhos, quando os ferem, soltam gritos de dôr. O macho 
adulto, pelo contrario, conserva-se silencioso qualquer que seja o feri- 
mento de que o tenham tornado victima. 

A quadra do cio começa no fim de Novembro e dura quatro, cinco 
e, às vezes, seis semanas. As femeas de origem selvagem não entram 
em cio mais que uma vez cada anno; mas as que proveem de porcos 
domesticos que se tornaram selvagens, que readquiriram a liberdade, 
essas entram em cio e parem duas vezes por anno. É esta a opinião ge- 
ralmente recebida. Os filhos encontram-se aptos para a reproducção ao 
fim de dezoito ou dezenove mezes. Quando a epocha da excitação gene- 
sica se approxima, os machos solitarios reunem-se aos bandos e, repel- 
lindo os machos mais fracos, assenhoream-se das femeas. Quando se en- 
contram machos de força egual, ferem-se luctas horriveis e prolongadas. 
A gestação dura de ordinario dezoito a vinte semanas. A femea ainda 
nova pare quatro a seis filhos, a velha onze a doze. Antes do parto a 
femea tem tido o cuidado instinctivo de preparar n'um logar solitario 
uma especie de ninho alcatifado de musgo e folhas, onde posteriormente 
se conserva com a prole durante meio mez. Terminado este prazo, a fe- 
mea sae, levando comsigo os filhos. Ás vezes encontram-se muitas femeas 
com a prole; então reunem-se e guardam em commum os filhos. Brehm 
afirma que se morre alguma d'ellas, as outras tomam sobre si a creação 
dos orphãos. | 

Os javalis pequenos teem tanto de vivos e de interessantes como 
os paes de pezados e de preguiçosos; passam a noite inteira brincando, 
agitando-se, fazendo ruido, congregando-se ou dispersando-se alternati- 
vamente e correndo atraz das mães, forçando-as a pararem para lhes 
dar leite. De dia mesmo, não conservam por muito tempo a immobili- 
dade. 

Avalia-se em trinta annos a idade maxima que o javalí ordinario 
pode attingir. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 297 


INIMIGOS 


O lobo, o lynce e todos os grandes felinos são inimigos irreconcilia- 
veis do javalí; a rapoza consegue tambem pela astucia apoderar-se, uma 
ou outra vez, de algum recemnascido. 

O gêlo que ás vezes chega a cobrir inteiramente os pastos e que 
produz assim, indirectamente, a morte de um grande numero de indivi- 
duos, merece ser contado entre os inimigos do javali. 


CAÇA 


De todos os inimigos da especie o mais perigoso e o mais terrivel é 
sem duvida o homem, porque a caça do javalí foi sempre e é ainda hoje 
tentada com prazer. 

Os processos de perseguição ao javalí ordinario teem variado con- 
sideravelmente com o decorrer dos tempos. Antes da descoberta das ar- 
mas de fogo, a caça não era, como hoje, um exercicio em que o homem 
pouco se arrisca; era sim um verdadeiro combate em que toda a agili- 
dade e toda a coragem eram poucas para sair triumphante. Houve tempo 
em que o homem partia para a caça do javalí armado exclusivamente de 
uma faca e de uma vara extensa, terminada em lamina de ferro de dois 
gumes e munida de um gancho. Procurava-se o javalí, provocava-se e de- 
pois, sustendo a vara solidamente com uma das mãos contra o corpo e 
dando-lhe direcção com a outra, fazia-se face ao animal em colera, espe- 
rava-se que elle arremettesse. Então dirigia-se a arma que acabamos de 
descrever contra o javalí, de modo que o ferisse acima do esterno e lhe 
vazasse o coração. Tambem se empregava muitas vezes uma faca ape- 
nas. O caçador diante do javalí collocava em terra o joelho esquerdo e 
firmava sobre o direito o punho da faca que mantinha solidamente na 
mão; o javalí precipitava-se contra o caçador e encontrava a morte no 
fio cortante da arma branca. Comprehende-se bem quanta coragem, 
quanta presença de espirito e quanta agilidade eram precisas para obter 
a victoria n'estas luctas face a face, em que o menor desfallecimento, o 
mais ligeiro descuido podiam decidir da vida do caçador. 


228 HISTORIA NATURAL 


Os beduinos do Sahara caçam o javalí a cavallo e armados de lan- 
ças. Ás vezes ferem apenas o animal que se precipita sobre elles; esca- 
pam à vindicta do pachyderme, graças ao galope do cavallo, e logo de- 
pois voltam ao attaque até que tenham conseguido matar o javalí. 

Actualmente a arma de fogo representa o principal papel na caça 
do javali, como de resto na da maior parte dos animaes. Os perigos di- 
minuem por este processo até ao ponto de quasi desapparecerem. Como 
L. Figuier observa, n'este genero de caça os cães prestam grandes ser- 
viços, não só porque descobrem os javalís e pelos latidos annunciam 
a sua presença ao caçador, mas ainda porque seguem os que fogem 
feridos denunciando o logar em que foram expirar. 


CAPTIVEIRO 


Affirma Figuier que o javalí, apanhado quando novo, é susceptivel 
de uma certa domesticação; chega a reconhecer o dono e a seguil-o. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne do javalí é muito estimada; a dos recemnascidos, sobre- 
tudo, é excellente. Os mahometanos, que teem a carne d'este animal na 
conta de impura, não a comem, mas vendem-a por altos preços. 

A pelle e as sedas do javalí teem tambem applicações à industria. 

É de observar todavia que a utilidade do javali está muito longe de 
compensar os estragos que produz. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 229 


O JAVALÍ DO JAPÃO 


| Differe do javalí ordinario apenas nas dimensões e na côr. Tem o 

- tronco curto, a cabeça alongada e as orelhas pequenas e muito cobertas 

de pêllo. O corpo é em geral de um trigueiro escuro; o ventre é branco. 
Dos angulos da bocca parte ao longo das faces uma estria clara. 


O JAVALÍ DA INDIA 


Esta especie é mais pequena que o nosso porco domestico. O tronco 

» é coberto de sedas pouco abundantes, muito disseminadas; o ventre e 

um grande espaço que fica por traz das orelhas são nús. Os pêllos da 

parte posterior das faces constituem uma especie de barba e os da fronte 

e da nuca simulam uma crina. Os pêllos são em geral negros com a 

ponta de um trigueiro amarellado, o que dá ao manto do animal a côr 

trigueira amarellada com manchas negras. Os pés e o focinho são tri- 
gueiros claros; o ventre é de um branco pardacento. 


O JAVALÍ DO PAPÚS 


É esta a especie mais elegante de todas. Tem um metro de compri- 
mento e meio de altura. A face e o ventre são quasi nús. Os péllos são 


230 HISTORIA NATURAL 


finos e pouco abundantes. O focinho é negro e o dorso negro e ruivo; 
os membros são de um trigueiro accentuado, as faces, a região inferior 
do pescoço e o ventre brancos. Os olhos offerecem uma cercadura negra. 

O macho não apresenta os dentes desenvolvidos que noutras espe- 
cies constituem verdadeiras defezas. 


As trez ultimas especies que acabamos de enumerar vivem na Ásia 
tanto em estado perfeitamente selvagem como em captiveiro. 


O JAVALÍ DE ORELHAS EM FORMA DE PINCEL 


Como o nome indica, o que ha de caracteristico n'esta especie é a 
forma especial das orelhas que são compridas, aguçadas para a parte 
superior e terminadas por pêllos compridos e rijos como de pincel. Este 
animal é mais pequeno que o javalí ordinario. O dorso é coberto de pêl- 
los finos e eguaes; os do ventre e das partes lateraes do corpo são com- 
pridos e um pouco crespos. Os membros são quasi nús. O dorso é ruivo 
e amarello; o focinho, os membros e a cauda são pardos escuros. Os 
pêllos terminaes das orelhas são brancos e os olhos apresentam um cir- 
culo amarellado. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 231 


O JAVALÍ DOS BOSQUES 


As dimensões d'esta especie são as da anterior. Os péllos que co- 
brem o corpo d'este animal são muito eguaes em geral; os das faces 
constituem uma barba forte e os da nuca uma verdadeira crina. A côr 
geral é um pardo trigueiro com reflexos ruivos; a barba e a crina são 
de um pardo esbranquiçado e as orelhas e patas de um trigueiro escuro. 
Os olhos são orlados de negro. 


-As duas ultimas especies de que fallamos e que são ainda hoje pouco 
conhecidas, habitam o sul da Africa. 


2. Porcos domesticos 


Os porcos domesticos consideram-se como derivados das especies 
selvagens que acabamos de enumerar. De uma só ou de todas? Do ja- 
valí ordinario apenas, ou das especies asiaticas e africanas? Eis o que 
se não sabe precisamente. 

Actualmente os porcos domesticos existem espalhados por uma enorme 
superficie da terra. Ao Norte estendem-se tão longe como a agricultura ; 
ao Sul vivem de ordinario em pleno campo. Dão-se bem nos logares pan- 
tanosos. Degeneram um pouco nas montanhas, tornando-se-lhes o corpo 
mais refeito, a cabeça mais curta e menos ponteaguda, a região frontal 
mais larga, o pescoço menos extenso e mais espesso, a parte posterior 
do dorso mais arredondada e as patas mais fortes; a producção da gor- 
dura e a fecundidade diminuem, tornando-se porém a carne mais tenra 
e mais delicada. 

O clima, a natureza do solo e os cruzamentos influem na côr. Assim 


232 HISTORIA NATURAL 


é que em Portugal e Hespanha são vulgarissimos os porcos negros, ao 
passo que nos paizes do Norte são muito raros. 

São communs n'estes pachydermes os vícios de conformação, prin- 
cipalmente em relação aos cascos, existindo alguns individuos que apre- 
sentam um unico e outros que chegam a apresentar cinco. 


CREAÇÃO 


Criam-se e engordam-se os porcos ou ministrando-lhes alimento nos 
curraes ou deixando-os em liberdade procurar aquillo de que preci- 
sam. Estes dois processos dão resultados um pouco differentes: pelo pri- 
meiro, os animaes engordam mais rapidamente e tornam-se maiores; pelo 
segundo, engordam menos, mas tornam-se em compensação mais vigo- 
rosos e menos sujeitos a doenças do que os primeiros. O primeiro pro- 
cesso é, entre nós seguido em toda a provincia do Minho; o segundo é 
seguido no Alemtejo. Ha ainda um processo mixto que consiste em deixar 
livres e errantes os porcos durante o estio e prendel-os nos curraes du- 
rante o inverno; entre nós este processo não é seguido. 

Acredita-se geralmente que a immundicie é indispensavel à prospe- 
ridade do gado suino. Brehm insurge-se contra esta idéa a que chama 
um preconceito. Affirma o eminente naturalista que experiencias recentes 
demonstraram que o porco mantido em limpeza prospéra muito mais que 
aquelle que se conserva na immundicie repugnante dos curraes. Diz mais 
o naturalista allemão que os creadores intelligentes substituiram já os lo- 
gares infectos, as pocilgas destinadas até aqui para o gado suino por 
porqueiros vastos, arejados e faceis de lavar, obtendo assim exemplares 
mais fortes e mais sadios. 

Os porcos domesticos assemelham-se notavelmente nas qualidades 
moraes ás especies selvagens de que descendem. São glutões, desobe- 
dientes e não manifestam pelo homem uma grande dedicação. 

Esta é a regra geral; ha porém excepções. Brehm cita o caso de um 
pequeno porco de raça chineza que seguia o dono à maneira dos cães, 
que dava pelo nome, correndo ao chamamento e que dentro de casa se 
comportava convenientemente. Este porco estava adestrado n'alguns exer- 
cicios; tinham-o encarregado de buscar tortulhos na floresta e desempe- 
nhava-se da tarefa com cuidado. Mantinha-se em pé durante alguns mo- 
mentos e curvava-se quando se lhe dizia: vem cá, que vaes morrer. 

Brehm para provar a intelligencia de alguns porcos cita ainda ou- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 23 


tros casos curiosos. Conta o naturalista que estando doente Luiz xr e 
porfiando os vassallos em dissipar-lhe a tristeza, sem o conseguirem, al- 
guem se lembrou de um meio que deu o appetecido resultado. Esse al- 
guem ensinou alguns bacoros a dançarem ao som de musica, vestiu-os 
de moços fidalgos ou coisa parecida, adestrou-os no exercicio de fazerem 
cumprimentos e exhibiu-os deante do rei. Em face das habilidades comi- 
cas dos pequenos pachydermes, a magestade teve uns accessos hilarian- 
tes que encheram de jubilo, naturalmente, os fieis cortezãos. 

Tem-se ensinado porcos a puxarem a carros; um aldeão das cerca- 
nias de Saint-Alban apparecia muitas vezes nos mercados dentro de um 
carro tirado por quatro porcos. Tambem se conhecem exemplos de por- 


cos que se deixam montar e conduzir pelo cavalleiro. Brehm cita o caso 


de um outro aldeão que apostára percorrer no espaço de uma hora 
quatro milhas, montado no seu porco e que ganhou a aposta. 

Wood conta que na Inglaterra existiu um porco adestrado na caça e 
que prestava tantos serviços como o melhor dos cães. Passámos em claro 
outros casos que nos não parecem authenticos e segundo os quaes o 
porco seria capaz por exemplo, de, tendo collocadas no chão as lettras 
do alphabeto e sendo pronunciada uma palavra, procurar as lettras con- 
venientes e dispol-as por ordem de maneira a formar o vocabulo que se 
proferiu. 

Um facto muito curioso e que geralmente se aponta é o do horror 
dos porcos pelos cães. «Selvagens ou domesticos, diz Brehm, os porcos 
não fazem escrupulo algum de comer as carnes dos cadaveres; comtudo 
nenhum se atreve a tocar na carne de um cão morto.» ! Lenz escreve 
tambem: «No porqueiro de Gobourg lançam-se muitas vezes aos animaes 
cavallos mortos que elles devoram com avidez; mas se se lhes atira um 
cão, nenhum lhe toca.» 2 | 

Os porcos domesticos são animaes omnivoros; tanto lhes convem a 
alimentação animal ou vegetal, como a mixta. Tudo o que o homem 
come podem elles comel-o com aproveitamento. 

Aos porcos que se destinam à matança e que é preciso engordar 
convem impedir-lhes os movimentos ou pelo menos restringil-os, cir- 
cumscrevendo estes animaes em curtos espaços; aos que se ulilisam na 
reproducção é preciso, pelo contrario, dar espaço largo, é indispensavel 
conceder-lhes que se exercitem. 

O coito realisa-se duas vezes por anno: em Abril e em Setembro. 
A gestação dura dezeseis a dezoito semanas ou cento e quinze a cento e 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 780, 
2 Citado por Brehm,-ibid, 


234 HISTORIA NATURAL 


dezoito dias; o parto produz um numero muito variavel de filhos. Ha 
femeas que chegam excepcionalmente a parir vinte ou vinte e quatro fi- 
lhos; os casos mais vulgares são de quatro a seis. Não são communs, 
mas não pode dizer-se tambem que sejam extremamente raros os partos 
que produzem doze a quinze individuos. De ordinario, as primiparas dão 
menos filhos que as multiparas, o que tambem se realisa nas especies 
selvagens. Muitas vezes, quando a progenitura é extremamente nume- 
rosa, a femea mata alguns filhos, esmaga-os e devora-os. Femeas ha que 
é preciso vigiar cuidadosamente e privar de alimentos animaes antes do 
parto. Os filhos deixam-se mamar por espaço de quatro semanas, depois 
do que se affastam da mãe; principia-se a dar-lhes então uma alimenta- 
ção solida, pouco abundante. Crescem rapidamente; aos oito mezes estão 
aptos para se reproduzirem. 

O nome de porco dá-se indifferentemente, de ordinario, ao indivi- 
duo castrado ou não castrado; este ultimo tem comtudo para os crea- 
dores os nomes especiaes de marrão ou varrasco. 


USOS E PRODUCTOS 


O porco é um animal mais util depois de morto do que em vida; 
sabem todos que famosa carne elle nos fornece, conhecem todos as mul- 
tiplas applicações da gordura que lhe extraimos. É certo porém, que 
mesmo em vida o porco tem uma certa utilidade: penetrando nas terras 
de pousio, revolve-as e cata-as completamente de todos os pequenos roe- 


dores, de todos os vermes, collocando-as assim nas melhores condições 


de cultura. 


OS PHACOCHEROS 


Na Africa existem uns representantes monstruosos da familia dos 
porcinos ou suídios: são os phacocheros. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 235 


CARACTERES 


Estes pachydermes são muito mais altos que os porcos domesticos e 
os javalis; as pernas são relativamente compridas. A cabeça é horrivel. 
Os olhos e as orelhas são pequenos. O focinho é largo e a face coberta 
de verrugas cutaneas espessas. Os dentes caninos da maxilla superiores 
são muito grandes, voltados para cima e recurvos para dentro e para 


diante; os da maxilla inferior são muito mais curtos mas teem precisa- 


mente a mesma direcção que os outros. 
Conhecem-se duas especies d'este genero. 


O PHACOCHERO OU JAVALÍ ENGALLA DE ANGOLA 


É indubitavelmente o mais feio representante dos suidios. Tem o 
pescoço curto, grosso, o dorso largo, as patas fortes, a cabeça pezada, o 
focinho largo, achatado, de extremidade volumosa, as narinas muito se- 
paradas, o labio superior espesso, saliente, os olhos pequenos, collocados 
muito superior e posteriormente e as orelhas curtas e muito cobertas de 
pêllo. A pelle é espessa, rugosa e de sedas raras; comtudo desde o alto 
da nuca até ao meio da columna vertebral existem sedas em numero e 
comprimento bastante para formarem uma especie de crina. A côr geral 
é o trigueiro; as orelhas são brancas. 

Este pachyderme não possue dentes incisivos. 


236 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Descrevendo a especie seguinte, diremos o que se sabe sobre este 
assumpto; sob o ponto de vista de regimen e habitos de vida as duas 
especies não diferem uma da outra. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se o javali engalla de Angola desde o Cabo até ao golpho 
de Guiné. 


O PHACOCHERO OU JAVALÍ DE ELIANO 


Este animal é tambem conhecido na historia natural pelo nome de 


phacochero de incisivos. Esta denominação indica desde logo um dos ca- 


racteres que o differenceiam da especie anteriormente descripta. Um outro 
caracter differencial é a pequenez relativa dos caninos. Os incisivos são 


dois. Áparte estas pequenas diferenças, esta especie assemelha-se inteira- 
mente à congénere. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O phacochero de Eliano encontra-se provavelmente em toda a Africa 
central. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 237 


COSTUMES 


Da vida e costumes d'esta especie, bem como da precedente, sa- 
be-se muito pouco. Resumiremos o que ha de averiguado. 

Os phacocheros são animaes sociaveis; encontram-se sempre aos 
bandos de dez a quinze individuos nas florestas e brenhas, logares a que 
dao preferencia. Nas florestas que cobrem as montanhas da Abyssinia 


são communs estes bandos. Segundo Riippel, os phacocheros alimen- 


tam-se exclusivamente de raizes, o que, diz Brehm, explicaria as fortes 
e extensas defezas que possuem. Quando marcham, fazem-o rastejando, 
de modo que deixam sulcos profundos no solo; d'ahi veem as callosida- 
des que apresentam na face anterior do corpo. É realmente singular este 
modo de progressão! 

Na Abyssinia tanto os christãos como os mahometanos consideram 
impura a carne d'estes animaes e por isso não lhes dão caça. 

Segundo a opinião de Smith, estes animaes são tão temerarios como 
maos. Raras vezes fogem; acceitam de ordinario o combate de quem 
quer que os persiga. 


CAPTIVEIRO 


Em 1775 appareceu na Europa o primeiro phacochero vivo, prove- 
niente do Cabo. Viveu muito tempo no jardim zoologico de La Haye, onde 
era considerado como um animal muito docil. Um dia porém a malvadez 
ingénita manifestou-se; o phacochero atirou-se sobre o guarda e feriu-o 
mortalmente com uma dentada. Rasgou tambem o ventre a uma porca 
domestica que lhe haviam juntado na esperança de um coito. O alimento 
d'este pachyderme captivo era analogo ao de todos os porcos. 

Brehm diz ter visto um par d'estes animaes em Anvers, verificando 
então o que Riippel affirma relativamente à marcha que os caracterisa. 


238 HISTORIA NATURAL 


OS TAJAÇUS 


Como observam os naturalistas, a America não é rica em suidios; 
as especies que possue são poucas e, além d'isso, muito mais pequenas 
que as do antigo continente. Essas especies constituem o genero dos ta- 
jaçus, animaes que se caracterisam pela presença de trez dedos apenas 
nos pés posteriores, por uma cauda rudimentar, pela existencia sobre o 
dorso de uma glandula especial secretora de um liquido fetido e emfim 
pelo numero de dentes que é de trinta e oito: dois pares de incisivos 
na maxilla superior e trez na inferior, um par de caninos e seis de mol- 
lares em cada maxilla. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA | 


São proprios das regiões quentes da America. 


O TAJAÇU DE COLLEIRA 


É um animal pequeno de metro e meio de comprido sobre trinta e 
trez a quarenta centimetros de altura. Aos caracteres genericos, descri- 
ptos já, é preciso juntar que este animal possue a cabeça alta, o focinho 
obtuso e as sêédas compridas e espessas, de um trigueiro accentuado na 
raiz e na ponta e anneladas de fulvo e negro no meio. Entre as orelhas 
e ao longo do dorso, as sêdas alongam-se um pouco. A côr geral d'este 
pachyderme é um trigueiro escuro, passando a amarello dos lados e 
apresentando ahi cambiantes de branco. O ventre é trigueiro e o peito 


4 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 239 


branco; d'esta região parte uma facha amarella que ascende até acima 
das espaduas, constituindo uma como colleira. D'aqui o nome da especie. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA | 


O tajaçu de colleira é commum em todas as florestas da America do 


Sul até cerca de mil metros acima do nivel do mar. 
i 


COSTUMES 


r 


O tajaçu de colleira é eminentemente sociavel; percorre as flores- 
tas em bandos numerosos sob a direcção do macho mais forte. Todos os 
dias varia de habitação. «Nada é capaz, diz Rengger, de os suspender 
nas suas viagens, nem os campos descobertos nem os cursos d'agua. Se 
chegam a um campo, attravessam-o a galope; se encontram uma cor- 
rente, passam-a a nado. Ássim os vi attravessar o rio do Paraguay n'um 
ponto em que tinha mais de meia legua de largura. O bando avançava 
compacto com os machos adiante e logo depois as femeas seguidas dos 
filhos. Ouviam-se e reconheciam-se de longe os animaes não tanto pelos 
gritos surdos e roucos que soltavam como pelo ruido que faziam atravez 
das brenhas.» Ás vezes os bandos são tantos e tão numerosos que nem 
o tigre se aweve com elles; quando os vê passar esconde-se por traz 
de uma arvore. São estas, pelo menos, as informações colhidas por Hum- 
boldt da bocca dos indigenas. 

O tajaçu procura indifferentemente de dia ou de noite o alimento. 
Come fructos e raizes que desenterra com o focinho. 

Nos logares habitados penetra muitas vezes nas plantações fazendo 
ahi grandes estragos. Faz uma guerra de morte às serpentes, aos lagar- 
tos e aos vermes. 

Em muitos dos seus habitos assemelha-se aos javalis; não é todavia 
elutão e sujo como estes animaes. Não come senão o preciso para matar 
a fome e não se suja nos charcos senão em tempos de excessivo calor. 

- De dia occulta-se ordinariamente nas cavidades das arvores, entre 
as raizes; quando se lhe faz caça é ahi que se refugia sempre. 


240) HISTORIA NATURAL 


Relativamente aos sentidos, sabe-se que apresentam de ordinario 
pequeno desenvolvimento; a vista é má e apenas o ouvido e o olfato offe- 
recem uma certa perfeição. A intelligencia é limitadissima. 

A femea dá à luz em cada parto dois filhos que pouco depois de 
nascidos seguem a mãe por toda a parte. 


CAÇA 


Tem-se dito que o tajaçu é um animal de incomparavel temeridade, 
tem-se mesmo afirmado que elle é para o homem e para os grandes car- 
niceiros o mais sério dos adversarios. Humboldt e Rengger não subscre- 
vem a taes aflirmações. Dizem estes naturalistas que um homem só, a pé 
e seguido de cães, não corre grande risco em se defrontar com um 
bando de tajaçus. Pode ser ligeiramente ferido no momento do encontro ; 
comtudo os pachydermes fugirão, porque de ordinario nem aos cães con- 
seguem fazer frente. | 

Os meios empregados na caça são principalmente as armas de fogo 
e a lança. Tambem se cavam grandes fossos de trez metros de profun- 
didade ou mais, perto das plantações em que os tajaçus teem por cos- 
tume penetrar; depois impellem-se a gritos n'essa direcção de modo que 
ahi vão cair, em grande numero muitas vezes. Wood diz que o caçador 
sabendo que um bando de tajaçus se abrigou na cavidade de uma ar- 
vore, tem um processo simples de os extinguir: o caçador mata a sen- 
tinella que é substituida por outra que mata tambem e assim successi- 
vamente até ao ultimo tajaçu. Não sabemos o que ha de verdade n'esta 
affirmação; parece-nos porém que não deveremos acceital-a sem uma 
certa duvida, porque Wood mostra-se muito mal informado no que res- 
peita ao conhecimento do tajaçu. 


CAPTIVEIRO 


Bem tratado, o tajaçu torna-se um verdadeiro animal domestico. 
Humboldt diz que elle supporta o captiveiro tão bem como o porco ou o 
veado; e Rengger aflirma, pelo seu lado, que elle contrae affeição ao ho- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 241 


mem e aos companheiros de captiveiro. Brehm contesta a affeição dos 
tajaçus pela nossa especie, assegurando que os que tem visto são coleri- 
cos, maos, dispostos sempre a morder. | 

O tajaçu é vulgar nos jardins zoologicos da Europa, cujo clima sup- 
porta perfeitamente. Tem-se reproduzido na Inglaterra. A alimentação 
que se dá a este pachyderme em captiveiro é a mesma que se distribue 
aos porcos domesticos. 


USOS E PRODUCTOS 


A pelle do tajaçu serve para a fabricação de saccos e correias. À 
carne de que as classes pobres fazem alimento é de sabor agradavel, 
mas muito inferior à do porco domestico. Quando se quer comer a carne 
de um tajaçu que acaba de matar-se depois de uma demorada persegui- 
ção, é mister extrair immediatamente a glandula dorsal; se isto senão 
fizer o mao cheiro do liquido segregado communicar-se-ha à carne, tor- 
nando-a insupportavel. 


A outra especie do genero dos tajaçus, conhecida pela designação 
latina de dycotiles labeatus, não differe nem morphologicamente, nem sob 
o ponto de vista dos costumes, da que acabamos de estudar por forma 
que mereça uma descripção especial. 


OS BABIROSAS 


O nome de babirosas ethimologicamente considerado significa—por- 


cos-veados. Este nome singular justifica-se até certo ponto pela circums- 
VOL. III 16 


2492 HISTORIA NATURAL 


tancia de serem os caninos d'estes animaes de tal modo extensos e re- 
curvos que parecem cornos. 


D'este genero conhece-se uma especie unica, que tem a mesma de- 
signação do genero. 


O BABIROSA 


Este animal apresenta, termo medio, um metro de comprimento so- 
bre oitenta centimetros de altura; a cauda mede vinte e cinco centime- 
tros. | Ei 

O babirosa assemelha-se muito a todos os porcos. Tem o corpo alon- 
gado, volumoso, um pouco comprimido lateralmente, o dorso ligeira- 
mente arqueado, o pescoço curto e grosso, a cabeça alongada e relati- 
“vamente pequena, a região frontal um pouco arqueada e a extremidade 
do focinho movel e obtusa como nos javalis e terminada por uma parte 
cornea de bordos callosos e excedendo muito o labio inferior. Os mem- 
bros são fortes e terminados por quatro dedos. Os olhos são pequenos e 
não apresentam sobrancelhas; as orelhas, de comprimento medio, são 
finas, estreitas, ponteagudas e rectas. 

O que, indubitavelmente, ha de mais importante e de mais caracte- 
ristico n'este pachyderme, são os caninos da maxilla superior. Finos, 
ponteagudos, dirigidos para cima e para traz, estes dentes tornam-se 


tão compridos, diz Brehm, nos animaes velhos que ás vezes chegam a . 


penetrar na pelle da fronte em cuja direcção se recurvam em semi-cir- 
culo. A face anterior d'estes dentes é arredondada e o bordo posterior 
cortante. Os caninos da maxilla inferior são mais curtos e menos recur- 
vos. Estes dentes são na femea muito menores que no macho. 

O corpo do babirosa é coberto de pêllos muito curtos e espalhados, 


mais abundantes ao longo da columna vertebral, entre as pregas cutaneas. 


e na extremidade da cauda, onde formam um tufo, do que em qualquer 
outra região. À pelle é dura, espessa e rugosa, com pregas muito pro- 
fundas no focinho, em torno das orelhas e no pescoço. O dorso e a parte 
externa dos membros são côr de cinza e a face interna dos membros côr 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 243 


de ferrugem. As extremidades das sedas formam sobre a linha media 
uma como estria clara, de um amarello trigueiro. As orelhas são negras. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


É muito commum o babirosa nas ilhas Celebes, que devem ser con- 
sideradas a sua verdadeira patria. 


COSTUMES 


Procura de preferencia para habitação as florestas pantanosas, as 
margens dos lagos e todas as regiões onde crescem com abundancia as 
plantas aquaticas. É sociavel; em todos os pontos que acabamos de men- 
cionar vive em bandos mais ou menos numerosos. É animal nocturno; 
como tal, dorme o dia todo e só depois que o sol declina procura o 
alimento. 

Caminha mais rapidamente que o javalí e é um bello nadador. 

De ordinario, evita o homem, fugindo e escondendo-se, desde que o 
presente; mas se é attacado de perto, se é surprehendido sabe fazer face 
ao perigo com immensa coragem. Os dentes são-lhe poderosissimas armas 
de defeza. 

Como explicar a forma especial dos caninos n'esta especie? Tem-se 
dito que o animal se prende por elles às arvores e assim solidamente 
sustentado se balança. Não sabemos até que ponto se deve crêr no facto 
aflirmado. 

O ouvido e o olfato são de todos os sentidos os mais perfeitos. À 
inteligencia é muito limitada. 

À femea pare em Fevereiro um a dois filhos, de dezeseis a vinte e 
dois centimetros de comprimento. 


244 HISTORIA NATURAL 


CAÇA 


Os indigenas empregam a lança ou as armadilhas na caça do ba-. 
birosa. 


CAPTIVEIRO 


Apanhado e reduzido ao captiveiro emquanto novo o babirosa attinge 
um certo grao de domesticidade, habitua-se ao dono cuja voz reconhece 
e manifesta por elle uma certa dedicação. Tem apparecido na Europa al- 
guns exemplares d'esta especie, os quaes se teem reproduzido; é certo 
porém que são ainda hoje muito raros nos jardins zoologicos. 


OS HIPPOPOTAMOS 


São os mais pesados e massudos dos mamiferos terrestres. As per- 
nas são extremamente curtas em relação ao tronco; cada pata apresenta 
quatro cascos. O focinho é largo, obtuso e não prolongado em fórma de 
tromba; a pelle é desnudada. A dentição comprehende dois a trez inci- 
sivos, um canino e sete mollares. 

O esqueleto é forte. O craneo é quasi quadrilatero, achatado e com- 
primido; a cavidade cerebral é muito pequena. Todos os ossos são pe- 
sados e volumosos. Os dentes differem consideravelmente dos de todos 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 245 


os pachydermes vivos e em nada lembram os dos porcinos. Os grandes 
caninos inferiores são recurvos em semi-circulo e chegam no macho a at- 
tingir a extensão de um metro; os superiores são egualmente recurvos, 
mas menos extensos e de pontas rombas. Nem uns, nem outros fazem, 
a despeito da grande extensão, saliencia no exterior. 

Existiram em epochas anteriores à nossa muitas especies d'este ge- 
nero. Hoje apenas se conhece uma bem authentica, que vive na Africa. 


O HIPPOPOTAMO AMPHIBIO 


Esta especie foi muito conhecida dos romanos que nos circos publi- 
cos apresentaram diversas vezes muitos exemplares. Os gregos conhe- 
ceram tambem o hippopotamo amphibio; a designação hippopotamo é 
mesmo composta de dois vocabulos gregos e significa, litteralmente, ca- 
vallo do rio. : | 

Desde o terceiro seculo da nossa era até 1850 não appareceu na 
Europa, aflirma Brehm, um unico hippopotamo. 


CARACTERES 


A dentição e a cabeça distinguem o hippopotamo de todos os ma- 
miferos existentes. Da dentição fallamos acima; não insistiremos n'este 
ponto. A cabeça é quadrangular e caracterisada por um focinho alto, 
alongado, de uma largura espantosa. Como todo o animal, o focinho é 
disforme. À face superior é chata e o labio superior, pendente, cobre de 
um modo completo a bocca. As narinas são obliquas, muito separadas 
uma da outra. O corpo é grosso, pezadissimo, alongado e quasi cylin- 
drico. 

À região do sacro é mais elevada que a das espaduas; o ventre é 
pendente e raza o solo quando o animal caminha. Os membros não ex- 


246 HISTORIA NATURAL 


cedem muito sessenta e seis centimetros de altura. A cauda é curta, del- 
gada, comprimida lateralmente e coberta na extremidade livre de sêdas 
curtas e rijas como fios de ferro; o resto do corpo é quasi desnudado. 

A pelle apresenta uma espessura superior a trez centimetros e 
fórma algumas pregas muito profundas no pescoço e na parte anterior dó 
peito. Sulcos numerosos e entrecruzados formam sobre a pelle umas 
como escamas, ora grandes, ora pequenas. 

À côr geral da pelle é o trigueiro cobreado que no ventre se torna 
claro. Manchas azuladas e outras de um trigueiro menos acentuado que 
o que fórma o fundo geral da pelle, espalhadas com regularidade dão ao 
corpo do hippopotamo uma certa variedade. De resto, é mister observar 
que a côr varía conforme o animal está humido e sêcco. Com efeito ao | 
sair da agua, o animal parece mais claro do que quando toda a humi- 
dade tem desapparecido. 

Sob a pelle do hippopotamo encontra-se de ordinario uma camada 
de gordura de oito a dezeseis centimetros de espessura. 

O hippopotamo adulto pode attingir perto de cinco metros de com- 
prido, pertencendo meio metro apenas à cauda. A altura, ao nivel da 
espadua, é, quando muito, de um metro e oitenta centimetros. À circum- 
ferencia do tronco é de quatro metros a quatro metros e trinta centime- 
tros; o pezo do animal adulto eleva-se de vinte e cinco a trinta e cinco 
quintaes. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Houve tempo em que na Africa oriental e central o hippopotamo 
amphibio era muito vulgar. Já hoje não acontece o mesmo. Á medida 
que o homem estende no continente africano os seus dominios, o hippo- 
potamo recua e morre a tiro. O gigante pachyderme abandonou já o 
Egypto e a Nubia onde, no dizer de Ruppel, era vulgar ainda no começo 
d'este seculo. Comparando as informações dos antigos com as dos moder- 
nos viajantes e naturalistas, vê-se bem quanto está hoje reduzido o nu- 
mero d'esses gigantes informes e monstruosos que alguns escriptores 
consideram ultimos representantes dos tempos fabulosos e que segura- 
mente são os restos de uma fauna destinada a desapparecer. Comtudo 
ainda hoje não é raro o hippopotamo no Sudan oriental. 


do 
ad 
=+ 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


COSTUMES 


De todos os auctores que se occupam da vida e habitos do hippo- 
potamo, é Brehm o que dá mais amplas e minuciosas informações. Este 
naturalista diz: «Tive muitas occasiões de vêr o hippopotamo; posso pois, 
fazer a historia dos seus costumes, guiando-me por observações pro- 
prias.» * 

A este auctor seguiremos pois de nda taia n'este artigo. 

A tendencia que todos os pachydermes teem para a agua, a incli- 
nação que sentem para se banhar tornam-se no hippopotamo imperiosas 
necessidades, attingem n'elle o maximo grao de elevação. Assim é que 
este pachyderme vive quasi sempre na agua, saindo para terra firme só 
excepcionalmente: de noite para procurar alimento quando as margens 
do rio não abundam em plantas, de dia para se aquecer de quando em 
quando ao sol. Passa pois a maior parte do seu tempo mettido na agua. 
dos rios em que nada e mergulha com extraordinaria facilidade, como se 
fosse esse o seu meio proprio. 

Quando nos abeiramos de um rio em que vivem hippopotamos, 

apercebemo-nos geralmente a distancia da existencia d'esses pachyder- 
mes pelo som particular que ouvimos de agua projectada a distancia por 
um sopro violento. É que o hippopotamo, que se apraz em viver sob a 
agua, sente de espaço a espaço a necessidade de respirar e fluctua en- 
tão, despejando ruidosamente quando chega ao lume d'agua, o liquido 
que se lhe alojára nas espaçosas narinas. O tempo que o hippopotamo 
se conserva debaixo d'agua é pequeno de ordinario; e Brehm considera 
um erro completo a aflirmação que fazem alguns naturalistas de que o 
enorme pachyderme pode permanecer mergulhado durante dez minutos. 
Segundo Brehm, o hippopotamo não poderia conservar-se debaixo d'agua 
nem mesmo cinco minutos. 

À pista do hippopotamo é facil de reconhecer: consiste em buracos 
collocados ao longo de um sulco como contas em fio de rosario. Os bu- 
racos são formados pelos pés que se enterram no solo e o sulco é o ves- 


tigio da passagem do ventre que, como dissemos acima, rasteja quando 
o animal marcha. 


| Brehm, Obr. cit,, vol. 2.º, pg. T78, 


248 HISTORIA NATURAL 


Nos rios em que se não faz caça ao hippopotamo aflirma Brehm que 
se pode navegar em grandes barcos, porque o pachyderme não os at- 
taca. 

Como quasi todos os pachydermes, o hippopotamo é sociavel; pou- 
cas vezes se encontra um só. Brehm diz nunca ter visto bandos superiores 
ad seis individuos; outros naturalistas porém, fallam de aggremiações 
muito mais numerosas. 

Só nos logares completamente desertos é que o hippopotamo se 
aventura a sair da agua durante o dia para se deitar nas margens, dor- 
mitando. Então estende-se commodamente na terra molle e humida com 
a mesma voluptuosidade com que os porcos se espojam e os bufalos se 
banham. De tempos a tempos o macho faz ouvir um grunhido surdo ou 
levanta a cabeça para vêr o que se passa em volta. 

No meio dos hippopotamos agitam-se muitas aves. Uma ha conhecida 
na Africa pelo nome de ave das chuvas que volita constantemente em 
roda destes pachydermes, tirando-lhes da pelle as sanguesugas e os in- 
sectos que a ella adherem. Um esparavão caminha de ordinario a passos 
largos sobre o dorso d'estes collossos, desembaraçando-os tambem dos 
vermes. Ao sul da Africa o ani substitue geralmente estas aves. Os arabes 
de Sudan acreditam que a ave das chuvas (hyas aegyptiacus) adverte o 
hippopotamo da approximação dos perigos; e a verdade é, refere Brehm, 
que o pachyderme presta attenção aos gritos do seu pequeno e vigilante. 
amigo e corre para a agua desde que a ave se mostra inquieta. De resto 
e exceptuando este caso, o pachyderme parece não prestar a minima 
attenção ao mundo exterior; só nas localidades em que por uma dura 
experiencia propria aprendeu a conhecer o homem e as armas de fogo, é 
que se conserva permanentemente em guarda contra este terrivel ini- 
migo. Nas regiões em que o não perturbam, o hippopotamo não se in- 
quieta com coisa alguma; é o verdadeiro typo da indifferença. 

Provavelmente o hippopotamo dorme tambem na agua, à maneira 
dos bufalos; equilibra-se à superficie d'agua por meio de movimentos 
regulares dos membros, de modo que as narinas, os olhos e as orelhas 
emergem. 

Ao fim da tarde principia a vida para o hippopotamo; é então que 
os bandos se entregam na agua a toda a ordem de diversões, aos mais 
differentes exercicios. Se no rio voga uma canoa, os bandos de hippopo- 
tamos permittem-se o prazer de a seguirem de perto por largo tempo. 
O enorme volume d'agua que um d'estes pachydermes desloca e, por- 
tanto, o pezo que perde, explica-nos a facilidade assombrosa com que 
nada e mergulha, rivalisando em rapidez com o mais veleiro barco de 
remos. 

O hippopotamo quando nada tranquillamente não agita os membros; 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 249 


a agua em torno d'elle, diz Brehm, conserva-se lisa e immovel. Mas se é 
ferido ou se precipita furiosamente contra um inimigo, então projecta 
com violencia as patas posteriores para traz, avança por movimentos 
bruscos e agita a agua produzindo verdadeiras ondas. 

Nos rios em que as plantas aquaticas abundam, o hippopotamo não 
sae da agua nem mesmo de noite. Encontrando na agua tudo aquillo de 
que precisa, o pachyderme não carece de vir a terra e por isso muito 
raras vezes o faz. O loto, planta sagrada dos antigos, irmã magestosa do 
gracioso nenuphar, constitue o alimento principal do hippopotamo. Em 
caso de necessidade os juncos e as cannas servem tambem de alimento 
ao informe pachyderme. | 

Que horrivel espectaculo o de um hippopotamo que abre a bocca 
para comer! Á distancia de um kilometro pode vêr-se a bocca escanca- 
rada do pachyderme, e, a alguns centos de passos, contar um por um 
os movimentos de mastigação. 

Nos logares que não ficam muito distantes dos campos cultivados, 0 
hippopotamo dirige-se de noite vagarosamente e com cuidado para as 
plantações onde no espaço de horas destroe um trabalho humano de me- 
zes. Com elfeito, a voracidade dos hippopotamos é extraordinaria; por 
fertil que seja o paiz em que vivem, constituem, se são numerosos, um 
verdadeiro flagello. De resto, elles destroem, calcam aos pés mais do 
que comem; ainda depois de fartos rolam-se por sobre as plantações à 
maneira dos porcos. 

Não é só para os campos cultivados que o hippopotamo constitue 
um perigo; o homem e os animaes devem temel-o, porque nas excursões 
nocturnas, o monstro precipita-se cegamente sobre tudo que tem movi- 
mento. E calcula-se bem quaes são as consequencias de um tal attaque, 
lembrando que um hippopotamo é capaz de matar quatro ou cinco bois 
que encontre reunidos. Raro é que o hippopotamo fuja diante do homem; 
irritado nunca o faz. 

Os habitantes do interior d'Africa, que não possuem armas de fogo, 
encontram-se quasi sem defeza contra o hippopotamo de que são todavia, 
diz Brehm, os unicos adversarios. Segundo este naturalista, tudo quanto 
se tem contado e escripto ácerca de combates do hippopotamo com o 
crocodilho, o elephante, o rhinoceronte e o leão, deve ser, sem exce- 
pção, lançado à conta de fabula. 

O homem procura proteger-se de modos diferentes contra o hippo- 
potamo. No tempo das colheitas accende fogueiras ao longo do rio. Es- 
sas fogueiras que se alimentam toda a noite servem de espantalhos para 
os hippopotamos. Em algumas regiões é de uso fazer durante a noite 
um estrepito enorme de rufos de tambor para assustar o gigante pa- 
chyderme. Estes processos, que dão geralmente os resultados pretendi- 


250 HISTORIA NATURAL 


dos, são, diga-se de passagem, muito trabalhosos; obrigam a conti- 
nuadas vigilias. 

As observações ultimamente feitas em individuos captivos ensina- 
ram-nos que a femea do hyppopotamo é unipara e que dá à luz no co- 
meço da estação das chuvas, precisamente quando a alimentação é mais 
abundante e mais succolenta. A femea é perigosissima quando está em 
companhia dos filhos, pequenos ainda. Inquieta pela sorte dos recemnas- 
cidos, vê perigos em toda a parte e atira-se cegamente contra quem 
quer que lhe pareça ser um inimigo. Se lhe matam um filho, conserva-se 
agitada e prompta a vingar-se por muito tempo. O barco que conduzia 
Levingstone n'um dos rios africanos foi vigorosamente attacado por uma 
femea a que alguns dias antes tinham matado o filho; é de notar que 
ninguem da tripulação excitára o animal. Avalia-se por este facto, de que 
ha muitos analogos, quanto é grande a sollicitude da mãe pelos filhos. 
Brehm crê que o macho toma como a femea a defeza do recemnascido 
em face dos perigos. O naturalista allemão baseia-se para fazer a aflir- 
mação sujeita no facto de encontrar constantemente ao pé do pequeno 
hippopotamo macho e femea. Esta distingue-se facilmente, porque nunca 
tira os olhos de cima do filho, cujos movimentos segué sempre com ex- 
“traordinaria attenção. O recemnascido mama na agua, vindo de momento 
a momento à superficie para respirar. 


CAÇA 


À caça do hippopotamo produz magnificos resultados, como adiante 
veremos, para os indigenas e europeus que a fazem activamente. O eu- 
ropeu não persegue o hippopotamo senão munido de uma boa arma de 
fogo. O indigena no Sudan emprega exclusivamente ainda hoje o arpeo 
e a lança. Ao norte da Africa empregam-se armadilhas fixas às arvores 
e os negros das margens do Abiad cavam fossos onde pela noite cae de 
quando em quando algum hippopotamo. 

À caça pelos processos empregados no Sudan demanda uma extraor- 
dinaria coragem, astucia e agilidade; feita, como a fazem os europeus, 
ella exige apenas uma pontaria firme. 


Fuga SP 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 251 


CAPTIVEIRO 


O hippopotamo quando, morta previamente a mãe, se traz ao capti- 
veiro nos primeiros tempos de existencia, chega a domesticar-se. Faz-se 
aleitar ao principio por trez ou quatro vaccas, porque uma só não basta. 

As observações feitas até hoje demonstram que o hippopotamo sup- 
porta longo. tempo e facilmente o captiveiro, mesmo nos climas da Eu- 
ropa. Collocando um par, macho e femea, em logar conveniente onde 
possam viver ora em terra, ora na agua, pode esperar-se que os mons- 
truosos pachydermes se reproduzam. 

A alimentação do hippopotamo captivo é analoga à dos porcos do- 
mesticos. | 

Brehm viu no Cairo um hippopotamo captivo que vivia nas melho- 


res relações de amizade com o guarda e que o seguia e se deixava di- 


rigir por elle como um cão. Era alimentado com uma mistura de leite, 
arroz e farello; mais tarde principiou a preferir as plantas frescas. Esse 
individuo foi trazido à Europa, com destino a Londres. Quando chegou a 
esta capital, media dois metros e trinta centimetros de comprimento; 
este hippopotamo reproduziu-se ahi com um outro chegado algum tempo 
depois. De resto, devemos notar que o hippopotamo, como muitos outros 
animaes, readquire a primitiva selvageria à medida que avança em 
idade. 

A gestação dura dez mezes; é certo porém que ao fim de sete o 
parto pode realisar-se, como em Amsterdam se viu, sendo o feto viavel. 

Tem-se notado que em captiveiro, ao contrario do que acontece em 
liberdade, a mãe maltrata os filhos e lhes nega o leite, vendo-se o ho- 
mem forçado a fazel-os aleitar artificialmente. 


USOS E PRODUCTOS 


Muitas partes do hippopotamo são utilisadas. A carne e a gordura 
são muito estimadas; e tempo houve em que constituiram para o colono 
do Cabo o melhor dos manjares. A carne do hippopotamo novo é mesmo 
para os europeus um prato excellente; a lingua passa por ser um àce- 


959 HISTORIA NATURAL 


pipe delicioso. Os hottentotes bebem a gordura derretida como nós be- 
bemos caldo. A pelle serve para fazer correias; os colonos do Cabo ap- 
plicam-a para a fabricação de tagantes. Os dentes são um importante ar- 
tigo de commercio; servem para fazer dentaduras que conservam inalte- 
ravelmente a brancura e o brilho. Todas as partes que mencionamos va- 
lem muito dinheiro. 


PREJUIZOS 


Entre os numerosos prejuizos que correm ácerca do hippopotamo 
alguns ha que não podemos deixar de mencionar, porque são curiosissi- 
mos. Na Biblia diz-se que os membros do hippopotamo são duros e soli- 
dos como ferro e todos os ossos resistentes como o bronze. Os israelitas 
julgavam este animal capaz de beber toda a agua do Jordão. Os indige- 
nas do Sudan teem o hippopotamo na conta de um ser sobrenatural, 
emissario do diabo, plenipotenciario do inferno. Não respeita a lei do . 
propheta e não teme os esconjuros. Debalde o cultivador, aflirmam os 
indigenas, o intima em nome de Allah para que retroceda quando ca- 
minha de noite em direcção às searas. Que Deus proteja os crentes da 
vista d'esse maldito! .. 


OS RHINOCERONTES | 


Pertencem a esta familia seis ou, segundo alguns auctores, sete es- 
pecies vivas e outras tantas fosseis. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 255 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


Os rhinocerontes foram perfeitamente conhecidos dos antigos. A Bi- 
blia refere-se a elles em passagens differentes. Os romanos fizeram-os fi- 
gurar nos jogos barbaros dos circos. Plinio escreve: «O rhinoceronte é 
o inimigo natural do elephante; aguça o corno n'uma pedra e no com- 
bate volta-o sempre para o ventre do adversario, sabendo que é este 0 
ponto mais fraco. Assim mata o elephante.» O primeiro auctor que des- 
creveu os rhinocerontes foi Agatharchides. Posteriormente Strabon fallou 
d'elles tambem. Marcial refere-se-lhes nos seguintes versos que encon- 
tramos traduzidos por Ch. Maux-St.-Marc no livro de Brehm: 


C'est pour vous, 6 César, qu'exposé dans Varêne 

Ce fier rhinoceros a lutté vaillament 

Et d'un coup de sa corne a transpercé sans peine, 
Comme un vil mannequin, le taureau tout tremblant... 


4 


Nas lendas arabes os rhinocerontes figuram como seres encanta- 
dos. Marco Pollo no seculo xrrr fallou dos que encontrou na sua via- 
gem às Indias. Em 1513 D. Manuel recebeu em Lisboa um rhinoce- 
ronte vivo proveniente da India. Alberto Durer publicou d'este exemplar 
uma gravura executada por um desenho muito incorrecto que lhe envia- 
ram de Lisboa. Em meiados do seculo xvir Bontius fallou dos costumes 
do rhinoceronte. A datar de então todos os viajantes teem descripto mais 
ou menos uma ou outra especie; o rhinoceronte do sul da Africa é par- 
ticularmente conhecido. 


CARACTERES | 


Os rhinocerontes são animaes deselegantes, solidamente construi- 
dos, de grandes dimensões, pezados, de pescoço curto e cabeça alon- 
gada, de membros baixos e grossos e de pés terminados por trez dedos 
cobertos de cascos pequenos e fracos. A pelle é espessa; a das especies 


254 HISTORIA NATURAL 


fosseis era coberta de um pêllo ou velo abundante. Sobre o focinho apre- 
sentam um ou dois cornos de comprimento desegual. 

O esqueleto é forte. O craneo é comprido e mais baixo que o dos 
outros pachydermes. Os ossos frontaes formam a quarta ou a terça parte 
do comprimento do craneo; soldam-se aos ossos nasaes, fortes e largos. 
Na base do corno ou cornos, estes ossos são cobertos de rugosi- 
dades tanto mais pronunciadas quanto mais extensos são aquelles ap- 
pendices. O osso incisivo é visivel sómente nas especies que teem inci- 
sivos persistentes; nas especies em que esses dentes caem cedo, o osso 
atrophia-se completamente. À columna vertebral é formada por vertebras 
fortes, de apophyses espinhosas muito compridas; dezenove ou vinte 
vertebras oflerecem inserção ás costelas, que são largas, volumosas é 
pouco recurvadas. O diaphragma insere-se à decima quarta ou decima 
setima vertebra dorsal. As vertebras sagradas que são cinco, soldam-se 
muito cedo. As vertebras caudaes são vinte e duas ou vinte e trez. 

Os dentes dos rhinocerontes differem notavelmente dos de outros 
membros da mesma ordem. Os caninos faltam sempre; e muitas vezes 
faltam tambem os quatro incisivos. Os mollares são sete em cada ma- 
xilla. 

“A pelle do labio superior é fina, muito vascular e muito nervosa. A 
lingua é grande e sensivel. O esophago tem um metro e sessenta centi- 
metros de extensão e oito centimetros de diametro. O estomago é sim- 
ples, alongado; mede um metro e trinta centimetros de diametro longi- 
tudinal e sessenta e seis centimetros do maior diametro transversal. O 
intestino delgado mede dezeseis a vinte e um metros de comprido e o 
intestino grosso seis a oito; o recto mede um metro ou metro e meio. 
Os olhos são pequenissimos. 

À pelle apresenta sobre o dorso uma espessura superior a dois cen- 
timetros; em algumas especies é lisa, n'outras apresenta pregas profun- 
das e ainda em certas outras verdadeiras escamas. 

O corno ou cornos são ora redondos ora angulosos e occos. Estes 
appendices que podem attingir um metro de comprido são dependencias 
da pelle. Quando os cornos sao dois, o posterior é sempre mais curto 
que o anterior. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os rhinocerontes existem hoje exclusivamente na Ásia e na Africa. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 255 


k DISTRIBUIÇÃO GEOLOGICA 


Em epochas geologicas anteriores à nossa os rhinocerontes eram 
muito mais numerosos do que actualmente são; os restos fosseis denun- 
ciam a existencia de um numero consideravel de especies. Entre essas 
figura o rhinoceros tichorhinus famoso pachyderme de que se descobri- 
ram não só os ossos, mas ainda a pelle e os pêllos. 

Hoje está perfeitamente averiguado que os rhinocerontes habitaram 
na epocha diluviana o centro e o norte da Europa, sendo com o mam- 
mouth os pachydermes mais communs do nosso continente. Do rhinoceros 
tichorhinus tem-se ainda descoberto os ossos, por vezes em quantidade 
assombrosa, na Russia, na Polonia, na Allemanha, na França e na Ingla- 
terra. Esta especie distinguia-se de todas as outras pela presença de um 
septo nasal osseo; é sabido que este septo é cartilagineo em todos os 
rhinocerontes. Outras especies ainda habitavam a França e o sul da Alle- 
manha. Uma d'ellas caracterisava-se pela existencia de quatro dedos nos 
membros anteriores e pela ausencia de cornos. Crê-se que fosse essa a 
especie mais antiga. 


As especies actualmente existentes e que são bastantes ainda, divi- 
de-as Brehm em trez grupos: unicornios de pelle rugosa e escamosa, bi- 
cornios de pelle rugosa e bicornios de pelle lisa. Figuier forma dois gru- 
pos sómente, descrevendo em cada um d'elles uma especie unica. Des- 
creveremos tambem duas especies apenas, o rhinoceronte da Ásia (uni- 
cornio) e da Africa (bicornio), limitando-nos a mencionar as outras. 


2096 HISTORIA NATURAL 


O RHINOCERONTE D'ASIA 


Este pachyderme conhecido tambem pelo nome de rhinoceronte wni- 
cornio é uma das especies maiores do genero. Mede trez metros de com- 
prido e metro e meio d'alto; a cauda é de sessenta e seis centimetros e 
a circumferencia do corpo excede trez metros. Estes numeros exprimem 
a media; mas tem-se encontrado machos de perto de quatro metros e 
meio de comprido sobre dois e trinta centimetros de alto. 

O corpo do rhinoceronte asiatico é pezado, volumoso e alongado ; 
as pernas são relativamente curtas. O pescoço é curto e grosso, a ca- 
beça de grandeza media, duas vezes mais comprida que alta, apresen- 
tando bossas frontaes immediatamente adiante das orelhas e outras acima 
dos olhos; o resto da cabeça é fortemente comprimido e achatado. As 
orelhas, relativamente compridas, são finas, ponteagudas, semelhantes ás 
dos porcos e extremamente moveis. Os olhos são, como os de todos os 
rhinocerontes, muito pequenos e encovados; o animal raras vezes os 
abre completamente. As narinas são parallelas à abertura da bocca. O 
corno eleva-se sobre a parte larga da extremidade do focinho, acima das 
narinas e no sulco mediano do nariz. É conico e levemente recurvo para 
traz; mede sessenta e seis centimetros, termo medio, de comprimento e 
trinta e trez de circumferencia na base. O labio superior largo e acha- 
tado prolonga-se em tromba ponteaguda, quasi digitiforme, que pode ser 
alongada ou encurtada, medindo assim ora dezeseis ora vinte centime- 
tros. 

Os membros, curtos, grossos, cylindricos e informes são recurvados 
como os dos cães baixotes. Os dedos em numero de trez e munidos de 
cascos são em quasi todo o comprimento cobertos pela pelle. 

À cauda vae diminuindo de diametro desde a raiz até ao meio, para 
se alargar novamente na ponta. | 

Os orgãos reproductores são muito grandes; a femea tem sómente 
um par de mamas. 

À pelle que cobre o corpo do rhinoceronte asiatico é forte, mais es- 
pessa, mais dura e mais secca que a dos elephantes. Repousa sobre uma 
camada de tecido cellular pouco consistente que lhe permitte deslocar-se 
facilmente. Fórma para o animal uma verdadeira couraça muito espessa, 
quasi cornea e dividida por pregas numerosas e profundas, regularmente 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 257 


dispostas. Estas pregas permittem ao animal executar todos os movimen- 
tos necessarios. 

Nos velhos machos a pelle pode dizer-se desnudada, porque real- 
mente apenas apresenta péllos na raiz do corno, nos bordos das orelhas 
e na extremidade da cauda. 

À primeira prega formada pela pelle desce perpendicularmente à parte 
posterior da cabeça e ao pescoço; por traz della encontra-se uma outra, 
obliqua para cima e para traz, muito profunda inferiormente. D'esta se- 
gunda prega, na metade inferior, nasce uma terceira que sobe obliqua- 
mente ao longo do pescoço. Por traz do pescoço encontra-se uma quarta 
prega profunda que sobe ao longo do dorso e se recurva em arco para 
continuar por traz das espaduas; passa por baixo e depois por diante 
dos membros anteriores que contorna superiormente. Uma quinta prega 
desce da região do sacro obliquamente para baixo e para diante ao 
longo das coxas e chega aos flancos d'onde envia um ramo que desce 
pelo bordo anterior dos membros posteriores, attravessa horisontalmente 
a tibia e sobe de novo até ao anus, voltando depois em direcção hori- 
sontal por cima das coxas em fórma de saliencia. Por este modo fica a 
pelle dividida em trez largas zonas: a primeira que comprehende o pes- 
coço e as espaduas; a segunda que vae das espaduas à região lombar ; 
e a terceira emfim, que abraça a parte mais posterior do tronco. 

A pelle é toda coberta de pequenas escamas irregulares, arredon- 
dadas, mais ou menos lisas e corneas. No ventre e na face interna dos 
membros encontram-se muitos sulcos ou rugas entrecruzadas. O focinho 
apresenta tambem rugosidades transverfaes. 

A côr é muito variavel. Os individuos velhos são de ordinario de 
um pardo escuro uniforme, de cambiantes ruivas ou azuladas aqui e 
além. Os individuos novos apresentam em geral uma tinta mais clara. 
De resto a poeira e a vasa, como nota Brehm, fazem muitas vezes pare- 
cer os rhinocerontes mais escuros do que na realidade são. 


t 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie habita a Asia nas regiões mais visinhas da China. É 
commum sobretudo em Sião, na Conchinchina e nas provincias mais 0c- 
cidentaes do Celeste Imperio. 


VOL, II 11 


258 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Reservamo-nos para tratar este ponto quando descrevermos a espe- 
cie africana, visto que os costumes de todos os rhinocerontes são seme- 
lhantes. 

A mesma observação podemos fazer ácerca dos inimigos, da caça, 
do captiveiro e dos usos e productos. 


O RHINOCERONTE D'AFRICA. 


Este pachyderme, conhecido tambem pelo nome de rhinoceronte bi- 
cornio, não differe da especie acima estudada a não ser na existencia de 
dois cornos sobre o focinho. As descripção minuciosa que fizemos do 
rhinoceronte asiatico dispensa-nos de voltarmos sobre o assumpto. 


COSTUMES 


À semelhança, sob o ponto de vista dos habitos de vida, não só en- 
tre a especie já estudada morphologicamente e a que vamos descrever 
mas ainda entre todas as que adiante mencionaremos, permitte conside- 
rar este artigo como applicavel a todos os rhinocerontes. 

Os gigantescos pachydermes de que nos estamos occupando são 
muito mais temiveis que os elephantes. Os arabes consideram os rhino- 
cerontes seres infernaes como os hippopotamos. «O elephante, dizem el- 
les, é um animal justo que honra as palavras do propheta Mahomet (a 
voz de Deus seja com elle!) e que respeita as cartas de protecção e os 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 259 


outros meios -permittidos de defeza. Os hippopotamos e os rhinocerontes, 
pelo contrario, não prestam a minima attenção aos amuletos que os nos- 
sos padres escrevem para protegerem os campos e mostram assim que 
desprezam a voz do Todo-Poderoso. São seres malditos desde todo o 
principio. Não foi o Creador que os fez, mas o Diabo, o destruidor. Por 
isso não é bom que os crentes se approximem d'elles, como fazem os 
pagãos e os infieis. O verdadeiro mussulmano affasta-se d'elles tranquil- 
lamente para não macular a alma e não ser destituído da graça do 
Senhor.» * 

Os rhinocerontes escolhem para habitar os logares abundantes em 
agua, os rios de largo leito, os lagos de margens arborisadas ou os pan- 
tanos em cuja volta se encontram pastos abundantes. Na Africa acontece 
que se affastam muitas vezes da agua para procurar o alimento nas 
steppes. Na Ásia sobem ás vezes às montanhas. No entanto todos os dias 
vão à agua, pelo menos uma vez, para beberem e se espojarem na vasa. 
Esta ultima operação é, como se sabe, uma necessidade para todos os 
pachydermes, cuja pelle tem tanto de sensivel como de espessa; no 
estio os insectos atormentam-os por tal modo que são forçados a defen- 
der-se pelo unico meio possivel: fazer adherir à pelle uma forte camada 
de terra que lhes sirva de couraça contra os importunos inimigos. Antes 
de se porem a caminho em busca de alimento, correm à beira de um 
lago ou de um curso d'agua, cavam ahi com os cornos grandes buracos 
e espojam-se até se cobrirem inteiramente de lama; ao mesmo tempo 
fazem ouvir grunhidos de contentamento. A couraça de lama com que se 
cobrem dura pouco tempo; à medida que o animal caminha, vae ella 
caindo, nas coxas primeiro, no tronco e na cabeça depois. Desde que isto 
acontece, os rhinocerontes ou se espojam de novo na lama ou, se isto 
lhes não é possivel por estarem longe da agua, coçam-se contra as ar- 
vores para se alliviarem do prurido que lhes produzem os insectos. 

Os habitos de vida dos rhinocerontes são mais nocturnos do que 
diurnos. O muito calôr é-lhes insupportavel; por isso, às horas em que 
elle é mais intenso, dormem nos logares ensombrados, deitando-se sobre 
o ventre ou de lado e estendendo a cabeça. O somno dos rhinocerontes 
é, no dizer unanime dos naturalistas, muito profundo. É então que se 
torna possivel ao homem avisinhar-se dos terriveis pachydermes sem 
grandes precauções. Refere Gordon Cumming que nem mesmo os melho- 
res amigos dos rhinocerontes, pequenas aves que os seguem sempre, 


conseguiam despertal-os quando o naturalista apontava sobre elles para 
os matar. 


1 Vid. Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 766. 


2600 HISTORIA NATURAL 


Quando dormem, os rhinocerontes roncam de ordinario tão alto que 
é impossivel deixar de ouvil-os a distancia. Mas tambem acontece dormi- 
rem silenciosamente e é facil então ao homem encontrar-se de repente 
ao pé de um d'estes gigantes, sem o pensar. 

Ao cair da tarde os rhinocerontes espojam-se na lama e partem de- 
pois em busca de alimento, que encontram em toda a parte, nas flores- 
“tas ou nos campos descobertos, nas montanhas ou nos valles. Abrem 
com facilidade caminho, ainda nas brenhas mais impraticaveis. Nos loga- 
res em que vivem elephantes, seguem, para poupar trabalho, os cami- 
nhos habituaes d'estes pachydermes. As passagens abertas nas brenhas 
pelos rhinocerontes distinguem-se facilmente das abertas pelos elephan- 
tes, porque estes quando encontram arvores que lhes fazem obstaculo 
arrancam-as e despojam-as das folhas, alimento favorito, ao passo que 
aquelles partem-lhes os troncos e os ramos. 

Relativamente à alimentação, diz Brehm que os rhinocerontes estão 
para os elephantes como o jumento para o cavallo. Comem de preferen- 
cia plantas duras, cardos, giestas, caniços, etc. Na Africa alimentam-se 
principalmente de mimosas de espinhos. Durante a estação das chuvas 
abandonam as florestas e penetram nas plantações onde fazem estragos 
que facilmente calcula quem pensar na quantidade de alimento precisa 
para encher estomagos de um metro e trinta centimetros de comprimento 
e oitenta centimetros de diametro. Os rhinocerontes captivos não se 
satisfazem com menos de vinte e cinco kilogrammas de forragem por 
dia; calcule-se o que será em liberdade onde o exercicio deve originar 
naturalmente maiores necessidades alimenticias. 

Como o esophago dos rhinocerontes é extremamente largo é-lhes 
facil engulir grandes porções de alimento sem muito trabalho de tritura- 
ção. Assim é que chegam a fazer a deglutição de pedaços de ramos de 
trez a seis centimetros de diametro. 

Um facto digno de menção é que certas plantas que para umas es- 
pecies de rhinocerontes são venenosas para outras são absolutamente 
innocentes. O euphorbio, por exemplo, que para o rhinoceronte d'Africa 
é um veneno, pode ser comido sem inconveniente: pelo rhinoceronte 
branco. 

Fazendo excepção aos costumes dos pachydermes, os rhinocerontes 
não são sociaveis. Vivem de ordinario isolados ou, quando muito e pou- 
cas vezes, em pequenissimos grupos. Cada um vive por si e para si. 

À existencia dos rhinocerontes é perfeitamente monotona; comem e 
dormem. O mundo ambiente é para elles como se não existisse. 

Os movimentos dos rhinocerontes, com quanto pezados, são-o toda- 
via menos do que geralmente se pensa. É certo que se não voltam com 
agilidade e que nas montanhas não saltam como outros animaes que ahi 


= Ma 


Pia 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 261 


habitam; todavia correm nas planicies com grande velocidade. Cami- 
nhando, projectam para diante as pernas anterior e posterior oppostas. 
Correndo, inclinam a cabeça para o chão. Encolerisados, erguem a cauda, 
de ordinario pendente, e saltam em todas as direcções com grande agi- 
lidade. Sustentam o trote por muito tempo, chegando a tornar-se peri- 
gosos mesmo para um cavalleiro, especialmente nos logares arborisados 
em que a cavalgadura encontra a cada momento obstaculos à marcha. 
Nadam admiravelmente, mas não mergulham senão em caso de necessi- 
dade; n'isto se distinguem dos hippopotamos. 

A vista dos rhinocerontes é má; de todos os outros sentidos o ou- 
vido é o mais perfeito. Depois deste, vem o olfato e em ultimo logar o 
tacto. Assim, na perseguição de um inimigo, os rhinocerontes guiam-se 
pelo ouvido e pelo olfato. 

Os rhinocerontes excitam-se com facilidade e, uma vez em colera, 
não medem nem a força, nem o numero dos inimigos. O vermelho 
irrita-os, como aos toiros. Mal do que passar vestido de côres vistosas 
por perto de um d'estes monstros! 

Por felicidade, não é muito dificil escapar aos rhinocerontes enfu- 
recidos. Á distancia mesmo de dez passos o homem perseguido por um 
rhinoceronte pode escapar-lhe, dando um salto para o lado; o animal fu- 
rioso perde-lhe a pista e continua arremettendo, sempre em linha recta. 

Os rhinocerontes escuros d'Africa são os mais temiveis; os brancos 
são menos ageis e mais socegados. Estes ultimos, segundo opinião geral, 
raras vezes attacam o homem, mesmo quando feridos. 

Relativamente à reproducção dos rhinocerontes, sabe-se que para 
as especies asiaticas o coito se realisa em Novembro e Dezembro e o 
parto em Abril ou Maio, durando pois a gestação dezesete a dezoito me- 
zes. Antes do coito ha um periodo de cio em que os machos se dão 
combates violentos. A femea é unipara. O recemnascido é geralmente 
das proporções de um .cão grande. Nasce com os olhos abertos e sem 
pregas cutaneas; o crescimento é ao principio muito rapido. Nos primei- 
ros mezes de vida a pelle é de um ruivo accentuado; mais tarde prin- 
cipia a apresentar maculas cada vez mais escuras que se alastram por 
todo o corpo. Até aos quatorze mezes os rhinocerontes não apresentam 
indícios de pregas cutaneas; mas a partir desta idade, as pregas for- 
mam-se tão rapidamente que ao fim de alguns mezes não é possivel en- 
contrar differenças entre os individuos velhos e os novos. Ao fim de oito 
annos os rhinocerontes tem attingido as proporções medias da especie a 
que pertencem. 

As femeas teem pelos filhos uma grande sollicitude; defendem-os 
corajosamente dos inimigos. A amamentação dura dois annos. Ignora-se 
até que idade os filhos se conservam na companhia das mães, 


262 HISTORIA NATURAL 


AMIGOS E INIMIGOS 


Dizia-se na antiguidade que os rhinocerontes combatiam com os ele- 
phantes saindo sempre vencedores da lucta. Plinio reproduziu nos seus 
livros esta versão que é hoje tida na conta de fabulosa. 

Entre os amigos dos rhinocerontes figura em primeira linha uma 
ave, o ani (buphaga) que todo o dia os acompanha e lhes serve como 
de sentinella. «Esta ave, diz Gordon Comming, é a companheira insepa- 
ravel do hippopotamo e de quatro especies de rhinocerontes. Alimenta-se 
dos vermes que pululam sobre a pelle d'estes animaes; por isso está 
sempre perto d'elles ou mesmo sobre o seu dorso. 

«Esta ave, sempre vigilante, fez-me muitas vezes perder a esperança 
de chegar perto de um pachyderme, e inutilisou-me todas as tentativas 
emprehendidas n'este sentido. O ani é o melhor amigo do rhinoceronte ; 
é elle que em casos de necessidade o desperta do somno profundo. O 
pachyderme comprehende o aviso, ergue-se, olha em todas as direcções 
e foge.» * Quando um rhinoceronte é morto, o ani manifesta um vivo 
pezar soltando gritos dilacerantes em torno do cadaver. 

Se exceptuarmos o homem e os insectos, pode dizer-se que os rhi- 
nocerontes não teem inimigos. O elephante, como dissemos acima, não 
os attaca. O leão, o tigre e em geral os grandes carniceiros não se atre- 
vem a dar-lhes combate, porque sabem bem que as garras não seriam 
sufficientes para rasgar-lhes a pelle durissima. 


CAÇA 


Onde quer que 'o homem encontre os rhinocerontes, persegue-os 
tenazmente. Disse-se e escreveu-se n'outro tempo que a pelle d'estes 
pachydermes se não deixava penetrar pelas balas. Esta opinião é in- 
fundada. 

A caça destes animaes é perigosissima, porque se acontece de se- 


1 Vid. Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. TT0. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 263 


rem feridos e o golpe não é mortal excitam-se, acceitam a lucta com o 
homem e são adversarios que a força torna temiveis. Os indigenas pro- 
curam surprehendel-os durante o somno; matam-os ás lançadas ou a tiros 
descarregados a pequena distancia. | 

Na Asia é habitual montarem os caçadores em elephantes para per- 
seguirem os rhinocerontes. Esse processo offerece grandes inconvenien- 
tes, porque não é raro que os elephantes sejam gravemente feridos pelos 
rhinocerontes em furia. Crêmos bem que não vale a penna para matar 
um rhinoceronte expôr a perigos um elephante domestico. 

Muitos caçadores teem tido a desventura de se encontrarem com 
rhinocerontes a distancia de lhes não poderem fugir. Quando isto acon- 
tece o unico expediente a tomar consiste em tirar partido da difficuldade 
com que o animal se volta para lhe evitar o embate dando successivos 
saltos lateraes, ora para a direita, ora para a esquerda até que o animal 
se fatigue ou alguem venha em soccorro. Se ha proximo uma arvore de 
grosso tronco capaz de resistir ao animal o espaço de tempo bastante 
para carregar uma arma e fazer pontaria certeira, o caçador deve tre- 
par sem perda de tempo; é uma circumstancia favoravel que importa 
aproveitar. 

O naturalista e viajante Andreson narra nos seguintes termos um 
encontro que teve com um rhinoceronte: «Na volta de uma caçada aos 
elephantes, vi a uma pequena distancia de mim um grande rhinoceronte 
branco. la eu montado n'um famoso cavallo de caça, o melhor que em 
minha vida possui. Eu tinha por costume não caçar o rhinoceronte a ca- 
vallo, porque sabia ser mais facil abeirar-me do animal indo a pé; d'essa 
vez porém, a sorte dicidira de outro modo. Voltando-me para os meus 
companheiros, gritei-lhes: «Magnifico unicornio! vou dar cabo delle.» 
Immediatamente dei de esporas ao cavallo, approximei-me do animal e 
metti-lhe uma balla no corpo; mas não o feri mortalmente. Em vez de 
fugir, como de ordinario faz, o rhinoceronte ficou immovel, com grande 
espanto meu; depois voltou-se bruscamente e, fixando-me um instante, 
avançou de vagar em direcção a mim. Sem pensar em fugir, procurei 
comtudo affastar prudentemente o cavallo. Este porém, de ordinario tão 
docil que obedecia ao mais leve movimento de redeas, negou-se-me e 
quando se moveu era já tarde: o rhinoceronte estava perto e um encon- 
tro tornára-se inevitavel. Com efeito, o monstro baixou a cabeça, para a 
erguer depois bruscamente, enterrando o corno nas costellas do pobre 
cavallo com violencia tal que lhe varou o corpo e com elle o selim, che- 
gando-me com a ponta aguda á coxa. O embate foi de ordem tal que o 
cavallo deu uma verdadeira volta no ar indo cair a distancia sobre o 
dorso. Eu fui cuspido violentamente e mal me encontrei por terra des- 
cobri logo o animal ao pé de mim. Por felicidade calmára-se-lhe o furor 


264 HISTORIA NATURAL 


com o prazer da vingança exercida sobre o cavallo; abandonou pois a 
pequeno galope o theatro das suas façanhas. Entretanto os meus compa- 
nheiros haviam chegado ao pé de mim. Dirigindo-me a um d'elles, pedi- 
lhe o cavallo que montava, saltei para o selim e, mesmo sem chapeu, 
com o rosto em sangue, corri sobre o rhinoceronte. Poucos momentos 
depois, tinha o prazer de vêl-o estendido aos meus pés.» À passagem 
que acabamos de transcrever desmente a opinião, recebida por muitos 
naturalistas, de que o rhinoceronte branco é um animal socegado. Gor- 
don Cumming refere tambem um caso desfavoravel à opinião que refe- 
rimos. 

A titulo de fabula e para mostrar quanto a phantasia tem entrado 
nas descripções de caçadas, Brehm extracta de um periodico inglez, Jowr- 
nal of the Indian Archipel, a narrativa de um processo de matar o rhi- 
noceronte, processo segundo o qual os habitantes de Sumatra (é ahi que 
se passa 0 caso) se approximariam lentamente do animal quando elle se 
espoja na vasa, lançando-lhe por cima do corpo materias combustiveis a 
que pegariam fogo. Este meio simples, diz o periodico inglez, teria a 
dupla vantagem de matar o animal por asphixia e de assal-o ao mesmo 
tempo! Como pôde uma idéa destas penetrar no espirito de alguem? O 
leitor sabe bem que é precisamente a impossibilidade em que se encontra 
o homem de chegar perto dos rhinocerontes o que torna difficultosa e 
perigosissima a caça d'estes pachydermes. 


CAPTIVEIRO 


Os rhinocerontes não são tão difficeis de domar como poderá acre- 
ditar-se pensando na irascibilidade que os caracterisa. Se são apanhados 
em pequenos, o que se não consegue, seja dito de passagem, sem matar 
os paes, chegam a familiarisar-se com o homem até ao ponto de rece- 
berem com manifestações de agrado as caricias que este lhes faz. Al- 
guns individuos que teem vivido na Europa revelam uma grande dispo- 
sição para obedecer às ordens d'aquelles que lhes distribuem os alimentos. 
Em Anvers existiu um rhinoceronte asiatico, já adulto, que constituia o 
encanto de quantos o viam. Era de uma pasmosa docilidade; deixava-se 
afagar por todos e, porque estava habituado a que lhe dessem de comer, 
estendia o focinho a quantos chegavam perto d'elle, mendigando por este 
meio o obulo costumado. O desenhador, que fez a copia d'este animal 
para o livro de Brehm, entrou na jaula para o observar de todos os lados 
e em posições diversas; o rhinoceronte não protestou, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 265 


Desde que penetram n'um navio, os rhinocerontes tranquilisam-se, 
por indomitos que pareçam. De resto, o mesmo acontece com todos os 
animaes, ainda os mais ferozes. Parece que em face da vastidão do mar 
adquirem o conhecimento de uma impotencia temporaria e por isso não 
procuram reagir contra o homem, soberano alli. 


USOS E PRODUCTOS 


Todas as partes do corpo dos rhinocerontes teem uma certa utilidade. 
Os cornos servem para a fabricação de vasos. Em certos pontos do globo, 
na Turquia, por exemplo, ha a convicção de que esses vasos entram em 
effervescencia desde que se lhes introduz um liquido venenoso; compre- 
hende-se em que apreço serão tidos ahi estes singulares utensilios. Quando 
um turco visita um outro de quem tem motivos de desconfiança, acontece 
que o primeiro faz encher de caffé o vaso de corno do rhinoceronte, e o 
offerece ao segundo como signal de amisade. Este procedimento tem uma 
significação que pode exprimir-se assim: do mesmo modo que eu te não 
atraiçoo, espero que tu tambem me não atraiçoarás a mim. 

Dos cornos de rhinocerontes fazem-se ainda cabos de sabres. 

Da pelle fazem-se couraças, vasos e muitos outros utensílios. 

À carne come-se e a gordura é muito estimada pelos indigenas. Ao 
paladar europeu porém, nem uma nem outra são gratas. 

Advirta-se que a utilidade que pode tirar-se dos rhinocerontes está 
muito longe de compensar os inconvenientes, os estragos enormes que 
produzem nos logares cultivados. 


OS SOLIPEDES 


Estes animaes que na classificação classica de Cuvier, que adoptamos 
por nos parecer a mais apropriada à indole do nosso trabalho, pertencem 


266 HISTORIA NATURAL 


à ordem dos pachydermes, fazem parte, n'outras classificações, de uma 
ordem differente — Os ungulados. 


CARACTERES 


O que principalmente distingue esses animaes é a existencia de um 
casco inteiro ou de um só casco. É mesmo desta circumstancia que de- 
- riva O nome por que são conhecidos. Existem entre todos os solipedes 
relações tão grandes de forma, de estructura, que se reuniram todos 
n'uma familia unica: os equideos ou cavallos. 


OS EQUIDEOS 


Os representantes d'este genero teem os membros fortes, a cabeça 
magra e alongada, os olhos grandes e vivos, as orelhas de tamanho me- 
dio, moveis, terminadas em ponta e as narinas largamente abertas. O 
pescoço é forte, musculoso e o tronco arredondado, de pêllos macios, 
curtos, densos, compridos sobre o pescoço e na cauda. 

O esqueleto denuncia uma constituição delicada e ao mesmo tempo 
vigorosa. A columna vertebral comprehende dezeseis vertebras dorsaes, 
oito lombares, cinco sagradas e vinte ou vinte e uma caudaes. Na cabeça 
um terço apenas pertence ao craneo; os dois terços anteriores constituem 
"à face. Os dentes são: seis incisivos, seis mollares, rugosos na super- 
ficie de mastigação, e dois caninos, pequenos e conicos. Entre os caninos 
e os mollares existe um espaço, de um lado e outro, desguarnecido de 
dentes: é n'esse espaço que se introduz o freio. 

Os membros são terminados por um só dedo apparente e portanto 
por um casco unico para cada pata. Estyletes osseos collocados posterior- 
mente por cima dos cascos representam dois dedos lateraes rudimen- 
tares, | 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 267 


O systema muscular dos equideos é muito desenvolvido, de ordi- 
nario. 

O esophago é estreito e munido de uma valvula na extremidade 
que communica com o estomago. Este, ligeiramente bilobado e constituido 
por dois saccos distinctos, é pequeno, simples e alongado. Os intestinos 
são muito compridos; apresentam, segundo as especies, desde vinte e 
trez até quarenta metros. O cecum tem uma capacidade que varia tam- 
bem entre trinta e trez e sessenta e oito litros. 

Um facto muito para notar é o de terem acreditado os antigos e 
acreditar ainda hoje muita gente que os equideos não teem fel. Esta idéa 


“apresentada por Aristoteles passou a ser authomaticamente repetida pe- 


los naturalistas antigos e chegou até nós. A observação anatomica des- 
mente uma tal idéa. Nos equideos existe vesicula biliar, como em todos 
os mamiferos; somente ella é pouco desenvolvida e pouco apparente. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os equideos appareceram na epocha terciaria, simultaneamente no 
antigo e novo mundo. Na America, onde não existem hoje senão equi- 
deos proveniente da Europa, encontram-se em certos terrenos restos fos- 
seis de equideos, especificamente distinctos dos que lá vivem; o que pa- 
rece provar que a existencia de taes solipedes foi anterior ahi ao esta- 
belecimento do homem. | 

«Na Europa, diz P. Gervais, existiam entre os equideos fosseis mui- 
tas especies e, na que mais se approximava do cavallo actual, differen- 
tes raças caracterisadas por differenças de estatura, comparaveis ás que 
hoje observamos entre os cavallos domesticos; os esqueletos d'esses an- 
tigos animaes apresentam-nos as formas pezadas dos cavallos alsacianos, 
O que parece approximal-os muito dos cavallos que empregavam os guer- 
reiros da idade media e que elles designavam sob o nome de palafrens. 
Outros teem o esqueleto delicado dos cavallos arabes, cuja raça princi- 
piou a espalhar-se na Europa depois das cruzadas; outros finalmente são 
muito pequenos (equus minutus) e lembram as raças minimas da Corsega. 
Como é impossivel demonstrar os laços de parentesco que ligam os ca- 
vallos actuaes áquelles que deixaram os esqueletos nas camadas diluvia- 
nas, nas cavernas, etc., ninguem está auctorisado a assegurar que a Eu- 
ropa não fosse durante um certo tempo privada de animaes d'este ge- 


268 HISTORIA NATURAL 


nero, depois de os ter alimentado em maior numero ainda do que actual- 
mente.» 1 

Considerando os cavallos e os jumentos como raças de duas unicas 
especies, o numero actual d'estas é oito. 

Tem-se considerado a Europa central e septentrional, a Ásia eat 
e a Africa como constituindo a area de dispersão primitiva dos equideos. 
Hoje pode dizer-se que, exceptuando as regiões polares, os solipedes co- 
brem seguramente toda a superficie do globo. 


COSTUMES 


Nos descampados da Asia e da Africa os equideos vivem em bandos 
que percorrem extensões vastissimas de terreno em busca de alimento. 
Comem hervas. Em captiveiro porém, habituaram-se a um outro genero 
de alimentação: comem principalmente grãos. Ao norte da Europa teem 
um regime simultaneamente animal e vegetal. 

Os equideos são animaes vivos, ageis e prudentes. Em liberdade fo- 
gem do homem e dos grandes carniceiros; mas em caso de perigo de- 
fendem-se corajosamente, servindo-lhes d'armas os dentes e os cascos. 
Correm com rapidez notavel; a marcha mais vulgar dos equideos em li- 
berdade é o trote. 

A fecundidade é nos solipedes muito limitada. A gestação é longa e 
o parto produz ordinariamente um filho unico; entre duas gestações me- 
deia geralmente um grande intervallo. Todas as especies de equideos se 
fecundam mutuamente, dando mestiços. 


DOMESTICIDADE 


Ha duas especies de equideos, o cavallo e o jumento submettidos 
desde tempos immemoriaes ao dominio do homem. Actualmente tem-se 


1 P, Gervais, Histoire naturelle des mammiftres, tom, 2.º, pg. 143, 


- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 269 


feito reiteradas tentativas para tornar domesticas algumas especies sel- 
vagens. Essas tentativas não foram até hoje coroadas de exito. 


O CAVALLO 


Os caracteres d'este genero são em grande parte os que atraz ex- 
pozemos, fallando da familia dos equideos. Não repetiremos aqui o que 
dissemos já. Importa porém que estabeleçamos os caracteres que distin- 
guem o cavallo propriamente dito d'outras especies que com elle formam 
o grande grupo dos equideos. 

O cavallo distingue-se do jumento e da zebra primeiramente pela côr 
uniforme, ou quasi, do manto e depois pela existencia de saliencias cor- 
neas ou callos na face interna de todos os quatro membros. São ainda ca- 
racteres difíerenciaes a existencia de uma crina espessa, comprida, flu- 
cluante e uma cauda geralmente coberta desde a raiz de péllos abundan- 
tes e extensos, que fazem parecer este orgão maior do que é em reali- 
dade. 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


Uma pergunta que se tem feito muitas vezes e que persiste ainda 
hoje sem resposta, é esta: À que epocha remonta a domesticidade do ca- 
vallo e qual foi o povo que primeiro a tentou? Em resposta a esta in- 
terrogação, como a tantas outras analogas que se fazem a proposito do 
cão, do boi, de todos os animaes domesticos, existem conjecturas, hypo- 
theses, mas não factos averiguados e definitivos. Apoiados na philologia 
e reconhecendo que todos os nomes dados ao cavallo nas differentes lin- 
guas derivam do sanscrito, teem afirmado alguns auctores que é aos 
povos da Ásia central que nós devemos q beneficio da domestição com- 
pleta do cavallo. Esta affirmação não está isempta de objecções. Da ori- 
gem sanscrita das palavras que designam o cavallo a unica coisa que ri- 


270 HISTORIA NATURAL 


“gorosamente se pode concluir é que os povos da Ásia central conheceram 
esse solipede e que foram os primeiros a conhecel-o. D'ahi a concluir-se 
que o domesticaram vae uma distancia grande — distancia que augmenta 
se se pretende do principio posto deduzir que fossem esses povos os pri- 
meiros domesticadores do animal. 

O que está perfeitamente averiguado é que não existiu uma unica 
civilisação historica que desconhecesse o cavallo domestico; provam-o 
documentos irrefutaveis. Não quer isto dizer que todos os povos conhe- 
cessem o cavallo domestico desde a origem das suas respectivas civilisa- 
ções, mas sim que nenhum deixou, n'uma phase qualquer da sua exis- 
tencia, de conhecer e utilisar este solipede. Os Hebreus por exemplo, 
não tiveram sempre cavallos; Abrahão, Isac e Jacob ennumerando as suas 
riquezas, fallaram de jumentos, mas não de cavallos. Mas no tempo de 
David e de Salomão já os possuiam. 

Fosse qual fosse a epocha da domesticidade primitiva do cavallo, o 
que é certo é que nos fallam d'elle, como animal subordinado ao homem, 
os mais antigos monumentos que conhecemos. 


COSTUMES EM DOMESTICIDADE 


«A mais nobre conquista, diz Buffon, que deve attribuir-se ao homem 
é, certamente, a d'este bravo e fogoso animal que comnosco partilha das 
fadigas da guerra e da gloria depois do combate. Intrepido como o dono, 
conhece o perigo e sabe .afrontal-o, habitua-se ao ruido das armas, gosta 
de ouvil-o, busca-o e se o ouve cresce em impetos de guerra. Partilha 
tambem dos prazeres da caça; e nos torneios ou na carreira, brilhante e 
cheio de coragem, mas submisso e docil, sabe reprimir os movimentos e 
não sómente obedece à mão que o guia, mas parece ainda consultar a 
vontade do cavalleiro. Obediente às ordens que recebe, estaca no meio do 
mais impetuoso galope. Parece que abdicou da propria espontaneidade 
para viver do commando do homem, que sabe executar com precisação 
incomparavel de movimentos. O cavallo colloca ao serviço da nossa es- 
pecie todas as forças e prefere muitas vezes a morte a um acto de des- 
obediencia *.» , 


1! Buffon, Oeuvres complttes, tom. 11, art. Le cheval. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 271 


Linneu caracterisou o cavallo n'estes termos concisos: 


Animal hervivorum, rarissime carnivorum ; generosum, superbum, fortissimum 
in currendo, portando, trahendo; aptissimum equitando; curso furens; sylvis dele- 
ctatur ; hinnitu sociam vocat ; calcitrando pugnat. 


Ao passo que os cavallos selvagens ou errantes apresentam por toda 
a parte o mesmo typo e os mesmos habitos, os cavallos domesticos, pro- 
ductos complexos da educação, do regime, das necessidades da civilisa- 
ção, são verdadeiras creações do homem e diversificam muito uns dos 
outros. Não só ha raças, que se distinguem tanto nas aptidões como na 
especie humana se distingue um negro de um branco, mas ainda, dentro 
da mesma raça, innumeras variedades. Aos agentes modificadores natu- 
raes, como são o regime alimentar e 'o solo, veem juntar-se para a dif- 
ferenciação dos typos a selecção artificial empregada pelos creadores de 
gado, a educação particular a que são submettidos e ainda o emprego 
que se lhes dá. E isto que dizemos em relação aos costumes e que me- 
lhor ficará estudado no artigo Intelligencia e Aptidões, pode egualmente 
alfirmar-se, mesmo fóra da consideração das raças, em relação às con- 
dições morphologicas. 


CARACTERES DISTINGTIVOS 


Fallamos de caracteres sufficientes para distinguir variedades, mas 
incapazes de servirem de base a divisão de raças. A natureza do péllo e 


"a sua côr são Os principaes. 


As côres fundamentaes são quatro, correspondentes na velha te- 
chnologia veterinaria a quatro humores ou temperamentos: sanguineo, 
fleugmatico, colerico e melancolico. | 

Os sanguineos são os castanhos. N'este grupo distinguem os enten- 
dedores: o castanho claro, o castanho escuro, o castanho pezenho, o 
castanho rosilho e o castanho malhado. 

Os fleugmaticos são os russos. N'este grupo ha: o russo claro, O 
russo queimado, o russo rodado, o russo cardão, o russo tordilho, o 
russo abatardado, o russo pezenho, o russo rosilho, o russo manchado e 
O russo sabino. 

Os colericos são os lazões. N'este grupo comprehendem-se: o lazão 


272 HISTORIA NATURAL 


escuro, 0 lazão alaranjado, o lazão tostado, o lazão melado, o lazão dou- 
rado e o rabicão. 4 

Os melancolicos são os murzellos. Este grupo abrange: o murzello 
andrino, o murzello rodado, o murzello amelroado, murzello acastanhado 
e murzello manchado ou mosqueado, de branco e de castanho, 

O péllo n'uns individuos é fino e lustroso, de modo tal que fazendo 
os cavallos um certo exercicio apparecem bem visiveis na cutis as rami- 
ficações venosas; n'outros o péllo é grosso e arrepiado. 

Um signal branco que alguns cavallos teem no meio da região fron- 
tal e que se chama estrella é tambem um caracter distinctivo. São egual- 
mente caracteres differenciaes e de um certo valimento entre os enten- 
dedores, os signaes conhecidos pelos nomes de silva e frente aberta. O 
primeiro d'estes signaes consiste n'um laivo branco que principia acima 
dos olhos, no meio da fronte, e acaba nas ventas; o segundo é uma fa- 
cha branca, larga e rectilinea que nasce egualmente no meio da fronte e 
se estende, sem tocar nos olhos, até às ventas. 

Os cavallos mudam de pêllo; estas mudas teem logar principalmente 
na primavera. O novo pêllo que vem substituir o que cae, alonga-se con- 
sideravelmente em Setembro ou Outubro. Este novo pêllo forma um re- 
vestimento que em domesticidade é excessivo, mais quente que o pre- 
ciso e que tem o inconveniente de se impregnar facilmente de suor e de 
conservar-se longo tempo humedecido. É para obstar a estes effeitos que 
se faz a tosquia. A muda não se estende aos pêllos da crina e da cauda; 
estes são persistentes. 


REGIME 


À alimentação dos cavallos domesticos varia nas differentes locali- 
dades; a base porém, é constituida sempre por plantas e grãos. Herbi- 
voros como os bois, os cavallos exigem todavia alimentos mais nutriti- 
vos, porque não teem o estomago complexo d'estes ruminantes, e mais 
abundantes em principios albuminosos e fibrinosos. Os grãos, a aveia e 
a cevada satisfazem inteiramente. Os pastos seccos conveem melhor aos 
cavallos que os de logares pantanosos. | 


| 
, 
| 
| 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 273 


ANDADURAS 


As naturaes e communs, portanto, aos cavallos domesticos e selva- 
gens, são: 0 passo, o trote e o galope. 

O passo é um movimento em quatro tempos. Se o animal levanta 
primeiro, para romper a marcha, a mão direita, por exemplo, ergue em 
seguida o pé esquerdo, depois a mão esquerda e em seguida o pé di- 
reito; e assim successivamente. 

O trote executa-se em dois tempos: o animal levanta simultanea- 


- mente dois membros, anterior e posterior, oppostos, que caem no solo 


tambem simultaneamente; os dois outros fazem o mesmo. À progressão 
é n'este caso duas vezes mais rapida que o passo. | 

O galope realisa-se em dois ou trez tempos: o animal salta, erguendo 
ao mesmo tempo as mãos ambas e seguidamente os dois pés, ao mesmo 
tempo tambem. Quando o galope é rapido ha um momento em que todos 
os quatro membros estão no ar. 

A estas andaduras, que chamamos naturaes por serem, como disse- 
mos, communs a todos os cavallos, ha a acrescentar as artificiaes, que 
são productos da educação. D'estas, as principaes são: o passo travado, 
o furta passo e o entrepasso ou traquinado. 

O passo travado executa-se como o passo ordinario em quatro tem- 
pos: à mão direita segue o pé esquerdo e à mão esquerda o pé direito; 
no entanto os movimentos são muito mais rapidos, mais desembaraça- 
dos e os membros conservam-se sempre muito debaixo do corpo. 

O furta passo é um processo de locomução em que os movimentos 
são mais rasteiros e rapidos que no passo ordinario. Realisa-se em dois 
tempos: o animal levanta simultaneamente a mão e o pé do mesmo lado, 
assim como tambem os descança ao mesmo tempo; depois faz o mesmo 
com os outros membros. Esta andadura é commoda para o cavalleiro e 
propriissima para longos percursos em caminho plano; muitas vezes os 
cavallos adquirem esta andadura por motivo de doença ou cansaço. 

O entrepasso ou traquinado é uma andadura em que os membros 
anteriores se movem como em furta passo e os posteriores como em trote 
ou galope; esta andadura é commum nos cavallos gastos e fracos dos 
rins. 

A velocidade do cavallo varia, diz Brehm, entre um e dois metros e 
sessenta centimetros por segundo. 


VOL, II 18 


274 HISTORIA NATURAL 


SENTIDOS 


Os orgãos sensoriaes do cavallo são todos desenvolvidos e apresen- 
tam uma notavel perfeição. 

À conformação dos olhos permitte-lhe estender a vista, na direcção 
horisontal, a enormes distancias; e comquanto não seja um animal no- 
cturno, é certo que vê de noite muito melhor que o homem. A choroidea 
tem com effeito no cavallo o mesmo brilho que nos felinos, diz Brehm. 

O ouvido é fino e apurado; a grandeza e mobilidade extrema das 
orelhas permitte-lhe receber e condensar ainda os sons mais fracos e 
distantes. 

O olfato é tambem no cavallo muito delicado; a amplitude das fos- 
sas nasaes e a mobilidade das ventas são condições que tornam o orgão 
de olfação d'este solipede propriissimo para receber as impressões odo- 
riferas. O cavallo, com efeito, presente o homem à distancia de meia 
legua e descobre de muito longe os logares em que ha agua. «É sabido, 
diz Brehm, que as caravanas dos arabes, dos tartaros e dos mongoes, 
assim como os pastores hespanhoes na ilha de Caraca aproveitam, nos 
calores do estio, o fino olfato dos cavallos para descobrirem depositos 
d'agua ignorados. Durante os quarenta annos que viveram no deserto, 
os hebreus recorrem para o mesmo fim ao instincto destes solipedes. 
Os cavallos africanos escarvam o solo para descobrirem as nascentes cuja 
presença o instincto lhes denuncia.» ! 

O gosto é tambem no cavallo apuradissimo. Menault escreve: «A de- 
licadeza do cavallo na escolha dos alimentos excede a de todos os herbi- 
voros. O paladar é desenvolvido e o labio superior dotado de uma grande 
facilidade de movimentos, o que permitte ao animal palpar e juntar os 
alimentos.» 2 

A sensibilidade geral ou tactil é grande n'este solipede. Mao grado 
o péllo denso que a cobre, a pelle é delicada na apreciação das impres- 
sões; a prova é o. incommodo que ao cavallo produzem as picadas dos 
insectos. 


1! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 331. 
2 Menault, Vintelligence des animauz, pg. 241. 


2. 


deem 


es 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 275 


VOZES 


A voz do cavallo, que tem o nome de rincho ou relincho, consiste, 
como se sabe, n'uma serie de sons entrecortados, muito agudos ao prin- 
cipio, mais graves, claros e sonoros depois. Esta voz modula-se de cinco 
maneiras differentes para exprimir sentimentos distinctos e dá origem 
assim a outras tantas vozes. 

Na voz ou relincho que exprime contentamento, os sons crescem 
progressivamente em intensidade; adquirem n'este caso o tom mais forte 
e o mais agudo. 

Na voz que exprime um desejo, os sons prolongam-se, tornando-se 
cada vez mais graves. 

No relincho que denuncia colera, os sons são curtos, agudos, muito 
entrecortados. 

Na voz produzida pelo médo, os sons são curtos, graves e roucos. 

O relincho que a dór produz é um gemido, especie de tosse suffo- 
cada, de som grave e surdo que acompanha os movimentos respiratorios. 


INTELLIGENCIA E APTIDÕES 


«O cavallo, diz Scheitlin, tem as noções do tempo, do espaço, da 
luz, das côres, da forma, da familia, dos visinhos, dos amigos e inimi- 
gos, dos companheiros, do homem e das coisas. Tem memoria, intendi- 
mento, imaginação e sensibilidade. É susceptivel de paixões: de amor e 


“odio. O intendimento d'este animal aperfeiçoa-se pela educação.» A me- 


moria do cavallo é grande, sobretudo a memoria dos logares. Reconhece 
melhor do que o homem que o dirige um caminho que uma vez percor- 
reu. Seguro de si, resiste teimosamente ao dono que o conduz por cami- 
nho errado. Por estradas em que tenha passado, pode bem o cavalleiro 
ou o cocheiro adormecer, que o animal caminhará até ao termo da jor- 
nada, sem tergiversar. Ao fim de muitos annos, reconhece o alpendre 
em que uma vez se recolheu e pára-lhe espontaneamente à porta. 

A memoria das pessoas é tambem excellente no cavallo; reconhece, 


passados annos, o antigo dono e, desde que o vê, procura manifestar o 
: x* 


276 HISTORIA NATURAL 


contentamento por todos os modos, relinchando, estendendo para elle o fo- 
cinho, saltando-lhe em torno. Se o monta alguem que não seja o cavalleiro 
habitual, o solipede reconhece isto desde logo e para certificar-se volta a 
cabeça para traz. Conhece a voz e comprehende as palavras do dono e 
dos creados que o tratam. Abandonado no meio de um caminho, procura 
a casa do dono e entra só na cavallariça. «Em 1809, refere Huzard, pro- 
fessor da escóla de Alfort, os tyrolezes, por occasião de uma das suas 
insurreições, aprisionaram quinze cavallos bavaros de que principiaram 
a fazer uso, montando-os; mais tarde, tendo um encontro'com um esqua- 
drão do regimento bavaro, os cavallos ao avistarem o uniforme dos seus 
antigos cavalleiros, metteram a toda a brida, levando sobre si os novos 
possuidores, a despeito de todos os esforços em contrario por parte d'es- 
tes, para as fileiras dos bavaros, que fizeram prisioneiros todos os tyro- 
lezes.» 

As qualidades intellectuaes do cavallo tornam-o apto a aprender 
tudo quanto podem saber o elephante e o cão. Todos temos visto do que 
este animal é capaz nos circos em que o exhibem adestrado. Á voz do 
educador ergue-se sobre os membros posteriores, mantendo alguns ins- 
tantes uma posição quasi erecta; obedecendo à mesma voz ou ao sim- 
ples estalido de um chicote, ajoelha, faz corcovos, executa todos os pas- 
sos, ainda os mais difficeis, galopa e trota com uma velocidade maior ou 
menor segundo as ordens que recebe, deriva repentinamente de um 
passo a outro passo, de um galope a um trote, do trote ao passo, estaca 
em meio da corrida mais violenta, finalmente dança em passos differen- 
tes e adequados ao som da musica. Um cavallo bem adestrado é para 
nós um verdadeiro motivo de admiração. Em taes condições elle com- 
prehende todos os movimentos das mãos e dos pés do dono, intrepreta 
todas as manobras do chicote e a palavra; elle tem dentro de si, como | 
diz Scheitlin, um pequeno diccionario. É tal e tão progressivo o intendi- 
mento do cavallo que, diz o naturalista citado, nós não devemos pergun- 
tar o que elle pode aprender, mas sim que haverá que elle não possa 
aprender. À sensibilidade moral é tambem no cavallo um facto incontes- 
tavel; além dos sentimentos, vulgares em outras especies, de affeição e 
odio, manifestam muitos outros. A emulação é um d'elles. Os cavallos de 
corridas possuem em alto grao esta emoção. William Youatt, citado por 
Figuier, conta o caso de um cavallo corredor, habituado a sair victorioso 
de quasi todos os torneios, mas que um dia, tendo a infelicidade de con- 
correr com um adversario sério, e vendo que este lhe ganhava a dianteira 
deu para elle um salto desesperado e o agarrou a dentes pela maxilla 
inferior, obrigando-o assim a parar. Foi dificil, acrescenta o escriptor 
inglez, separar os dois animaes. Um caso analogo, narrado pelo mesmo 
escriptor, é o de um cavallo de corridas que vendo o adversario adian- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 217 


tar-se lhe deitou os dentes a uma perna com violencia tal que para o 
obrigar a deixar a presa foi preciso que os jockeys se desmontassem. O 
sentimento da emulação é tal no cavallo de corridas que elle só deve 
bastar para estimulo dos contendores. 


EDADES 


No primeiro anno de existencia o cavallo apresenta um pêllo lanoso 
e as crinas e a cauda curtas, hirtas e crespas; no segundo anno o pêllo 
principia a tornar-se lusidio e as crinas e a cauda crescem e tornam-se 
lisas. 

À edade do cavallo reconhece-se pelos dentes incisivos; este conhe- 
cimento é importante, porque só por si decide muitas vezes do valor do 
animal. 

Os cavallos teem quarenta dentes e as eguas trinta e seis. Os den- 
tes dividem-se em doze incisivos, quatro presas ou colmilhos e vinte e 
quatro mollares. Os dentes incisivos são seis em cada maxilla, seguidos 
de dois colmilhos, um direito, outro esquerdo e seis queixaes por lado. 
As presas, sobretudo as da maxilla inferior, faltam muitas vezes nas 
eguas. Entre os colmilhos e os mollares existem, de cada lado, espaços 
desguarnecidos, que se chamam barras e que servem, como dissemos, 
para a collocação do freio; estes espaços correspondem aos angulos da 
bocca. Os incisivos teem denominações particulares: chamam-se pinças 
os dois mais anteriores de cada maxilla, medios os dois immediatos, um 
de cada lado e cantos ou dentes Baba os ultimos. De ordinario o 
potro nasce sem dentes; mas se alguns apresenta, são dois mollares, 
nunca incisivos. Ao fim de oito dias as pinças apparecem e durante todo 
O primeiro mez rompe um terceiro mollar; os medios nascem dos trinta 
aos quarenta dias e entre os seis mezes e meio e os dez saem os cantos 
e o quarto mollar. Termina assim a primeira dentição ou dentição do leite 
que se distingue da segunda, porque os dentes são n'aquella mais pe- 
quenos, mais brancos e mais estreitos na base do que n'esta. 

A segunda dentição principia entre os dois annos e meio e os trez. 
Os primeiros dentes de leite que caem e se substituem são as pinças. 
Dos trez annos e meio aos quatro são substituidos os medios e principiam 
a apparecer tambem as presas inferiores. Dos quatro annos e meio até 


278 HISTORIA NATURAL 


aos cinco os cantos são substituídos, rompem as presas superiores € ap- 
parece o quinto mollar. Assim o cavallo de trez annos deve apresentar 
quatro incisivos de segunda dentição; o de quatro annos, oito; e o de 
cinco, deve possuil-os todos. 

Na superficie da corda dos incisivos ha uma cavidade que vae len- 
tamente desapparecendo, à medida que o uso ou o attrito gastam estes 
dentes; este phenomeno é o que se chama razamento. Por elle podemos 
estabelecer ainda caracteres que sirvam para conhecer a edade do ca- 
vallo. Com efeito, nas pinças inferiores da primeira dentição a cavidade 
desapparece aos dez mezes, nos medios ao fim de um anno e nos cantos 
ao fim de dois. Nos dentes da segunda dentição o desapparecimento da 
cavidade ou completo razamento dá-se para as pinças aos seis annos, 
para os medios aos sete e aos oito para os cantos. Dizem então os en- 
tendedores que o cavallo está cerrado. Dos oito annos em diante não ha 
signaes certos para reconhecer a edade do cavallo; pode apenas julgar-se 
della, approximativamente, pelo comprimento, pela côr e configuração 
dos dentes. 

Não é possivel dizer com exactidão o limite da vida do cavallo do- 
mestico, porque elle varia segundo um grande numero de condições entre 
as quaes figuram em primeira linha o clima, a alimentação e o genero 
de trabalho. Ha exemplos de longevidade em que o termo da vida foi 
aos cincoenta ou sessenta annos; são raros taes casos. Entre nós o ca- 
vallo de vinte annos está de ordinario estropeado, incapaz de qualquer 
serviço. 

“Na Russia e na Inglaterra existem hospitaes destinados aos cavallos 
invalidos que na edade do vigor e da força se nobilitaram por serviços 
extraordinarios. 


DOENÇAS 


O cavallo está exposto a um grande numero de doenças medicas € 
cirurgicas. As principaes são: o esparavão, temor com ankilose ou im- 
possibilidade de movimentos na articulação tibio-tarsica; a dilatação in- 
famatoria das glandulas submaxillares; a sarna, erupção secca ou hu- 
mida que faz cair o pêllo; o mormo, inflamação pustulosa, mortal e de 
grande contagiosidade, mesmo para o homem; a doidice, inflamação do 
cerebro ou membranas envolventes e correspondente, portanto, na nossa 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 279 


especie à encephalite e meningite; a catarata e finalmente as doenças 
produzidas pela presença de entozoarios e epizoarios. 


DESTINOS 


Desde o cavallo de Lucius Vérus, que vestia purpuras e que teve 
um tumulo de marmore, e o cavallo de Caligula que foi pontifice e que 
esteve para ser consul até aos miseros cavallos de praça, um dia inteiro 
atrelados a um carro, que differenças de sortes, que variedades de des- 
tinos! 

Já o fizemos notar nas considerações geraes ácerca dos mamiferos : 
poucos animaes são tão infelizes como o cavallo. Não que elle seja mais 
mal tratado ou forçado a trabalhar mais que o jumento ou o boi, por 
exemplo; mas porque, sendo estimado na edade do vigor e da elegancia, 
é abandonado precisamente quando mais carecia de um tratamento bom. 
Tambem não é raro, como fizemos notar n'outro ponto, que o cavallo 
bem alimentado e cuidado com esmero na edade do aprumo por um pro- 
prietario rico, venha a passar, desde que não serve para as exhibições 
elegantes, às mãos de algum rude carreteiro que o explora e maltrata. 
Esta transição do luxo à miseria, da vida elegante à servidão abjecta, 
deve ser horrivel para um animal intelligente e susceptivel como o ca- 
vallo. O jumento e o boi trabalham muito, trabalham toda a vida e são 
muitas vezes mal alimentados; mas tambem como nunca conheceram vida 
melhor, não teem a fina sensibilidade, os resentimentos, a consciencia 
de uma situação desgraçada. Vivem mal, mas viveram sempre assim e 
não aspiram (perdoem-me o termo os psycologistas) a viver melhor. Não 
é este muitas vezes o caso do cavallo; por isso o consideramos mais in- 
feliz. 


USOS E PRODUCTOS 


O cavallo, como o boi, é um companheiro e um collaborador do ho- 
mem. Brehm considera-o, não sem motivo, um dos mais poderosos ins- 
trumentos da civilisação. E com effeito, ou seja no campo de batalha, ou 


280 HISTORIA NATURAL 


seja nas aldêas carregando e tomando parte nos trabalhos de lavoira, ou 
ainda nas cidades puxando a carros ou servindo na equitação, o cavallo 
presta ao homem serviços consideraveis e em parte mesmo insubstitui- 
veis. 

Mas além destes serviços prestados pelo animal durante a vida, de- 
vemos considerar ainda que teem valor as substancias que nos lega, 
morrendo. Com effeito, Parent-Duchâtelet calcula nos Annaes de hagiene 
publica que um cavallo, morto por doença ou abatido por qualquer mo- 
tivo, pode ainda produzir ao proprietario, que saiba exploral-o bem, uma 
quantia que oscilla entre sessenta e dois e cento e quatorze francos. Pa- 
rent-Duchâtelet faz o calculo minuciosamente, estabelecendo parcella a 
parcella, os preços da carne, da pelle, dos ossos, dos tendões, dos cas- 
cos, das crinas, do, sangue, da gordura e das visceras, porque de todas 
estas partes tira proveito a industria e o commercio. Em Portugal um 
cavallo morto é uma coisa inutil, um pasto de cães vadios. 

- A carne do cavallo é, no dizer de Larrey e de Amédée Latour, 
excellente ao paladar e muito saudavel. Larrey, o cirurgião celebre, pres- 
crevia-a aos seus doentes com os melhores resultados. Renault, director 
da escóla de veterinaria de Alfort, deu em Agosto de 1855 um jantar em 
que todos os pratos eram de carne de cavallo ou de boi; os convivas 
acharam mais delicados os primeiros. A repugnancia que geralmente se 
sente pela carne do cavallo, ou antes pela idéa de a comer, porque pou- 
cos chegam a proval-a, é um dos muitos preconceitos da educação aca- 
nhada que recebemos. Como os celtas sacrificavam aos seus deuses os 
cavallos cuja carne comiam depois, o clero catholico, inimigo enragé da 
idolatria, considerou essa carne immunda. O papa Gregorio Ir escrevia 
a S. Bonifacio, bispo da Germania, que prohibisse o emprego da carne 
do cavallo sob pena de severas penitencias. Vem d'ahi talvez, como pre- 
tende Keyssler, o desprezo geral por um alimento que quantos o teem 
provado declaram excellente. Mas seja esta ou outra a origem da nossa 
repugnancia pela carne cavallar, a verdade é que ninguem saberá justi- 
ficar esse sentimento, ninguem saberá dizer porque come a carne do boi 
e não come a do cavallo. Ora quando pensamos que se abandonam pelos 
montes centenas de cavallos velhos que a morte inutilisa e nos lembra 
ao mesmo tempo a alimentação miseravel da nossa gente do campo e 
ainda da maioria dos operarios das cidades que raras vezes comem carne, 
não podemos deixar de sentir o preconceito geral. Devemos convir em 
que, se é verdade existir muita miseria real e inevitavel, é verdade 
tambem que ha muita outra que só os prejuizos e as falsas educações 
sustentam. O lavrador pobre que não come carne uma unica vez no anno 
é o mesmo que atira à margem um cavallo cujo musculo Larrey e La- 
tour chamam «salutar, nutritivo, aromatico e magnifico ao paladar.» É a 


se 


P âquien ! 


1 O CavALLO ARABE. 2. O CAavALLO DE PERCHE. 


Magalhães & Momz, editores. 


e, 


Was (E 
SE pé: “e 
Ed! 


Eta, 
Ro, 
ST 


E na 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 281 


prodigalidade do mendigo! Latour diz: «ÃO povo não falta carne; não 
perca elle milhões de kilogrammas que pode utilisar como alimento. 


RAÇAS CAVALLARES 


Os cavallos constituem uma especie unica, dividida porém n'um 
grande numero de raças. Não as estudaremos todas, mas as mais nota- 
veis e mais estimadas. 


1. Raças arabes 


Entre todas as raças cavallares do Oriente merecem o primeiro logar 
as raças arabes. Estas raças são para os indigenas, apreciadores e en- 
tendedores sem rival, muito numerosas. Em geral, tendo-se pouco em 
conta pequenas differenças morphologicas que à grande maioria passam 
desapercebidas e que só um apreciador sabe vêr, falla-se no singular do 
cavalo arabe, como se existisse em realidade um só typo, uma especie 
unica. E os proprios naturalistas, pondo de parte pequenas differenças 
que não conhecem, descrevem um unico typo, um pouco ideal, cer- 
tamente, porque é preciso que todas as raças arabes ahi se achem conti- 
das. Brehm, por exemplo diz com inteira franqueza: «E-me impossivel 
referir todas as minuciosidades que os arabes tomam em consideração 
para exaltar a bondade do cavallo; nós, homens do norte, não as sabe- 
mos e os nossos maiores entendedores são forçados a confessar, para 
vergonha nossa, que não conhecem o cavallo arabe.» * 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 361, 


282 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


O cavallo arabe é de todos os do mundo o mais bello e o mais ele- 
gante. É bem construido, de formas sêccas, mas arredondadas e agrada- 
veis e de pellê finissima. Não é grande; raras vezes excede metro e meio 
de comprimento. Tem a cabeça larga, a região frontal quasi quadrada, 
as ventas largas e muito abertas, a bocca pequena, as orelhas curtas, 
direitas e muito moveis, o peito largo, os membros seccos e nervosos € 
os cascos rijos. Sob a pelle lisa de péllo curto e macio desenham-se ni- 
tidamente as veias que lhe percorrem o corpo em todas as direcções. O 
pêllo é de ordinario russo e torna-se branco com a edade; ha porém in- 
dividuos pretos, baios e alazões. O pêllo fino e sedoso, de reflexos dou- 
rados ou prateados, tem o brilho do setim. A musculatura é poderosa. 
Os olhos são vivos e salientes. À crina não é muito abundante; os seus 
pêllos são finissimos. A cauda é pouco coberta na origem; em compen- 
sação os pêllos extensos que a formam são muito abundantes na parte 
inferior. 

Nenhum cavallo possue como este a belleza, a força e a agilidade 
ao mesmo tempo. É sobrio; e no entanto póde percorrer habitualmente 
oitenta kilometros por dia. 

O arabe não estima o cavallo sómente pela belleza de formas, mas 
ainda e principalmente pelas qualidades. Tanto assim é que os que es- 
colhe para a propagação da raça nem sempre são os mais bem feitos; 
muitas vezes os mestiços são muito mais bellos que os cavallos de sangue 
puro. O famoso Godolphin, cavallo arabe que mais contribuiu para a 
creação da actual raça cavallar ingleza, era feio e ligára-se-lhe tão pouca 
importancia que andava atrelado a uma carroça de aguadeiro em Paris. 
Vizir, um outro cavallo celebre de cobrição, era tambem feio; e Turch- 
mainati, o ascendente da raça tão estimada de Trakenen, na Prussia, 
puxava à malla do correio entre Damas e Alep. Ahi o Do stodo il um Lapre- 
ciador que o comprou e trouxe para a Europa. 

«Os arabes, diz Brehm, estão firmemente convencidos de que, atra- 
vez dos seculos, os seus cavallos se teem conservado puros; e na reali- 
dade é extremo o cuidado com que vigiam a reproducção para que não 
haja mistura de sangue estranho. O acto sexual e o parto nunca se rea- 
lisam senão diante de testemunhas. O proprietario de um bom cavallo 


ia 


Eme 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 283 


de cobrição deve emprestal-o para copular egua de raça; sendo esses 
cavallos muito estimados, os donos de boas eguas fazem muitas vezes 
viagens de centos de leguas para as levarem à cobrição. Em troca do 
favor prestado, o dono do cavallo recebe uma certa porção de cevada, 
um-carneiro ou um odre de leite que o possuidor da egua lhe leva. 
Nunca acceita dinheiro; se tal fizesse ficaria sujeito a que o injuriassem 
dizendo-lhe que traficow com o amor do cavallo. Tal phrase é deshonrosa 
para um arabe. Só quando ao possuidor de um bom cavallo de cobrição se 
pede que o empreste para copular uma femea de raça inferior é que elle 
tem o direito de recusar. Entre os arabes, famosos conhecedores de ra- 
ças, tal caso rarissimas vezes se dá.» ! A geneologia dos cavallos, entre 
estes povos, é tão authentica como a das familias mais distinctas da no- 
bresa; é o que perfeitamente se explica pela presença de testemunhas 
nos actos do coito e da parturição. A egua é tratada durante a prenhez 
com todos os desvellos. O potro vive, desde os primeiros dias, na tenda 
do arabe, como se fizesse parte integrante da familia; é por isso que os 
cavallos arabes são verdadeiros animaes domesticos, como o cão. Po- 
dem-se com segurança deixar ao pé das creancinhas, com que muitas 
vezes brincam, à maneira dos grandes cães. 

O potro recebe além do leite materno o da femea do camello. À ce- 
vada é-lhe fornecida, desde que os dentes podem tritural-a; depois de 
desmamado principia a dar-se-lhe a melhor herva, continuando porém a 
cevada a formar a base de alimentação. 

A educação do cavallo arabe principia aos dezoito mezes e prolon- 
ga-se até à edade adulta. Ao princípio é sempre uma creança que o 
monta, que o leva a beber ou ao pasto, que o limpa, emfim que d'elle 
cuida. Assim aprendem simultaneamente o cavallo e a creança: um a ser 
um docil animal de sella, o outro um destro cavalleiro. 

Aos dois annos põe-se pela primeira vez o selim e o freio ao cavallo. 
Procede-se com precaução: o selim é sempre muito leve e o freio guar- 
necido de lã e muitas vezes humedecido em agua e sal para que o so- 
lipede se lhe habitue facilmente. Aos trez annos principia a exigir-se-lhe 
trabalho, obrigando-o ao exercicio das forças que possue e não se lhe 
negando quanto alimento quizer. A educação do cavallo só se considera 
completa aos sete annos. 

O cavallo é para o arabe um verdadeiro thesouro; a morte do ani- 
mal impõe lucto de mezes ao dono. «O cavallo, dizem os arabes, é a 
mais bella creatura depois do homem: o mais nobre mister é educal-o; 
o maior gozo montal-o; a melhor das occupações domesticas, tratal-o.» 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 368. 


284 HISTORIA NATURAL 


É difficil obter do arabe um bom cavallo de cobrição; mas mais diffi- 
cil é obter uma egua. À femea com effeito, é tida em maior valor; não 
ha dinheiro que a pague a um arabe. 

Na dedicação extrema do arabe pelo cavallo deve ter exercido uma 
grande influencia o principio de Mahomet: —ganharás tantos dias de in- 
dulgencia quantos os grãos de cevada que deres cada dia ao teu cavallo. 


2. Raça persa 


Os cavallos persas tornaram-se celebres, seculos antes dos arabes. 
Eram tidos na conta dos melhores para a guerra e formavam a mais se- 
lecta cavallaria do Oriente. Os parthas quando queriam propiciar os deu- 
ses por um sacrificio solemne e extraordinario, immolavam-lhes um ca- 
vallo persa. As raças conservam-se ainda puras. 


CARACTERES 


Os cavallos persas teem grandes affinidades com os arabes. São po- 
rém superiores a estes em belleza de formas. Teem a cabeça mais es- 
treita e a garupa mais bem feita. 


APTIDÕES E EMPREGO 


Satisfazem a todos os fins em que se utilisam os cavallos arabes. 
São mais velozes do que estes na carreira, mas não a sustentam por 
tanto tempo. Assim n'uma corrida de confronto entre um cavallo arabe e 
um cavallo persa, vê-se sempre que este ganha ao principio uma grande 
dianteira que mais tarde perde invariavelmente, porque se fatiga sempre 
mais depressa que o adversario. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 285 


3. Raças turcas 


O cavallo turco é um mestiço que resulta do cruzamento dos caval- 
los persa e arabe. : 


CARACTERES 


Assemelha-se notavelmente ao cavallo arabe, principalmente na ca- 
beça. Para o distinguir d'este é mister ser-se um consumado entende- 
dor; a unica differença apreciavel consiste em que é mais alto. 


APTIDÕES E EMPREGO 


Assim como pelas formas physicas se approxima mais do cavallo 
arabe, pelas qualidades e aptidões assemelha-se mais ao cavallo persa. 
É de notar que na Turquia os cavallos inutilisam-se muito rapidamente, 
porque são, em geral, mal alimentados e porque os forçam a exercicios 
violentos depois de os terem conservado na immobilidade durante muito 
tempo. Um costume irracional que existe na Turquia e que deve tambem 
concorrer muito para estragar os cavallos, é o de os manterem nas ca- 
vallariças prezos pelos quatro membros. Depois d'este repouso forçado 
durante o qual os cavallos engordam excessivamente, veem as marchas 
demoradas em que se lhes exige uma velocidade com que não podem, 
não só pelo enfraquecimento dos musculos, como pelo pezo. 


4. Raça barba ow numida 


O cavallo numida que muitos conhecem mais pelo nome de cavalto 
argelino goza sob o ponto de vista das suas aptidões para a guerra, de 
uma reputação extraordinaria que lhe vem do tempo dos romanos. O 
clima, a natureza da vegetação, as condições do solo e a educação espe- 


286 HISTORIA NATURAL 


cial que recebe desde tempos remotissimos, fizeram d'este cavallo o me- 
lhor para a guerra. As luctas quasi constantes das tribus umas com as 
outras, implicando o emprego frequente d'este cavallo, suggeriu tambem 
a idéa de, por meio de uma reproducção sempre vigiada e de uma ali- 
mentação e educação proprias, conservar inalteraveis as suas famosas 
disposições. | 


CARACTERES 


O cavallo numida approxima-se muito do cavallo arabe. Tem a mesma 
seccura de carnes, a mesma força, o mesmo porte altivo. As formas são 
bellas; a volta do ici é graciosissima. 


APTIDÕES E EMPREGO 


O cavallo numida ou argelino é, como foi dito, particularmente apro- 
priado aos exercicios da guerra. Mas, além d'isto, a rijeza da muscula- 
tura e o vigor dos pulmões, tornam-o propriissimo para a corrida. É ro- 
bustissimo. Na guerra da Crimeia, ao passo que os cavallos designa e 
inglezes eram dizimados, o iria: argelino resistia. 


o. Raças inglezas 


Dos cavallos inglezes o mais importante a considerar é o cavallo 
das corridas, o thorough bred, o puro sangue. Á opinião muito vulgar 
que faz oiienr este cavallo do cruzamento das raças arabes com as ra- 
ças do norte da Europa, oppõe-se Brehm vigorosamente. Segundo este 
auctorisado naturalista, o cavallo corredor inglez é o cavallo arabe de 
puro sangue que as condições do clima insular e uma educação especia- 
lissima trouxeram ao typo actual. É pois perfeitamente justa, segundo o 
escriptor citado, a denominação ingleza de thorough bred. Brehm adduz 
provas historicas em abono da sua aflirmativa; além d'isso faz notar que 
os cavallos do Oriente cruzados entre si, educados com sollicitude espe- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 287 


cial e creados com alimentação succiúlenta adquirem maior velocidade 
que a normal e dão filhos de mais elevada estatura que a d'elles. 


CARACTERES 


O cavallo de corridas é o melhor de quantos a Inglaterra possue. 
Aos caracteres peculiares da raça arabe veem juntar-se caracteres se- 
- cundarios que os distinguem do typo oriental. O cavallo corredor é mais 
alto que o cavallo arabe e tem o corpo mais alongado e menos arredon- 
dado que elle. A gymnastica do galope tornou-lhe os membros mais al- 
tos, mais delgados e a garupa mais elevada. 


APTIDÕES E EMPREGO 


- 


O cavallo corredor inglez não possue nem a graça, nem a flexibili- 
dade dos cavallos orientaes. A dureza do seu trote é tal que é preciso 
montal-o de um modo particular: á ingleza. É pouco docil ao manejo e 
absolutamente improprio para as manobras da equitação. A verdadeira 
aptidão do cavallo inglez é a corrida; o seu destino é tambem esse quasi 
exclusivamente. 

O cavallo corredor é hoje na Inglaterra tratado com os mesmos cui- 
dados com que entre os arabes é o seu congénere oriental. A educação, 
embora differente, porque visa a um fim distincto, é tão desvelada como 
a do cavallo arabe e o tratamento e creação egualmente sollicitos. Ha 
tambem na Inglaterra, como entre os arabes, as arvores genealogicas 
que authentificam a pureza dos cavallos de corridas. Essas arvores ge- 
nealogicas, stud-book, foram estabelecidas ha sessenta annos e não ce- 
dem na exactidão com que estão feitas às correspondentes dos arabes. 

Os inglezes apontam tambem com meticuloso cuidado os nomes de 
todos os cavallos que se tornam celebres nas corridas, fazendo minu- 
cioso archivo dos premios obtidos em tal ou tal data, em tal ou tal hyp- 
podromo. 

As corridas de cavallos remontam seguramente ao seculo xIr; a sua 
instituição regular porém, data do reinado de Carlos 1. A mais celebre 


288 HISTORIA NATURAL 


das corridas inglezas é uma anual, a Derby-Stakes, que se realisa em 
Epsom. Concorrem a ella todas as celebridades do sport e os melhores 
cavallos corredores. O premio grande d'essa corrida eleva-se a perto de 
cento e oitenta mil francos, ou mais de trinta e dois contos de reis. 

William Youatt lastima que nas corridas se tenha introduzido o bar- 
baro costume prejudicial de esporear os cavallos. Os jockeys represen- 
tam hoje nas corridas um papel que devia pertencer exclusivamente aos 
cavallos. Segundo este auctor, o cavallo inglez possuiu já um sentimento 
de emulação e de obediencia maior que hoje possue; e este declinar de 
qualidades boas deve attribuir-se às artificiaes e crueis excitações dos 
cavalleiros. Em outro tempo, o cavallo, quando a corrida principiava, 
sabia bem o que lhe cumpria fazer até ao fim; e então, o chicote e a es- 
pora em uso hoje, eram objectos inuteis. 


Além do cavallo de corridas possuem os inglezes outras raças des- 
tinadas a fins differentes; entre ellas merece menção especial o hunter, 
o cavallo de caça, de construcção mais delicada, mas ao mesmo tempo 
mais forte, mais vigoroso ainda que o cavallo de corridas. 


6. Racas francezas 


Os cavallos francezes gozavam na antiguidade de uma grande fama; 
os romanos tiveram na mais alta estima os cavallos gaulezes. Na edade 
media tinham universal reputação os cavallos normandos, fortes e ageis 
e os limosinos, excellentes cavallos de parada. 

A extincção do feudalismo e o desapparecimento das coudelarias dos 
ricos senhores marcam na historia o começo da degradação das raças 
francezas. Nos ultimos quarenta annos, imitando a Inglaterra, a França 
tem procurado restabelecer as famosas e antigas raças nacionaes pelo 
cruzamento com os cavallos arabes e barbos. A instituição de corridas 
periodicas tem contribuido tambem para o melhoramento das raças fran- 
cezas. 


7. Raças allemãs 


Os cavallos allemães são mestiços: proveem do cruzamento de eguas 
indigenas com cavallos de cobrição arabes, inglezes, barbos e hespanhoes. 
Ha raças differentes desses cavallos; mas em geral pode dizer-se que 
são de elevada estatura, solidos, ligeiros e bem feitos. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 289 


APTIDÕES E EMPREGO 


Das raças allemãs, umas são exclusivamente empregadas para tirar 
carros, outras para a cavalaria. Ha-as que se empregam, como o cavallo 
hanovriano, indifferentemente para os dois serviços. 


8. Raça hespanhola 


O typo mais notavel de cavallos hespanhoes é o andaluz. 
CARACTERES 


É menos delgado e comprido que o cavallo inglez, mas tem o peito 
“mais largo e o pescoço mais forte e mais levantado. Tem a região fron- 
tal curta e a cabeça volumosa. No restante, é o cavallo andaluz um dos 
que mais se approximam do typo arabe. 


APTIDÕES E EMPREGO 


É flexivel, elegante e dotado de extrema coragem. Os romanos tive- 
ram este animal em alta consideração; e por muito tempo foi conside- 
rado o primeiro cavallo da Europa. Nos fins do seculo xvr era conside- 
rado o cavallo de sella por excellencia, porque reunia no mais alto 
grao a flexibilidade e o equilibrio, duas condições exigidas pela alta es- 
cóla de equitação. Era a este equideo que em toda a parte se recorria 
para a multiplicação dos cavallos de guerra. Ainda hoje o principal des- 
tino do cavallo andaluz é o manejo de cavallaria. 


VOL, III 19 


290 HISTORIA NATURAL 


9. Raças portuguezas 


Neste ponto, como n'aquelle em que tratamos das raças bovinas do 
nosso paiz, reportamo-nos a um trabalho do snr. Pedro Posser inserto 
nas Maravilhas da Creação e feito sobre o Recenseamento geral dos ga- 
dos em 1870 do snr. Silvestre Bernardo Lima, publicação que não pude- 
mos lêr. N'esse trabalho os typos portuguezes são reduzidos a dois: o 
galliziano e o betico-lusitamo. 


Typo galliziano 


Distinguem este typo os caracteres seguintes: «Cabeça grossa, pelo 
geral mais curta do que comprida, amartellada, ganachuda, de orelhas 
pequenas e direitas; costado ligeiramente arredondado, dorso e rins 
curtos e largos: garupa um tanto horisontal e mais vezes larga que es- 
treita, de ancas grossas, sensivelmente pontudas; cauda de sabugo grosso, 
bem crinada de grossas crinas; membros pelo geral menos mal apruma- 
dos, grossos de osso e pelle, de espaduas um tanto direitas e de ordi- 
nario machinhudos; estatura pelo mais commum abaixo de um metro e 
trinta e dois centimetros.» | 

Os gallizianos são, segundo o trabalho citado, de rija tempera, muito 
ciosos e rufões por indole. | 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O solar d'este typo é ao norte do paiz, principalmente na provincia 
do Minho; este solar estende-se, raias a fóra, pela Galliza, provincias 
vascongadas e Navarra. 


Typo betico-lusitano 


Affirma-se este typo pelos seguintes caracteres: «Cabeça delgada ou 
secca, direita ou um tanto acarneirada, de regular comprimento (pec- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 291 


cando mais vezes por comprida que por curta), de orelhas regulares, 
bem collocadas e delgadas; pescoço mais ou menos grosso, direito e um 
tanto rodado, e de boa volta e bem crinado; costado ligeiramente arre- 
dondado tirante a chato, dorso um pouco ensellado; garupa regular, não 
pontuda de ancas e um tanto descaída; cauda de baixa inserção bem cri- 
nada e de crinas finas; ventre um pouco volumoso; membros um tanto 
acurvilhados, os de traz, espaduas não mui obliquas, ante-braços um 
pouco curtos, canellas um tanto compridas, e assim tambem por vezes 
as quartellas; estatura variavel entre um metro e trinta e oito centime- 
tros e um metro e cincoenta centimetros.» 

Os cavallos d'este typo são de boa indole, mas não teem a rija 
tempera dos gallizianos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O solar da producção d'este typo abrange toda a extensão da Betica 
e Lusitania dos romanos, a provincia de Andaluzia e Extremadura hespa- 
nhola e todo o Portugal d'hoje, nomeadamente as provincias do sul. 


No typo betico-lusitano, que é o mais geral do nosso paiz, ha ainda 
a estabelecer uma distincção entre as castas finas e as communs. 

Nas castas finas comprehendem-se os individuos saídos de bons re- 
productores e creados com esmero. Nas castas communs comprehendem-se 
principalmente os exemplares em que as influencias naturaes se fazem 
sentir mais vivamente que a acção do homem. 

Como exemplo das castas finas cita-se o cavallo de Alter. A marca é 
de cincoenta e cinco a cincoenta e oito pollegadas; os que não attingem 
estas dimensões chamam-se facas. 

Entre as castas communs, menos esveltas nas formas, os melhores 
typos são os cavallos alemtejanos. Os beirões distinguem-se dos typos . 
das provincias do sul, principalmente pelo maior comprimento do corpo 
e da cabeça que é estreita e de olhos pequenos e pouco aflorados. 


292 HISTORIA NATURAL 


OS JUMENTOS 


Zoologistas ha que incluem os jumentos no grupo generico dos ca- 
vallos propriamente ditos; à maneira porém de Brehm e de Figuier, fa- 
remos d'estes solipedes um genero à parte, estabelecendo, como esses 
auctores, os fundamentos da divisão. 


CARACTERES 


Os cavallos apresentam, como dissemos, um manto uniforme ou 
quasi uniforme; pelo contrario, os jumentos apresentam sempre ao longo 
da columna vertebral uma facha mais escura que a côr geral, facha que 
muitas vezes é crucialmente cortada por uma outra ao nivel da espa- 
dua. Muitos individuos apresentam mesmo nos membros, acima ou abaixo 
dos joelhos, uma certa porção de pêllo muito mais carregado na côr. As 
orelhas dos jumentos são extremamente mais compridas que as dos ca- 
vallos e a cauda crinada apenas na extremidade livre por péllos curtos 
e rectillineos. Os cascos dos jumentos são mais ovaes que os dos cavallos, 
a espadua é menos elevada e o numero de callos é de dois sómente, um 
em cada membro anterior. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA 


Com quanto largamente espalhados hoje por toda a parte, os ju- 
mentos proveem exclusivamente da Asia e da Africa, sua verdadeira pa- 
tria. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 293 


v 


O ONAGRO 


É uma das especies selvagens do genero. Sabe-se pelos escriptores 
antigos que o onagro habitou toda a Asia Menor, a Syria, a Persia e a 
Arabia. Xenophonte aflirma ter visto numerosos bandos nas margens do 
Euphrates. A Biblia faz menção d'este animal; Strabão e Plinio fallam 
delle como tendo-o observado de perto. 

Depois da queda do imperio romano houve um largo periodo de se- 
culos em que ninguem se occupou d'este solipede; Pallas veio quebrar 
o silencio chamando sobre elle a attenção dos naturalistas, no seculo 
passado. 


CARACTERES 


O onagro é um pouco mais pequeno que o hemione, outra especie 
selvagem de que adiante nos occuparemos, mas maior e mais delgado 
das pernas que o jumento domestico. A cabeça é maior que a do he- 
mione; os labios espessos apresentam bigodes rijos e abundantes. As 
orelhas são compridas, mas menos que as do jumento domestico. 

À côr dominante do pêllo nas partes inferiores e internas é o branco 
argenteo; as partes superiores e externas são izabel ou côr de camurça, 
um pouco mais escura na cabeça, aos lados do pescoço, nos flancos que 
em qualquer outra parte do corpo. Sobre os flancos corre uma listra 
branca da largura de uma mão travessa; uma outra côr de café com 
leite estende-se ao longo do dorso. 

O pêllo de inverno pode comparar-se à lã do camello, o de verão 
é fino e liso, mais macio ainda e mais sedoso que o dos cavallos. Os 
péllos terminaes da cauda são lanosos e teem de comprido oito a dez 
centimetros. 


294 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Parece habitar ainda hoje as regiões visinhas das emboccaduras do 
Indo, estendendo-se até à Persia e à antiga Mesopotamia. 


COSTUMES 


O onagro é sociavel; vive sempre em bandos capitaneados por um 
macho forte. N'esta especie os machos são menos ciumentos que em ou- 
tras, porque se juntam muitas vezes nas suas excursões; isto não quer 
dizer que na epocha do cio se não deem violentos combates. 

O onagro é velocissimo na carreira. Xenophonte dizia já que elle ex- 
cede os mais céleres cavallos e os auctores antigos partilhavam todos 
a mesma opinião. Porter confirma o dizer dos antigos, afirmando que, 
montado n'um excellente cavallo arabe, não pudera alcançar um onagro 
atraz do qual corria, persuadido de que se tratava de um antilope. 

Os sentidos do onagro são muito perfeitos; o ouvido, a vista e o 
olfato, sobre tudo, são de uma delicadeza inexcedivel. É por isso difficil 
approximar-se d'elle alguem. 

Este solipede é dotado de uma extrema sobriedade; não bebe agua 
mais que uma vez de dois em dois dias. Prefere para alimento as plantas 
salgadas e depois as de succo amargo. Não come as plantas aromaticas, 
as dos pantanos, as espinhosas ou os cardos de que tanto gostam os ju- 
mentos domesticos. Prefere a agua salgada à agua pura; mas para beber 
uma ou outra exige que tenha uma perfeita limpidez. 


CAÇA 


Na Ásia central é muito vulgar a caça ao onagro. Os processos em- 
pregados são differentes: uns fazem-lhe fogo, outros limitam-se a abrir 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 295 


fossos ligeiramente cobertos por uma tenue camada d'herva, nos logares 
em que o animal costuma transitar. O solipede, que não descobre a ar- 
madilha, cae muitas vezes. Os onagros até aos trez annos que assim se 
captivam, vendem-se por bons preços para as coudelarias dos grandes 
senhores. 


DOMESTICIDADE 


O onagro trazido à domesticidade é empregado com magnificos re- 
sultados. A rapidez da corrida é uma das qualidades que o tornam esti- 
mavel e superior ao camelo e ao dromedario; a sobriedade permitte-lhe 
concorrer com estes ruminantes. Com uma alimentação verdadeiramente 
insignificante, o onagro corre dias inteiros com uma velocidade verda- 
deiramente espantosa, muito superior à do dromedario. 

A domesticidade d'este solipede attinge um alto grao. Teem vivido na 
Europa alguns individuos que seguem o dono por toda a parte como o 
cão. Um dos alimentos favoritos do onagro captivo é o pão; com um pe- 
daço d'esta substancia o homem conduz o solipede para onde quizer. 


USOS E PRODUCTOS 


Para o habitante das steppes d'Asia, o onagro é um animal utillis- 
simo. A carne d'elle passa por ser excellente; os persas e mesmo os 
arabes, muito exigentes na questão de alimentos, afirmam isto. Os ro- 
manos davam tambem um grande apreço à carne do onagro, segundo 
refere Plinio. «A carne dos onagros ainda novos, diz este auctor, cons- 
titue um aceppipe delicado.» 


À bile d'este solipede é pelos persas empregada contra: doenças 
d'olhos e a pelle serve, entre outros povos, para o fabrico de calçado. 


296 HISTORIA NATURAL 


O JUMENTO D'AFRICA 


O jumento das steppes d'Africa é alto, elegante, de um pardo acin- 
zentado ou camurça, com o ventre mais claro, a cruz dorsal fortemente 
pronunciada, a face externa dos membros coberta de listras negras trans- 
versaes, mais ou menos nitidas. À crina é muito curta e muito fraca; o 
tufo caudal é forte e comprido. Os membros raiados d'este solipede cons- 
tituem um caracter importante que nos permitte vêr n'elle um typo in- 
termediario ao grupo dos jumentos e das zebras. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


É muito vulgar nas margens do Atbara, confluente do Nilo, e nos 
descampados de Barka. A area de dispersão d'este solipede estende-se 
até às costas do mar Vermelho. ? 


COSTUMES 


Vive como o onagro em grupos. Cada bando, composto ordinaria- 
mente de dez a quinze femeas, é capitaneado e defendido por um macho 
unico. 

O jumento d'Africa é prudente e desconfiado; por isso é difficillima 
a sua caça. Corre com notavel rapidez como o onagro. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 297 


DOMESTICIDADE 


Reduzido ao captiveiro nos primeiros tempos de existencia, o ju- 
mento africano attinge um alto grao de domesticidade. Torna-se docil e 
submette-se facilmente ao trabalho. Emfim, parece prestar aos indigenas 
os mesmos serviços que a nós presta o jumento domestico. 


O HEMIONE 


À primeira descripção completa d'este solipede foi feita no seculo 
passado por Pallas. 


CARACTERES 


Mede mais de metro e meio desde o vertice da cabeça até a ori- 
gem da cauda. O comprimento da cabeça é de cincoenta e cinco centi- 
metros; o da cauda, sem pêllos, é de quarenta e quatro. Assim o com- 
primento total d'este solipede é de dois metros e sessenta centimetros a 
dois metros e oitenta; a altura é de um metro e trinta centimetros ao 
nivel da espadua. 

À cabeça é maior que a do cavallo e mais comprimida lateralmente. 
O pescoço é arredondado, elegantemente curvo; os membros são altos e 
finos. A cauda assemelha-se à das vaccas; é fina e coberta apenas na 
extremidade de péllos sedosos e escuros que formam um tufo de vinte 
e cinco centimetros de comprimento. As orelhas são compridas; menos 


298 HISTORIA NATURAL 


porém que as do jumento domestico. As ventas são abertas, dilatadas 
como as dos cavallos. Do vertice da cabeça até à espadua estende-se 
uma crina de péllos macios, escuros, de sessenta centimetros de compri- 
mento, termo medio. 

O manto varía com as estações. No inverno os pêllos são. crespos, 
de um pardo camurça e de seis centimetros de extensão; no estio, não 
excedem um centimetro. O focinho e os membros são geralmente mais 
claros que o resto do corpo. Da extremidade da crina parte uma facha 
negra que se prolonga ao longo do dorso e da cauda. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O hemione vive nas planícies e nos platós seccos e descobertos da 
parte oriental da Asia e da Mongolia. Junto do lago Tarei é hoje muito | 
vulgar. À caça tem affastado este solipede de algumas regiões, em que 
foi commum e onde actualmente se não encontra senão excepcionalmente. 


COSTUMES 


O hemione vive, como o onagro e como o jumento africano, aos ban- 
dos. Os velhos machos capitaneiam ás vezes grupos de vinte femeas e 
pequenos machos ainda não aptos para a reproducção; o caso mais geral 
porém é o de pequenos grupos de cinco a dez individuos. Na epocha do 
cio ha grandes combates entre os chefes dos bandos e os que se propõem 
a substituil-os no commando. 

No outomno realisa o hemione verdadeiras emigrações. É com effeito 
então que os machos novos, distanciando-se dos bandos, percorrem as 
vastas planicies em procura de companheiros que se lhes associem para 
constituirem bandos de que serão os chefes. O hemione é então verdadei- 
ramente indomavel. Corre por toda a parte como furioso, com as ventas 
dilatadas, a cauda erguida, as orelhas inclinadas para diante, em busca 
de um rival. Se descobre um bando, precipita-se sobre o chefe e trava-se 
entre elles uma lucta violenta em que é vulgar perderem, um e outro, 
alguns pedaços de pelle. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 299 


Os sentidos do hemione são muito desenvolvidos; presente o homem 
a enormes distancias. E é precisamente por isso que se torna difficillimo 
observar este solipede em liberdade. 
O hemione rivalisa em rapidez com o onagro. 
À epocha da parturição é na primavera; a femea dá à luz um filho 
unico que ao fim de trez annos está adulto. 


CAÇA 


À caça do hemione proseguida com verdadeira paixão pelos indige- 
nas é, como dissemos, difficil. O que importa n'esta caça é matar o chefe 
do bando que se persegue; conseguido isto, não é raro que se apanhem 
ou matem tambem os outros membros do grupo que, perdido o director, 
correm espantados e sem destino em todas as direcções, não calculando 
os perigos que podem correr. 

O processo da embuscada dá algumas vezes bons resultados. O ho- 
mem, armado de uma boa espingarda, espera o bando ou bandos, es- 
condido por traz de uma arvore e collocado contra o vento, perto de 
uma corrente d'agua. Quando um grupo se approxima para beber, o ca- 
cador faz pontaria sobre o chefe. 

O cavallo é muitas vezes utilisado com grande vantagem n'esta caça. 
O caçador parte de manhã muito cêdo para o alto de uma montanha 
d'onde possa facilmente descobrir os bandos dos Ifemiones. Vae montado 
num cavallo a que tem o cuidado de ligar as crinas para que não flu- 
cluem ao vento. Chegado ao topo da montanha, apeia-se e deixa o ca- 
vallo a pastar, affastando-se uns cem passos pouco mais ou menos da ca- 
valgadura e deitando-se no chão em decubito ventral. O bando dos he- 
miones, mal descobre o cavallo, torna-se inquieto; e o chefe julgando 
vêr m'elle um jumento da sua especie corre-lhe rapidamente ao encontro. 
Quando chega a uma pequena distancia do cavallo descobre o seu erro 
e estaca a observar espantado. É então que o caçador faz fogo. É este 
io o melhor de todos os processos de caça. 


500 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


«Quando Pallas, diz Brehm, descreveu o hemione não se sabia se 
este solipede era ou não susceptível de domesticação. Pallas ignorava 
pois que em certas regiões da Asia, a especie se encontra desde muito 
submettida ao dominio do homem.» ! Se, como notou F. Cuvier, os mon- 
goes se não applicaram nunca à domesticação do hemione, porque o ca- 
vallo e o camello bastam perfeitamente às suas necessidades, outros po- 
vos ha, de commercio e industrias numerosas, para que a sujeição do 
hemione constituia uma necessidade que procuraram desde muito satis- 
fazer. Esses povos empregam principalmente o hemione como besta de 
carga. 

O hemione trazido à Europa por differentes vezes, tem manifestado 
ao fim de algum tempo de captiveiro docilidade bastante para submet- 
ter-se a variadissimos trabalhos. 

Às uniões sexuaes do hemione com a jumenta domestica são fecun- 
das. O producto é um jumento vigoroso, rapido, de formas muito elegan- 
tes e de uma mais facil domesticação que o hemione. 


USOS E PRODUCTOS 


À caça do hemione é muito productiva. Os tongusas apreciam muito 
a carne d'este solipede e os mongoes pagam por alto preço a pelle. Se- 
gundo a crença popular, a cauda com os pêllos terminaes gosa de ma- 
ravilhosas virtudes therapeuticas na cura de outros animaes. 


“ 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. (17. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 301 


OS MUARES 


Designam-se por este nome os productos hybridos, infecundos ou de 
fecundidade muito limitada, que resultam do cruzamento das especies 
cavallar e asinina. O muar, filho de egua e de jumento, é o mulo pro- 
priamente dito ou macho, ou ainda eguariço; o filho de cavallo e de ju- 
menta é o asneiro. O primeiro é muito mais vulgar. 


CARACTERES DO MULO 


Tem dimensões quasi eguaes ás da egua. Varia no comprimento en- 
tre metro e meio e um metro e sessenta e cinco centimetros. Tem as 
formas geraes da mãe e herda do pae o comprimento das orelhas, a 
cauda pouco provida de pêllos, as pernas seccas e vigorosas, OS cascos 
estreitos e a saude robustissima. 

À femea ou mula é mais estimada para todos os serviços e paga-se 
por preços mais elevados que o macho. 

À côr do pêllo é de ordinario a do pae. 


CARACTERES DO ASNEIRO 


É mais pequeno que o macho e não tem as formas tão elegantes. 
Tem a cabeça mais comprida, as orelhas mais curtas, as pernas mais 
grossas e a cauda mais coberta que o macho ou o jumento. Relincha 
como o cavallo. 


302 HISTORIA NATURAL 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


Os muares em geral parecem-se nas formas mais com a mãe que 
com o pae; nos costumes porém é a estes principalmente que se asse- 
melham. 

O cruzamento das especies cavallares e asininas não se faz nunca 
espontaneamente; é necessaria a intervenção do homem e o emprego de 
uns certos artifícios. Os jumentos e cavallos que vivem no estado livre 
teem uns pelos outros um odio que vae até ao ponto de se darem en- 
carniçados combates. São pois necessarias precauções especiaes para 
obter o cruzamento. 

O jumento de cobrição não manifesta grande repugnancia em copu- 
lar a egua; esta porém não o recebe facilmente. Pelo contrario a jumenta 
recebe com facilidade o cavallo; este porém não copula a jumenta espon- 
taneamente. De ordinario tapam-se os olhos à egua que tem de ser co- 
berta por um jumento depois de se lhe ter mostrado um cavallo de for- 
mas elegantes. Procede-se semelhantemente em relação ao cavallo que 
tem de cobrir uma jumenta; tapam-se-lhe os olhos depois de elle estar 
excitado pela vista de uma egua. É mais facil obter o cruzamento entre 
animaes que se conhecem desde muito tempo e em que o habito tem na- 
turalmente obliterado em parte a antipathia nativa. Os romanos sabiam 
isto, juntavam e faziam viver nas mesmas cavallariças os cavallos e ju- 
mentos de que pretendiam obter hybridos. Os hespanhoes e os america- 
nos do sul procedem de egual forma. 

Os muares reunem quasi sempre as qualidades dos paes: teem a 
sobriedade e a paciencia do jumento unidas à força e à coragem do ca- 
vallo. 


DESTINOS 


Os muares são utilissimos como bestas de carga, de lavoura, de tiro 
e mesmo de sella, muito principalmente nos logares montanhosos e em 
caminhos asperos e em declive. O cavalleiro pode bem confiar na solidez 
dos membros do solipede e na sua rara prudencia. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 303 


O JUMENTO DOMESTICO 


Quem o não conhece? É o typo da paciencia, do soffrimento obscuro, 
do trabalho sem treguas. Alvo das zombarias e dos maus tratos de todos, 
elle cumpre o seu dever, como se a mão de um destino o impellisse à 
desventura e ao trabalho simultaneamente. 


ORIGEM 


Tem-se considerado geralmente o onagro como o unico ascendente 
do jumento domestico. Desde porém que se sabe que outras especies sel- 
vagens se podem reproduzir entre si dando origem a productos fecundos, 
passou-se a duvidar, e com razão, de que o jumento domestico descen- 
desse exclusivamente do onagro. E com effeito, é extremamente provavel 
que o hemione e o jumento d'Africa devam, com tantos titulos como o 
onagro, ser considerados ascendentes do jumento domestico. Comtudo 
nada ha de positivamente averiguado sobre este ponto; repete-se aqui a 
mesma duvida que a proposito das outras especies submettidas desde 
longo tempo à domesticidade. 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


Herodoto falla minuciosamente do jumento domestico. Os habitantes 
do Egypto principiaram por odial-o, por ser objecto de adoração para os 
judeus, mas acabaram por estimal-o, reconhecendo os serviços que o 
pobre animal lhes prestava. A biblia occupa-se muito d'este solipede que 
foi a cavalgadura preferida pela Virgem na fugida para o Egypto. 

Do Egypto e da Judea o jumento domestico passou para a Grecia, 
depois para a Italia, para a França e consecutivamente para toda a 
Europa. 


304 HISTORIA NATURAL 


O famoso animal, tão desprezado pelos ignorantes e pelos rudes, 
teem merecido em todos os tempos a attenção benevola e cheia de sym- 
pathia de todos os naturalistas e ainda de alguns philosophos e perso- 
nagens celebres. Motte-Le-Vayer escreveu um livro intitulado Dialogo so- 
bre os jumentos do mew tempo e Heinsius em 1629 um outro intitulado o 
Elogio do jumento. 

Citam-se como celebridades historicas da especie: o jumento de Tha- 
les, o do imperador Commodo, o de Heliogabalo e o de Buridan do qual 
se conta que morreu de fome e de sêde preplexo entre um feixe de feno 
e uma vasilha d'agua. 

Menault escreve ácerca do jumento: «Por ter sobre o dorso uma 
cruz, emblema de sofrimento, foi primeiro venerado. Por parecer que 
gosta dos cardos e dos espinhos foi corfparado ao philosopho que sup- 
porta com tranquillidade todas as amarguras da existencia ou ao justo 
que renuncia às pompas e ás obras de Satanaz. Por ser prudente e não 
attravessar senão com repugnancia os logares perigosos em que uma 
vez caiu, comparou-se ao sabio que teme ser apanhado nas dificuldades 
de que saíu uma vez. Emfim por ter pouca confiança nas aguas desco- 
nhecidas e custar-lhe a beber nas fontes que vê pela primeira vez, foi 
considerado um modelo de prudencia e fidelidade à Igreja, um bello 
ideal do crente que receia a heresia, as idéas novas e repelle o direito 
de exame.» 1! 


CARACTERES 


Não descreveremos aqui as formas exteriores do jumento domestico, 
porque todos as conhecem. Fallaremos apenas dos sentidos. Todos os 
orgãos sensoriaes do jumento são desenvolvidos. O primeiro de todos é 
o ouvido; percebe sons distantes e os mais fracos. Parece mesmo que 
não é insensivel ao rhytmo musical, o que talvez podesse ser aprovei- 
tado com intelligencia para obrigar este animal à execução de certos 
passos apropriados a trabalhos especiaes. J. Franklin conta o seguinte: 
«Um jumento de Chartres tinha o costume de ir ao castello de Guerville 
onde habitualmente se tocava. A proprietaria do castello era uma dama 
que tinha uma voz excellente. Em ella principiando a cantar, o jumento 


! Menault, Lintelligence des animaux, pg. 263. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 305 


não deixava de approximar- -se au Junto das janellas: d'ahi escutava com 
religiosa attenção.» ! 

Depois do ouvido, é a vista o melhor dos sentidos. Depois vem o 
olfato. O tacto é muito limitado e o mesmo acontece ao paladar, o que 
explica a nenhuma exigencia do animal em questões de alimentação. 


INTELLIGENCIA 


Reputa-se de ordinario o jumento o typo da estupidez. Esta opinião 
não se justifica. É verdade que a grande maioria dos jumentos domesti- 
"cos, mal tratados, constantemente sob o regimen brutal da pancada, 
apresentam uma grande obliteração de faculdades. Tomem-se porém os 
individuos bem tratados, os raros exemplares que teem a boa sorte de 
cairem nas mãos de um dono razoavel que d'elles cuida com sympathia 
e os educa, e vêr-se-ha quanto ha de falso na opinião vulgar. «Podemos 
salvar a honra do jumento, diz Scheitlin, dizendo que elle é susceptivel 
de aprender muitas coisas que ordinariamente se ensinam ao cavallo: 
por exemplo, attravessar arcos, dar tiros, saltar sem se espantar. En- 
sina-se ainda o jumento a marchar ao som da musica, a dançar, a abrir 
portas, servindo-se da bocca como de uma mão, a subir e descer esca- 
das, a designar tal ou tal pessoa, a reconhecer as horas, a indicar, ba- 
tendo com a pata no chão, o numero de pontos de uma carta ou de um 
dado, a responder sim ou não às perguntas do dono, sacudindo a ca- 
beça.» O mesmo auctor diz confrontando o intendimento do cavallo e o 
do jumento: «Ha creanças que aprendem mais difficiimente, mas melhor 
e de um modo mais perduravel; assim é o jumento.» Pythagoras já se 
insurgia contra a opinião que não concede intelligencia ao jumento. 

O jumento tem uma grande memoria, sobretudo dos logares; cami- 
nho que uma vez tenha percorrido, nunca mais o esquece. Sabem todos 
que um jumento, ao qual uma vez se deu de comer à porta de uma hos- 
pedaria d'aldêa, nunca mais ahi passa sem que pare até que lhe dêem 
alimento; resiste ao chicote e à espora. O unico meio de o fazer cami- 
nhar é dar-lhe de comer. Parece tambem que é desenvolvida no jumento 
a memoria das pessoas. Sómente os maos tratos que geralmente sofre 
por parte do homem, fazem com que ao reconhecer, passados annos, O 


1 J. Franklin, La vie des animauz, t. 11, 
VOL. III ; 20 


306 HISTORIA NATURAL 


antigo dono, elle não manifeste o mesmo prazer que manifesta o cavallo, 
de ordinario tratado com doçura, e por isso mesmo naturalmente agra- 
decido. 

Nas regiões infestadas por animaes ferozes, o jumento revela uma 
grande prespicacia e uma prudencia demonstrativas de um intendimento 
superior ao que vulgarmente se lhe attribue. Vista, ouvido e olfato, tudo 
põe em exercicio, tudo attentamente emprega para descobrir os logares 
em que possa esconder-se um inimigo. Se os sentidos lhe revelam a exis- 
tencia proxima de um perigo, não ha cavalleiro capaz de fazel-o sair do 
logar em que se reputa mais seguro. 

De resto, é notavel que o jumento não caminha nunca sem o auxi- 
lio dos sentidos; se lhe tapam as orelhas ou bandam os olhos, estaca, 
não dá um passo. Restando-lhe o olfato, caminhará ainda n'um caso 
unico: se adiante delle caminhar uma femea, É este o unico meio a que 
não saberá resistir. 


REGIME E TRATAMENTO 


O jumento é, como dissemos anteriormente, muito sobrio. Satisfaz-se 
inteiramente com uma alimentação exigua e má. A herva e o feno que 
uma vacca ou um cavallo engeitam, constituem ainda para o jumento 
uma refeição apreciavel. Os cardos e as plantas espinhosas que todos 
os herbivoros, excepto o camello e dormedario, recusam são para elle 
uma alimentação que lhe basta. N'uma só coisa é exigente o jumento: 
na agua. Bebel-a-ha salgada ou amarga, mas nunca suja ou turva. Seja 
qual fôr a sêde que tenha, nunca mergulhará o focinho senão em agua 
pura, transparente. É por isso que nos desertos o ida causa muitas 
vezes embaraços sérios às caravanas. 

À exiguidade da alimentação correspondem de ordinario os maos 
tratos. «O homem, diz Buffon, despreza até os animaes que melhor e com 
menos dispendio o servem.» ! A vida domestica do jumento confirma ple- 
namente a affirmação do naturalista francez. Por um preço relativamente 
insignificante, quantos serviços se não obteem do jumento? E comtudo 
que tratamento lhe dá o homem em compensação? O peior de todos: a 
pancada por tudo e a proposito de tudo. Dir-se-ha que o jumento é tei- 
moso, é cheio de manhas e que é preciso por isso castigal-o com uma 


1! Buffon, Oeuvres Complítes, tom. 2.º, art. Ane, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 307 


severidade que o cavallo, por exemplo, dispensa. De certo, os dois ani- 
maes não soffrem o confronto, decerto, o tratamento d'um não pode ser 
o do outro; mas não se esqueça que uma boa parte da teimosia e das 
manhas, que se pretendem debellar com os maos tratos, são precisa- 
mente a consequencia d'elles. Para nos convencermos d'isto, confronte- 
mos o jumento de um camponio estupido, que descarrega sobre o pobre 
animal todo o seu mao humor, com um d'esses jumentos que se exhi- 
bem adestrados nos circos. Que enorme differença, não é verdade? Ve- 
ja-se o tratamento d'um e do outro. Ao passo que o primeiro é a victima 
innocente dos maximos e desapiedados castigos, dos mais terriveis tra- 
balhos, o segundo, fartamente alimentado, cuidado com doçura, trabalha 
apenas algumas horas por dia e os exercicios que faz são os menos fa- 
tigantes. Por isso um é estupido, manhoso, insupportavel e o outro intel- 
ligente, docil, submisso à primeira ordem que recebe. 

Como queremos que não tenha defeitos um animal que só nos me- 
rece desprezo e escarneo? O rustico faz do pobre jumento o que vulgar- 
mente se chama um folle de pancadas. Se tem uma desavença com a 
mulher, bate no jumento; se não tem pão para dar aos filhos descarrega 
na misera besta todo o pezo dos seus infortunios; se os negocios lhe não 
correm bem é ainda o pacienticissimo animal que o paga, Até as alegrias 
do camponio são funestas ao jumento. Se o rustico acerta de fazer bons 
lucros na cidade, ao voltar para casa tem pressa; e quem o paga é 0 
jumento que à força de paulada ha de transformar as pernas em azas. 
Misero destino! Eu tenho sincera penna do jumento e digo-o sem receio 
de que me chamem os feios nomes de sentimentalista ou paradoxal. Não 
sou nem uma coisa, nem outra; mas ao vêr o olhar triste do jumento, 
obscuro collaborador das nossas obras, lembra-me a enorme legião dos 
homens opprimidos, dos explorados, dos que trabalham sem alegria e 
sem futuro. Que final de vida espera o laborioso solipede? Sabem-o to- 
dos: a margem, as longas campinas de que falla Tolentino. Que final de 
vida espera o miseravel da industria humana? A margem tambem: o 
asylo e o hospital. Eu encontro paridade n'estes destinos e contristo-me. 
O leitor contrista-se tambem e eu passo adiante; não veem para aqui 
reflexões pungitivas. 


REPRODUCÇÃO 


À quadra dos amores é para o jumento do norte da Europa em fins 


da primavera ou começos do outomno; para o do meio dia prolonga-se 
* 


308 HISTORIA NATURAL 


por todo o anno. Até nas declarações do amor asinino ha uma grande 
tristeza, uma terrivel monotonia: é um ornear entrecortado, seguido de 
Suspiros. 

Onze mezes depois do acto sexual a jumenta dá à luz um filho, ra- 
ras vezes dois. A ternura da mãe pelo filho é immensa; na hora do pe- 
rigo, nem agua, nem fogo, nem a prespectiva de morte certa farão di-' 
minuir a coragem com que a jumenta defende o filhinho. 

O jumento está adulto aos dois annos; mas só aos trez se encontra 
na plenitude das forças. Até ahi tem uma vida alegre, elle, o filho da 
tristeza; depois as amarguras principiam. O duro trabalho faz na Europa 
succumbir o jumento aos doze ou quinze annos, de ordinario; está pro- 
vado porém que elle pode attingir os cincoenta ou cincoenta e seis. Es- 
tes exemplos de longevidade são rarissimos, excepcionaes mesmo. 


ERROS E PREJUIZOS 


Na antiguidade acreditava-se que o encontro com uma jumenta de- 
nunciava felicidade. Não nos admira que haja ainda essa crença, se a ha, 
porque entre o nosso povo tem a mesma significação o encontro com um 
preto. 

Conta-se que a vista de um jumento annunciou a Alexandre a con- 
quista da Asia e a Augusto o imperio do mundo. Ainda segundo os anti- 
gos, a cabeça ou a pelle de um jumento preservariam os campos em que 
estivessem depostos das saraivadas do inverno. 


USOS E PRODUCTOS 


O jumento fornece-nos depois de morto dois productos estimaveis: 
a pelle, de que se fazem coberturas para tambores e a carne, que dizem 
ser boa e que, segundo Varron, era o prato favorito de Mecenas. Durante 
a vida fornece-nos o leite, tão substancial e tão grato ao paladar. Se- 
gundo Gerbe, o emprego d'este leite com intuitos therapeuticos foi intro- 
duzido em França no tempo de Francisco 1 per um judeu. Foi o caso que 
achando-se o rei alquebrado e doente e constando-lhe que um certo is- 


SS 
ERR SER PPS, 


S/a 


7a 
dm 


a E! 


1. O HemionE. 2 A ZEBRA. 


Magalhães & Moniz, editores. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 309 


raelita de Constantinopla sabia curar doentes d'aquella especie, o man- 
dou vir a Paris; O israelita veio e indicou apenas o leite de jumenta, o 


que deu o resultado pretendido. D'ahi a generalisação d'este apreciavel 
producto. 


AS ZEBRAS 


Estes solipedes parece serem conhecidos desde uma alta antigui- 
dade. Crê-se que fosse Caracala o primeiro que duzentos e onze annos 


“antes da nossa era apresentou um exemplar na arena de Roma ao lado 


de tigres, elephantes e rhinocerontes. 


CARACTERES 


As zebras na estatura e no porte constituem o grupo de transição 
entre os cavallos e os jumentos. Teem o corpo vigoroso, o pescoço forte 
e uma cabeça onde ha alguma coisa do cavallo e do jumento. As orelhas 
são compridas e largas, a crina levantada, de pêllos menos espessos que 
os do cavallo, assim como menos molles e menos flexiveis que o do ju- 
mento. A cauda apresenta pêllos em tufo na extremidade; os cascos 
são ovaes na parte anterior e quadrilateros posteriormente. Todas as es- 
pecies teem o manto em grande parte raiado. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


As zebras pertencem ao sul da Africa; apenas uma especie excede 
o equador. 


310 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Habitam tanto as montanhas como as planícies; mas cada especie 
parece ter os seus dominios proprios e exclusivos. 

São sobrias, ageis, corajosas e amantes da liberdade; a domesticação 
d'ellas é dificil. Os sentidos destes solipedes são muito desenvolvidos. 

São sociaveis; vivem sempre em grandes bandos. 


Conhecem-se trez especies bem authenticas. 


A COAGGA 


É das especies conhecidas aquella cujo manto é menos raiado. As- 
semelha-se no porte, mais ao cavallo do que ao jumento. É bem cons- 
truida: a cabeça é de tamanho regular, elegante, as orelhas são curtas 
e os membros vigorosos. O pescoço, bem contornado, apresenta uma 
crina curta e levantada; a cauda é coberta de pêllo em toda a extensão. 
O pêllo é por todo o corpo curto e liso. No pescoço contam-se dez listras 
transversaes que se prolongam na crina; quatro outras correm ao longo 
das espaduas e algumas, mais curtas, mais desmaiadas e mais distancia- 
das umas das outras sobre o dorso e flancos. A todo o comprimento do 
dorso até à cauda estende-se uma facha de um trigueiro carregado. 

A femea não difere do macho senão em ser mais pequena e ter a 
cauda mais curta. O macho adulto mede dois metros e oitenta centime- 
tros de extensão, comprehendida a cauda; a altura é, ao nivel da espa- 
dua, de um metro e trinta centimetros, approximadamente. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 311 


O DAUW 


Esta especie pode considerar-se como o typo de transição entre a 
coagga e a zebra propriamente dita de que adiante nos occupamos. Tem 
com effeito caracteres de uma e outra das especies: parece-se tanto com 
“a zebra propriamente dita que muitos naturalistas o teem confundido com 
ella; e da coagga differe quasi só em ser mais pequeno. A côr geral 
d'este solipede é a de camurça. Para o distinguir da zebra propriamente 
dita, ha a notar que a cauda apresenta-se coberta de péllo em toda a 
extensão, o que n'esta especie se não realisa. Para o distinguir da coagga, 
observe-se que ao passo que a listra dorsal d'esta especie é trigueira, a 
do dauw é negra. A extensão do dauw é ainda uns vinte e tantos centi- 
metros menor que a da coagga. 


A ZEBRA PROPRIAMENTE DITA 


Differe das especies anteriores principalmente no manto que é muito 
mais listrado. Para dar uma idéa approximada do porte da zebra pro- 
priamente dita devemos comparal-a não ao cavallo ou ao jumento, mas 
ao hemione. É com este animal, com effeito, que ella se parece mais. 

O corpo da zebra é musculoso e vigorosissimo, a cabeça curta e 0 
focinho volumoso; as pernas são delgadas e elegantes. A cauda, de com- 
primento medio, é uma verdadeira cauda de jumento; só na extremidade 
offerece pellos extensos, em tufo. A crina é espessa, mas muito curta. 

À côr fundamental do manto é o branco ou o amarello muito claro. 


312 HISTORIA NATURAL 


Por todo o corpo, desde o focinho até aos cascos, correm listras trans- 
versaes de um negro brilhante ou de um ruivo trigueiro; só a parte 
posterior do ventre e a face interna dos membros anteriores são despro- 
vidos d'estas listras. Sobre o dorso, ao longo da columna vertebral e no 
ventre, pela região media, correm fachas longitudinaes de um trigueiro 
accentuado. | 


CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


À zebra parece ser a especie que os europeus primeiro conheceram. 
Tem-se supposto que o celebre cavallo tigre apresentado por Caracala 
no circo romano fosse, como dissemos, uma zebra. Philostorgius, que 
escreveu em 425, falla de um grande jumento selvagem, raiado; embora 
a descripção feita seja um pouco vaga ha logar pára crêr como prova- 
vel que se tratasse de uma zebra. Às primeiras noções exactas ácerca 
das zebras são-nos devidas a nós, portuguezes, e datam do nosso esta- 
belecimento na costa oriental da Africa. Segundo Brehm, em 1666, um 
embaixador ethiope foi o primeiro a levar uma zebra, de presente, ao 
sultão do Cairo. Depois d'essa epocha, grande numero de naturalistas 
conheceram e descreveram simultaneamente em paizes diferentes este 
animal. 


Os artigos que seguem sobre distribuição geographica, costumes, 
caça e captiveiro teem applicação a todas as trez especies descriptas já 
nos seus caracteres morphologicos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Apezar de extremamente semelhantes, é certo que as trez especies 
de zebras teem, como já fizemos notar, dominios geographicos distin- 
ctos. Habitam todas a Africa; porém o dauw muito mais ao norte que a 
coagga, e ambos nas planicies, ao passo que a zebra propriamente dita, 
só vive nas montanhas do sul e éste do continente, desde o Cabo até à 
Abyssinia. 


do — sida o o A A do ie a O A a 


A E DAS 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 313 


COSTUMES 


Todas as trez especies mencionadas, a coagga, o dauw e a zebra 
propriamente dita, são extremamente sociaveis e vivem em bandos que 
hoje são de dez a trinta individuos, mas que já foram, a dar credito aos 
naturalistas antigos, de oitenta a cem. É de notar que as especies nunca 
se confundem, embora se encontrem proximas umas das outras: cada 


“bando é exclusivamente formado por individuos de uma mesma especie. 


Parece que se temem uns aos outros; e este facto é tanto mais para no- 
tar quanto é certo que todas estas especies são corajosas e aflectam um 
grande desdem pelos outros animaes, ainda os mais fortes. Tem-se 
mesmo observado a mistura das coaggas com gazellas, antilopes e abes- 
truzes; mas nunca se viu a mistura de coaggas, dauws e zebras propria- 
mente ditas. 

Dizem os viajantes que a coagga aproveita consideravelmente com 
a visinhança ou proximidade do abestruz, porque tira um grande par- 
tido da vigilancia constante d'esta ave que lhe serve de sentinella, que 
lhe denuncia os perigos. Nós já vimos a proposito do bufalo, do hippo- 
potamo e do rhinoceronte, alguma coisa de semelhante; dissemos todo o 
beneficio que estes grandes mamiferos tiram da presença do ani e ou- 
tras pequenas aves que vivem perto d'elles ou mesmo sobre o seu dorso. 

Todas as especies de zebras são animaes velocissimos; passam, diz 
Brehm, com a rapidez do vento atravez das planicies e das montanhas. 
Todas são desconfiadas e vigilantes; se um perigo se approxima, tomam 
o galope e em alguns minutos encontram-se em logar seguro. Um bom 
cavallo de caça em terreno plano e solido consegue attingil-as, mas só ao 
fim de muito tempo. 

O cavallo é bem recebido nos bandos de coaggas; as mesmas boas 
relações existem entre o dauw ou a zebra propriamente dita e os soli- 
pedes domesticos. | 

As zebras não são exigentes relativamente à alimentação; comtudo 
não podem ainda assim, sob este ponto de vista, comparar-se ao jumento. 

Quando à mingua d'agua seccam as hervas de uma região habitada 
pelas zebras, estas emprehendem verdadeiras emigrações e chegam 
mesmo, às vezes, até aos campos cultivados onde produzem incalculaveis 
estragos. 

A voz das zebras assemelha-se ao mesmo tempo ao relinchar do ca- 
vallo e ao ornear do jumento. G. Guvier diz que a voz da coagga con- 


314 | HISTORIA NATURAL 


siste na repetição, vinte vezes seguida, de um grito, o mesmo sempre: 
coa, coa! 

“Sob o ponto de vista dos sentidos, todas as zebras podem conside- 
rar-se como perfeitamente dotadas. A vista, o ouvido e o olfato são or- 
gãos muito apurados em todas as trez especies. São tambem astutas é 
corajosas. Defendem-se valentemente, à dentada e ao coice, dos grandes 
carniceiros. A hyena e o leopardo nem mesmo se atrevem a acercar-se 
de um bando; quando muito, apanham algum individuo desgarrado, per- 
dido do seu grupo. 


CAÇA 


De todos os inimigos da zebra, como se infere naturalmente do que 
deixamos dito, o mais temivel é o homem. A difficuldade da caça e a bel- 
leza do manto, diz Brehm, excitam o europeu. Os colonos do Gabo per- 
seguem com ardor a coagga e o dauw; os abyssinios, o dauw e a zebra 
propriamente dita. 

Os indigenas empregam como processos de caça, a frecha e os fos- 
S0S; OS europeus, as armas de fogo. 


CAPTIVEIRO 


De todas as especies a que se doma com mais facilidade é a coagga. 
O dauw vem immediatamente depois; a zebra propriamente dita é tão 
selvagem que durante muitos annos passou por verdadeiramente indo- 
mavel. | 

À coagga, se é apanhada em nova, tratada e visitada por muitas 
pessoas, chega a habituar-se ao homem e a obedecer-lhe até ao ponto 
de ser utilisada, à maneira do cão, como guarda dos outros solipe- 
des domesticos quando vão aos pastos; tambem não é raro ver um par 
d'estes animaes puxando a um carro. O dauw, captivo tambem numa | 
tenra idade, domestica-se até um certo ponto e chega a prestar-nos al-. 
guns bons serviços, como A. Geoffroy Saint-Hillaire provou. Mas com a 
zebra propriamente dita não acontece o mesmo. Umas certas tentativas 
feitas no sentido de a utilisar na conducção de carros ou em cavalaria, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL | 315 


foram ao princípio seguidas de um insuccesso tremendo e ruidoso; d'ahi a 
idéa por muito tempo acceite de que a zebra é indomavel. D'essas pri- 
meiras tentativas mencionaremos duas, uma das quaes, contada por 
Sparmann e a outra narrada por Fitzinger. A primeira d'estas tentativas 
refere-se a um rico colono do Cabo que tendo algumas pequenas zebras 
muito domesticas, ao que lhe parecia, se lembrou um dia de as atrellar 
a um carro. O resultado foi o peior possivel; as zebras partiram o carro, 
deitando a correr com elle aos pedaços para casa. A segunda tentativa 
foi a de um cavalleiro atrevido que se lembrou de cavalgar uma zebra 
que em tempo fôra muito docil, mas que por falta de cuidados e de tra- 


tamento regressara à selvageria primitiva. O cavalleiro chegou a mon- 


tar; mas apenas se sentou no selim, a zebra atirou-se violentamente ao 
chão; depois erguendo-se de salto arrojou-se, de um logar escarpado, á 
agua. O cavalleiro prendeu-se vivamente às redeas; a zebra porém, vol- 
tando para a margem, mal chegou a terra e quando o cavalleiro atur- 
dido do embate procurava segurar-se ao selim, arrancou-lhe uma orelha 
com uma dentada. Estas e outras tentativas analogamente desanimadoras 
deram curso à idéa de que a zebra é indomavel. Tal opinião porém, não 
deve acceitar-se de um modo absoluto. Cuvier cita o caso de uma zebra 
femea do Jardim das Plantas, tão domestica que qualquer a podia montar 
sem receio. Rarey, domador celebre de e conseguiu tambem mon- 
tar e dirigir algumas zebras. | 

Todas as especies se dão bem e chegam a reproduzir-se na Europa. 
Segundo Weiland, o dauw tem-se reproduzido nos nossos climas dez ve- 
zes e a zebra duas desde 1813. Os cruzamentos são fecundos com outros 
solipedes; isto que no seculo passado era tido por Buffon como sim- 
plesmente provavel, está provado hoje. Nos cruzamentos, tem-se sempre 
notado que os mestiços se assemelham mais ao pae que á mãe. 


De todos os ensaios de cruzamentos até hoje feitos, e que infeliz- 
mente são ainda pouco numerosos, resulta, diz Brehm, que todos os so- 
lipedes se copulam e que os productos são fecundos. «Este facto, conti- 
núa o naturalista allemão, é uma acquisição importante para a sciencia; 
destroe a theoria da unidade da geração que tantos debates causou en- 
tre naturalistas e orthodoxos. Este aphorismo, «só os animaes de uma 
mesma especie podem produzir filhos fecundos», não é verdadeiro em 
absoluto. E o naturalista não deve re res com uma opinião des- 
mentida pelos factos.» * 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 430, 


316 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


À belleza do manto é um dos maiores attractivos, como vimos, da 
caça das zebras. A pelle entra como materia de muitas industrias. Os co- 
lonos do Cabo ornam os pescoços dos seus cavallos com colleiras feitas 
da pelle ou da crina das zebras. Não encontramos, a proposito de usos 
e productos, outra menção especial. Ha porém logar para crêr que a 
carne das zebras seja pelo menos tão boa como a dos cavallos e dos ju- 
mentos. Os cascos e os tendões podem tambem servir para os mesmos 
efeitos em que se empregam os dos cavallos. 


Damos em seguida, semelhantemente ao que temos feito para outras 
“ordens, o quadro eschematico dos pachydermes, adoptando a disposição 
de Figuier: E | 


Si A pm ai E ao 


E 


iria 5 


e DS a DP DA MA | 


PACHYDERMES . 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 317 


O MASTODONTE 

O MAMMOUTH 
ELEPHANTES. . ..cc. 0.» * + (O DINOTHERIO 

O ELEPHANTE D'ASIA 

O ELEPHANTE D'AFRICA 


O TAPIRO ASIATICO 

O TAPIRO D' AMERICA 

O TAPIRO VELLOSO 

O HYRACE DA ABYSSINIA 
O JAVALÍ ORDINARIO 

O JAVALÍ DO JAPÃO 

O JAVALÍ DA INDIA | 

O JAVALÍ DOS PAPÚS 

O JAVALÍ EM PINCEL 

O JAVALÍ DOS BOSQUES 
OS PORCOS DOMESTICOS 
O PHACOCHERO 

O JAVALÍ ELIANO 

O TAJAÇU DE COLLEIBA 
O BABIROSA 

O HIPPOPOTAMO AMPHIBIO 


PACHYDERMES ORDINARIOS., 


O RHINOCERONTE D'ASIA 
|O RHINOCERONTE D'AFRICA 


O CAVALLO 
RAÇAS CAVALLARES 
OS JUMENTOS 

O ONAGRO 

O JUMENTO D'AFRICA 
SOLIPEDES. .. .... «000... (0 HEMIONE 

OS MUARES 

O JUMENTO DOMESTICO 
A COAGGA 


O DAUW 
| À ZEBRA PROPRIAMENTE DITA 


: As - s 
ni odrei gaa oo demvanta arginina of rei O a À 
a nã 14 : 


o 
Ca 


Eiicaa DES O fo — o— 


AMPHIBIOS 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


Rigorosamente considerado, o nome de amphibios não deveria ap- 
plicar-se, como nota Figuier, senão aos animaes cuja existencia pode 
passar-se alternativamente no ar ou na agua; assim elle não comprehen- 
deria verdadeiramente mais que os Batrachios, que respiram branchial- 
mente na agua e pulmonarmente no ar. O termo porém foi desviado da 
verdadeira e rigorosa accepção, de sorte que hoje designam-se pela pa- 
lavra amphibios especialmente os mamiferos organisados para a vida 
aquatica e que só com muita dificuldade podem mover-se em terra. 


CARACTERES 


Os caracteres dos animaes que constituem esta ordem estão, como 
pode prevêr-se, em relação intima com as condições especialissimas da 
sua vida. 

O corpo é em todos alongado, cylindrico e pisciforme. Os membros 
muito encurtados, não são bem visiveis no exterior do corpo senão pe- 
las extremidades, convertidas em verdadeiros remos por uma larga mem- 
brana natatoria que reune os dedos. As extremidades anteriores esten- 


320 HISTORIA NATURAL 


dem-se ao longo do corpo e manobram agitando-se de diante para traz, 
como em quasi todos os mamiferos aquaticos; as posteriores, pelo con- 
trario, estendidas horisontalmente e parallelamente, encontram-se dis- 
postas de maneira a cortarem a agua obliquamente. 

O manto é constituido por uma camada lanosa, cuja espessura au- 
gmenta com o rigor dos climas, e que encobre pêllos rijos, cercados de 
um enducto gorduroso que tem por fim impedir a chegada da agua até 
à pelle e proteger o corpo contra os frios extremos. | 

Todos os amphibios teem a cabeça arredondada, os olhos grandes, 
a concha auditiva rudimentar ou nulla e o labio superior coberto de 
grossos pêllos compridos. 

A dentição é semelhante à dos carniceiros, motivo por que muitos 
naturalistas teem pretendido collocar os amphibios logo depois d'esta 
ordem. ; 

As vertebras cervicaes são: claramente separadas umas das outras 
“e munidas de apophyses fortes; as dorsaes são quatorze ou quinze; as 
lombares cinco ou seis; as sagradas quatro ou cinco, geralmente solda- 
das; e as caudaes nove ou quinze. As cartilagens costaes encontram-se 
completamente ossificadas. 


- 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontram-se espalhados por todos os mares do mundo em numero 
que vae crescendo à proporção que nos avisinhamos dos polos. 


COSTUMES 


Vivem em bandos, alimentando-se de peixes, de molluscos, de crus- 
taceos, etc., a que juntam algumas substancias vegetaes. Mergulham com 
facilidade e podem conservar-se longo tempo debaixo d'agua, embora 
precisem de emergir para respirar. A disposição especial do apparelho 
circulatorio explica-nos a demora d'estes animaes sob a agua. Este appa- 
relho é munido de vastos reservatorios ou seios venosos em que o san- 
gue se acumula durante todo o tempo em que os pulmões não funccio- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 921 


nam. Quando os amphibios mergulham, a circulação pulmonar, graças ao 
sangue dos seios, não se suspende e os animaes não podem por tanto 
suffocar-se, porque a asphixia é um phenomeno produzido pela suspen- 
são da respiração, consecutiva à da circulação. 

Como os seus membros são improprios para a locomoção terrestre, 
os amphibios não saem da agua senão para dormir, realisar um parto ou 
aleitar os filhos. 


USOS E PRODUCTOS 


Obrigados, pela organisação dos membros, a rastejarem pezada- 
mente na terra, se algumas vezes são apanhados fóra d'agua, ficam in- 
teiramente à mercê dos inimigos. Assim é que o homem mata todos os 
annos um numero prodigioso d'estes mamiferos de que aproveita prin- 
cipalmente a pelle, a gordura e o marfim dos dentes. 


À ordem comprehende duas familias: as phocas e os trichecos. 


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VOL. III 21 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 323 


AMPHIBIOS EM ESPECIAL 


AS PHOCAS 


Teem incisivos em ambas as maxillas; os caninos não se alongam 
em defezas. O pavilhão auricular falta completamente. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A maior parte das phocas habitam os mares do Norte; as mais sin- 
gulares vivem nos do Sul. Existem mesmo em alguns lagos interiores da 
Asia. Ha apenas uma especie que deve considerar-se verdadeiramente 
" cosmopolita. 


COSTUMES 


As phocas habitam principalmente os mares; no entanto tambem so- 
bem os rios e fazem pequenas excursões por terra para chegarem às 
aguas interiores. Ha especies que buscam de preferencia o mar largo; 
algumas porém vivem principalmente nas costas. As phocas não sáem a 
terra senão em condições muito especiaes; a agua é o seu verdadeiro 
elemento. Em terra são pezadas, retardatarias e como que estrangeiras; 
na agua, pelo contrario, movem-se com prodigiosa rapidez, com immensa 


facilidade. Mergulham e nadam com extrema habilidade, sobre o dorso 
x 


324 HISTORIA NATURAL 


como sobre o ventre, para diante como para traz. Em terra, o unico 
meio de progredirem é o rastejamento; na agua avançam, recuam, vol- 
tam-se com velocidade admiravel. Ás vezes, estendem-se sobre pedaços 
de gêlo fluctuante, aquecendo-se ao sol; ao menor indício de perigo po- 
rém, procuram na agua um refugio. 

As phocas são extremamente sociaveis; vivem constantemente em 
bandos, tanto mais numerosos quanto mais deserto é o logar que habi- 
tam. Nas regiões em que o homem as persegue, affastam-se timida- 
mente para o mar alto, não sendo por isso possivel observal-as senão 
de longe. 

As phocas nem sempre vivem n'uma mesma região; muitas espe- 
cies ha que emprehendem dilatadas viagens, nadando dia e noite, quasi 
sem um intervallo de repouso. 

Os habitos das phocas são mais nocturnos do que diurnos. É de dia, 
com effeito, que ellas dormem, se aquecem ao sol ou se movem com 
verdadeira preguiça. De noite, pelo contrario, agitam-se com velocidade, 
com rapidez incomparavelmente maior. 

Nas primeiras edades, as phocas são seres vivos, alegres, dispostos 
sempre aos divertimentos; depois de velhas, tornam-se preguiçosas. 

De todos os sentidos das phocas o mais perfeito é o ouvido, ao con- 
trario do que poderia esperar-se de animaes que não apresentam pavi- 
lhão auricular. A vista e o olfato são menos perfeitos. À voz é rouca e 
recorda ora o uivo do cão, ora o balido do carneiro, ora o mugido 
do boi. 

Os agrupamentos das phocas fazem-se por familias. Em cada uma 
d'estas, um só macho subordina trinta ou quarenta femeas. Na epocha 
do cio, ha entre os machos grandes luctas que não vão até à morte d'al- 
gum dos contendores, pelo simples facto de que a pelle e a camada sub- - 
jacente de gordura são um escudo poderoso contra os ferimentos que 
podem receber. 

Decorridos sobre o acto sexual oito ou dez mezes, a femea dá à luz 
um filho, raras vezes dois. A mãe defende corajosamente o filho, que 
aos dois mezes se desmama. O crescimento é nas phocas muito rapido ; 
ao fim de um anno teem metade das dimensões definitivas e entre os 
dois e os seis encontram-se adultas. A duração total oscilla entre vinte 
e cinco e quarenta annos. 

O regime das phocas é animal; alimentam-se de peixes, de crusta- 
ceos, de molluscos e zoophytos. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 


CAÇA 


O mais cruel inimigo das phocas, superior mesmo ao urso branco, 
é o homem. A caça ou antes, como diz Figuier, a guerra desapiedada 
que a nossa especie move às phocas é de tal natureza que estes animaes 
teem diminuído consideravelmente de anno para anno. Se esta guerra 
continúa a extincção destes famosos mamiferos não se fará esperar 
muito. «Dos bandos numerosos, escreve Brehm, que ainda no seculo pas- 
sado se viam nas ilhas solitarias, não vemos hoje mais que os ultimos 
representantes.» ! 


CAPTIVEIRO 


As phocas submettidas ao captiveiro e tratadas com cuidado chegam 
a tornar-se verdadeiros animaes domesticos. Aprendem a seguir o ho- 
mem, a reconhecer-lhe a voz; e uma vez chegada a educação a este 
ponto, as phocas podem deixar-se em liberdade, podem ir ao mar que 
voltarão a casa do dono e trarão até alguma pesca. 


USOS E PRODUCTOS 


O oleo, a gordura, a pelle e os dentes das phocas são artigos va- 
liosos para a industria e commercio. É mesmo esta RPA ÇÃO que nos 
explica o ardor com que se lhes faz a caça. 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 788. 


326 HISTORIA NATURAL 


Damos seguidamente uma summaria noticia das principaes especies 
do genero. 


A PHOCA COMMUM OU BOI MARINHO 


É a especie mais conhecida, sobretudo nos costumes. Mede metro e 
meio a um metro e oitenta centimetros de comprimento. As côres do 
manto são o branco, o negro e o pardo trigueiro. Nos animaes d'esta 
especie o labio superior é ornado de pêllos curtos e brancos com malhas 
trigueiras. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie habita os mares da Europa. 


A PHOCA DA GROELANDIA 


O corpo n'esta especie é branco ou branco amarellado com grandes 
manchas escuras e alongadas; a cabeça e a cauda porém são negras. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 327 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Vive esta especie no Oceano Glacial Arctico e nos mares e estreitos 
visinhos. Encontra-se na Islandia e é frequente nas ilhas fluctuantes de 
gêlo. 


A PHOCA DE TROMBA 


É tambem conhecida pelo nome de elephante marinho. O caracter 
distinctivo dos animaes desta especie é a existencia de um prolongamento 
do nariz em forma de tromba com a extensão approximada de trinta 
centimetros. As dimensões do animal adulto são: oito a dez metros de 
comprido e cinco a sete de circumferencia. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se no extremo meridional da America, nas ilhas de San- 
dwich, Van-Siemen, em Nova-Zelandia e nas ilhas do Pacifico. 


328 HISTORIA NATURAL 


A PHOCA DE CAPUZ 


Os animaes d'esta especie não excedem dois metros e meio de com- 
primento. Distingue-os e dá-lhes o nome a faculdade que teem de inchar 
a pelle da cabeça, formando uma como empolla ou vesicula de ar. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie encontra-se na Groelandia, na Terra Nova e nas costas 
septentrionaes da Noruega. 


A PHOCA URSINA 


É conhecida esta especie tambem pelo nome de urso marinho, que 
lhe provém de uma certa analogia que tem a sua cabeça com a dos ur- 
sos. Mede dois metros a dois metros e meio de comprimento. O pêllo é 
comprido e grosseiro, negro ou pardo escuro e mais claro no ventre. 


A — === 


sim: ; 


ARNO AA DM 


Imp. Lamoureuo à Paris. 


1. À Proca commum... 2 O Morco. 3.0 LrÃo MARINHO 


Magalhães & Momz, Editores 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 329 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se frequentemente esta especie nas costas de Kamschatk e 
em todo o norte do oceano Pacifico. 


A PHOCA CRINADA 


É tambem conhecida esta especie pelo nome de leão marinho. Este 
nome justifica-se pela existencia de um péllo comprido amarello arruivado 
que se estende pelas costas e ao longo do pescoço, à maneira de crina 


ou de juba. Quatro metros é o comprimento approximado dos animaes 
d'esta especie. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Esta especie encontra-se desde o estreito de Behring até ás costas 
do Japão e da California. 


550 HISTORIA NATURAL 


OS TRICHECOS 


É esta a outra familia da ordem dos amphibios, que apenas com- 
prehende as duas. 

Os trichecos teem a configuração geral das phocas; não obstante 
offerecem caracteres distinctivos que justificam plenamente a sua sepa- 
ração em familia especial. A face dos trichecos é mais curta que a das 
phocas; o focinho é mais largo; os mollares teem uma conformação 
muito differente; os incisivos inferiores faltam nos adultos; finalmente, 
os caninos superiores, fortissimos, alongam-se e sáem da bocca como 
duas fortes defezas. 

À familia comprehende um só genero e este uma só especie que 
vamos descrever. 


O TRICHECO OU CAVALLO MARINHO 


Documentos historicos antiquissimos se referem a este animal: por 
exemplo: as descripções de Alberto o Grande e de Olaiis Magnus. Advir- 
ta-se porém que nestas descripções ha muito de fabuloso. 


CARACTERES 


O tricheco adulto tem seis a sete metros de comprimento e trez e 
meio a quatro de circumferencia ao nivel das espaduas. O pezo chega a 
mil e quinhentos kilogrammas nos individuos maiores. Os exemplares 
mais abundantes hoje não excedem de ordinario quatro metros de ex- 
tensão e oitocentos kilogrammas de pezo. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 391 


A pelle apresenta uma espessura não inferior a trez centimetros; no 
pescoço é ainda mais consideravel. Os individuos ainda novos são com- 
pletamente cobertos de pêllos sedosos, mais curtos, mais rijos e mais 
grosseiros no dorso que no ventre; estes pêllos cáem com os progressos 
da edade. O tricheco nos primeiros tempos de existencia é negro; à pro- 
porção que envelhece torna-se trigueiro ou ruivo, amarellado ou parda- 
cento, ou ainda branco. | 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O tricheco ou cavallo marinho habita ainda hoje uma grande parte 
do Oceano Glacial Arctico. A area de dispersão d'este amphibio compre- 
hende uma parte oriental e outra occidental. A éste encontra-se princi- 
palmente no mar de Behring e ao longo das costas da America, até ao 
chamado banco dos cavallos marinhos; nas costas asiaticas, abaixo do 
sexuagessimo grao de latitude norte. O limite da distribuição occidental 
e à embocadura do Iénisei. Encontra-se vulgarmente na Nova-Zembla e 
nos gêlos que ficam situados entre a ilha Spitzberg e a Groelandia, bem 
como ao longo da costa oriental da parte mais septentrional da America. 


COSTUMES 


O tricheco ou cavallo marinho procura de preferencia os logares em 
que a agua se conserva a uma temperatura muito baixa. 

Os antigos navegadores fallam de enormes bandos de cavallos ma- 
rinhos que já hoje se não encontram. Ainda no seculo xvrr os marinhei- 
ros de um só navio podiam no mar Glacial da Europa matar no espaço 
de nove horas oitocentos ou novecentos trichecos. Actualmente taes fa- 
ctos não se reproduzem; os bandos teem decrescido consideravelmente 
em numero de membros. 

O genero de vida do tricheco é muito semelhante ao das phocas. 
É, como estas, muito sociavel e passa a maior parte da sua existencia 
na agua. Na epocha do cio porém, e na da parturição, acontece que este 
animal se demora, por vezes, muitos dias seguidos em terra. 


332 HISTORIA NATURAL 


Como todos os amphibios, o tricheco ou cavallo marinho nada com 
rapidez e facilidade notaveis e é em terra pezado, moroso. 

Os crustaceos e os molluscos constituem o grosso da alimentação 
deste amphibio. Com as fortes defezas destaca dos rochedos as conchas 
que ahi adherem e come-as. 

Nos logares em que a experiencia lhe não ensinou a conhecer o ho- 
mem, o tricheco passa indifferente ao lado das embarcações. Já assim 
não acontece nas regiões em que o homem se lhe denunciou sob a forma 
de um terrivel perseguidor. Ahi teem sempre todos os bandos algumas 
sentinellas que previnem os companheiros da approximação do homem 
por uma successão de gritos entrecortados que fazem lembrar o relincho 
do cavallo. Se algum dos membros de um bando é ferido, a excitação e 
a raiva, rapidamente communicadas de uns a outros, tornam verdadeira- 
mente terriveis os trichecos. «Se se attaca um, diz Scoresby, os outros 
correm a defendel-o. Cercam o barco, abrem-lhe os flancos com os cani- 
nos, erguem-se-lhe até às bordas, ameaçam submergil-o. O melhor meio 
de defeza para o homem é atirar-lhes areia aos olhos; por este modo 
consegue-se seguramente affastal-os, ao passo que pelas armas de fogo 
raras vezes se obtem' resultado n'estas condições. Meu pae matou um 
dia com uma lançada um tricheco a que antes fizera fogo sobre a cabeça. 
Viu-se depois que a bala se achatara contra os ossos do craneo.» 

O acto sexual realisa-se em Junho ou Julho. N'esta epocha os ma- 
chos dão-se combates violentos em que os dentes caninos representam 
um grande papel. Raro é, por isso, encontrar um macho cujo corpo se 
não ache coberto de cicatrizes. Em quanto dura o cio, os machos fazem 
ouvir constantemente a voz. | 

Nove mezes depois do acto sexual, em Abril ou Maio, a famea pare 
um filho unico, que trata e defende corajosamente como as phocas. 


CAÇA 


A caça ao tricheco é perigosissima no mar e facillima em terra. 
Nas praias mata-se o tricheco como se matam as phocas. A difficuldade 
que o animal tem de se mover explica porque no espaço de algumas 
horas se matam em terra dezenas de cavallos marinhos. Emprega-se 0 
machado ou a lança. No mar são grandes os perigos d'esta caça, em 
que se emprega o arpeo ou a arma de fogo. Os perigos resultam não 
tanto da valentia do animal, que é aliás enorme, como do facto de que 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 333 


os cavallos marinhos, já o notamos, se auxiliam uns aos outros no atta- 
que, como na defeza. 


CAPTIVEIRO 


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Não se sabe ao certo se o cavallo marinho é susceptivel da alta 
domesticação que pode attingir a phoca. Segundo Brehm, à Europa 
nunca veio senão um tricheco vivo em 1853. Vivem nove semanas ape- 
“nas em captiveiro. 


USOS E PRODUCTOS 


Os dentes do cavallo marinho fornecem marfim mais branco e mais 
rijo que o dos elephantes. A pelle serve para a fabricação de corrêas e 
cordas de uma enorme resistencia. Os tendões servem de fios para os 
groelandezes. A gordura é empregada na preparação de alimentos ou 
d'ella se extrae um oleo superior ao da balea. A carne, ao que dizem os 
que a teem provado, não é má. 


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CETACKOS 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


Os cetaceos são mamiferos essencialmente aquaticos, em extremo 
semelhantes aos peixes. 

Quem se limitasse a uma observação ligeira e superficial das formas 
exteriores d'estes animaes, seria com effeito levado a crêr que são pei- 
xes, tal é a analogia apparente que manteem com esta classe de verte- 
brados. É pois necessario insistir nos distinctivos da viviparidade, do 
aleitamento dos filhos, da respiração pulmonar, da existencia de um co- 
ração munido de dois ventriculos e de duas auriculas, para que fique 
bem assente e sem sombras de duvida a colocação dos cetaceos na classe 
dos mamiferos. 

«Os cetaceos, diz Figuier, em vez de serem organisados para a vida 
terrestre, são, pelo contrario, admiravelmente adaptados ás condições 
do meio aquatico; adquirem dimensões muitas vezes enormes e são os 
gigantes do reino animal.» * Brehm diz tambem: «Os cetaceos são entre 
os mamiferos o que os peixes são entre os vertebrados, isto é seres con- 
formados para uma vida exclusivamente aquatica. As phocas passam um 
terço, pouco mais ou menos, da sua existencia em terra; ahi nascem, 
ahi dormem, ahi se aquecem aos raios do sol. Os cetaceos, esses não po- 
deriam viver fóra da agua. As dimensões gigantescas d'estes animaes 


1! L. Figuier, Obr. cit., pg. 29. 


336 HISTORIA NATURAL 


indicam já que só no meio d'este elemento lhes é possivel moverem-se; 
além d'isso, só o mar com as suas riquezas infinitas lhes pode fornecer 
alimentação em quantidade sufficiente.» ! Abstracção feita dos pontos 
essenciaes de organisação que determinam a entrada na classe dos ma- 
miferos aos cetaceos, em tudo o mais assemelham-se elles aos peixes. 
É o que vamos vêr. 

Os cetaceos teem um corpo pezado e volumosissimo. A cabeça 
enorme e monstruosa não se separa claramente do resto do corpo. Este 
vae adelgaçando de diante para traz e termina por uma barbatana cau- 
dal, larga e horisontal. Os membros posteriores faltam completamente e 
os anteriores transformaram-se em verdadeiras barbatanas em que só 
com o auxilio do escalpelo é possivel descobrir dedos, reconhecer mãos. 
Uma barbatana dorsal, formada de tecido adiposo, augmenta, quando 
existe, o que nem sempre acontece, a semelhança entre os cetaceos e 
os peixes. À Dbocca é largamente fendida, desprovida de labios e contem 
um numero consideravel de dentes. As mamas acham-se collocadas junto 
dos orgãos genitaes. 

A estructura interna offerece tambem particularidades dignas de 
menção. 

Os ossos são formados de cellulas espongiosas, cheias de uma gor- 
dura liquida que o impregna de tal modo que elles parecem ainda gordos 
ao fim mesmo de muitos dias de exposição ao ar: não teem canal me- 
dullar. O craneo é enorme e raras vezes proporcionado ao resto do 
corpo. Os ossos estão ligados de um modo especialissimo: são embrica- 
dos e unidos apenas pelas partes molles. Uns são rudimentares, outros 
extremamente desenvolvidos. 

Na columna vertebral a porção correspondente ao pescoço é princi- 
palmente notavel. As vertebras são ahi em numero de sete, mas reduzidas 
a finos anneis achatados, muito pouco moveis e, muitas vezes soldados 
entre si de modo tal que apenas se lhes pode contar o numero pelos bu- 
racos de conjugação, que dão passagem aos nervos. As vertebras dor- 
saes são geralmente onze a dezenove, as lombares dez a vinte e quatro 
e as caudaes vinte e duas a vinte e quatro. O numero de verdadeiras 
costellas é muito restricto: varia entre um e seis pares. As falsas costel- 
las são muito mais numerosas. 

Os membros anteriores são notaveis pela forma curta e achatada 
dos seus ossos e ainda pelo numero de phalanges que pode ser seis, 
nove ou mesmo doze. 

Os dentes em grande numero, são sempre eguaes em cada maxila. 


1! Brehm, Obr, cit., vol, 2.º, pg. 828, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 337 


Os musculos são vigorosissimos e proporcionados às dimensões d'es- 
tes animaes. 

À massa nervosa é relativamente pequena; n'uma baleia, por exem- 
plo, que meça seis metros de comprido e tenha cinco mil e quinhentos 
kilogrammas, o cerebro não excede dois kilogrammas. 

Os orgãos sensoriaes teem um pequeno desenvolvimento. Os olhos 
são pequenos e as orelhas apenas indicadas. O nariz não exerce func- 
ções olfativas, é um simples canal aerio; não se tem, com effeito, en- 
contrado n'esta ordem nervos de olfação. O tacto é um sentido embo- 
tado, fraco, nos cetaceos. 

Os orgãos respiratorios offerecem nos animaes d'esta ordem modi- 
ficações importantes, em relação e em harmonia com as condições de 
meio em que elles vivem. A larynge não é n'esta ordem propriamente 
um orgão de phonação, mas sim uma cavidade destinada a deixar pas- 
sar uma enorme quantidade d'ar a cada inspiração. Os canaes aerios são 
muito grandes; os pulmões teem um volume consideravel; e os bron- 
chios são anastomosados entre si. Além d'isto, as arterias aorta e pul- 
monar apresentam diverticulos muito espaçosos em que pode accumu- 
lar-se o sangue oxigenado ou viciado. 

Os cetaceos não teem glandulas salivares. A lingua é grande, o es- 
tomago dividido, o figado pequeno e os intestinos de dimensões muito 
variaveis de especie a especie. 

A pelle é quasi desnudada, lisa, macia ao tacto e pouco espessa; 
sob ella encontra-se uma forte ati de gordura. 

Toda esta disposição e natureza morphologica eminentemente 
apropriada à vida aquatica. A pelle lisa facilita aos cetaceos os movimen- 
tos; a camada de gordura diminue-lhes o pezo, protege-os contra o frio 
e permitte-lhes resistirem à enorme pressão ab supportam quando des- 
cem ao fundo do mar; os vastos pulmões podem reter consideraveis vo- 
lumes d'ar, o que lhes permitte immersões demoradas; finalmente as arte- 
rias enormemente dilatadas que ligam os pulmões e o coração podem 
conter e conservar sangue arterialisado por largo tempo, sem que ao 
animal seja preciso fazer muito repetidas inspirações. 

Os maiores mamiferos conhecidos são pequenissimos ao lado dos 
cetaceos. 


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VOL. III 


338 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os cetaceos vivem em todos os mares do globo. Uns teem uma area 
de dispersão muito extensa, outros vivem confinados nas regiões mais 
frias, muitos emfim, são verdadeiramente cosmopolitas. 


COSTUMES 


Todos os cetaceos evitam a visinhança das costas. Á excepção de 
uma familia que entra pelos rios, não passando, ainda assim, para além 
do ponto em que a maré se faz sentir, os cetaceos não abandonam a 
agua salgada. Fóra da agua nenhum se pode mover; se acontece que 
uma tempestade os atire para terra, estão irremediavelmente perdidos. 

Em certas estações os cetaceos emigram e percorrem o mar segundo 
um trajecto determinado. Nadam todos com grande facilidade, sem es- 
forço, e muitos mesmo com inacreditavel rapidez. De ordinario vivem à 
superficie d'agua, com quanto possam descer a grandes profundidades. 

Quando depois de um prolongado mergulho, um cetaceo volta à su- 
perficie do mar dá-se um facto curioso: o animal expelle ruidosamente o 
liquido que lhe entrou pelas narinas, e fal-o com violencia tal que uma 
columna d'agua pulverisada se eleva até cinco ou seis metros. Parece 
que um jacto de vapor sãe atravez de um tubo estreito. São portanto 
falsos os desenhos que representam a agua saindo das narinas do ani- 
mal como de uma fonte. Á expiração que descrevemos succede uma ins- 
piração ruidosa e muito rapida. A esta succede uma expiração que, não 
havendo agua a expellir, é rapidamente seguida de uma outra inspira- 
ção; e assim sempre, successivamente. As narinas acham-se dispostas de 
modo que são sempre a primeira parte a sair da agua quando o cetaceo 
immerge. | 

Para se fazer idéa dos prolongados mergulhos dos cetaceos, basta 
lembrar que n'um caso de ferimento elles podem, segundo Scoresby que 
os observou de perto, conservar-se debaixo d'agua por espaço de vinte 
minutos! 

Um facto curioso e que não está bem explicado é o da morte rapida 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 339 


dos cetaceos em terra. Respirando pulmonarmente, não se pode explicar 
a morte por asphixia como nos peixes. Explicar-se-ha pela fome? Talvez; 
no entanto custa a crêr que a causa seja esta, porque a morte é exces- 
sivamente rapida. 

Os cetaceos são carnivoros; só casualmente comem vegetaes, que 
todavia lhes não servem provavelmente de alimento. Os animaes mari- 
nhos, grandes e pequenos, seja qual fôr a classe a que pertençam, cons- 
tituem a verdadeira alimentação dos cetaceos. Devemos notar este facto 
muito singular: os cetaceos de maiores dimensões são, de ordinario, os 
que se alimentam de mais pequenos animaes e inversamente. 

Entre os cetaceos ha especies que se alimentam apenas de peque- 
“nos animaes, peixes, crustaceos, molluscos, annelados, etc.; outras po- 
rém attacam os grandes animaes, não poupam mesmo, se as aperta a 
fome, os seus congéneres mais fracos. Este ultimo é o caso dos golphi- 
nhos. | 

Os cetaceos são animaes extremamente sociaveis. Nas regiões em 
que o homem os não attaca, vivem em bandos numerosissimos; e geral- 
mente manifestam uns pelos outros uma grande dedicação. O macho e a 
femea dão n'esta ordem altos exemplos de affeição. Claro está que à affir- 
mação anterior fazemos uma restricção: a que já ficou mencionada rela- 
tivamente às especies cujos membros se attacam nas occasiões de fome. 
Esta restricção, de resto, somos obrigados a fazel-a mesmo para a nossa 
especie. Nas fomes do alto mar, a anthropophagia é uma perfeita reali- 
dade. 

Não existem dados precisos sobre a epocha do cio. É provavel que 
o acto sexual se realise durante todo o anno, mas com mais ardor nos 
fins do estio. É então com effeito, que os bandos se dividem em pares 
e que os machos agitam violentamente em torno de si as aguas batendo 
com força e em todas as direcções com as barbatanas. Tambem se não 
conhece com precisão o tempo que dura uma gestação, embora geral- 
mente se creia que seja de nove ou dez mezes. Brehm julga que nas 
pequenas especies a gestação poderá durar com efeito esse tempo ape- 
nas, mas que nas grandes especies deverá prolongar-se por vinte ou 
vinte e dois mezes. É de Fevereiro a Abril que as femeas apparecem 
com os filhos. Estes, mesmo depois de muito crescidos, reclamam ainda 
os cuidados maternos. As baleias, por exemplo, só ao fim de um anno 
estão habilitadas a procurarem por si mesmas o alimento. Parece que as 
grandes especies só aos vinte annos estão aptas para a reproducção. 

Em caso de perigo, os cetaceos auxiliam-se mutuamente; as mães, 
sobretudo, combatem corajosamente pelos filhos. 


340 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


Além da baleia de que se fazem varas para colletes, para guarda- 
chuvas, etc., obtem-se do cetaceo um producto valioso de muitas ap- 
plicações industriaes, a gordura. 


Pode considerar-se a ordem dividida em quatro generos: os nar- 
vaes ou unicornes, os golphinhos, os cachalotes, e as baleias. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 341 


CETACEOS EM ESPECIAL 


OS UNICORNES 


Teem a cabeça espherica, curta e o corpo espesso; não possuem 
barbatana dorsal. O que principalmente caracterisa e distingue os ani- 
maes d'este genero é a existencia na maxilla superior de um dente in- 
cisivo, recto, de superficie canelada em espira, perpendicular à cabeça 
“e em continuação do corpo, dente que nos machos chega a attingir me- 
tade do comprimento do tronco. Nas femeas este dente é rudimentar. 

Este genero comprehende uma especie unica. 


O UNICORNIO OU LICORNE 


A cabeça d'este cetaceo é relativamente pequena, o pescoço curto 
e muito grosso e a barbatana caudal extensa e apresentando ao meio 
uma chanfradura profunda. No logar da barbatana dorsal, que falta, 
existe uma simples prega cutanea. A pelle é lisa, desnudada, molle, lu- 
zidia e relativamente fina. A epiderme não tem mais espessura que uma 
folha de papel, o corpo mucoso apresenta apenas dois centimetros de 
espessura e a derme é fina, embora resistente. 

A côr geral d'este cetaceo varia com a edade e o sexo. O macho 


3492 HISTORIA NATURAL 


é de ordinario branco ou branco-amarellado com manchas trigueiras, 
numerosas, alongadas e irregulares. Estas manchas, mais abundantes no 
dorso que no ventre tornam-se muitas vezes confluentes na cabeça. 

O comprimento do licorne varia entre quatro e seis metros e meio. 
O dente incisivo ou defeza offerece uma extensão de dois metros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O licorne habita os mares do Norte. É muito commum no mar Gla- 
cial, entre a Groelandia e a Islandia, em Nova-Lembla e nas costas 
septentrionaes da Siberia. Este cetaceo appareceu quatro vezes nas cos- 
tas da Inglaterra e duas nas costas da Allemanha, em 1736. 


COSTUMES 


Ácerca do licorne correm nos livros antigos as mais espantosas fa- 
bulas. Á falta de dados precisos e observações rigorosas, a phantasia 
apoderou-se do assumpto e deixou n'elle os vestigios da sua passagem. 
Alberto o Grande, chama a este cetaceo um peixe e diz-nos que com um 
corno que tem implantado na cabeça, elle pode attravessar de lado a 
lado um navio, embora seja facil evitar-lhe o embate porque o animal 
é muito moroso em todos os seus movimentos. Strabão e Fabricius, con- 
sideram tambem o dente d'este cetaceo como um corno que lhe serve 
não tanto para attacar as differentes especies aquaticas, como para par- 
tir o gelo. 

Nós devemos dizer com lealdade que, embora os nossos estudos 
modernos nos tenham dado o incontestavel direito de julgar verdadeiras 
phantasias muitas aflirmações dos antigos, é todavia certo que não pode- 
mos lisongear-nos de conhecer tão bem e tão minuciosamente quanto se- 
ria para desejar os costumes e habitos de vida do licorne. Com effeito a 
nossa ignorancia é sobre alguns d'estes pontos quasi absoluta. Procura- 
remos dizer quanto ha de averiguado. 

O licorne, como muitos outros cetaceos, evita cautelosamente as 
costas, refugiando-se no mar largo. É sociavel. Raras vezes se encontra 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 545 


um d'estes animaes só. Os bandos são geralmente constituídos, ao que 
dizem os navegadores, de quinze a vinte individuos. 

Os licornes são animaes pacificos, inoffensivos, que se não provo- 
cam uns aos outros, nem ás especies visinhas. Nadam encostados uns 
aos outros, apoiando cada um d'elles o enorme dente incisivo sobre o 
dorso do que o precede. 

Relativamente ao vagar de movimentos que lhes attribuiam os anti- 
gos naturalistas, podemos hoje affirmar que a verdade é o contrario do 
que se disse. Os navegadores que teem tido occasião de observar muito 
de perto estes cetaceos, são todos unanimes em attribuir-lhes uma enorme 
rapidez de movimentos. Com um só movimento da barbatana caudal, vol- 
“tam-se habilmente para a direita ou para a esquerda. 

O licorne quando, depois de ter mergulhado, chega à superficie do 
mar, expulsa pelo nariz a agua de um modo violento e ruidoso. Quando 
muitos d'estes animaes fazem isto ao mesmo tempo, ouve-se de longe 
um forte som de gargolejo produzido pela expulsão simultanea de ar e 
de agua. 

A base da alimentação do licorne é constituida por molluscos e 
peixes. 

Nada se sabe relativamente à reproducção d'este cetaceo: nem a 
epocha do cio, nem a do parto, nem o tempo que dura cada gestação. 
O que pode aflirmar-se é que, matando-se e abrindo-se uma femea no 
mez de Julho, se lhe encontrou um feto quasi completamente desenvol- 
vido. 


PESCA 


O processo empregado na perseguição do licorne é o do arpeu. 
Esta pesca não é porém, tentada em alta escala; deve considerar-se, tal- 
vez, mais uma diversão accidental do que um trabalho regular. De resto, 
ella é difficil, porque o licorne não costuma, como muitos outros ceta- 
ceos, reapparecer à superficie d'agua no ponto em que mergulhou. 
Immerge em um dado logar e, nadando rapidamente sob a agua, vae 
reapparecer à superficie n'um outro muito distante, ora adiante, ora 
atraz, ora ao lado direito ou esquerdo d'aquelle em que desappareceu; 
desorienta assim os perseguidores. O homem não é pois o mais teme- 
roso inimigo do licorne. Superiores n'este ponto à nossa especie estão 
alguns cetaceos. Mas mais funestas ainda do que todas as influencias ani- 
madas são, para os licornes, as tempestades. Muitas vezes o mar ar- 


344 HISTORIA NATURAL 


roja para as praias do Norte dezenas de cadaveres destes cetaceos, em 
que se não encontra um ferimento unico. 


USOS E PRODUCTOS 


Os groelandezes comem a carne dos licornes depois de cosida e 
comem cruas a pelle e a gordura. Com os tendões fazem fios, com o 
esophago e os intestinos fazem bexigas que empregam na pesca e com 
o oleo que extráem da gordura alimentam as lampadas que os alumiam. 

Para os pescadores o producto mais valioso, mais estimado são as 
defezas. Houve tempo em que a ellas se attribuiam virtudes therapeuti- 
cas e então valiam sommas consideraveis. Hoje já ninguem se lembra 
de procurar nas defezas do licorne um poder medico qualquer; mas to- 
dos vêem ainda n'ellas uma substancia superior ao marfim. 


OS GOLPHINHOS 


Estes cetaceos teem um focinho estreito e alongado, um corpo de re- 
gulares proporções; apresentam barbatana dorsal, a maior parte das es- 
pecies. 


(CONSIDERAÇÕES HISTORICAS 


A este proposito escreve Brehm: «Eis-nos chegados ao genero que 
deu o seu nome á familia inteira, aos golphinhos propriamente ditos, 
animaes que as fabulas e as lendas teem successivamente celebrado. Foi 
um golphinho ou delphim que, maravilhado pelos cantos divinos de 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 345 


Arion, recebeu sobre o dorso o poeta e o subtraíu ao furor dos mari- 
nheiros, transportando-o ao cabo Tenare. 

«Quem não leu em Plinio a historia d'aquelle golphinho que, reco- 
nhecido a um certo rapaz que todos os dias lhe dava pão, o transpor- 
tava no dorso atravez do lago Lucrin até à escóla e depois até casa! 

«Quando o rapaz morreu, diz o author latino, o cetaceo voltou ainda 
por muito tempo, dias seguidos, ao logar costumado até que morreu de 
saudade pelo amigo para sempre perdido.» Os golphinhos, segundo o 
dizer dos antigos, propeliam os rodovalhos para as redes dos pescado- 
res, ao que estes, reconhecidos, correspondiam dando-lhes pão humede- 
cido em vinho. Um certo rei tendo mandado prender um golphinho, um 
“grande numero de companheiros vieram por meio de signaes impetrar do 
monarcha a soltura do captivo; o rei não pôde negar o que lhe pediram. 
Plinio conta ainda, com toda a seriedade, que os golphinhos novos são 
sempre acompanhados por um companheiro velho que lhes serve de men- 
tor. Diz-se tambem que os golphinhos subtraem os cadaveres dos com- 
panheiros à voracidade de outros habitantes do mar. 

-  «Desgraçadamente, a todas estas famosas narrativas falta apenas 
uma coisa: a verdade.» * 


O GOLPHINHO COMMUM OU DELPHIM 


Este cetaceo mede de ordinario dois metros a dois e sessenta cen- 
timetros. Apresenta barbatanas peitoraes alongadas, finas e ponteagudas; 
a barbatana caudal é semi-circular. O numero de dentes varia muito; de 
ordinario porém encontram-se desde trinta e dois até quarenta e sete 
em cada maxilla. Estes dentes são implantados a distancias eguaes de 
uns a outros e separados por curtos intervállos de modo a ingrenarem-se 
mutuamente. São alongados, conicos, terminados em ponta aguda, ligei- 
ramente recurvos de fóra para dentro; diminuem de comprimento de 
diante para traz. O dorso é geralmente escuro com reflexos esverdea- 
dos que pouco e pouco se confundem com a côr clara do ventre. 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 219. 


546 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita todos os mares do hemispherio septentrional. 


COSTUMES 


Com quanto extremamente parecido com os cetaceos já estudados, 
sob o ponto de vista dos seus habitos e costumes, o golphinho commum 
ou delphim apresenta alguns factos particulares dignos de menção. Assim 
é, por exemplo, que elle não vive nem exclusivamente no mar alto, nem 
perto das costas, mas indifferentemente n'um ou n'outro ponto e até 
mesmo nos rios cuja corrente sobe até grandes distancias da foz. É so- 
ciavel; mas Os seus grupos não conteem geralmente mais de seis a dez 
individuos. 

O aspecto da dentição é bastante para indicar que o golphinho com- 
mum é um dos mais terriveis carnivoros. Alimenta-se exclusivamente de 
peixes, de crustaceos, de cephalopedes e outros animaes aquaticos. Per- 
segue principalmente os arenques, as sardinhas e os peixes voadores que 
obriga a saltarem fora da agua e atraz dos quaes elle mesmo salta tam- 
bem e corre com extrema rapidez. Algumas aves da beira-mar veem em 
auxilio do golphinho n'esta caça, porque perseguem no ar esses peixes 
às bicadas e forçam-os assim a mergulhar na agua onde o carnivoro os 
espera. 

O acto sexual realisa-se no outomno; dez mezes depois a femea pare 
um, raras vezes dois filhos de cincoenta a sessenta e seis centimetros de 
comprimento. A mãe trata com sollicitude o filho durante longo tempo. 
Só aos dez annos é que o golphinho commum se pode considerar adulto. 
Um antigo auctor grego aflirmava que esta especie attingia a edade de 
cento e trinta annos; os modernos navegadores não lhe attribuem mais 
que vinte e cinco a trinta annos de existencia. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 34 


= 


PESCA 


O homem poucas vezes persegue o golphinho commum; e quando o 
faz, não emprega de ordinario as armas de fogo nem os arpeus. Limita-se 
a fazer um cerco de barcos ao cetaceo forçando-o a fugir para as costas; 
desde que o golphinho, empelido por uma vaga pousa o corpo sobre 
a terra, está definitivamente morto. Durante a agonia este animal faz 
“Ouvir suspiros profundos. 


USOS E PRODUCTOS 


Comia-se em outro tempo a carne e a gordura d'este animal. Hoje 
este uso acha-se quasi completamente extincto. No tempo dos romanos o 
figado do golphinho passava por excellente remedio contra as intermit- 
tentes, o oleo por magnifico topico para as ulceras e a gordura por for- 
migações proficuas contra affecções do baixo-ventre. Tambem se quei- 
mava o animal e juntava-se a cinza com mel para fazer unguentos. To- 
das essas praticas desappareceram e com ellas o alto valor do cetaceo. 


A ORCA 


É conhecida esta especie desde tempos muito remotos. Os antigos 
attribuiam-lhe uma grande maldade e todos os observadores modernos 
estão ainda hoje de accordo sobre este ponto. 


348 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


A-orca é um golphinho vigoroso. Tem a cabeça pequena, o dorso 
elevado, as barbatanas lateraes compridas e a caudal forte, larga e ter- 
minando por uma curva em forma de s. Apresenta onze a treze dentes. 
O dorso é negro brilhante e o ventre branco com reflexos amarellados. 
Por cima e por traz dos olhos encontra-se uma comprida macula branca. 
O negro do dorso é separado do branco do ventre por uma linha nitida, 
mas irregularmente traçada. Do contorno do anus parte uma larga facha 
branca que se dirige para diante, enviando duas outras egualmente bran- 
cas e largas para a parte posterior do tronco, continuando-se depois até 
à barbatana peitoral, subindo e recurvando-se para o angulo da bocca e 
terminando por um fino traço branco em torno da maxilla superior. À 
partir da base ou parte posterior da barbatana dorsal estende-se para 
diante e para baixo uma outra facha azul escuro ou purpura. 

Esta especie apresenta dimensões muito variaveis desde cinco até 
dez metros de extensão. A barbatana peitoral mede sessenta e seis cen- 
timetros e a dorsal sessenta e trez; a largura d'estas membranas é de 
metro e meio, termo medio. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A area de dispersão d'este cetaceo foi já muito maior do que é hoje. 
Os naturalistas romanos conheciam esta especie e assignavam-lhe como 
patria o Mediterraneo. Nas costas da Corsega e da Sardenha abundavam 
as orcas. Actualmente este cetaceo não se encontra no Mediterraneo; ha- 
bita o norte do Atlantico, o mar Glacial e o norte do oceano Pacifico 
d'onde desce até às costas da França por um lado e do Japão, por outro. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 349 


COSTUMES 


Segundo Tilésius vêem-se as orcas nos mares do norte em grupos 
de cinco individuos com a cabeça e a cauda recurvados para baixo e a 
barbatana dorsal erecta e fóra d'agua, parecendo soldados de sabre em 
punho, desembainhado. Passam com assombrosa rapidez; e, porque teem 
uma vista penetrante, vêem a grandes distancias em todas as direcções. 

A orca é de todos os carnivoros maritimos o maior e o mais terri- 
vel; não se limita a attacar os pequenos peixes, mas acomette mesmo os 
cetaceos gigantescos. É respeitada e evitada por todos os golphinhos. 

Plinio disse: «A falsa baleia (assim appelidavam os antigos a orca) 
comporta-se como um bandido: ora se occulta à sombra de um navio 
ancorado e apanha um marinheiro que teve a phantasia de banhar-se no 
mar, ora ergue a cabeça fóra d'agua e se atira de encontro ás barcas 
dos pescadores, voltando-as.» Os observadores modernos confirmam as 
palavras do naturalista antigo. Rondelet affirma que as orcas perseguem 
as baleias e as mordem; assim estes cetaceos são por aquelles forçados 
a abandonarem as profundezas do mar e a refugiarem-se perto das cos- 
tas onde se torna facil matal-os pelo emprego das frechas ou do arpeu. 
Anderson refere que em Nova-Inglaterra se chama à orca 0 assassino das 
baleias. Quando tratam de perseguir uma baleia, as orcas juntam-se em 
grande numero, mordendo-a, arrancando-lhe pedaços de pelle; quando 
a baleia fatigada abre a bocca e projecta fóra a lingua, as orcas preci- 
pitam-se sobre ella e arrancam-lh'a. Eis porque de tempos a tempos se 
encontram nas costas cadaveres de baleias a que falta a lingua. Pontop- 
pidan e Steller confirmam o que acabamos de dizer ácerca das hostili- 
dades da orca e da baleia e bem assim as affirmações de Plinio sobre a 
maldade do cetaceo em questão. Steller diz: «Todos os pescadores teem 
um enorme medo da orca, porque quando se lhe approxinam muito ou 
a ferem, ella volta os baréi: » 

Nada se sabe, absolutamente nada, sobre a reproducção d'este ce- 
taceo. 


590 HISTORIA NATURAL 


Não se faz uma caça regular à orca. Apanha-se uma vez ou outra 
nos rios, e com grande difficuldade. Gravemente ferida, a orca nada ainda 
assim com uma velocidade de oito milhas por hora, arrastando comsigo 
um barco. 


USOS E PRODUCTOS 


À gordura da orca pode produzir cem ou duzentos francos, segundo 
Gerbe. O esqueleto vende-se por altos preços aos museus zoologicos. 


AS TONINHAS 


Estes cetaceos são caracterisados por um focinho curto, curvilineo, 
uma fronte ligeiramente inclinada, uma barbatana dorsal pouco elevada, 
dentes numerosos e irregularmente dispostos em cada maxilla. Vamos 
occupar-nos da especie-typo. 


Co 
OQ 
— 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 


A TONINHA 


Mede approximadamente um metro e trinta centimetros. Embora se- 
jam raros, encontram-se todavia individuos de mais de dois metros e 
meio. N'um exemplar de metro e meio de comprido, as barbatanas pei- 
toraes teem, termo medio, dezenove centimetros de extensão, a caudal 
quatorze centimetros de largo e a dorsal dez de altura. 

O corpo é fusiforme, ligeiramente comprimido posteriormente; a 
maior espessura é na parte media. As barbatanas peitoraes são obtusas 
nas pontas; a dorsal é sensivelmente triangular. 

A pelle é luzidia. O dorso é trigueiro muito escuro, com reflexos 
violaceos ou esverdeados e o ventre branco. 

Cada maxilla apresenta vinte e trez a vinte e cinco dentes por lado 
o que prefaz a somma total de noventa e seis a cem. Encontram-se com- 
tudo, muitos individuos com vinte ou vinte e dois dentes, o que Brehm 
explica, acceitando como provavel a dentição incompleta ainda de taes 
individuos. Os dentes são separados uns dos outros de modo a que se 
ingrenem os de uma e outra maxilla. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA 


É esta a especie mais conhecida de toda a familia dos golphinhos. 
Vive no Pacifico e no Mediterraneo; no entanto a sua verdadeira patria é 
o Oceano Atlantico: perto de suas costas encontra-se um numero espan- 
toso. Penetra nos rios até uma grande distancia da foz; e é ahi que prin- 
cipalmente se lhe dá pesca. No Tamisa, no Senna e no Tejo não é raro 
encontrar esta especie. 


COSTUMES 


É proverbial a voracidade da toninha; a rapidez com que digere 
explica a quantidade consideravel de alimento que ingere. 


352 HISTORIA NATURAL 


Os pescadores sentem um verdadeiro odio por esta especie que lhes 
rompe as redes e lhes devora o peixe apanhado. Ás vezes tambem acon- 
tece que sendo muito duros e resistentes os fios da rede, o cetaceo ahi 
fica preso; é uma alegria para os pescadores quando isto se dá. 

A toninha é muito sociavel; como todos os representantes da fami- 
lia, vive em bandos. Quando nada, o que faz com perfeição e rapidez, 
abaixa e levanta alternativamente a cabeça e a cauda e recurva o dorso 
em arco de convexidade ora superior, ora posterior. Brincando na agua, 
a toninha salta ao ar e mergulha alternativamente com rapidez assom- 
brosa. Quando está imminente uma tempestade salta fóra da agua a uma 
altura muito maior que a do costume; já os naturalistas antigos tinham 
observado este facto. Antes da introducção dos barcos a vapor, a toninha 
era muito mais facil de observar do que é hoje; ella segue, é certo, es- 
tes barcos, mas não tão de perto, nem com tanta confiança como fazia no 
tempo da navegação em barcos de vella, de carreira mais vagarosa. Perto 
das costas as toninhas seguem ás vezes uma embarcação durante uma 
legua e mais, ora nadando por baixo d'agua, ora saindo à superficie, 
como para observar melhor o barco e os tripulantes. 

Na epocha da apparição dos arenques, a toninha vive quasi exclu- 
sivamente da carne d'estes animaes; persegue tambem o salmão nos 
rios, difficultando muito as pescas. 

O cio começa com o verão e dura pelo menos dois mezes, de Junho 
a Agosto. À excitação é grande n'este periodo de tempo. Os machos per- 
correm o mar com extrema velocidade perseguindo as femeas; tambem 
se dão combates violentos n'esta epocha. Emquanto a excitação genesica 
dura, os machos não conhecem perigos; muitas vezes veem cair na areia 
ou batem com a cabeça de encontro às embarcações, morrendo por ef- 
feito da pancada. 

Em Maio realisa-se o parto que produz um a dois filhos de pouco 
mais de meio metro de extensão e de cinco kilogrammas de pezo, termo 
medio. O comportamento da mãe em relação à prole é o de todas as es- 
pecies de cetaceos. 


PESCA 


À perseguição activa de que é victima a toninha, explica-se em parte 
pelo valor da carne e da gordura d'este cetaceo, em parte pelos prejui- 
zos enormes que causa à pesca. Embora se empregue contra a toninha 
O tiro de bala, é certo que os meios mais usuaes são as redes fortes que 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 3595 


nalgumas partes se collocam nos rios na epocha do cio, e n'outras se 
dispoem na occasião em que apparecêm os arenques. As redes são de 
fios resistentes e malhas largas que se deixem facilmente attravessar 
pelo peixe meudo. À epocha do cio é boa para armar estas redes, porque 
o cetaceo vive então n'um estado de excitação tal que se vae cegamente 
prender. A epocha da apparição dos arenques é talvez melhor ainda; o 
cetaceo persegue estes animaes que attravessam as malhas das redes, ao 
passo que elle, infinitamente maior, excitado pelo ardor da perseguição, 
fica retido sem poder escapar-se, nem mesmo mordendo a rede, porque 
"os fios são fortissimos. 


CAPTIVEIRO 


A toninha é o unico cetaceo que até hoje se tem reduzido ao capti- 
veiro. Conta Brehm que um certo americano teve a felicidade de possuir 
uma toninha captiva durante largo tempo. Infelizmente para a sciencia, 
esse homem nada escreveu sobre os costumes d'esse animal nas condi- 
ções de captiveiro. 

Affirma ainda: Brehm que no Jardim Zoologico de Londres se teem 
feito muitas tentativas para crear a toninha e outros golphinhos, mas sem 
resultado satisfactorio. O naturalista citado possuiu tambem uma toninha, 
mas não pôde fazer observações algumas dignas de menção, porque o 
animal durou apenas um dia. Diz Brehm que não estando o animal ferido 
e não lhe faltando de comer, porque no vasto tanque em que foi lançado 
havia muitos peixes, a morte d'elle subsiste um verdadeiro enigma. O 
naturalista não crê que a agua doce possa ser tão rapidamente mortal 
para um vertebrado aquatico; assim esta mesma explicação que se po- 
deria invocar, é insufficiente. Pela minha parte, eu creio que, a despeito 
da opinião de Brehm, é à ausencia da agua salgada que deve exclusiva- 
mente attribuir-se a morte d'este e de todos os cetaceos que veem ás 
praias ou aos tanques e ahi morrem. Esperemos de mais minuciosas ob- 
servações a explicação do facto. 


354 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


Os romanos estimavam muito a carne da toninha; muito posterior- 
mente já à meza dos reis e dos grandes na Inglaterra servia-se como um 
mimo esse prato. Ainda hoje para os habitantes das costas e para os ma- 
rinheiros privados por largo tempo de carne fresca, o musculo da toni- 
nha é um magnifico alimento. 

O oleo que se extráe da gordura é semelhante ao da baleia, mas 
ainda mais fino e mais estimado. Os groelandezes bebem este oleo com 
o mesmo prazer com que nós bebemos um bom copo de vinho. 

À pelle dá um couro magnifico. 


OS CACHALOTES 


Está comprehendida n'este genero uma especie de cetaceos de gran- 
deza collossal e tendo uma cabeça enorme, equivalente a um terço do 
comprimento total do corpo. Os dentes são muito desenvolvidos na ma- 
xilla inferior e muito extensos; na maxilla superior são nullos ou rudi- 
mentares. | | 
O genero abrange uma especie unica de que vamos occupar-nos. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 355 


O CACHALOTE MACROCEPHALO 


Este cetaceo apenas cede à baleia em tamanho: o macho adulto 
pode attingir um comprimento de vinte a vinte e trez metros e uma cir- 
cumferencia de nove. À femea não tem mais que metade destas dimen- 
sões. As barbatanas peitoraes são relativamente muito pequenas: medem 
apenas um metro de comprido sobre sessenta e seis de largo n'um ma- 
“cho de vinte metros. A barbatana caudal mede perto de seis metros e 
meio de largura. Os dois sexos assemelham-se muito; alguns observado- 
res porém, pretendem achar uma differença na forma do focinho que se- 
ria recto e truncado na femea e arredondado no macho. 

A cabeça do cachalote macrocephalo é muito comprida, muito larga, 
quasi quadrangular; é tão alta e tão larga como o corpo de que se não 
separa claramente. O corpo é quasi cylindrico nos dois terços anteriores; 
no terço posterior adelga-se de diante para traz. A barbatana dorsal, pe- 
quena e formada de tecido gorduroso, parece truncada atraz e confun- 
de-se insensivelmente com o resto do corpo. As barbatanas peitoraes são 
curtas, largas, espessas e collocadas immediatamente atraz dos olhos; 
estas barbatanas apresentam na face superior cinco sulcos alongados, cor- 
respondentes aos dedos. À barbatana caudal é profundamente fendida e 
bilobada. A femea apresenta duas mamas apenas junto à região umbi- 
lical. | 

A face anterior da cabeça é vertical. No logar que o nariz occupa 
em outros mamiferos, apresenta o cachalote um respiradoiro ou fenda 
recurvada em s e da extensão de vinte e dois a vinte e sete centime- 
tros. Os olhos são pequenos e collocados muito posteriormente. 

As palpebras são desprovidas de pestanas; e as orelhas collocadas 
um pouco abaixo dos olhos, apresentam como abertura uma pequena 
fenda longitudinal. A bocca é muito grande, fendida quasi até ao nivel 
dos olhos; a maxilla inferior é mais estreita e mais curta que a maxilla 
superior que a cobre quando a bocca se fecha. As duas maxillas são or- 
nadas de dentes conicos e sem raizes; os da maxilla inferior são os maio- 
res e chegam a attingir um comprimento de trinta e trez centimetros. O 
numero de dentes varia entre trinta e nove e cincoenta. Nos individuos 
novos são muito agudos, mas gastam-se com o attrito, de forma que nos 
velhos não são mais do que cones occos de marfim. 

O craneo é notavel pela grandeza desproporcionada; a elle deve a 


4 


especie o nome por que é conhecida. 
* 


356 HISTORIA NATURAL 


Por baixo de uma espessa camada de gordura estende-se uma larga 
aponevrose que cerca um espaço cheio de materia transparente, oleosa, 
o spermaceti, que tambem se encontra n'um canal prolongado da cabeça 
à cauda e ainda em pequenas bolsas dessiminadas no meio da gordura 
e dos musculos. 

As vertebras cervicaes são sete, das quaes uma, o atlas, é livre e 
as outras seis soldadas. As vertebras dorsaes são quatorze, as lombares 
vinte e dezenove as caudaes. O omoplata é relativamente delgado, o hu- 
mero curto e grosso, soldado aos ossos do antebraço que são mais cur- 
tos ainda. 

Sobre os musculos que são duros e de fibras espessas, estende-se 
uma camada gordurosa 'de muitos centimetros de espessura. A pelle é 
lisa, luzidia, negra em geral, mas apresentando placas claras no ventre, 
na cauda e na maxila inferior. 

A lingua adhere por toda a sua face inferior à base do maxillar. O 
estomago é dividido em quatro compartimentos e o intestino tem quinze 
vezes o comprimento do corpo. 

Na bexiga d'este cetaceo encontra-se muitas vezes pequenos corpos, 
provavelmente concreções pathologicas, verdadeiros calculos urinarios, 
constituindo o famoso ambar pardo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA 


O cachalote macrocephalo é um animal cosmopolita: encontra-se em 
todos os mares do globo. No entanto é nos mares do hemispherio sul 
que elle é mais frequente. É ahi que se lhe faz uma perseguição regu- 
lar; é d'ahi que geralmente se admitte que elle se espalhou por todas 
as regiões onde actualmente vive. 


COSTUMES 


Percorre os mares em grandes bandos, como o golphinho commum. 
Procura os logares mais profundos ou a visinhança das costas escarpa- 
das. Dizem os baleeiros que cada um dos bandos tem á sua frente um 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 351 


macho vigoroso que defende as femeas e os individuos novos dos atta- 
ques d'outros animaes. Os velhos machos vivem em pequenos bandos 
uns com os outros, isolados das femeas e dos individuos novos. Ha occa- 
siões em que muitos bandos se reunem em um só, composto então de 
algumas centenas de individuos. | 

Nos movimentos o cachalote assemelha-se mais aos golphinhos com- 
muns do que ás baleias. Nadando tranquillamente, percorre trez a qua- 
tro milhas inglezas por hora; quando se apressa fende o mar com assom- 
brosa rapidez, produzindo em torno de si grandes vagas que se esten- 
dem até muito longe. Rivalisa então em rapidez com todos os navios. 

De ordinario os membros de um mesmo bando nadam uns atraz dos 
“outros n'uma longa. fila, repetindo cada um os movimentos do que mar- 
cha na frente; assim mergulham e immergem quasi simultaneamente. Só 
quando dormem se conservam immoveis, deitados ao longo do mar. 

O cachalote pode conservar-se vinte minutos debaixo d'agua. De or- 
dinario este cetaceo faz trinta a sessenta inspirações em dez ou quinze 
segundos; após isto encontra-se habilitado para mergulhar de novo e por 
longo tempo. 

O tacto é talvez o sentido mais perfeito do cachalote; a pelle é com 
effeito abundante em papillas nervosas delicadissimas, capazes de rece- 
berem as impressões mais ligeiras. A vista é boa; o ouvido, pelo contra- 
rio, é rude. | 
- O cachalote é muito timido e evita cuidadosamente a proximidade 
do homem; mas se o ferem, se o attacam a timidez nativa substitue-se 
rapidamente por uma coragem, visinha da temeridade. 

A alimentação d'este cetaceo compõe-se principalmente de cephalo- 
podes de differentes especies. Segundo as narrações dos antigos, o ca- 
chalote perseguiria os outros golphinhos e as baleias; os observadores 
modernos contestam isto, affirmando mesmo que o cachalote teme e 
evita os outros cetaceos. 

Cada parto produz de ordinario um filho unico, da extensão de qua- 
tro a cinco metros. Para aleital-o, a mãe volta-se um pouco de lado; o 
filho apanha o mamilo, não com a parte anterior da bocca, mas com o 
angulo das maxillas. 


PESCA 


O cachalote só principiou a tornar-se objecto de uma pesca regular 
desde os fins do seculo xvrr. Os americanos foram os primeiros a arma- 


358 HISTORIA NATURAL 


rem navios para esta pesca, em 1677; os inglezes só um seculo mais 
tarde lhes seguiram o exemplo. O mar do Sul tornou-se desde o princi- 
pio do nosso seculo o verdadeiro theatro d'estes trabalhos; inglezes e 
americanos do Norte são os principaes actores. É verdadeiramente es- 
pantosa a quantidade de spermaceti recolhida m'estas pescas, tão peri- 
gosas, tão cheias de aventuras. 

Ao contrario da baleia que rarissimas vezes sustenta lucta com a 
nossa especie, o cachalote, uma vez ferido, sabe oppôr ao homem uma 
resistencia vigorosa e terrivel, em que lhe são armas os dentes e a 
cauda. 

Os processos empregados n'esta pesca são os mesmos que na das 
baleias. Adiante tocaremos n'este ponto. É 


USOS E PRODUCTOS 


À gordura do cachalote fornece um oleo precioso; o spermaceti e o 
ambar são productos muito estimados e que se pagam por bons preços. 
O spermaceti, além do emprego medico, é utilisado na fabricação de 
vellas muito estimadas. O ambar, cuja origem apontamos anteriormente, 
é tambem um producto valioso que a industria faz entrar na composição 
de certos oleos caros e dos sabonetes perfumados. Os gregos emprega- 
vam este producto eomo antispasmodico; os romanos e os arabes conhe- 
ceram-o tambem. No seculo passado ainda todas as pharmacias o pos- 
suiam. Os dentes do cachalote são fortes, duros, pezados e faceis de tra- 
balhar. A industria emprega-os em muitos dos usos em que serve o 
marfim. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 359 


AS BALEIAS 


Esta familia comprehende dois generos: os rorquaes e as baleias pro- 
priamente ditas. 


OS RORQUAES 


Estes cetaceos, conhecidos tambem pelo nome de balénopteros, são 
animaes compridos, relativamente bem feitos, tendo uma barbatana dor- 
sal situada no terço posterior, uma barbatana caudal pequena, barbata- 
nas peitoraes finas, um focinho quasi recto e na parte inferior do corpo 
sulcos numerosos e profundos que se estendem, desde a maxilla inferior 
até ao umbigo. 

À columna vertebral d'estes cetaceos comprehende sete vertebras 
cervicaes, soldadas umas às outras geralmente, quinze dorsaes, quatorze 
lombares e vinte e quatro caudaes. 


AS BALEIAS PROPRIAMENTE DITAS 


Differem dos rorquaes em terem um corpo muito mais pezado, in- 
forme e de ordinario maior, porque uma baleia adulta raras vezes me- 
dirá menos de vinte metros de comprido. Differem ainda as baleias dos 
rorquaes pela ausencia de sulcos ventraes e de barbatana dorsal. As ba- 


360 HISTORIA NATURAL 


leias propriamente ditas, como os rorquaes, não teem dentes, mas no 
logar d'elles o que se chama barbas de baleia, varas ou laminas corneas, 
triangulares, muito elasticas. 

No grupo das baleias propriamente ditas estão comprehendidas duas 
especies: a baleia boreal ou commum e a baleia austral. Tendo estas 
duas especies os mesmos costumes e differindo pouco nos caracteres 
morphologicos, faremos apenas a descripção da primeira. A historia de 
uma é a historia da outra. 


A BALEIA COMMUM 


Muitos navegadores e escriptores antigos se occuparam d'este ceta- 
ceo; pouco ha porém a aproveitar do que disseram. O conhecimento exa- 
cto e completo d'este cetaceo é devido às informações de Scoresby. Os 
antigos, dando curso à phantasia irrequieta e disposta sempre a exage- 
rar aquillo mesmo que em realidade é extraordinario, informam-nos de 
um modo inexacto e por vezes absolutamente falso. Assim fallam de ba- 
leias de cincoenta e sessenta metros, quando nós sabemos que ellas em 
geral não excedem vinte ou trinta e dois. Scoresby em trezentas e vinte 
e duas baleias que apanhou apenas encontrou uma que excedesse deze- 
nove metros. 


CARACTERES 


À baleia commum é um cetaceo informe, mal proporcionado. À ca- 
beça representa um terço do comprimento total do corpo, isto é, pouco 
mais ou menos, seis metros de extensão. A bocca tem trez a quatro me- 
tros de largura e cinco a seis de comprido; cabe-lhe dentro sem difficul- 
dade uma canoa de pesca com a respectiva tripulação. O corpo é cylin- 
drico e não se separa distinctamente da cabeça. As barbatanas peitoraes 
teem dois a trez metros de comprimento e um e trinta centimetros a um 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 361 


e sessenta de largura; são alongadas, ovaes, muito flexiveis e muito mo- 
veis. A barbatana caudal é enorme; tem um metro e sessenta centime- 
tros a dois metros de comprido e seis a oito de largo. É um verdadeiro 
remo e um leme de alguns metros quadrados. No animal adulto os res- 
piros ficam na parte mais elevada da cabeça, a trez metros da extremi- 
dade do focinho e consistem em duas fendas em forma de S, de cin- 
coenta centimetros de comprimento. Os olhos, que teem pouco mais ou 
menos o tamanho dos de boi, abrem-se sobre as faces lateraes da ca- 
beça, acima e atraz dos angulos da bocca. O canal auditivo é tão estreito 
que a custo se lhe pode introduzir um dedo minimo; o animal pode fe- 
chal-o à vontade, tornando-o assim impenetravel à agua. 

O numero de barbas oscilla entre trezentos e dezeseis e trezentos e 
cincoenta por lado. As mais compridas são as do centro que podem attin- 
gir, embora poucas vezes, cinco metros de extensão. A lingua, immovel 
e adherente à maxilla por toda a face inferior, é grande, molle, exclu- 
sivamente formada de tecido cellular impregnado d'oleo. 

A pelle: é relativamente fina e cobre uma camada de gordura de 
vinte a cincoenta centimetros de espessura que cérca todo o corpo. 

O dorso, os flancos, as barbatanas peitoraes e caudal são ordinaria- 
mente negros; os labios, a maxilla inferior e a maior parte do ventre 
são brancos com reflexos amarellados. Ha individuos completamente bran- 
cos e outros maculados. Os labios apresentam na parte anterior algumas 
sedas; o resto do corpo é completamente desnudado. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À baleia commum habita exclusivamente os mares mais septentrio- 
naes. Encontra-se até ao polo; para o sul, desce até ao sexuagessimo 
grao de latitude norte. Viaja ao longo das costas septentrionaes da Eu- 
ropa, da Ásia, da America. Abunda muito nas aguas ricas em pequenos 
animaes marinhos e que, por isso, se denominam paragens da baleia. 


362 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Nos logares em que o alimento abunda, encontram-se as baleias 
communs em bandos numerosos; não se pode porém affirmar, dizem 
quasi todos os naturalistas, que a especie seja sociavel. 

A despeito do volume e dimensões consideraveis que a caracteri- 
sam, a baleia é um animal vivo e agil; a força predomina evidentemente 
sobre o pezo. As barbatanas peitoraes servem-lhe apenas para se manter 
em equilibrio; a barbatana caudal é-lhe, pelo contrario, um orgão in- 
dispensavel à locomoção. Quando o animal morre na agua, é que se 
vê perfeitamente a funcção desempenhada pelas barbatanas peitoraes; 
ellas deixam de mover-se e desde então o animal volta-se, repousando 
sobre o dorso ou sobre os flancos. Quanto à força da barbatana caudal, 
pode fazer-se uma idéa lembrando que ella tem a superficie de uma de 
Iyce de navio regular. 

Segundo Scoresby, a rapidez e precisão de movimentos da baleia 
contrastam singularmente com o pezo e a corpuratura informe d'este ce- 
taceo. «Ás vezes, diz este navegador, projecta-se com violencia tal que 
salta fóra da agua.» 

Nadando tranquillamente à superficie d'agua, a baleia percorre n'uma 
hora o espaço de nove milhas inglezas; se a ferem, percorre doze a de- 
zeseis no mesmo espaço de tempo, não havendo então vapor que possa 
seguil-a. Diz Peeppig: «Se as baleias tivessem tanto de intelligentes como 
teem de grandes e fortes, não haveria canoa ou navio capaz de resistir- 
lhes; seriam os verdadeiros soberanos do Oceano.» Mas as baleias, 
allirma Brehm, são animaes estupidos e cobardes. A vista e o tacto são 
os unicos sentidos que n'este cetaceo parecem attingir um certo grao de 
desenvolvimento. O ouvido é muito mau. | 

À baleia prevê com uma grande antecipação as mudanças de tempo; 
quando uma tempestade se approxima, manifesta-se inquieta, agita for-. 
temente a agua. 

Como revellações da intelligencia da baleia nós não conhecemos 
mais que a dedicação da mãe pelos filhos. 

À baleia commum alimenta-se de molluscos, de crustaceos e princi- 
palmente de alforrecas, que nos mares do polo são abundantissimas. 
Tambem come annelados errantes e, casualmente, peixes, quando de pe- 
quenas dimensões, porque a estreiteza do esophago não lhes permite a 
deglutição de grandes animaes, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 363 


Seguindo o doutor Thiercelin, que escreveu o Diario de um baleeiro, 
Figuier escreve: «A baleia passa uma parte do seu tempo à superficie 
da agua e outra parte a uma profundidade de duzentas ou trezentas 
braças. Quando se prepara para subir, a proxima immersão é annun- 
ciada à superficie da agua por um largo remoinho. Primeiro vê-se im- 
mergir um ponto negro: é a extremidade do focinho. Logo depois appa- 
recem os respiros e após uma porção mais ou menos extensa do dorso; 
a cauda é a ultima a patentear-se. 

«Na occasião em que os respiros chegam à superficie da agua, ele- 
va-se ao ar -a muitos metros de altura uma dupla columna de vapor 
branco, mais ou menos espessa, em forma de V. Depois d'esta expulsão 
os respiros immergem de novo e durante trinta ou quarenta segundos o 
cetaceo deslisa à flôr d'agua de modo que o espectador lhe vê, atravez 
da camada de liquido que o cobre, a tinta azulada do corpo. Um minuto 
depois o ponto negro apparece, depois os respiros e uma nova expulsão 
de liquido tem logar. | 

«Este jogo alternado de respiração e progressão à superficie d'agua 
dura oito a dez minutos; durante este tempo realisam-se sete a oito pro- 
Jecções ou jactos de liquido. O primeiro é mais espesso que os seguin- 
tes; o ultimo, tão espesso e tão prolongado como o primeiro, annuncia 
que a baleia vae mergulhar. Debaixo d'agua conserva-se trinta ou qua- 
renta minutos e algumas vezes mais para voltar depois à flôr d'agua e 
reproduzir os seus jactos irregulares e periodicos. 

«É assim, diz Thiercelin, que as baleias passam a vida ora sobre a 
agua, ora debaixo d'ella, de dia e de noite, no bom e no mau tempo, 
em todas as estações. 

«Quando a baleia respira, o ruido que faz ouve-se a alguns centos 
de metros apenas, se ella está tranquilla; mas quando a agita o medo 
ou a colera, o ruido respiratorio estende-se então a muitos kilometros 
de distancia. Thiercelin compara o ruido respiratorio de uma baleia ao 
de uma forte columna d'ar projectada por um largo folle de forja n'um 
“tubo tambem largo de cobre: é uma nota muito grave e muito intensa 
sustentada durante oito ou dez segundos. 

«Segundo o mesmo observador, o jacto não seria formado por agua 
no estado liquido: compor-se-hia ao mesmo tempo de ar quente saído do 
peito, de uma certa quantidade de vapor d'agua, misturado com este ar, 
e de particulas oleaginosas. Assim quando a temperatura é elevada, o 
mar calmo e o sol perto do zenith, o jacto torna-se invisivel. Quando o 
vapor d'este jacto se dessimina pelo ar, dissolve-se e tudo desapparece; 
no mar cáem apenas algumas gottasinhas de gordura. Estas pequenas 
gottas espalhadas na agua e juntas às exalações da pelle deixam sobre 
a superficie do mar extensos rastos de manchas oleosas que indicam a 


364 «w HISTORIA NATURAL 


passagem do cetaceo. Em todos os casos ha sempre uma certa quanti- 
dade d'agua que penetrou no canal aereo terminado pelo respiradoiro; 
esta agua (um a dois litros pouco mais ou menos) mistura-se, em estado 
de poeira, ao ar aspirado e dessimina-se na atmosphera como a humi- 
dade pulmonar. 

«O alimento da baleia compõe-se exclusivamente de seres peque- 
nissimos. Segundo Lacépêde, o cetaceo nutre-se especialmente de mol- 
luscos e de carangueijos do mar. O numero d'estes animaes que engole 
compensa a pouca substancia que fornecem. 

«Segundo Thiercelin, nos logares de pesca, na primavera e sobre- 
tudo no estio, o mar apresenta aqui e além uma coloração trigueira de- 
vida à presença de pequenos crustaceos da forma da lagosta, mas cujo 
diametro não excede dois millimetros. Estes crustaceos formam verda- 
deiros bancos de materia animal de dez, quinze ou vinte leguas de ex- 
tensão sobre algumas leguas de largura e trez ou quatro metros de es- 
pessura. É um banquete sem duvida bem servido, senão pela variedade 
ao menos pela quantidade. A baleia exulta n'estes logares e como que 
pasta n'estas immensas pradarias animaes. 

«Thiercelin dá ainda informações minuciosas sobre o modo por que 
a baleia apanha os alimentos. O cetaceo abaixa a maxilla inferior, estende 
bem a lingua sobre o pavimento inferior da cavidade boccal e avança 
lentamente pelo meio dos infinitamente pequenos que se propõe engulir. 
A bocca apresenta então uma abertura anterior, irregularmente triangu- 
lar, oferecendo seis a sete metros de lado a lado. Á medida que a ba- 
leia avança, a agua que attravessa e que lhe entra pela bocca, escapa-se 
lateralmente pelos intervallos que separam as barbas emquanto que os 
animalculos se prendem às ramificações d'essas barbas e adherem à abo-. 
bada palatina do cetaceo. Quanto a baleia tem assim percorrido um es- 
paço de quarenta a cincoenta metros, diminue a velocidade, levanta a 
maxilla inferior, applica os labios sobre as barbas e dilata a lingua de 
maneira a encher-lhe toda a capacidade da bocca fechada. A agua escapa 
pelos intersticios das barbas; a ponta da lingua junta, por um movi- 
mento de rotação, todos os animalculos presos ás barbas interiores, reu- 
ne-os n'um bolo alimentar e leva-os à entrada da pharynge, onde se exe- 
cuta a deglutição que o faz passar ao esophago e d'ahi ao estomago. 
Feito isto a baleia abaixa de novo a maxilla e recomeça a pesca em ver- 
dade bem facil.» ! | 

Scoresby declara nunca ter ouvido a voz da baleia; este viajante 
crê que o cetaceo é incapaz de produzil-a. 


1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 36 e 37, 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 365 


Nos mares do norte a copula tem logar em Junho e Julho. Nºeste 
momento as baleias apresentam uma grande excitação. 

O parto produz um filho unico, muito raras vezes dois. Que tempo 
dura a gestação? Eis o que os naturalistas nos não dizem precisamente; 
uns fallam em dez mezes, outros em vinte e dois, alguns mesmo em dois 
annos. O recemnascido tem ordinariamente de extensão seis metros e de 
circumferencia cinco. O amor materno é um sentimento muito desenvol- 
vido na baleia; este cetaceo habitualmente tão timido, torna-se durante 
os primeiros mezes de maternidade corajoso, terrivel para quantos lhe 
fazem a pesca. Scoresby e Fitzinger relatam alguns casos de observação 
propria, eminentemente demonstrativos da coragem ou antes da temeri- 
dade da baleia quando lhe perseguem o filho no periodo de aleitamento. 
Nesta occasião não evita, como de costume, nem as canoas dos pesca- 
dores, nem mesmo os navios de alto lote; arremetem destemidamente 
contra tudo e contra todos. 


INIMIGOS 


Além do homem, tem a baleia outros inimigos ainda. O tubarão nos 
mares do Norte persegue-a e chega a arrancar-lhe grandes pedaços de 
“pelle. Os parasytas animaes e vegetaes fixam-se-lhe no dorso em numero 
assombroso. «Vêem-se baleias, diz Brehm, que trazem sobre o dorso 
todo um mundo de vegetaes e de animaes.» ! 


PESGA 


A pesca regular ás baleias data dos seculos xrv e xv. Os perigos 
que ella offerece são por vezes consideraveis; e no entanto os baleeiros 
teem uma verdadeira paixão por este genero de perseguições. Os pro- 
ductos da baleia tornaram-se artigos importantes de commercio e ha 
hoje paizes que os exploram em alta escala. Em 1841 os americanos tra- 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 859. 


366 HISTORIA NATURAL 


ziam nos mares do Sul seiscentos barcos de vela e treze mil e quinhen- 
tos homens empregados na pesca da baleia. 

A pesca d'este cetaceo faz-se empregando principalmente o arpeu. 
À timidez da baleia, especialmente nos logares em que está habituada a 
ser perseguida, torna esta pesca difficil. A baleia foge das embarcações 
com grande velocidade; é pois necessario fazer-lhe um verdadeiro cerco 
em que se empregam muitos homens. A baleia ferida não costuma op- 
por, como os golphinhos, uma resistencia qualquer ao homem; de ordi- 
nario foge, mergulha, procura escapar-se. Mas no tempo do cio, os ma- 
chos, e no periodo de aleitamento, as femeas sabem resistir, sabem 
combater, possuem-se de uma grande excitação, de uma notavel cora- 
gem e então a pesca torna-se verdadeiramente perigosa. É o que facil- 
mente percebe o leitor, recordando as dimensões da baleia e a enorme 
força de que dispõe. | 

O arpeu, instrumento quasi exclusivamente empregado na pesca 
deste cetaceo, é um ferro rectilineo terminado por um lado em ponta 
finissima, penetrante e munido do outro lado de um gancho ou argola a 
que se prende uma corda muito comprida e muito flexivel, enrolada 
n'um sarilho collocado na proa do barco da pesca. Depóis que se lança o 
arpeu á baleia é necessario manter uma grande presença de espirito: o 
cetaceo ferido mergulha e nada com assombrosa rapidez, arrastando 
comsigo o barco que ora sobe a espantosas alturas ora desce a grandes 
profundidades, tantas e tão grandes são as vagas que o animal agita em 
torno do corpo até uma grande distancia. 

A baleia morta entra rapidamente em putrefação. Poucos dias são 
precisos para que todo o seu corpo se reduza a uma vasta massa espon- 
giosa; os gazes que se desenvolvem dilatam por tal forma o corpo que 
a pelle estala com detonação e um cheiro pestilencial se espalha rapida- 
mente a grande distancia. É preciso pois que os pescadores façam muito 
rapidamente o trabalho que consiste em despojar o cetaceo de quanto 
pode ser-lhes util. | 


USOS E PRODUCTOS 


De todos os mamiferos marinhos, aflirma Brehm, é a baleia aquelle 
“cuja pesca é mais productiva. Uma baleia de vinte metros de comprido 
pode produzir mais de trinta e trez mil kilogrammas de gordura e perto 
de dois mil kilogrammas de barbas. A gordura produz approximada- 
mente vinte e sete mil kilogrammas de oleo. Mil cento e vinte-kilogram- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 367 


mas d'oleo valem, termo medio, cem francos e a mesma porção de bar- 
bas paga-se por quatro mil e quinhentos francos. Por estes dados faz-se 
uma idéa clara do que pode produzir a pesca das baleias em grande es- 
cala e tal como os americanos a organisam. 

Na Europa apenas teem emprego a gordura e as barbas. As povoa- 
ções do Norte fazem uso da carne, comem a gordura e bebem o oleo 
com tanto prazer como um alcoolico bebe um copo de bom vinho. Os es- 
quimós comem mesmo a pelle crua. O esqueleto tem grande valor ao 
Norte, porque é ahi empregado na construcção de barcos e de cabanas, 


AS SIRENIDAS 


Este grupo de mamiferos é por alguns naturalistas, por Brehm por 
exemplo, constituido em ordem à parte, por outros, por Figuier por 
exemplo, incluido na ordem dos cetaceos. Não achando motivos bastan- 
tes para fazer das sirenidas uma ordem, damol-as como fazendo parte 
do grande grupo dos cetaceos e constituindo o ramo dos cetaceos herbi- 
voros. Ássim a divisão que atraz fizemos dos cetaceos em unicornes, 
golphinhos, cachalotes e baleias, corresponde aos cetaceos propriamente 
ditos ou ordinarios. Os generos que vamos agora estudar — dugongos e 
manatins —pertencem às sirenidas ou cetaceos herbivoros. 

O nome de sirenidas.provem do vocabulo latino sirenia que nós tra- 
duzimos por sereias e com que os antigos designavam seres phantasti- 


cos, metade peixes e metade mulheres, cujo canto suavissimo fazia pa- 
rar Os navios e encantava os marinheiros para os perder. Os naturalis- 


tas que fazem das sirenidas uma ordem distincta, consideram estes ma- 
miferos como estabelecendo a transição entre as phocas e as baleias. 
Nas sirenidas existem membros anteriores com dedos desenvolvidos 
e ligados pela pelle, mas perfeitamente immoveis e constituindo verda- 
deiros remos; a cauda representa os membros posteriores e é uma bar- 
batana horisontal. A cabeça é pequena, o focinho grosso e cylindrico, o 


- pêllo é raro, curto e grosso. Teem dentes incisivos e mollares. Apresen- 


tam duas mamas peitoraes; e é d'ahi que deriva a comparação feita en- 
tre estes cetaceos e as sereias da fabula, mulheres-peixes. 


368 HISTORIA NATURAL 


São dois os generos comprehendidos n'este grupo ou familia: os 
dugongos e os manatins. 


OS DUGONGOS 


Teem um focinho curto, achatado, guarnecido de um grande numero 
de sedas curtas e asperas; o craneo é notavel pelo grande desenvolvi- 
mento dos intermaxillares. Teem trinta a trinta e dois dentes, sendo 
quatro incisivos superiores, seis ou oito inferiores e cinco mollares por 
lado nas duas maxillas; nenhum d'estes dentes tem raizés. As barbatanas 
peitoraes, representantes dos membros anteriores, não teem unhas; a 
barbatana caudal é semelhante à dos golphinhos e das baleias. A pelle é 
muito espessa e desnudada. 


O DUGONGO COMMUM OU CAMELLO DO MAR 


Foi este animal o que deu origem à fabula das sereias; é tambem 
o mais caracteristico da familia natural das sirenidas. Os chinezes e os 
arabes conhecem este cetaceo ha muitos seculos; na Europa porém, só 
no começo do seculo passado se souberam algumas informações a seu 
respeito. Publicou-as em 1702 Dampier. Advirtamos porém que a des- 
cripção exacta do dugongo commum foi feita pela primeira vez-n'este 
seculo pelos naturalistas francezes Diard e Duvaucel. Mais tarde Riippel 
observou-o no mar Vermelho e fez-nos conhecer o seu genero de vida. 
Hoje possuimos a historia quasi completa d'este singular cetaceo. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 369 


CARACTERES 


À barbatana caudal do dugongo é horisontal e apresenta uma chan- 
fradura semi-circular; este caracter importante serve para distinguir à 
simples inspecção o dugongo dos manatins. 

À cabeça do dugongo recorda a do hippopotamo; no resto do corpo 
o cetaceo assemelha-se muito a um peixe. Tem trez a cinco metros de 
comprimento; o dorso é côr de chumbo, azulado ou pardo claro e o 
ventre branco. O pescoço é curto e grosso, mas inteiramente separado da 
cabeça e insensivelmente continuado com o tronco que é arredondado e 
vae estreitecendo até à cauda. As barbatanas peitoraes inserem-se pouco 
atraz da cabeça, no terço inferior da altura do corpo; são largas, arre- 
dondadas no bordo anterior e cortantes posteriormente. Os dedos não 
são visiveis, mas apenas se reconhecem ao toque. 

O labio superior é muito grande, arredondado, movel e talhado an- 
teriormente em forma de coração; o labio inferior separa-se do pescoço 
por uma prega cutanea profunda. As narinas encontram-se na parte su- 
perior do focinho; são muito approximadas e simulam duas fendas semi- 
circulares. Os olhos são pequenos, ovaes, salientes, muito convexos e 
apresentando no bordo superior uma fileira de pestanas; o animal fe- 
cha-os, contraíndo a pelle. As orelhas são representadas apenas por pe- 
quenas aberturas arredondadas. A pelle apresenta algumas sedas curtas. 
e rijas que na maxilla superior são quasi espinhosas. As barbatanas são 
inteiramente desnudadas. 

Os dentes incisivos são curtos e ponteagudos na femea; no macho 
são mais compridos, triangulares e talhados em viez. Os mollares vão 
augmentando de diante para traz. Estes dentes não teem raiz, como dis- 
semos, e cáem quando o animal envelhece. No macho ha dois incisivos 
que attingem o comprimento de vinte a trinta e trez centimetros e uma 
espessura de trez; representam verdadeiras defezas, cobertas em parte 
pela maxilla e pelas gengivas. 


VOL. III 24 


570 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita, segundo informações dos navegantes, todo o oceano Indico. 
Para o lado do norte, ascende até ao meio do mar Vermelho, onde é 
muito conhecido. 


COSTUMES 


O dugongo commum habita quasi exclusivamente o mar; nunca en- 
tra nos rios e raras vezes se encontra mesmo nas suas emboccaduras. 
No mar procura a-visinhança das costas e poucas vezes se affasta muito 
para o largo. Habita de preferencia as bahias pouco profundas e tran- 
quillas cujas aguas facilmente se aquecem pelo sol e em que os vegetaes 
marinhos podem tomar um grande desenvolvimento. De ordinario, o du- 
gongo vive debaixo d'agua; realmente elle não se conserva à superficie 
senão o tempo indispensavel para respirar. j 

Este cetaceo é sociavel: no oceano Indico vive em grandes pinto 
perto das costas da Arabia vive aos pares ou em pequenas familias. 

Os movimentos do dugongo commum são muito lentos e muito pe- 
zados. Nunca abandona uma certa região em quanto n'ella encontra ali- 
mento. 
| As tempestades violentas que em determinadas estações reinam no 
mar das Indias, teem uma influencia decisiva nas emigrações do dugongo. 
A agitação das vagas faz com que elle procure as bahias, os estreitos 
onde lhe não será perturbada a natural preguiça. O que tem levado os 
naturalistas a crêrem na influencia das tempestades sobre emigrações do 
dugongo é facto de apparecer este cetaceo periodicamente em logares 
onde nunca se encontra fóra d'essa epocha anormal. 

A intelligencia do dugongo está de harmonia com o pezo e desele- 
gancia da sua massa. Os orgãos sensoriaes são pouco desenvolvidos. 

À voz consiste em gemidos surdos. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 371 


Só na epocha do cio é que o dugongo apresenta alguma vivacidade. 
Os machos combatem então entre si pela conquista das femeas. N'esta 
epocha a excitação genesica cega-os, torna-os imprudentes e é então que 
os pescadores conseguem apoderar-se d'elles facilmente. No mar Verme- 
lho a femea pare um filho unico em Novembro ou Dezembro; não se 
sabe se a parturição nos outros mares tem logar n'esta mesma epocha. 


À perseguição ao dugongo realisa-se na quadra do cio e principal- 
mente de noite, quando tudo está tranquillo e é facil ouvir de longe os 
suspiros que denunciam a presença d'este cetaceo. A arma empregada é 
o arpeu. Diz Raflles que deve procurar-se sempre ferir o animal na bar- 
batana da cauda, porque d'este modo se lhe paralysam os movimentos. 
Conta-se que os dugongos se prestam mutuo auxilio nas occasiões de 
perigo; o que é perfeitamente certo é que o macho defende a femea e 
“esta o filho. | , 


USOS E PRODUCTOS 


Os productos mais estimados do dugongo commum são a carne, a 
gordura e os dentes. Os arabes e abyssinios comem a carne d'este ceta- 
ceo. O dugongo adulto pode fornecer para cima de vinte e cinco kilo- 
grammas de gordura. Diz Riippel que na Abyssinia se emprega a pelle 
d'este cetaceo na fabricação de sandalias; não se tanifica para este fim, 
mas apenas se deixa seccar, expondo-a ao ar. Esta pelle não pode em- 
pregar-se senão em regiões seccas, porque a humidade torna-a molle e 
espongiosa. Os dentes que hoje valem pouco, pagaram-se n'outro tempo 
por altos preços, porque uma superstição muito vulgar nas Indias attri- 
buia-lhes o poder de facilitarem o parto às mulheres que os trouxessem 
ao pescoço. 


372 HISTORIA NATURAL 


OS MANATINS 


Os manatins teem a barbatana caudal arredondada, vertical e sem 
chanfradura; pelos demais caracteres assemelham-se aos dugongos. O 
corpo pisciforme é coberto de pêllos raros, excepto no focinho onde se 
encontram sêdas espessas. O labio superior é truncado e gosa de grande 
mobilidade; as barbatanas peitoraes são arredondadas e por vezes mu- 
nidas de unhas achatadas, o que constitue um caracter differencial entre 
este genero e o precedente. Às vertebras cervicaes são seis, quinze à 
dezesete as dorsaes e vinte e trez as caudaes. Os individuos muito no- 
vos apresentam incisivos que nos adultos não existem, porque cáem 
muito cedo. A muda dos dentes mollares faz-se como nos elephantes. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os manatins habitam o Oceano. Atlantico entre o decimo quinto grao 
de latitude sul e o vigessimo quinto de latitude norte. 


O MANATIM AMERICANO OU PEIXE-BOI 


De todas as especies comprehendidas no genero, é esta a mais bem 
conhecida. O manatim americano tem trez metros a trez e vinte centi- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 373 


metros de comprimento, sessenta a oitenta centimetros de largura, meio 
metro de altura e duzentos e cincoenta a quatrocentos kilogrammas de 
pezo. Estas são as dimensões medias; ha individuos maiores, de cinco a 
sete metros de extensão, por exemplo. A pelle é pouco menos do que 
desnudada; a côr geral é um pardo azulado um pouco mais escuro no 
dorso e flancos do que no ventre. As raras sêdas que cobrem o corpo 
são amarelladas. 

Os pulmões teem um metro de comprido; são formados de grandes 
cellulas e podem reter uma notavel quantidade d'ar. O intestino tem 
trinta metros de comprimento. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A America do Sul e a America central são a verdadeira patria d'este 
animal, que é hoje muito mais raro do que o foi em outro tempo. Ha- 
bita principalmente as costas do Oceano Atlantico e nomeadamente as 
bahias nas visinhanças de Cayenna e das Antilhas. 


COSTUMES 


Humboldt observou que os manatins procuram no mar de preferen- 
cia os logares em que existem fontes d'agua doce, por exemplo a al- 
guma distancia da ilha de Cuba, ao sul do golpho de Jagua, n'um ponto 
em que as fontes d'agua doce são tão abundantes que os marinheiros 
ahi fazem as suas provisões, enchendo pipas. Muitas vezes tambem so- 
bem pelos rios e nas epochas de inundações chegam até aos lagos e aos 
pantanos. 

No Amazonas, e confluentes ainda hoje são vulgares estes cetaceos. 

Os costumes do manantim americano são sensivelmente semelhantes 
aos dos dugongos. 

A alimentação é vegetal. Os viajantes antigos disseram que o ma- 
natim americano vinha algumas vezes a terra pastar; é um erro com- 
pleto que já no seculo xvrrr era desmentido pelos naturalistas. O cetaceo 
alimenta-se de plantas que vegetam na agua. Come até encher comple- 


“ 


914 HISTORIA NATURAL 


tamente o estomago e os intestinos, depois do que se deixa ficar immo- 
vel num logar pouco profundo com a cabeça fóra d'agua para se não 
incommodar em emersões consecutivas reclamadas pelas necessidades 
respiratorias. 

Não se conhece precisamente a quadra do cio, assim como se não 
sabe o numero de filhos produzidos por cada parto. 


CAÇA 


À caça ao manatim americano é muito simples. Approxima-se o barco 
do logar em que se vê o cetaceo e quando elle emerge dardeja-se-lhe 
uma frecha a que está presa uma corda e um pedaço de madeira, que 
serve para indicar pela fluctuação precisamente o ponto em que o animal 
se encontra. Tambem se emprega o arpeu. 

A epocha mais propria para esta perseguição é a que succede im- 
mediatamente às inundações, quando o manatim se encontra nos lagos 
e nos pantanos e quando a agua se escôda. 


CAPTIVEIRO 


O manatim americano reduz-se ao captiveiro e chega a domesti- 
car-se até um alto grao. A acreditar nas informações de alguns natura- 
listas antigos, o manatim americano ou peixe-boi reconheceria a voz do 
dono, obedecer-lhe-hia e viria do mar ou dos lagos a terra, a horas de- 
terminadas, buscar alimento. Já anteriormente vimos que o mesmo se dá 
com alguns amphibios. 


USOS E PRODUCTOS 


À carne do manatim ou peixe-boi assemelha-se no gosto, segundo 
Humboldt, mais à do porco que à de vacca. Ha paizes em que ella se 


ho 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 375 


come na quaresma e nos dias de jejum gomo se fóra carne de peixe. À 
gordura serviu n'outros tempos para alimentar as lampadas das igrejas. 
À pelle serve para a fabricação de corrêas. 


O MANATIM OU PEIXE-MULHER DE ANGOLA 


É muito pouco conhecida nos caracteres morphologicos assim como 
nos costumes, esta especie. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontra-se na foz do Senegal e em toda a costa occidental da 
Africa até à Guiné meridional. 


USOS E PRODUCTOS 


À carne que dizem parecer-se no gosto à do porco é muito esti- 
mada pelos negros. 


No quadro junto apresentamos sob a forma schematica as divisões 
da ordem dos cetaceos: 


376 HISTORIA NATURAL 


A O UNICORNIO 
ba O GOLPHINHO ORDINARIO OU DELPHIM 
A ORCA 
ORDINARIOS ...... o 
A TONINHA 
| O CACHALOTE 


CETACEOS....... 


A BALEIA ORDINARIA 


O DUGONGO 
HERBIVOROS. ...... º MANATIM AMERICANO 
O MANATIM D'ANGOLA 


— ao QU Dm 


16.4 


—o exe (O) to o— 


DIDELPHOS OU MARSUPIAES 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


O caracter mais saliente e mais importante dos didelphos ou marsu- 
piaes é o da existencia na parte anterior da bacia de dois ossos compri- 
dos, estreitos, articulados e moveis que nas femeas servem para susten- 
tar, ao menos na maior parte das especies, uma bolsa situada abaixo do 
abdomen e chamada bolsa marswpial. Estes ossos denominados marsu- 
pixes não são propriedade exclusiva das femeas; pertencem tambem aos 
machos. Esta conformação do esqueleto subordina-se inteiramente ao 
modo especial de geração que caracterisa os animaes d'esta ordem. 

Nos didelphos ou marsupiaes os filhos não sáem do utero materno 
completamente formados, como acontece com todos os outros mamife- 
ros; são expulsos antes de terminada a sua evolução morphologica e 
acabam de desenvolver-se na bolsa abdominal. D'aqui, segundo a expres- 
são consagrada, duas phases de gestação: a uterina e a marsupial. A 
primeira é relativamente curta; a segunda muito demorada. Nos marsu- 
piaes ha pois a distinguir dois nascimentos, se assim é lícito exprimir- 
mo-nos: um que coincide com a apparição do novo ser na bolsa marsu- 
pial, outro que coincide com a saída delle d'este berço natural para O 
contacto do mundo externo. O tempo que dura a gestação total varia de 
especie a especie. No kanguru o feto é depositado na bolsa trinta e oito 
dias depois da fecundação e ahi se conserva durante oito mezes. 

«Não é, diz Figuier, por uma força interior, por uma acção muscu- 
lar mais ou menos energica, que se effectua o transporte dos recemnas- 


378 HISTORIA NATURAL 


cidos para a bolsa marsupial, Segundo as observações de Owen, anato- 
mico inglez, a propria mãe para ahi os transporta, apanhando-os com os 
labios. Eis o modo por que ella procede: Applicando com força os dois 
membros anteriores aos bordos da bolsa, repuxa-os em opposição um ao 
outro para os distender e tornar maior a abertura, como nós fazemos 
quando abrimos uma sacca. Depois introduz na bolsa o focinho e, sen- 
tando-se em terra para tomar uma posição mais favoravel, extráe ella 
propria o feto que já passou a primeira phase de evolução. Depois, sem 
nunca se servir dos membros, leva o filho a uma das mamas que elle 
por esforço proprio seria incapaz de attingir, e ahi o conserva até que 
elle tenha apanhado com os labios um mamillo. D'ahi por diante o re- 
cemnascido dispensa o soccorro materno; adhere tão fortemente à mama 
que só d'ella poderia ser separado por uma grande violencia. Todavia 
como não é ainda capaz de sustentar-se pelas proprias forças, isto é de 
aspirar o leite necessario à nutrição, a mãe determina por meio das 
contracções alternadas de um musculo especial verdadeiras injecções de 
leite na bocca do filho. 

«Pelo que acaba de ser lido, vê-se que os marsupiaes differem essen- 
cialmente dos outros mamiferos no facto de que os filhos exigem a ali- 
mentação mamaria em epocha muito menos avançada do seu desenvol- 
vimento do que nas outras ordens. Os ossos marsupiaes e a bolsa que 
elles manteem não são senão disposições que correspondem a essa ne- 
cessidade. 

«Durante o que podemos chamar o segundo periodo de gestação, a 
organisação dos marsupiaes completa-se: o novo individuo vae pouco e 
pouco approximando-se da forma e constituição definitivas. No kanguru, 
por exemplo, os pêllos principiam a apparecer ao sexto mez; ao oitavo 
começa o filho a deitar a cabeça fóra da bolsa marsupial e já preludía a 
existencia exterior apanhando aqui e além alguma herva tenra. Por fim, 
algum tempo depois faz a sua entrada no mundo e aventura alguns sal- 
tos timidos atraz da mãe. Principia a viver sob responsabilidade propria ; 
comtudo por algum tempo ainda recolhe-se muitas vezes ao primitivo 
asylo quer para evitar algum perigo, quer para supprir pelo leite ma- 
terno à insufficiencia da alimentação que as forças lhe não permittiram 
procurar em quantidade bastante. É por isso precisamente que se vêem 
mamar ao mesmo tempo individuos já grandes, quasi emancipados e ou- 
tros pequenissimos ainda, de partos mais recentes. É tambem por isso 
que as femeas possuem um numero de mamas superior ao dos filhos 
que produz cada parto.» ! 


1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 15 e seguintes. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 379 


CARACTERES 


É difficil, observa justamente Brehm, dar uma idéa geral da forma 
dos marsupiaes. As differenças entre os membros desta ordem são com 
effeito profundas. «A dentição, escreve o naturalista alludido, ora é a de 
um roedor, ora a de um carnivoro; a disposição do resto do apparelho 
digestivo e a estructura dos membros correspondem inteiramente a estes 
caracteres tirados dos dentes. Encontramos n'esta ordem verdadeiros 
carnivoros e verdadeiros herbivoros; encontramos mesmo animaes que 
nos fazem lembrar os ruminantes. O que pode dizer-se n'um ponto de 
vista geral é que os marsupiaes são mamiferos de pequenas ou medianas 
proporções, de corpo refeito e de membros fracos ou delgados. À cabeça 
é de ordinario alongada e ponteaguda; as orelhas são grandes e levan- 
tadas. A cauda é muita comprida; o péllo é macio e acamado. Os outros 
caracteres variam immensamente; é pois necessario estudal-os em cada 
familia separadamente. Apenas um caracter commum os relaciona: a exis- 
tencia da bolsa marsupial.» * 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Em epochas geologicas anteriores à nossa existiram representantes 
d'esta ordem em pontos differentes da Europa, nomeadamente na França 
e na Inglaterra. Hoje existem apenas na America e em Nova Hollanda ; 
a Australia é a verdadeira patria d'estes animaes. Até mesmo a maxima 
parte dos mamiferos d'este continente pertencem à ordem de que nos 
estamos occupando. 


1! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 2. 


380 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Ácerca dos costumes dos marsupiaes podemos repetir o que disse- 
mos fallando dos caracteres: são tão distinctos de especie a especie 
quanto possivel. Dos marsupiaes, com efeito, uns teem os costumes dos 
carnivoros, outros dos roedores; uns são terrestres, outros aquaticos ou 
habitantes das arvores, alguns diurnos, muitos nocturnos. Nutrem-se de 
folhas, de raizes, de fructos, de insectos ou de vertebrados; alguns che- 
gam a attacar animaes domesticos taes como o carneiro. Uns, em maior 
numero, habitam as florestas e as brenhas, outros preferem os logares 
descobertos, os descampados. 

Dos sentidos, a vista, o olfato e o ouvido parecem sér os mais per- 
feitos. O caracter diversifica e está de harmonia com o genero de vida 
de cada especie: uns, os carnivoros, são maos, astutos, outros, os her- 
bivoros, bons, doceis. 

O numero de filhos é variavel entre os limites extremos de um e 
quatorze. Nascem sempre, qualquer que seja a especie a que pertençam, 
nus, cegos, surdos, com o anus imperfurado e os membros perfeitamente 
rudimentares. 


USOS E PRODUCTOS 


Entre os marsupiaes ha uns que são muito prejudiciaes ao homem, 
outros que lhe são. uteis. A carne de muitas especies é aproveitada como 
alimento e a pelle serve para a fabricação de vestidos. 


o: MAMIFEROS EM ESPECIAL 381 


CLASSIFICAÇÃO 


— Variam muito as classificações adoptadas pelos naturalistas para a 
egular e methodica exposição dos didelphos em especial. Uns formam 
il is grandes grupos, tomando para fundamento o regime alimentar — 
nivoros e herbivoros; outros, como Figuier, admittem quatro fami- 
| finalmente alguns dividem e subdividem a ordem segundo a distri- 
O geographica das especies. Crêmos que a primeira classificação é 
“natural e aquella que se baseia n'um caracter mais importante; 
o a adoptaremos. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 383 


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OS DASYURIDOS 


Os caracteres deste grupo são, tanto interna como externamente 

“considerados, os mesmos dos carniceiros. Os dasyuridos teem com effeito 

“uma dentição completa: teem caninos superiores e inferiores fortes e 

“compridos; os mollares superiores são ponteagudos e os inferiores cor- 
“tantes. 


384 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Actualmente existem apenas na Australia. São os mamiferos que pri- 
meiro appareceram no globo; na Europa encontram-se os seus restos em 
estado fossil. 


COSTUMES 


Habitam as florestas, os logares pedregosos ou'as visinhanças do 
mar e refugiam-se em cavernas, entre raizes, nas fendas dos rochedos 
ou nos troncos occos das arvores. º 

Uns vivem sómente à superficie do solo, outros trepam maravilho-: 
samente, alguns mesmo vivem só nas arvores. São plantigrados, isto é, 
na marcha apoiam em terra toda a planta dos pés; no entanto teem mo- 
vimentos rapidos e ageis como todos os carniceiros. São quasi todos no- 
cturnos; dormem o dia inteiro nos seus escondrijos d'onde só sáem ao 
crepusculo para procurarem o alimento. Vagueiam de ordinario ao longo 
das costas, devorando animaes frescos ou em decomposição que o mar 
expulsa. Os que habitam nas arvores alimentam-se de ovos, de insectos 
e d'outros pequenos animaes. As grandes especies chegam a penetrar 
nas habitações humanas para attacarem os animaes domesticos. Muitos 
dos individuos que entram n'este grupo levam à bocca os alimentos com 
as patas anteriores. 

Os individuos de grandes proporções são selvagens, maos, indoma- 
veis; quando são attacados, defendem-se vigorosamente com os dentes. 
Os de pequenas dimensões, pelo contrario, são doceis, domesticam-se fa- 
cilmente e revelam uma grande dedicação pelo homem. 

À parturição tem logar na primavera; a femea dá então à luz qua- 
tro a cinco filhos. 


À utilidade que destes animaes podemos tirar é excedida enorme- 
mente pelos estragos que produzem. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 385 


Os dasyuridos comprehendem os generos que seguidamente passa- 
mos em revista. 


OS THYLACINOS 


As formas geraes d'estes didelphos recordam as dos cães. Teem qua- 
renta e seis dentes: quatorze incisivos, oito na maxilla superior e seis 
na inferior, quatro caninos e vinte e oito mollares. Os ossos marsupiaes 
são nos thylacinos rudimentares e cartilagineos. Estes didelphos são todos 
plantigrados. 

O unico representante vivo do genero é o thylacino cynocephalo 
que passamos a estudar. 


4 


O THYLACINO CYNOCEPHALO 


É este de todos os marsupiaes carnivoros o mais notavel. Tem-lhe 
sido dados os nomes de cão ou lobo de bolsa e de lobo zebrado. Estas 
designações são muito apropriadas, porque realmente elle tem caracte- 
res do cão, do lobo e a cor listrada da zebra. Tem o corpo alongado, a 
cabeça como a do cão, o focinho obtuso, as orelhas e a cauda levanta- 
“das; as pernas são mais curtas que as dos caninos e a dentição um 
pouco differente da que caracterisa este grupo de carniceiros. 

De todos os marsupiaes carnivoros o thylacino cynocephalo é o 
maior; tem approximadamente as dimensões do chacal. Mede de compri- 
mento um metro e de altura oitenta centimetros; a cauda tem meio me- 
tro de extensão. O pêllo é curto, brando, pardo trigueiro e apresentando 
no dorso doze a quatorzg listras transversaes. Os péllos d'esta região do 
dorso são trigueiros escuros na raiz e trigueiros amarellados na ponta; 

VOL. III . 25 


586 HISTORIA NATURAL 


os do ventre são trigueiros claros na raiz e quasi brancos na extremi- 
dade. À cabeça é mais clara que o dorso e os olhos abrancaçados, apre- 
sentando no angulo anterior uma pequena mancha escura e superior- 
mente uma outra semelhante em sentido transversal. Os péllos da região 
posterior do corpo são mais compridos que os outros. Os olhos do 
thylacino cynocephalo são maiores que os do cão e a bocca é mais fen- 
dida. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habita sómente a Tasmania ou Terra de Van-Diemen; no continente 
australiano encontram-se apenas os ossos fosseis dos seus congéneres. 
Abundava no tempo do estabelecimento dos colonos europeus, com 
grande prejuizo dos emigrantes, porque lhes destruia os rebanhos. Foi 
pouco e pouco repellido para o interior da ilha, para as montanhas prin- 
cipalmente, onde se encontra ainda hoje em grande numero a uma alti- 
tude de mil metros acima do nivel do mar. 


COSTUMES 


Os habitos de vida d'este marsupial são essencialmente nocturnos. 
Durante o dia occulta-se nas fendas dos rochedos, nas cavernas, nos lo- 
gares sombrios e inaccessiveis ao homem. A contracção permanente da 
pupilla n'este animal denuncia uma extraordinaria sensibilidade para a 
luz. É por isso precisamente que, se o obrigam a caminhar durante o 
dia, a sua marcha é vacillante, os seus movimentos pouco precisos, 
quasi descoordenados. De noite, ao contrario, é vivo, agil, perigoso pela 
rapidez de movimentos que denunciam um verdadeiro carnivoro; não re- 
cúa diante dos cães, antes acceita a lucta com estes encarniçados inimi- 
gos, saindo muitas vezes victorioso. Não é o mais feroz dos marsupiaes 
carnivoros, mas é indubitavelmente o mais forté e o mais corajoso. É 
um verdadeiro lobo do continente australiano; e, com quanto menor do 
que este carniceiro, elle produz ahi, proporcionalmente às suas dimen- 
sões, tantos estragos como-o lobo entre nós. 

O thylacino cynocephalo alimenta-se de pequenos animaes de todas 


" 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 387 


as especies: vertebrados, insectos, molluscos e annellados. Vagueia de 
ordinario pelas costas em busca de animaes que o mar tenha expellido; 
muitas vezes porém, persegue os kangurus nos descampados e nas flo- 
restas e os ornithorhyncos nas margens dos rios e nos pantanos. Quando 
tem fome, não vacilla mesmo em attacar os echidneos, mao grado os 
pêllos acerados, ponteagudos, verdadeiros picos de que estes animaes 
teem o corpo coberto. Estes picos encontram-se muitas vezes no esto- 
mago do thylacino cynocephalo. 


CAÇA 


Empregam-se para apanhar o thylacino cynocephalo armadilhas e 
tambem se lhe faz a caça com cães. O marsupial sabe bem defender-se 
d'estes; faz face a uma matilha inteira. 


CAPTIVEIRO 


Pouco se sabe da vida do thylacino cynocephalo em captiveiro. Al- 
guns teem aflirmado que elle é timido, estupido, indomavel, diflicil de 
sustentar. Segundo Brehm, factos recentes infirmariam tal asserção. À 
Sociedade Zoologica de Londres possuia, ao tempo em que este natura- 
lista publicava os seus livros sobre os mamiferos, trez thylacinos, os 
primeiros e unicos que se teem visto na Europa. N'esses exemplares 
não se observou o caracter indomavel, nem a estupidez a que nos refe- 
rimos acima. | 


388 HISTORIA NATURAL 


OS SARCOPHILOS 


Os sarcophilos que, pelo caracter feroz e indomavel, mereceram de 
alguns naturalistas a designação significativa de diabos, teem o corpo re- 
feito, vigoroso como o dos ursos, a cabeça curta e larga, as pernas de 
comprimento medio, a planta dos pés e os dedos desnudados, as unhas 
compridas e recurvas, a cauda grossa e tendo o comprimento de metade 
do corpo, os olhos pequenos, revelando continuadamente impulsões de 
furor, as orelhas curtas e largas e pêllos fortes no labio superior. Os den- 
tes seguem uns aos outros sem interrupção; os caninos são fortissimos. 
O craneo torna-se notavel pelo seu pouco comprimento e o focinho pela 
largura. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À area de dispersão geographica d'este pi é sensivelmente 
a mesma que a dos thylacinos. 


O genero comprehende uma especie unica de que passamos a occu- 
par-nos. 7 


O SARCOPHILO URSINO 


É um animal curiosissimo cujas formas parecem estabelecer uma 
transição entre o grupo dos ursinos e dos musteleanos. A cauda tem o 
comprimento de trinta centimetros e o resto do corpo de sessenta. O 
pêllo é grosseiro; o ventre, a cabeça e a cauda são de um trigueiro 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 389 


muito escuro; maculas brancas, variaveis na forma e nas dimensões, or- 
nam-lhe o peito, as patas anteriores, a região do sacro e as coxas. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A patria d'esta especie é a Tasmania. 


COSTUMES 


São unanimes os observadores em aflirmarem que não existe animal 
mais mao, nem mais furioso; a colera e o mao humor são n'elle habi- 
tuaes. Tudo o irrita, tudo o faz entrar em accessos desordenados de 
furia. 

Os habitos de vida d'esta especie são nocturnos; o sarcophilo ursino 
tem tanto receio da luz como o thylacino cynocephalo. Tem-se sem- 


- pre observado que os individuos captivos se escondem de dia com uma 
“grande anciedade no canto mais escuro da jaula em que vivem. Como 


no thylacino, a pupilla n'este animal existe em estado permanente de 
contracção durante o dia. Emquanto ha sol o sarcophilo esconde-se nos 
logares mais sombrios, nas fendas dos rochedos, entre as raizes das ar- 
vores e dorme um longo somno profundissimo de que o não desperta 
mesmo o estrepito da caça. Depois que é noite abandona o seu escon- 
drijo e vagueia, procurando o alimento. Revela-se então agillissimo em 
todos os movimentos. É plantigrado como o urso; repousa como o cão 
sobre os membros posteriores e leva os alimentos à bocca com as patas 
de diante. 

Precipita-se com furor indescriptivel sobre todos os animaes que 
pode encontrar, sejam elles invertebrados ou vertebrados. Tudo lhe 
serve, porque a sua voracidade não tem limites. 

O mumero de filhos produzidos em cada parto é n'esta especie de 
trez a cinco. Crê-se que a femea conserva longo tempo na bolsa marsu- 
pial os filhos; nada se sabe porém de positivo e bem averiguado a este 
respeito. 


590 HISTORIA NATURAL 


CAÇA 


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A voracidade do sarcophilo é uma condição que torna facil a sua 
caça. Cãe facilmente em qualquer armadilha, porque todo o engodo o 
sollicita, o attráe, ou seja um pedaço de carne, ou um peixe ou ainda 
um mollusco. Empregam-se tambem os cães n'esta caça; porém este pro- 
cesso não é dos melhores, porque o sarcophilo, graças à selvageria in- 
domavel e à força extraordinaria que o caracterisa é um inimigo temi- 
vel dos cães a que sabe oppor uma tenacissima resistencia e de que não 
poucas vezes triumpha. Não ha cão de caça que isolado se atreva a lu- 
ctar com o sarcophilo. 

Nos primeiros tempos do seu estabelecimento, os colonos da terra 
de Van-Diémen soffreram muito com a visinhança do sarcophilo ursino, 
porque, como a marta, elle penetrava nas capoeiras e matava quanto 
encontrasse. Assim, os colonos principiaram a consideral-o um inimigo 
terrivel e a perseguil-o sem treguas. Graças a uma caça activa, conse- 
guiram afugentar o marsupial para as florestas mais espessas e mais im- 
penetraveis das montanhas. iloje existem muitos logares d'onde desap- 
pareceu inteiramente; e mesmo nas regiões em que é ainda abundante, 
raras vezes apparece e se defronta com o homem. | 


CAPTIVEIRO 


O sarcophilo ursino parece não modificar o seu caracter em capti- 
veiro. Depois de muitos annos de prisão é ainda tão furioso, tão colerico, 
como no dia em que caiu no poder do homem. Precipita-se sem motivo 
contra as grades da jaula e dá em todas as direcções violentas panca- 
das com as patas como se tentasse despedaçar alguma coisa que o in- 
commodasse. Ninguem saberá muitas vezes explicar os accessos de co- 
lera que o accommettem repentinamente. Nunca revela affeição por 
aquelle que lhe fornece os alimentos; attaca-o com tanto furor como a 
um estranho. Ao mesmo tempo é preguiçoso e estupido. Depois que os 
accessos de raiva passam, dorme por muito tempo no canto mais escuro 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 391 


da jaula. Alimenta-se este animal com muita facilidade, dando-se-lhe os- 
sos que elle parte com os dentes e que se entretem a triturar. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne d'este didelpho passa entre os colonos por ser delicadis- 
sima, superior mesmo á do veado. 


AS DASYURAS 


São ainda marsupiaes carnivoros; pelo manto parecem intermedia- 
rios ás rapozas e às martas, sem especificamente se assemelharem a 
qualquer d'estes dois grupos. O corpo é alongado, elegante, o pescoço 
comprido e o focinho ponteagudo; as pernas são baixas, de uma espes- 
sura media. As posteriores são um pouco mais compridas. As patas teem 
quatro dedos separados, munidos de unhas fortes, recurvadas, pontea- 
gudas e um pollegar rudimentar. A cauda é comprida e bem provida de 
pêllo. As maxillas são armadas de quarenta e dois dentes, entre os quaes 
sómente vinte e quatro mollares, doze superiores e doze inferiores. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Estes marsupiaes pertencem exclusivamente à Australia. 


Conhecem-se quatro especies d'este genero. 


392 HISTORIA NATURAL 


A DASYURA MALHADA 


É talvez a especie mais conhecida do genero. À côr geral deste di- 
delpho é o trigueiro mais ou menos claro; o ventre é, de ordinario, 
branco e sobre o dorso e cabeça existem malhas brancas irregulares. As 
orelhas terminadas em ponta e de grandeza media, são cobertas de pêl- 
los curtos e negros. A ponta do focinho é côr de carne. A dasyura ma- 
lhada tem quinze centimetros de altura sobre quarenta de comprimento ; 
a cauda tem trinta centimetros de extensão. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


É muito commum esta especie em Nova-Hollanda. 


COSTUMES 


. 


Vive nas florestas e à beira-mar. De dia esconde-se entre raizes, 
entre pedras, ou nos troncos occos das arvores, d'onde sãe apenas ao 
crepusculo para procurar alimentos. Alimenta-se de animaes mortos que 
o mar atira às praias, de pequenos mamiferos, de aves que fazem o 
ninho em terra e até de insectos. Nos logares habitados visita os galli- 
nheiros onde perfeitamente se calcula os estragos que fará. A dasyura 
malhada é plantigrada e, marchando, parece que se arrasta. Não trepa 
bem; porém os seus outros movimentos são vivos e rapidos. | 

O numero de filhos dados à luz em cada parto varia n'esta especie 
entre quatro e seis. Nascem imperfeitissimos e, por isso, demoram-se 
muito na bolsa marsupial materna. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 393 


CAÇA 


A dasyura malhada, como todos os didelphos carnivoros, é victima 
de uma perseguição tenacissima. O processo mais empregado n'esta caça 
é o das armadilhas de ferro a que serve de engodo um animal qualquer. 


CAPTIVEIRO 


Em captiveiro a dasyura malhada é um ser perfeitamente aborre- 
cido; não tem vivacidade, não tem encantos de qualidade alguma, não 
tem finalmente a dedicação pelo homem que poderia tornal-a sympa- 
thica. Quando alguem se approxima da jaula em que vive, foge para um 
canto, abrindo a bocca ameaçadoramente. No entanto não se pense, jul- 
gando apenas pelas apparencias, que se trata de um inimigo perigoso. 
Com quanto mostre os dentes e bufe hostilmente à maneira dos gatos, é 
certo que qualquer pode sem risco lançar-lhe a mão; não oppõe resis- 


“tencia, limita-se a protestar. 


Como animal nocturno que é, a dasyura malhada, evita cuidadosa- 
mente a luz. | 

Parece insensivel à influencia das estações. 

Accomodando-se a todos os alimentos, é facil mantel-a; note-se po- 
rém que prefere a tudo a carne ou crua ou cosida. Não é tão voraz como 
qualquer das especies de que até aqui nos temos occupado. Depois de 
comer senta-se, lava-se e alisa o péllo, como os gatos. 


594 HISTORIA NATURAL 


OS TAPUÁS 


São didelphos carnivoros que recordam mais ou menos os musara- 
nhos. Teem o corpo refeito, os membros curtos, cinco dedos de que o 
pollegar é desprovido de unhas e os outros armados de garras agudas e 
recurvas, a cabeça larga, vindo a terminar em focinho agudo, as orelhas 
e os olhos grandes e a cauda quasi tão comprida como todo o resto do 
corpo e guarnecida na metade posterior de pêllos extensos.. Os incisivos 
superiores são muito grandes, os caninos alongados, os falsos mollares 
em forma de turberculos ponteagudos, analogos aos dos insectivoros. 
Teem oito mamas dispostas circularmente. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Todos os tapuás habitam a Australia. 


COSTUMES 


Vivem sobre as arvores e alimentam-se de insectos. O pouco que se 
sabe dos habitos de vida d'estes didelphos estudal-o-hemos a proposito 
da especie unica que representa o genero. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 395 


O TAPUÁ-TAFA 


Tem pouco mais ou menos as dimensões do esquilo: mede approxi- 
madamente meio metro de extensão, sendo vinte e dois centimetros per- 
tencentes à cauda. O péllo é comprido, molle, lanoso, pardo no dorso, 
branco ou pardo muito claro no ventre. Os olhos offerecem um circulo 
negro e são encimados por uma pequena malha branca. Na cabeça pre- 
domina o negro. Os dedos são brancos. A cauda é coberta no seu pri- 
meiro quinto de extensão por um péllo liso, analogo ao que reveste o 
resto do corpo; os quatro outros quintos são cobertos de péllos compri- 
dos, muito escuros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Este didelpho é muito vulgar na Australia. Ahi se encontra indiffe- 
rentemente nas planícies ou nas montanhas. Nisto differe dos outros ma- 
miferos australianos que habitam sempre uma determinada altitude. 


COSTUMES 


O tapuá-tafa tem a apparencia de um pequeno ser elegante, inno- 
cente, incapaz de prejudicar quem quer que seja. Observa Brehm porém 
que nenhum animal desmente tanto como este as apparencias. À despeito 
de um exterior agradavel que à primeira vista seduz, este didelpho é um 
carnivoro selvagem, feroz, audacioso, que se embriaga com o sangue, 
que se torna emfim um verdadeiro flagello para o homem, porque, pe- 
netrando nas habitações, produz grandes estragos, destruindo animaes 
domesticos. 

As suas pequenas dimensões e a cabeça fina e estreita permittem-lhe 
facilmente passar pelas aberturas mais insignificantes. Não ha paredes 


396 HISTORIA NATURAL 


ou estacadas que bastem a impedir-lhe a passagem: introduz-se pelas 
fendas mais estreitas e trepa com agilidade os muros e estacadas, pene- 
trando assim em toda a parte. Se este didelpho tivesse dentes de roe- 
dor, desempenharia perfeitamente bem o papel de um rato; felizmente 
não acontece assim, e contra uma porta sem fendas, bem adaptada, o 
animal é impotente. 

O tapuá-tafa só de noite principia a vida activa, embora uma vez 
ou outra vez se encontre de dia. É muito agil sobretudo nas arvores, 
onde vive mais tempo do que em terra; salta de ramo a ramo como um 
esquilo. A longa cauda serve-lhe não só de orgão de prehensão para se | 
balançar e segurar aos ramos, mas ainda de leme para se dirigir nos sal- 
tos. Os troncos occos das arvores servem de escondrijo a este animal. 

A voracidade que caracterisa este didelpho explica suficientemente 
a perseguição de que é victima por parte do homem, 


OS ANTECHINOS 


Distingue-se este genero do anterior pelas dimensões que são as de 
um pequeno rato. A cauda é menos extensa que o corpo e coberta de 
pêllos curtos. Os dentes incisivos medios são alongados. Apparentemente 
é muito diflicil distinguir estes animaes dos ratos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Os antechinos habitam principalmente o sul da Nova-Hollanda, onde 
são muito communs. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 397 


COSTUMES 


Estes animaes representam na ordem dos didelphos os musaranhos 

a que se assemelham nos costumes e genero de vida. Passam o tempo 

nas arvores, trepam maravilhosamente e correm não só na face supe- 
“rior mas ainda na inferior dos ramos. Descem os troncos com a cabeça 
-- voltada para baixo e saltam de ramo a ramo com agilidade notavel e às 
vezes a grandes distancias. 


O ANTECHINO DE PATAS AMARELLAS 


| Tem pouco mais ou menos vinte centimetros de comprimento, dos 
* quaes oito pertencem à cauda. O pêllo é molle e abundante; a côr geral 
- é um pardo escuro. As partes superiores do corpo são quasi negras com 
“maculas amarellas, os lados ruivos amarellados ou amarellos claros, a 
maxila superior e o peito muito claros, quasi brancos e a cauda clara, 
apresentando aqui e além manchas escuras. As patas são amarellas. 


OS MYRMECOBIOS 


| Os animaes que pertencem a este genero são caracterisados por 
um corpo alongado, um focinho ponteagudo, uma cauda de comprimento 


598 HISTORIA NATURAL 


medio, não prehensil, cinco dedos nos pés, separados e armados de 
unhas fortes. A lingua é extensivel. À femea não apresenta bolsa marsu- 
pial, mas oito mamas dispostas em circulo e constituindo um verdadeiro 
refugio para os filhos. Os dentes são cincoenta e dois; os caninos são 
alongados. 


O genero comprehende uma especie unica. 


O MYRMECOBIO LISTRADO 


É uma das mais notaveis especies dos marsupiaes. Este animal tem 
pouco mais ou menos as dimensões do esquilo. Tem tanto de altura como 
de comprimento, isto é vinte e sete centimetros para cada uma das di- 
mensões; a cauda mede vinte centimetros, isto é quasi tanto como a ex- 
tensão de todo o resto do corpo. A cabeça é curta. O manto é formado 
por duas ordens distinctas de pêllo: um sedoso, comprido, muito grosso, 
outro curto, fino, abundante. Immediatamente abaixo dos olhos e no la- 
bio superior apresenta o animal pêllos compridos e rijos. A coloração do 
manto recorda a do thylacino. A região anterior do corpo é amarela 
clara; a posterior é negra, apresentando nove listras transversaes bran- 
cas ou pardas. D'estas listras, as duas primeiras, que correspondem sen- 
sivelmente à parte media do tronco, são pouco visiveis, porque quasi se 
confundem com a côr fundamental; as outras são muito mais nitidamente 
delimitadas. A parte inferior do corpo é de um branco amarellado. O fo- 
cinho é de um amarello mais claro dos lados do que na frente e a ca- 
beça de um trigueiro accentuado. Os pêllos da cauda são negros, bran- 
cos e amarellos. Os membros são amarellos exteriormente e brancos 
pela face interna; o focinho, os labios e as unhas são negros. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 599 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


y Este marsupial, conhecido ha vinte annos sómente, foi encontrado 
à beira de um pequeno rio, o rio dos Cysnes, na Australia oriental. 


E. COSTUMES 


4 
E 
5 
E 


À impressão agradavel que se recebe ao ver pela primeira vez este 
animal e que é produzida pela diversidade das côres perfeitamente dis- 
postas, não se dissipa, antes augmenta quando o observamos de perto. , 

E, afirmam todos os naturalistas, um animal agil que corre dando 
pequenos saltos. A velocidade de que dispõe não é grande, mas esta 
imperfeição compensa-a elle pela astucia e pela vivacidade. Nas flores- 
tas virgens em que de preferencia gasta o seu tempo, encontra a cada 
passo uma cavidade, um tronco d'arvore carcomido, uma fenda: de ro- 
UA chedo que podem servir-lhe não só de logar de repouso, mas ainda de 
J refugio quando o perseguem. Sabe perfeitamente introduzir-se n'estes 
E escondrijos e ahi se conserva persistentemente em quanto algum perigo 
o ameaça. 

O nome de mymercobio é dado a este animal para exprimir que a 
alimentação principal de que faz uso se compõe de formigas. Os logares 
que prefere são sempre aquelles em que os formigueiros abundam. As 
[M unhas aguçadas e a lingua muito comprida que possue, são instrumen- 
| tos em harmonia com este genero de alimentação. Como os tamanduás, 
Y elle estende a lingua e retira-a rapidamente para a bocca quando um 
E numero suficiente de formigas se fixou a ella. Alimenta-se ainda de ou- 
a tros insectos e, quando a fome o aperta, até de vegetaes, embora a sua 


va natureza não seja a de um herbivoro. 

0 Ao contrario dos outros marsupiaes carnivoros, este é um animal 
MA “ inoffensivo, innocente. Quando se lhe deita a mão, não tenta morder nem 
R arranhar; apenas emitte um som fraco de queixume e, se vê que lhe é 


impossivel fugir, deixa-se prender sem resistencia, 


400 HISTORIA NATURAL 


CAPTIVEIRO 


Pouco tempo se pode conservar este marsupial preso, porque é im- 
possivel fornecer-lhe em quantidade sufficiente o alimento que mais lhe 
convem, as formigas. Diz Brehm: «o captiveiro é para elle a morte.» 


OS DIDELPHOS PROPRIAMENTE DITOS 


Os differentes generos comprehendidos n'esta vasta familia com- 
poem-se de marsupiaes de pequenas e medias proporções, que quando 
muito egualam as do gato e muitas vezes não excedem a de um rato 
pequeno. | 

Nestes marsupiaes o corpo é refeito e a cabeça terminada por um 
focinho mais ou menos ponteagudo. Teem de ordinario os olhos e as 
orelhas grandes, a cauda de comprimento variavel, mas geralmente pre- 
hensora e desnudada na extremidade, os membros posteriores mais com- 
primidos que os anteriores e cinco dedos em cada pata sendo o pollegar 
até certo ponto opponente. Em um dos generos os dedos são reunidos 
por uma membrana palmar. A bolsa marsupial falta em algumas espe- 
cies; o numero de mamas, variavel de genero a genero, é sempre ele- 
vado. | 

A dentição dos didelphos propriamente ditos é a de todos os carni- 
voros. Os caninos são muito desenvolvidos e os mollares mais ou menos 
ponteagudos e cortantes; os falsos mollares teem duas raizes e os mol- 
lares superiores trez. A columna vertebral comprehende sete vertebras 
cervicaes, treze dorsaes, cinco a seis lombares e dezoito a trinta e uma 
caudaes. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 401 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Todos os didelphos propriamente ditos hoje vivos são proprios da 
America. Na Europa encontram-se apenas restos fosseis que attestam a 
existencia d'esses marsupiaes n'esta parte do mundo em epochas geolo- 
gicas anteriores à nossa. 


COSTUMES 


Os marsupiaes d'esta familia vivem nas florestas e nas brenhas es- 
pessas e estabelecem as suas moradas nos buracos das arvores, nas ca- 
vernas, nas hervas altas e nos mattos. Ha uma especie que habita as 
margens dos ribeiros, que nada admiravelmente e que se refugia em 
tocas. Todos estes marsupiaes são nocturnos e vivem uma vida errante; 
só em tempo do cio se encontram aos pares. Caminham muito lentamente 
e são plantigrados; quasi todos trepam e alguns que possuem cauda pre- 
hensora, servem-se d'ella para se suspenderem aos ramos das arvores e 
conservarem-se horas inteiras n'esta posição. Fogem dando pequenos 
saltos. 

De todos os sentidos, o olfato parece ser o mais perfeito. Não teem 
muita intelligencia; comtudo é impossivel negar-se-lhes a astucia, porque 
sabem perfeitamente evitar as armadilhas. 

No regime alimentar d'estes marsupiaes figuram pequenos mamife- 
TOS, aves, ovos, pequenos reptis, insectos, larvas e vermes; em casos 
de necessidade extrema comem fructos. Os que frequentam a agua ali- 
mentam-se de peixes. As grandes especies nos logares habitados são pre- 
judicialissimas, porque matam os animaes domesticos. 

Só quando são perseguidos é que os didelphos propriamente ditos 
fazem ouvir à voz. Attacados, não se defendem e, quando reconhecem 
a impossibilidade de fugir, simulam-se mortos. Sob a influencia do ter- 
ror espalham um cheiro forte e detestavel. 

São fecundissimos; o numero de filhos dados à luz de um só parto 
pode ser de dezeseis. Os novos seres apparecem n'um estado de imper- 
feição extrema; as femeas que teem bolsas marsupiaes completas intro- 


duzem-os ahi e as outras collocam-os sobre o dorso a que elles solida- 
VOL. II 26 


402 HISTORIA NATURAL 


mente se manteem, agarrando-se-lhe ao péllo ou enrolando a propria 
cauda à cauda materna. 


CAÇA 


As grandes como as pequenas especies são perseguidas encarniça- 
damente pelo homem: as primeiras pelos estragos que produzem, as se- 
gundas pela fealdade repugnante que as caracterisa. Burmeister affirma 
que se apanham no Brazil os didelphos propriamente ditos collocando- 
lhes à disposição e em logar apropriado agua-ardente em quantidade : 
bebem com avidez este liquido, embriagam-se e deixam-se depois pren- 
der sem resistencia. 


CAPTIVEIRO 


A maior parte d'estes marsupiaes habituam-se rapidamente ao ca- 
ptiveiro; são porém animaes desagradaveis que passam exclusivamente 
o seu tempo a comer e a dormir. 


USOS E PRODUCTOS 


Os negros comem a carne d'estes marsupiaes. Algumas especies 
fornecem um pêllo que se fia. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 403 


AS SARIGUEIAS 


“De todos os generos da familia é este o mais bem estudado, o mais 
minuciosamente conhecido. 
As sarigueias são caracterisadas por uma cauda comprida, esca- 
mosa e prehensora. É n'este genero que se encontram os didelphos pro- 
priamente ditos de maiores dimensões. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Estes marsupiaes pertencem exclusivamente à America intertropical. 


COSTUMES 


As sarigueias são animaes nocturnos que vivem nas arvores onde 
apanham fructos, perseguem os insectos, comem ovos, molluscos e ainda 
outros pequenos animaes. 

Segundo Rengger, que fez observações interessantissimas ácerca da 
reproducção dos didelphos selvagens do Paraguay, é no meio do inverno, 
isto é em Agosto, que principia o cio para estes animaes; é pelo menos 
n'esta epocha que os sexos se encontram reunidos e é no mez seguinte 
que as femeas apparecem gravidas. «Não parem, diz o alludido escri- 
ptor, senão uma vez por anno. O numero de filhos varia segundo as es- 
pecies e até segundo os individuos. Vi femeas de uma mesma especie 
terem quatorze, oito, quatro ou mesmo um só filho. A gestação dura 
trez semanas. No começo de Outubro realisa-se o parto, passando imme- 
diatamente os filhos à bolsa marsupial e prendendo-se às mamas por es- 


paço de cincoenta dias. Decorrido este tempo, os filhos abandonam a 
a 


404 HISTORIA NATURAL 


bolsa, mas não abandonam por isso a mãe; trepam-lhe ao dorso, ahi se 
engancham, segurando-se ao pêllo e assim vivem ainda por um certo 
tempo.» * 

O mesmo observador continúa: «Os filhos não nascem todos ao 
mesmo tempo; decorrem muitas vezes trez ou quatro dias entre o nas- 
cimento do primeiro e o do ultimo. 

«Os recemnascidos são e conservam-se ainda um certo tempo ver- 
dadeiros embryões. Teem quando muito um centimetro e meio de com- 
“prido; o corpo é nú, a cabeça proporcionada ao resto do corpo, os olhos 
fechados, as narinas e a bocca já abertas, as orelhas com pregas ou do- 
bras longitudinaes e transversaes. Os membros anteriores cruzam-se so- 
bre o peito, os posteriores sobre o ventre e a cauda enrola-se sobre si 
mesma.» Estes animaes, quatro semanas depois de terem entrado na 
bolsa marsupial, apresentam o tamanho de um ratinho e ao fim de sete 
o de uma ratazana, abrindo então os olhos. Só vinte e quatro dias de- 
pois da sua saída do utero é que os pequenos didelphos principiam a 
excretar materias fecaes; a mãe abre de quando em quando a bolsa 
marsupial para expulsar as dijecções. 


CAÇA 


As sarigueias são animaes prejudicialissimos, perigosos inimigos das 
capoeiras, mesmo quando captivos. Por isso em toda a parte se lhes faz 
uma guerra de exterminio. Apanham-se em armadilhas ou esperam-se 
de noite e, no momento em que ellas se approximam dos gallinheiros, 
apresenta-se-lhes uma luz; fascinadas pelo brilho da chamma não pen- 
sam em fugir e é então muito facil matal-as à pancada. 


CAPTIVEIRO 
Todas as sarigueias se domam e reduzem a tal ou qual grao de do- 
mesticidade; é possivel tocal-as sem que ellas mordam. No entanto não 


! Citado por Brehm, Obr. cit., pg. 13. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 405 


manifestam intelligencia e são desagradaveis não só pela extrema feal- 
dade, mas ainda pelo cheiro repugnante que espalham em torno de si. 


A SARIGUEIA DA VIRGINIA 


É a especie mais conhecida e tambem uma das maiores do genero. 
O manto nada offerece de notavel; é formado de um pêllo grosseiro de 
um branco amarellado por todo o corpo, excepto nas patas que são tri- 
gueiras. As dimensões da sarigueia da Virginia são approximadamente 
as do gato domestico: mede meio metro de comprimento sobre vinte e 
dois centimetros de altura; a cauda tem trinta centimetros de extensão. 
O corpo é pezado, o pescoço curto e grosso, a cabeça comprida, a re- 
gião frontal achatada, o focinho comprido e ponteagudo, as pernas cur- 
tas, os dedos eguaes uns aos outros em extensão e o pollegar opponente 
nas patas posteriores. À cauda, muito grossa, principalmente na base, 
arredondada e terminada em ponta, só é coberta de péllos na raiz; em 
todo o resto da extensão cobrem-a escamas por entre as quaes apparece 
um ou outro pêllo curto. Esta cauda é prehensora e a sarigueia serve-se 


d'ella para trepar às arvores. A femea tem uma bolsa marsupial com- 
pleta. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A America do Norte é a patria d'este marsupial; encontramol-o 
desde o Mexico. até às regiões frias dos Estados-Unidos, à Pensylvania e 
aos grandes lagos. Abunda na parte media d'este vasto espaço. 


406 HISTORIA NATURAL 


COSTUMES 


Audubon, que observou detidamente a sarigueia da Virginia em li- 
berdade, escreve: «Os movimentos d'este didelpho são de ordinario va- 
garosos; caminha a passo com a cauda quasi a arrastar pelo chão e com 
as orelhas levantadas, fitas. Á medida que vae marchando applica a ex- 
tremidade do focinho a todos os objectos que encontra pelo caminho 
para reconhecer que qualidade de animal por ahi passou. Parece-me es- 
tar vendo d'aqui uma sarigueia a saltar brandamente pela neve que se 
derrete, à beira de um lago pouco frequentado, farejando tudo quanto 
encontra em volta de si, para encontrar a pista de alguma presa prefe- 
rida. Acaba de descobrir os vestígios da passagem recente de uma per- 
diz ou de uma lebre: ergue o focinho, aspira o ar fimo e cheio de ema- 
nações até que descobre a direcção a seguir; corre emfim com a velo- 
cidade de um homem em marcha apressada. Mas, pouco tempo depois 
estaca, como se tivesse seguido um caminho errado ou se estivesse em 
duvida sobre a direcção a proseguir. Decerto a presa fez-lhe perder à 
pista, dando um grande salto ou retrocedendo sem que a sarigueia 
désse por tal. Então levanta-se sobre os membros posteriores, observa 
por um momento o espaço que a cerca, fareja em todos os sentidos 
e prosegue depois. Agora não a perca de vista o leitor. Parou ao pé 
d'aquella arvore magestosa, girou em torno do tronco velhissimo, farejou 
entre as raizes cobertas de neve e acabou por encontrar uma abertura 
por onde se insinuou. Passados minutos, eil-a que reapparece, arrastando 
agora comsigo um esquilo já sem vida; tral-o entre os dentes e principia 
a trepar com elle vagarosamente a uma arvore. Não lhe agradando a 
primeira bifurcação da arvore, receiando ser ahi vista, a serigueia con- 
tinua a trepar até que encontra um berço frondoso, constituido à custa 
de ramos entrelaçados com cepas bravas; ahi senta-se commodamente, 
enrola a longa cauda a algum ramo novo e principia o repasto, segurando 
entre as unhas dianteiras o esquilo e rasgando-o com os dentes agudi- 
cissimos. | 

«Quando os bellos dias de primavera voltam e as arvores princi- 
piam a cobrir-se de rebentos vigorosos, a sarigueia apresenta-se ainda 
quasi nua e parece depauperada por um longo jejum. Visita então as 
bordas dos pequenos lagos e ahi se regala a vêr as rãs novas cujo cres- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 407 


cimento espera em ante-gostos de gastronomia. Entretanto principiam a 
apparecer os renovos tenros e succulentos da phitolacca e das ortigas 
que lhe serão valiosissimo soccorro. O grito natural do perú bravo aca- 
ricia-lhe deliciosamente os ouvidos, porque, astuciosa como é, bem sabe 
a sarigueia que a femea responderá pouco depois e que então poderá 
seguil-a até ao ninho e ahi sugar-lhe os ovos, manjar predilecto. Cami- 
nhando atravez dos bosques ou por terra ou pelas arvores, de ramo em 
ramo, ouve tambem o canto do gallo; e então palpita de prazer lem- 
brando-se do famoso banquete que no verão passado fizera n'uma her- 
dade visinha. De vagar, com os olhos fitos e deslisando sem ruido con- 
segue introduzir-se na capoeira. 

«A femea pode citar-se como um modelo de ternura maternal. Olhando 
para o fundo da sua bolsa singular, vêr-se-hão os filhos todos agacha- 
dos, seguro cada um a uma teta. Excellente mãe, a sarigueia não só os 
alimenta com cuidado, mas protege-os contra os inimigos, ora arreba- 
tando-os comsigo, como faz a phoca, ora indo collocal-os à sombra de 
um tulipeiro, occultos entre a folhagem. Ao fim de dois mezes os filhos 
podem já provêr ás proprias necessidades e então cada um d'elles re- 
cebe da mãe lições especiaes sobre o modo futuro de proceder. 

«Imagine agora o leitor que o dono de uma herdade surprehende a 
sarigueia em flagrante delicto de lhe estrangular alguma das melhores 
gallinhas. Exasperado, furioso, o homem atira-se contra o marsupial que, 
reconhecendo a propria fraqueza, se enrola n'uma bola e recebe sem 
se mexer as pancadas. Quanto mais o homem se exaspera tanto menos 
o animal manifesta a intenção de se vingar; conserva-se aos pés do 
aggressor sem dar signaes de vida, com a bocca aberta, a lingua pen- 
dente e os olhos fechados até que o verdugo se resolve a deixal-o, pen- 
sando comsigo —está morto. Mas não está, leitor; fingia-se morto, mas 
desde que o homem lhe volta as costas, ergue-se lentamente e depois 
deita a correr na direcção da floresta.» * 

“De todos os sentidos da sarigueia da Virginia o mais perfeito é o 
olfato; immediatamente depois está a vista. Os outros sentidos parecem 
imperfeitissimos. Nas florestas espessas que lhe offerecem uma obscuri- 
dade conveniente, a sarigueia da Virginia vagueia de noite e de dia. 
Nos logares onde tem algum perigo a receiar, dorme o dia inteiro es- 
condida n'uma toca ou occulta nos troncos carcomidos das arvores e ape- 
nas sãe à noite. 

Só no tempo do cio é que se encontram juntos, macho e femea; no 


1 Audubon, Setnes de la nature dans les Etats- Unis et le Nort de U Amérique, 
tom. 11. Citado por Brehm, Loc. cit., p. 13 e 14, 


408 HISTORIA NATURAL 


resto do anno vivem separados, solitarios. A sarigueia da Virginia não 
tem escondrijo certo; refugia-se no primeiro logar conveniente que en- 
contra ao erguer do sol. Se depara com uma toca onde algum fraco roe- 
dor tenha estabelecido morada, apropria-se della e devora o proprie- 
tario. 

Quando a alimentação animal falta completamente a sarigueia con- 
tenta-se com raizes succolentas. Prefere o sangue a tudo; e é esta a ra- 
zão porque mata quanto pode. Entrando numa capoeira, matará, se a 
não surprehenderem, todas as aves que encontrar, sómente para lhes 
beber o sangue; não tocará na carne de nenhuma d'ellas. Embriaga-se 
com o sangue e muitas vezes é encontrada de manhã a dormir entre os 
corpos das victimas. 

Prudente de ordinario, a sarigueia torna-se porém surda e cega 
desde que vê a possibilidade de satisfazer a sêde de sangue. Não co- 
nhece então perigos de qualidade nenhuma; podem os cães matal-a, sem 
que se defenda, pode o homem bater-lhe, sem que deixe a presa para 
fugir. 

À sarigueia é plantigrada. A corrida, que é pouco rapida, consiste 
n'uma serie de pequenos saltos. A trepar porém, é de uma extrema agi- 
lidade. O pollegar opponente das patas posteriores e a cauda prehensora 
prestam-lhe grandes serviços n'este exercicio. Nas sarigueias captivas 
tem-se observado o modo de reproducção da especie. A gestação dura 
vinte e quatro dias; o parto dá de quatro a dezeseis filhos completa- 
mente informes tendo mais a apparencia de uma pequena massa gelati- 
nosa que de animaes. Pezam apenas vinte e cinco centigrammas e não 
teem mais espessura que a de um cabello. Não possuem ainda nem olhos, 
nem orelhas e a fenda boccal acha-se apenas indicada. A bocca desen- 
volve-se antes do resto do corpo; os olhos e as orelhas principiam a de- 
senhar-se muito posteriormente. Ao fim de quinze dias a bolsa, cujos 
bordos a mãe pode à vontade contrair ou dilatar, abre-se. Só ao fim de 
cincoenta dias se podem os filhos considerar formados completamente; 
apresentam então as dimensões de um pequeno rato, são cobertos de 
péllo e teem os olhos rasgadamente abertos. Ao fim de sessenta dias de 
aleitamento, o pezo primitivo d'estes animaes tem centuplicado. Uma vez 
altingidas as dimensões de um rato grande, os filhos abandonam a 
bolsa marsupial, embora fiquem ainda subordinados por algum tempo aos 
cuidados maternos. 7 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 409 


CAÇA 


Os estragos que a sarigueia produz principalmente nas aves de que 
é um terrivel inimigo, fazem com que por toda a parte onde existe, o ho- 
mem lhe mova uma guerra de exterminio. 


CAPTIVEIRO 


À sarigueia em captiveiro é, segundo Brehm, um animal aborrecido, 
preguiçoso e estupido que se conserva indifferente a tudo, deitado o dia 
inteiro, enrolado, erguendo a cabeça apenas quando o excitam. Quando 
este ultimo caso se dá, a sarigueia abre a bocca em quanto alguem per- 
manece junto da jaula. 

Como se vê, a sarigueia em captiveiro desmente as qualidades de 
astucia, actividade e intelligencia que lhe são attribuidas em liberdade 
por Audubon e outros naturalistas. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne da sarigueia da Virginia constitue para os negros um ali- 
mento. Os europeus não supportam esta carne por causa de um cheiro 
repugnante de que se acha impregnada e que provem de duas glandulas 
anaes. 

A pelle d'este marsupial dá mantos ou coberturas de que fazem uso 
os pastores. 


410 HISTORIA NATURAL 


AS SARIGUEIAS IMPROPRIAMENTE DITAS 


Distinguem-se do genero precedentemente estudado no facto de não 
possuirem uma bolsa marsupial completa, mas apenas duas pe cu- 
taneas que a substituem. 


O CANCRIVORO 


É a maior especie do genero e mesmo da familia. Tem oitenta e 
quatro centimetros de comprimento, dos quaes quarenta e quatro per- 
tencem à cauda. É notavel principalmente pelos péllos espinhosos, de 
comprimento superior a oito centimetros, amarellos claros na raiz e tri- 
gueiros escuros no resto da extensão. As partes lateraes do tronco são 
amarellas; o ventre varia entre o trigueiro e o branco amarellado. Os 
pêllos da cabeça são curtos e trigueiros escuros; dos olhos ás orelhas 
estendem-se listras amarellas. As orelhas, os membros e a metade ante- 
rior da cauda são negros. A metade posterior d'este ultimo orgão é 
clara, quasi branca. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O cancrivoro encontra-se espalhado em toda a America tropical; 
vive principalmente nas florestas do Brazil, junto dos pantanos. 


ea A 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 411 


COSTUMES 


Vive a maior parte do seu tempo sobre as arvores, d'onde não 
desce a terra senão para caçar. À cauda prehensora permitte-lhe trepar 
facilmente, agarrar-se a tudo quanto encontra; quando pretende repousar, 
principia por enrolar a cauda a um solido ramo d'arvore. Em terra ca- 
minha lentamente, com difficuldade; no entanto sabe apanhar os peque- 


- nos mamiferos, os insectos, os crustaceos e principalmente os carangue- 


Jos, seu alimento favorito. O nome de cancrivoro significa mesmo animal 
que come caranguejos. Nos ramos das arvores persegue as aves € des- 
troe os ninhos; tambem come fructos. Ás vezes visita as capoeiras e são 
então enormes os estragos que produz, destruindo gallinhas e pombos. 


O ENEIANO 


Este marsupial assemelha-se muito ao que acabamos de descrever; 
de todas as especies do genero é esta a que possue as pregas marsu- 
piaes menos completas. Tem este animal quinze centimetros de com- 
prido sobre quatro de altura; a cauda mede dezenove. É pois mais pe- 
queno que a ratazana domestica a que se assemelha muito. Tem o corpo 
alongado, o pescoço curto e grosso, as pernas baixas, sendo as poste- 
riores mais extensas que as anteriores; a planta dos pés é desnudada, 
de dedos separados e munidos de unhas curtas, pouco recurvas e ace- 
radas. Nas patas posteriores ha um pollegar opponente, desprovido de 
unha e ligado ao segundo dedo por uma pequena membrana extensivel. 
À cauda é comprida, fina, arredondada, ponteaguda, coberta de pêllos à 
raiz, mas desnudada e escamosa no resto da extensão; este orgão é pre- 


412 HISTORIA NATURAL 


hensor. O dorso é pardo e o ventre branco amarellado. Os olhos são cir- 
cuitados por uma pequena mancha escura; a fronte, o dorso do nariz, as 
faces e as patas são de um branco amarellado. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O eneiano vive a Noroeste do Brazil, habitando ahi as planícies bai- 
xas, cobertas de florestas virgens. 


COSTUMES 


O genero de vida, os habitos do eneiano são os do cancrivoro. Vive 
nas arvores como elle e é, como elle tambem, muito pouco agil em terra. 
É nocturno; esconde-se durante o dia e só depois de desapparecer o sol 
é que procura alimento. | 

Só na epocha do cio é que se encontram reunidos macho e femea; 
em todo o outro tempo vivem inteiramente isolados. 

À femea pare de cada barriga cinco a seis filhos informes que se 
prendem aos mamillos como fructos ás arvores. Logo que se cobrem de 
pêllo, destacam-se das tetas e agarram-se ao dorso da mãe enrolando as 
caudas na d'ella. Mas, como todos os marsupiaes, estes, mesmo depois 
de poderem prescindir do leite materno, ainda por muito tempo se re- 
fugiam ao menor .perigo no dorso da mãe que os conduz a logar seguro; 
daqui vem o nome de eneianos dado a estes marsupiaes por confronto 
com o heroe da Eneida. Em casos de susto o eneiano erriça o pêllo e 
espalha em torno de si um cheiro insupportavel. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 413 


USOS E PRODUCTOS 


Os negros comem a carne do eneiano. É o unico producto que se 
aproveita. 


A SARIGUEIA LONTRINA 


Este animal, apezar de conhecido ha muito tempo, está ainda hoje 
mal estudado. Buffon, iludido pelas membranas interdigitaes, conside- 
rou-o uma lontra e denominou-o mesmo pequena lontra da Guyana. Ou- 
tros naturalistas chamaram-lhe lontra de Dumerara, obdecendo à mesma 
ilusão; os inglezes conservaram-lhe o nome indigena de yapocte. 


CARACTERES 


A sarigueia lontrina é um marsupial curiosissimo. Tem a phisiono- 
mia de uma ratazana. Apresenta as orelhas grandes, ovaes, membra- 
nosas e nuas. O corpo é alongado, cylindrico e repousa sobre membros 
curtos. À cauda tem o comprimento do corpo; é susceptivel de enro- 
lar-se, ma$ não é prehensil. O péllo é molle, liso e acamado. O manto 
apresenta este pêllo ao lado de sedas compridas. A parte superior do 
corpo é cinzenta e a parte inferior branca. Na cabeça existem seis lar- 
gas fachas transversaes. A cauda e as orelhas são negras. As patas são 
de um trigueiro claro na face dorsal e de um trigueiro escuro na planta. 
O focinho é negro. 
| O animal adulto mede cincoenta centimetros de comprimento; a al- 
tura é de dez centimetros. 


414 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Vive numa grande parte da America do Sul. Encontra-se ao longo 
das costas desde o Rio de Janeiro até Honduras. É muito difficil de apa- 
nhar; por isso é rarissimo nas nossas colleções. 


COSTUMES 


A raridade d'este marsupial sob o dominio do homem, a difficuldade 
com que se observa, faz com que a sua historia deixe muito a desejar. 

Vive nas florestas perto dos regatos, occulto de ordinario n'um bu- 
raco ou toca junto das margens. Nada com grande facilidade e rapidez 
e procura alimentos tanto de dia como de noite. 

Nutre-se principalmente de peixes e pequenos animaes aquaticos. 
Pode em casos de necessidade adaptar-se a um regime vegetal. 

O numero de filhos dados à luz em cada parto é de cinco. Nada 
mais se conhece relativamente à reproducção. 


CAÇA 


Raras vezes se dá caça a este marsupial. O tiro quasi nunca se em- 
prega, mas sim as redes, onde elle se prende, morrendo assim affogado. 
e 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 415 


OS PERAMELIDEOS 


A grande desegualdade dos dedos é um dos caracteres mais salien- 
tes d'estes marsupiaes. 

Nas patas anteriores apresentam cinco dedos, sendo o interno e ex- 
terno como que atrophiados, reduzidos a um tuberculo; os trez dedos 
medios são, pelo contrario, muito grandes, livres e armados de unhas 
fortes, recurvas em forma de fouce e apropriadas a escavar. Nas patas 
posteriores o dedo pollegar é atrophiado; o segundo e o terceiro dedos 
são soldados até à unha. 

O corpo é n'estes marsupiaes refeito, relativamente volumoso. A ca- 
beça é ponteaguda, as orelhas são ou de media grandeza ou muito com- 
pridas e a cauda é em geral curta e pouco pelluda. 

O numero de mamas é oito. A dentição é a dos didelphos propria- 
mente ditos com a unica differença de que nos peramelideos não existem 
mais que trez incisivos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Todas as especies conhecidas d'esta vasta familia pertencem à Aus- 
tralia. 


COSTUMES 


. 

Os marsupiaes comprehendidos n'esta familia habitam as montanhas 
elevadas e frias; cavam tocas onde, ao menor perigo, se refugiam. 

Ás vezes encontram-se estes animaes perto das plantações e dos lo- 
gares. habitados; de ordinario porém, fogem do homem. 

À maior parte das especies são sociaveis e teem habitos nocturnos. 
Os movimentos são rapidos; não trepam e a sua marcha consiste em uma 
serie de saltos mais ou menos extensos. Comem insectos e vermes e ao 


416 HISTORIA NATURAL 


mesmo tempo substancias vegetaes. Levam à bocca os alimentos com as 
patas anteriores, conservando-se meio erguidos e apoiados sobre os mem- 


bros posteriores e sobre a cauda. 

Todos estes marsupiaes são desconfiados, timidos e innocentes: fo- 
gem dos perigos e evitam a proximidade do homem. 

Os estragos que produzem são muito grandes, às vezes; porque 
para acharem raizes acontece de remexerem inteiramente um campo. 


CAPTIVEIRO 


Supportam bem o captiveiro e domesticam-se facilmente. 


USOS E PRODUCTOS 


Crêmos que nenhuma utilidade se tira d'estes animaes. Brehm aflirma 
que nem se lhes utilisa a pelle, nem se lhes come a carne. Outros natu- 
ralistas que consultamos nada referem sobre este ponto nem na genera- 
lidade, nem na especialidade. 


“O PERAMELIDEO NASICO 


Este animal parece-se ao mesmo tempo com o coelho e com o mu- 
saranho, como vamos vêr estudando-o morphologicamente. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 417 


CARACTERES 


Tem o focinho ponteagudo; o nariz excede muito o labio inferior, 
as orelhas, curtas e pelludas, são largas em baixo, mas terminadas supe- 
E riormente em ponta, os olhos são pequenos, o corpo alongado, a cauda 
E é de comprimento medio, coberta de péllos curtos e os membros são 
/ fortes e tão compridos os de diante como os de traz. 
O manto é formado de pêlios de duas ordens: um curto, raro e fi- 
E nissimo, outro comprido e sedoso. 
| À parte superior do corpo apresenta uma côr que é uma verdadeira 
mistura do pardo, trigueiro e negro. O ventre é branco amarellado e a 
parte superior das patas de traz amarello-trigueira um pouco clara. A 
cauda é de um trigueiro muito escuro na parte superior e mais claro na 
inferior. 
a O animal adulto mede sessenta centimetros de comprimento, incluida 
E. a cauda que tem dezeseis; a altura é de dez centimetros. 


E DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


E 

(a 

[A O peramelideo nasico habita as altas e frias montanhas da Austra- 
 » Tia. Falta nas planicies quentes; desce porém algumas vezes até a beira 
q do mar. 

Ê 

' . 

| É | COSTUMES 


Cava na terra grandes buracos que lhe servem de alojamento; es- 
ses buracos communicam entre si por meio de corredores. Assim é que 
nos logares habitados por este animal o sub-solo encontra-se completa- 
mente minado. As unhas compridas e fortes permitem-lhe cavar facil- 
mente; e a forma especial do focinho coadjuva tambem esta natural dis- 
posição. 

VOL. III 21 


418 HISTORIA NATURAL 


O peramelideo alimenta-se de animaes e vegetaes; come vermes e 
insectos, mas ao mesmo tempo procura raizes e para as encontrar alarga 
constantemente os buracos e corredores subterraneos. Nos batataes faz 
às vezes estragos consideraveis; o mesmo acontece se tem occasião de 
penetrar nos logares em que se arrecadam os cereaes. Em taes condi- 
ções é tão prejudicial como os ratos. Como porém o peramelideo nasico 
não possue os dentes d'estes roedores, o plantador consegue com certas 
precauções evitar-lhe as visitas; a construcção de muros profundos é 
sufficiente para que se alcance o desejado fim. 

A marcha d'este marsupial assemelha-se um pouco à do coelho. 
Pousa alternativamente sobre o solo as patas de traz e as de diante em 
vez de segurar-se exclusivamente sobre aquellas como fazem os kangu- 
rus. Leva os alimentos à bocca com os membros anteriores, sentando-se 
sobre os de traz e sobre a cauda. 4 

Só se faz ouvir quando ferido. A voz consiste n'uma especie de as- 
sobio analogo ao dos ratos. 

A femea pare uma só vez por anno, dando à luz trez a seis filhos. 


CAPTIVEIRO 


Uma vez subjeito ao dominio do homem, o peramelideo nasico perde 
toda a timidez do estado selvagem e torna-se confiante, inoffensivo, do- 
cil. No entanto é raro ver-se em captiveiro este marsupial. | 


USOS E PRODUCTOS 


Ha naturalistas que affirmam que a carne do peramelideo nasico 
se come na Australia; outros porém, negam o facto. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 419 


O PERAMELIDEO RAIADO 


Mede quarenta e trez centimetros de comprimento, pertencendo dez 
à cauda. Tem as orelhas grandes e a cauda pouco coberta de péllo. O 
manto é negro e amarello, dominando esta côr aos lados do tronco e o 
negro sobre o dorso. À parte posterior do tronco é dividida por listras 
transversaes, escuras umas, outras claras. Ao longo da cauda na parte 
superior d'este orgão existe uma linha muito escura; o resto do orgão é 
amarellado. Na cabeça, no pescoço e nas patas apparece o pardo de 
mistura com o negro e o amarello. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O peramelideo raiado habita uma grande parte do éste e sul da 
Australia, principalmente as montanhas pedregosas extensas e desertas 
do interior do continente. 


COSTUMES, USOS E PRODUCTOS 


Sobre os costumes d'este marsupial sabe-se muito pouco ou quasi 
nada. Deve ser incluido no grupo dos marsupiaes carnivoros. À marcha 
é semelhante à do coelho. Eis o que se conhece. 

Os indigenas comem a carne d'este animal. 


420 HISTORIA NATURAL 


OS CHEROPOS 


Pelas formas geraes do corpo, estes mamiferos recordam muito os 
macroscelidos. Os caracteres genericos podem resumir-se assim: um 
corpo delgado, repousando sobre membros finos e altos dos quaes os 
posteriores são mais compridos que os anteriores; um focinho pontea- 
gudo; orelhas compridas; uma cauda de mediana extensão, pouco pel- 
luda; dois dedos pouco extensos, eguaes, armados de unhas curtas, mas 
solidas nas patas anteriores e nas posteriores um só dedo grande, sendo 
os outros atrophiados. 

Da disposição das patas deriva o nome de cheropos que em grego 
significa pé de porco. | 

O genero comprehende uma especie unica de que vamos occu- 
par-nos. 


O CHEROPO SEM CAUDA 


Não se tome à lettra o nome d'este animal; não se pense realmente 
que elle é desprovido de orgão caudal. O nome, que não corresponde à 
realidade, tem uma historia que Brehm conta nos seguintes termos. 
«Thomaz Miguel que descobriu a especie, apanhou vivo o primeiro e 
unico individuo que encontrou na cavidade de uma arvore em que es- 
tava refugiado; d'ahi o tirou com grande espanto seu e dos indigenas 
que declararam nunca ter visto animal semelhante. A ausencia de cauda 
no animal impressionou o naturalista que, attendendo a isso lhe deu o 
nome qualificativo de sem cauda. Mais tarde porém foram enviados à 
Europa outros exemplares nos quaes existia uma cauda de quatorze cen- 
timetros de comprimento. O primeiro individuo apanhado perdera eviden- 
temente aquelle orgão por accidente ou por qualquer outro motivo. Gray 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 4921 


observando que a designação sem cauda consagrava um erro, propoz 
que ella fosse substituida pela de castanho, attenta a côr do animal. Em 
historia natural porém, é uso respeitar tanto quanto possivel o nome 
mais antigo; e é por isso que este marsupial é ainda hoje conhecido 
pelo nome de cheropo sem cauda.» + | 


CARACTERES 


Este marsupial tem pouco mais ou menos as dimensões de um coe- 
lho pequeno; tem trinta centimetros de comprido, não contando a cauda 
cuja extensão é, como acima dissemos, de quatorze centimetros. O pêllo, 
comprido e molle, é pardo escuro sobre o dorso e branco ou branco 
amarellado no ventre. As orelhas são grandes, cobertas de péllos de um 
escuro fuliginoso e de outros negros. As patas anteriores são brancas, 
as posteriores ruivas desmaiadas, os dedos claros e a cauda negra na 
face dorsal e-trigueira clara na face inferior e na extremidade. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O cheropo sem cauda habita principalmente a Nova-Galles do Sul 
(New-south-Walles). 


COSTUMES 


Prefere as planicies cobertas de hervas altas. Os seus costumes re- 
cordam os dos peramelideos. Construe um ninho com folhas e hervas 
seccas nos logares cerrados em que a vegetação abunda e sabe tão bem 
occultal-o que um caçador experimentado tem dificuldade em desco- 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 24. 


499 HISTORIA NATURAL 


bril-o. Alimenta-se simultaneamente de vegetaes e de insectos. Eis o que 
se sabe de bem averiguado sobre o genero de vida deste animal. 


OS PHALANGISTAS 


Os animaes comprehendidos n'esta familia são notaveis pelas formas. 
São em geral de pequenas dimensões; raras especies attingem sessenta 
centimetros de comprimento. A cabeça é curta € o labio superior fendido 
como nos roedores. Os membros são todos de egual comprimento; o nu- 
mero de dedos é cinco em cada pata, sendo o interno das patas posterio- 
res o mais grosso e formando um pollegar opponente, desprovido d'unha. 
À cauda é geralmente comprida e prehensora; falta porém n'um genero. 
As femeas teem duas a quatro mamas na bolsa marsupial. A dentição 
comprehende seis grandes incisivos na maxilla superior, dois na maxilla 
inferior, falsos mollares rombos e verdadeiros mollares em numero de 
trez ou quatro, erriçados de tuberculos; os caninos ou faltam ou não 
teem a forma conica caracteristica e são rombos. A columna vertebral 
apresenta doze a treze vertebras dorsaes, seis ou sete lombares, duas - 
sagradas e até trinta caudaes. O estomago é simples, glanduloso; o ce- 
rebro não apresenta circumvoluções. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habitam a Australia e algumas ilhas da Asia do Sul. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 423 


COSTUMES 


Habitam as arvores e não se encontram, por-isso mesmo, senão nas 
florestas. Só muito excepcionalmente descem a terra; a maior parte das 
especies vivem constantemente nos cimos das arvores. 

Com poucas excepções, os phalangistas são animaes nocturnos. Dor- 
- mem a maior parte do dia ou mesmo o dia inteiro; só ao cair da tarde 
despertam e procuram então os fructos, as folhas, as aves, os insectos 
e os ovos que lhes servem de alimento. Assim, como se vê, não são es- 
tes animaes exclusivamente carnivoros, mas antes omnivoros, dando até, 
segundo alguns auctores, preferencia aos vegetaes. Os que se alimentam 
de raizes, cavam tocas onde passam a estação dos frios. 

Sob o ponto de vista dos movimentos, as especies differem muito 
umas das outras. Umas teem a marcha vagarosa, prudente, rastejante 
quasi; outras, ao contrario, são rapidas, excessivamente ageis. Todas 
trepam maravilhosamente e algumas dão saltos consideraveis. A pre- 
sença em algumas especies de uma cauda prehensora e de uma mem- 
brana aliforme são indicios seguros de agilidade. Todas as especies são 
plantigradas. 

Quasi todos os phalangistas são sociaveis e vivem aos pares. 

N'umas especies o numero de filhos é de quatro, n'outras apenas 
de dois ou de um só. 

Todos os animaes d'esta familia são innocentes e timidos. Quando 
se sentem vivamente perseguidos, suspendem-se de um ramo pela cauda 
e ahi se deixam ficar immoveis por largo tempo simulando-se mortos. É 
este, diz Brehm, o unico signal de intelligencia que dão estes -marsu- 
piaes. | 


CAPTIVEIRO 


Conservam-se longo tempo em captiveiro e são faceis de alimentar. 
Raros são os que chegam a distinguir o dono d'outras pessoas. 


424 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


Alguns destes marsupiaes invadem as plantações, causando prejui- 
z08S; em compensação porém, fornecem-nos a carne e o manto. Pode pois 
dizer-se que os estragos que produzem em vida são neutralisados pela 
utilidade que tiramos dos seus productos, depois de mortos. 


OS PETAURISTAS 


Entre todos os marsupiaes trepadores são os petauristas os mais 
ageis. Assemelham-se muito aos esquilos voadores, differindo todavia 
d'elles pela dentição. Teem uma membrana aliforme coberta de péllos, 
que forma como que uma franja ao tronco entre os membros anteriores 
e posteriores. N'estes marsupiaes 0 corpo é alongado, a cabeça pequena 
e o focinho ponteagudo; os olhos são grandes, salientes e as orelhas le- 
vantadas, mais ou menos ponteagudas. A cauda é comprida e coberta de 
pêllos abundantes. O pêllo é molle e fino. 

Geralmente não excedem estes animaes o comprimento de trinta 
centimetros. 


Este genero tem sido dividido, attentas a dentição, a forma das 
orelhas, a membrana aliforme e a cauda, em tres grupos: os petawris- 
tas-esquilos, os petawristas propriamente ditos e os acrobatas. Passamos 
a occupar-nos de cada um d'estes grupos genericos e das especies que 
conteem. | 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 425 


OS PETAURISTAS-ESQUILOS 


Teem as orelhas nuas, compridas, chanfradas no bordo externo, a 
membrana aliforme interfemoral estendida até ao dedo minimo do mem- 
bro anterior e emfim quatro pares de dentes mollares gemiformes infe- 
riores. 


O PETAURISTA-ESQUILO 


Por ser a unica do genero, esta especie tomou o nome delle. Tem 
o porte e as dimensões do esquilo da Europa. O corpo é fino e delgado, 
parecendo comtudo espesso pela presença da membrana aliforme que se 
estende entre os membros. O pescoço é curto, volumoso, a cabeça chata, 
o focinho pouco comprido, a cauda arredondada, pendente e abundante- 
mente coberta de pêllos; as orelhas são grandes, os membros curtos, os 
dedos das patas anteriores separados, e os dedos segundo e terceiro das 
patas posteriores soldados um ao outro. Todos os dedos são armados de 
unhas recurvas, excepto o pollegar que é desprovido d'ellas. A bolsa da 
femea é completa. O manto é espesso, abundante, de pêllo fino e macio. 
À parte superior do corpo é cinzenta, a membrana aliforme trigueira e 
bordada de branco e o ventre branco com reflexos amarellados. De uma 
orelha a outra e passando por diante dos olhos estende-se um traço largo 
de um trigueiro fuliginoso; um outro da mesma côr encontra-se sobre o 
nariz, a região frontal e o dorso. A cauda é cinzenta clara na raiz e ne- 
gra na ponta. 
O animal adulto mede vinte e seis centimetros de comprimento 
sobre nove a dez de altura; a cauda mede vinte e sete, isto é apre- 
senta maior extensão que todo o resto do corpo. 


426 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O petaurista-esquilo habita em Nova-Galles do Sul, em Nova-Guiné 
e na ilha Norfolk. 


COSTUMES 


O petaurista-esquilo é um animal sociavel que vive em pequenas 
familias, que se alimenta de substancias vegetaes e de insectos e que 
faz das arvores o seu domicilio unico. Tem habitos nocturnos: occulta-se 
durante o dia nos cimos mais espessos das arvores, enrolando-se, co- 
brindo-se com a membrana aliforme e dormindo. Ao cair da noite, des- 
perta. Então principia para elle a vida activa em contraste com a abso- 
luta falta de animação que o caracterisa durante o dia. De noite trepa 
aos ramos com prodigiosa rapidez e para saltar abre a membrana ali- 
forme que lhe serve como de pára-quedas. De dia se desperta é se move, 
é sómente para procurar alimento; mas caminha com a cabeça baixa 
para evitar os raios do sol e a marcha é pezada e vacillante como a de 
todos os animaes nocturnos durante o dia. Mas de noite o contraste é 
perfeito, completo: não ha macaco ou esquilo que o excedam em agili- 
dade, em rapidez de movimentos. Dá saltos enormes de arvore a arvore; 
«saltando, diz Brehm, de uma altura de dez metros pode attingir uma 
arvore distante vinte e cinco ou trinta metros.» * Durante o salto pode 
à vontade mudar de direcção, servindo-se para isso da cauda como de 
um leme. 

Nada se sabe sobre a reproducção d'este marsupial. 


1 Brehm, Loc. cit., vol. 2.º, pg. 27. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 


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CAÇA 


A caça ao petaurista-esquilo que durante a noite seria dilhicillima, 
é, pelo contrario, de uma extrema facilidade durante o dia. Basta então 
que um homem trepe a uma arvore e um outro fique em baixo: o que 
subiu consegue geralmente apanhar o animal; mas se isto se não dá, se 
o petaurista acordou e procurou fugir então o homem continúa a perse- 
guil-o, até que elle offuscado pela luz, perca a certeza do salto e caia nas 
mãos do companheiro que ficou junto à base da arvore. 


CAPTIVEIRO 


O petaurista-esquilo é um animal encantador em captiveiro. É inof- 
fensivo, docil, facil de domesticar e vivissimo de noite, embora conserve 
sempre uma tal ou qual timidez. Vive em boa harmonia com os outros 
animaes domesticos e chega a affeiçoar-se ao homem. Não é intelligente; 
mas a docilidade, a graça e a alegria compensam a falta d'aquelle pre- 
dicado. Habitua-se facilmente a toda a ordem de alimentos, mostrando 
sempre uma decidida predilecção pelos fructos, pelos insectos e pelas 
coisas doces. É o que affirma Bennett que possuiu uma femea e a trouxe 


“à Europa. 


428 HISTORIA NATURAL 


OS PETAURISTAS PROPRIAMENTE DITOS 


Differem dos petauristas-esquilos em o bordo externo das orelhas 
ser inteiro e não chanfrado e em a membrana aliforme se estender ape- 
nas do carpo ao joelho. 


O TAGUAN 


É este o nome que ao animal dão os colonos; tambem é conhecido 
pelas denominações de philandra volante e de petawrista taguanoide. É 
o maior dos marsupiaes voadores. O corpo mede pouco mais ou menos 
um metro de comprimento, incluida a cauda que tem metade exacta- 
mente. A cabeça é pequena, o focinho curto e agudo e a cauda abun- 
dantissima; as orelhas são largas, espessas e largamente cobertas de 
péllo, os olhos muito grandes e as patas armadas de unhas fortes, agudas 
e recurvas. O pêllo do manto é comprido e macio. 

A côr é muito variavel; mas o caso mais geral é ter o taguan o 
dorso trigueiro escuro, a cabeça trigueira, a membrana aliforme com si- 
gnaes brancos, o focinho, o mento e as patas negras e a cauda negra 
tambem ou castanha mais clara na raiz que no resto da extensão. O 
peito e o ventre são brancos. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O taguan habita a Nova-Hollanda. Abunda principalmente nas gran- 
des florestas que ficam entre Port-Philippe e Moreton-Bay. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 429 


COSTUMES 


É o taguan, como todos os outros marsupiaes da familia, um animal 
nocturno que se conserva dormindo o dia inteiro nos troncos carcomidos 
das arvores onde se encontra ao abrigo dos inimigos. 

Os movimentos d'este marsupial são ageis e precisos; dá saltos 
prodigiosos, trepa com pasmosa rapidez e atira-se a grandes distancias 
de arvore em arvore. Rarissimas vezes desce a terra. 


CAPTIVEIRO 


A dificuldade extrema que existe de apanhar este animal vivo ex- 
plica a razão por que é rarissimo em captiveiro e por que mal se tem 
podido observar as differenças de costumes que apresenta na transição 
da liberdade para o dominio do homem. 


CAÇA 


O indigena da Nova-Galles do Sul, sollicitado pela fome passa o seu 
tempo constantemente à espreita de alguma presa. Nº'este exercicio apren- 
deu a reconhecer com admiravel pericia os logares em que o taguan 
constituiu o seu domicilio. Uma ligeira fenda n'uma arvore, alguns pêl- 
los caídos à entrada do buraco em que o animal penetrou são-lhe indi- 
cios bastantes e seguros de que o animal está em tal ou tal ponto; o 
indigena distingue ainda se se trata de um domicilio abandonado ou com 
habitantes. Uma vez certificado que é d'este ultimo caso que se trata, 
elle trepa á arvore com a velocidade de um macaco, introduz o braço 
na cavidade em que o animal se encontra, apanha-o pela cauda, parte- 
lhe immediatamente a cabeça contra um ramo e atira a terra o cadaver. 
O indigena procede assim, porque sabe perfeitamente que o animal se 


430 HISTORIA NATURAL 


bate e defende corajosamente, usando dos dentes e das garras com 
desespero e valentia. O europeu nunca tenta a caça do taguan sem a 
companhia de alguns indigenas; só estes, com effeito, sabem encontrar 
o animal, só elles são capazes de o extrairem do seu escondrijo com a 
rapidez indisueaso el para que elle não à PORRA empregar as garras e Os 
dentes. 


OS ACROBATAS 


Teem as orelhas pouco cobertas de pêllo, a membrana aliforme muito 
larga, estendendo-se apenas até ao carpo e os pellos do cauda disticos, 
isto é dispostos em duas linhas. 


O PEQUENO ACROBATA 


É o menor de todos os marsupiaes voadores. Tem as dimensões de 
um ratinho e quando está sentado, por isso que a membrana aliforme 
se une intimamente ao corpo, parece exactamente este roedor; é esta a 
razão por que lhe foi dado o nome vulgar de ratinho voador. Tem ape- 
nas quinze centimetros de comprimento, pertencendo metade à cauda. 
O pêllo é curto e macio, pardo trigueiro sobre o dorso e branco amarel- 
lado no ventre; os olhos são circuitados de negro e as orelhas, negras 
adiante, são claras posteriormente. A cauda é de um pardo trigueiro na 
face superior e desmaiado na inferior. A membrana aliforme apresenta 
uma como bordadura branca. 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 431 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Este marsupial pertence à Nova-Galles do Sul. 


COSTUMES 


Alimenta-se de folhas, de fructos, de rebentos ou renovos e de in- 
sectos. É agil e vivo como todos os outros representantes da familia. 
Como estes, elle pode tambem dar enormes saltos, percorrer considera- 
veis extensões com auxilio da membrana aliforme; muda no ar de direc- 
ção, graças à cauda que lhe serve como de leme. 


CAPTIVEIRO 


Dizem alguns naturalistas que perto de Port-lackson, os colonos e 
mesmo os indigenas captivam e domesticam muitas vezes este marsupial. 
Talvez seja verdade; o que é certo porém, é que não possuimos ainda 


“hoje dados precisos sobre a reproducção e a vida em captiveiro do 


animal. 


432 HISTORIA NATURAL 


OS CUSCOS 


Formam na familia dos phalangistas um genero perfeitamente dis- 
tincto. Os animaes que o representam teem dimensões relativamente no- 
taveis, uma cauda pelluda na raiz, nua e papilosa no resto da extensão, 
orelhas sempre curtas e às vezes mesmo não apparentes, a cabeça arre- 
dondada, o focinho ponteagudo, a pupilla vertical e o pêllo abundante, 
espesso, mais ou menos lanoso. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Encontram-se estes animaes nas florestas de Amboina, de Banda e 
da Nova-Guiné.. 


COSTUMES 


São animaes nocturnos, lentos, preguiçosos, em cuja alimentação 
entram os fructos. Conhecem-se ha muito, mas nem por isso a sua his- 
toria deixa de offerecer lacunas e obscuridades consideraveis. 

Vamos estudar a especie-typo. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 433 


O PHALANGISTA MALHADO 


Este animal é tambem conhecido pelo nome menos proprio de phi- 
landra do Oriente. 
- Tem as dimensões de um gato: o corpo mede de comprimento oi- 
tenta e seis centimetros, não incluindo a cauda cuja extensão é de meio 
metro. O péllo é lanoso, espesso e de côr muito variavel. O animal de- 
pois de velho é de ordinario branco, com reflexos amarellados ou par- 
dos e grandes manchas irregulares negras ou de um trigueiro accen- 
tuado que desapparecem na face externa dos membros; no animal ainda 


novo as manchas são cinzentas e passam pouco a pouco ao castanho claro 


“e depois ao castanho escuro. O ventre é sempre de um branco uniforme; 


as pernas são de uma côr fuliginosa. A cauda é branca com raras man- 
chas. A parte que circuita os olhos e a fronte são de um amarello fuli- 
ginoso nos animaes novos e de um amarello vivo nos velhos. As orelhas 
são muitas vezes brancas e as partes desnudadas apresentam um ruivo 
variavel, | $ 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICGA 
Vive nas ilhas Molucas e: particularmente em Amboina. 
COSTUMES 


Habita as florestas e passa o seu tempo principalmente nas arvores 
de fructo a cujos ramos se suspende pela cauda. Dá saltos prodigiosos, 
como todos os marsupiaes congéneres; mas, como é preguiçoso, con- 
some geralmente o tempo suspenso das arvores, immovel. Quando não 
come ou não dorme, lambe-se e alisa o pêllo, como fazem os gatos. 

A femea pare dois a quatro filhos que conserva largo tempo na bolsa 


marsupial. 
VOL, III 28 


434 HISTORIA NATURAL 


USOS E PRODUCTOS 


À pelle deste mamifero é estimada. Em algumas regiões os indige- 
nas comem a carne. 


AS PHILANDRAS 


> 


Estes animaes parecem estabelecer a transição de certos carniceiros 
para certos roedores; uns assemelham-se às martas, outros aos rapozos, 
mas todos ao mesmo tempo aos esquilos. Se lhes faltasse a bolsa have- 
ria uma verdadeira impossibilidade de saber-se onde collocal-os na divi- 
são taxonomica. 

Entre os marsupiaes o caracter dominante das philandras consiste 
na soldadura até à ultima phalange dos segundos e terceiros dedos das 
patas posteriores. O dedo pollegar em todas as patas é opponente. A 
cauda, largamente coberta de pêllo comprido e extenso, é prehensora. 

A dentição é intermedia à dos carnivoros e dos roedores: os incisi- 
vos são alongados como os d'estes, mas seguidos de caninos e de falsos 
mollares. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habitam a Australia, as ilhas visinhas e as Molucas. 


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COSTUMES 


| São animaes nocturnos, vagarosos e estupidos que passam a vida 
nas arvores, no seio das florestas espessas. 


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“A PHILANDRA RAPOZEIRA 


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É esta a especie mais conhecida. Reune ás dimensões do gato bravo 
o porte da rapoza e a graça do esquilo. O comprimento do corpo é de 
sessenta e seis centimetros, não incluindo a cauda que tem quarenta e 
cinco. O tronco é elegante, o pescoço curto e delgado, a cabeça alonga- 
da, o focinho curto e terminado em ponta e o labio superior fendido; as 
orelhas são de media grandeza, ponteagudas e os olhos lateraes. À planta 
dos pés é nua e as unhas comprimidas e recurvas, excepto as dos pol- 
legares que são achatadas. 

À femea apresenta uma bolsa incompleta, representada apenas por 
uma prega cutanea. O manto compõe-se de péllos sedosos, curtos e ri- 
jos. À parte superior do corpo é de um pardo com reflexos trigueiros ou 
castanhos e ruivos; a parte inferior é amarella clara. O peito e o ventre 
são de um ruivo fuliginoso, o dorso, a cauda e os bigodes negros, as 
orelhas núas interiormente e cobertas por fóra de péllos amarellos cla- 
ros. Os recem-nascidos são de um cinzento claro misturado aqui e além 
de negro. De resto, as variações de côr são grandes. 


436 HISTORIA NATURAL 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A philandra rapozeira habita a Nova-Hollanda e a terra de io 
men; é um dos marsupiaes mais vulgares. 


COSTUMES 


Vive a philandra rapozeira quasi exclusivamente nas florestas e so-. 
bre as arvores. Tem habitos nocturnos; não abandona 0 seu retiro senão 
duas ou trez horas depois do pôr do sol. Trepa bem; mas ainda assim 
os seus movimentos são vagarosos e pouco precisos relativamente ao 
dos esquilos. A cauda prehensora presta-lhe grandes serviços; nunca dá 
um passo nas arvores sem previamente se segurar a este orgão. Em. 
terra marcha muito mais lentamente do que nas arvores. 

Alimenta-se de vegetaes e simultaneamente d'aves ou outros peque- 
nos animaes que consegue apanhar. Antes de matal-a, atormenta muito 
tempo a presa, revolvendo-a entre as patas e batendo com ella de en- 
contro-aos ramos; a primeira coisa que devora é o cerebro. 

Um bom trepador consegue facilmente apanhar a philandra rapozeira. 
Quando um perigo a ameaça, pendura-se pela cauda a um ramo d'arvore 
e conserva-se perfeitamente immovel. 

A parturição produz dois filhos que a mãe conserva muito tempo na 
bolsa e mais tarde sobre o dorso. 


CAPTIVEIRO 


- 


Domam-se facilmente as philandras rapozeiras, e teem quasi todos 
os jardins zoologicos da Europa alguns exemplares. São animaes pacifi- 
cos e doceis, mas preguiçosos e estupidos. É preciso tel-os em gaiolas 
largas e dar-lhes alimento em abundancia; se se não fizer isto roerão a 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 437 


madeira da prisão. É facil alimental-os com pão, carne, fructos e raizes. 
Espalham um cheiro de camphora que os torna insuportaveis em capti- 
veiro. 


USOS E PRODUCTOS 


Os indigenas comem a carne da philandra rapozeira, a despeito do 
cheiro camphorado que a torna insuportavel ao paladar europeu. Utili- 
sam tambem a pelle do animal que apreciam tanto como nós a da marta 
e de que fazem mantos. No dizer dos entendedores essa pelle é boa e 
deve cedo ou tarde tornar-se um importante artigo de commercio pela 
riqueza do péllo que a cobre. 


OS COALAS | 


Constituem na familia dos phalangistas um genero caracterisado as- 
sim: corpo refeito, pernas baixas, cabeça volumosa, focinho curto, ore- 
lhas grandes e pelludas, cauda reduzida a um tuberculo occulto, cinco 
dedos em cada pata, sendo os dois internos das patas anteriores reuni- 
dos e susceptiveis de opporem-se aos trez outros, as plantas nuas, as 
unhas aceradas, compridas e recurvas, excepto nos pollegares posterio- 
res que não possuem estes appendices, trez pares de incisivos superio- 
res muito desiguaes, um pequeno canino unico na maxilla superior e 
cinco pares de mollares em cada maxilla, sendo os quatro ultimos mul- 
ti-tuberculosos. . 

Este genero é representado por uma especie unica. 


438 HISTORIA NATURAL 


O COALA CINZENTO 


Este marsupial conhecido tambem pelos nomes de wombat e de 
urso indigena que lhe dão os colonos da Nova-Hollanda, tem as dimen- 
sões de um glutão; mede sessenta e seis centimetros, pouco mais ou 
menos, de comprimento e trinta e trez de altura. A cabeça volumosa, as 
pequenas orelhas distantes e muito pelludas, os olhos brilhantes e o fo- 
cinho largo e obtuso dão-lhe um aspecto muito particular, tornado ainda 
mais estranho e mais singular pela ausencia de cauda e pela forma das 
patas. O pêllo é comprido e espesso, quasi crespo, mas fino, macio e la- 
noso. Tem o nariz e o focinho desnudados, a parte superior do corpo 
cinzenta, a parte inferior branca amarellada e o lado externo das orelhas 
cinzento escuro. | 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O coala cinzento habita as florestas da Nova-Galles do Sul, mas não 
é muito commum. 


COSTUMES 


Encontra-se aos pares. Trepa às arvores mais altas, mas com um 
vagar que lhe conquistou o nome de preguiçoso da Australia. O que lhe 
falta em rapidez, possue-o em prudencia e na attenção com que executa 
todos os movimentos; sobe aos ramos mais delgados. Só muito raras ve- 
zes e quando a isso é forçado pela falta de alimento é que abandona as 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 439 


arvores e desce a terra onde progride com mais vagar e mais desele- 
gancia; descendo a terra não o faz senão para attingir uma outra arvore 
que lhe promette novos alimentos. 

Os habitos de vida d'este marsupial são quasi nocturnos. Com efeito, 
é geralmente ao fim da tarde que principia para elle a vida activa, a 
vida do movimento. | | 

O coala cinzento, a despeito de uma apparencia feroz que o cara- 
cterisa, é um animal pacifico, docil, que raras vezes se encolerisa e que 
se conserva de ordinario indiferente ao que em torno d'elle se passa. 
E mesmo quando se encolerisa, não pensa em arranhar ou morder. 

A femea dá á luz um filho unico que, ainda depois de saído da 
bolsa, carrega por muito tempo sobre o dorso e ao qual testemunha uma 
viva affeição profunda. 


CAÇA 


O coala cinzento é conhecido dos europeus desde 1803. Os indige- 
nas caçam-o com verdadeiro ardor para lhe obterem a carne que para 
elles é das melhores, das mais preciosas. 


CAPTIVEIRO 


O coala cinzento apanha-se com facilidade. Dá-se bem em captiveiro 
e alimenta-se sem difficuldade. Para comer, senta-se sobre os membros 
posteriores e leva à bocca os alimentos com as patas de diante. Em re- 
pouso a postura do animal é a do cão quando se deita. De resto, não 
offerece grandes attractivos, porque é estupido. 


44) HISTORIA NATURAL 


XI 


MARSUPIAES HERBIVOROS 


OS KANGURUS 


São animaes saltadores e os maiores da ordem. São notaveis pelas 
formas particulares que apresentam. A partir da cabeça, o tronco au- 
ementa rapidamente de grossura, sendo a parte mais volumosa a região 
lombar, o que é devido ao enorme desenvolvimento dos membros pos- 
teriores. A cabeça e a parte anterior do tronco parecem atrophiados. Os 
membros anteriores servem apenas muito secundariamente a estes ani- 
maes para a marcha e para a-prehensão dos alimentos. A parte poste- 
rior do corpo é que propriamente se destina aos movimentos, o que ex- 
plica o seu desenvolvimento extremo. Com os extensos membros poste- 
riores e a forte cauda, os kangurus podem dar saltos prodigiosos e com 
rapidez egual à dos veados. A forma das pernas e a cauda são caracte- 
risticas. A coxa é muito forte, a tibia comprida e o tarso extraordina- 
riamente prolongado; os dedos em numero de quatro apenas, pela au- 
sencia do pollegar, são muito fortes e compridos e o do meio apresenta 
uma unha em forma de casco. A cauda é mais comprida e mais grossa 
que a de qualquer outro mamifero das mesmas dimensões; os seus mus- 
culos são vigorosissimos. Ao lado d'este desenvolvimento exagerado, os 
membros anteriores parecem atrophiados, rachiticos, embora na reali- 
dade o não sejam, porque o seu desenvolvimento está em relação com 
os movimentos que executam. Estes membros anteriores, terminados por 
cinco dedos armados de unhas arredondadas, servem para a prehensão 
dos alimentos; os kangurus servem-se d'estas patas dianteiras como de 


mãos. A cabeça pela forma especial que affecta parece intermediaria à 
do veado e da lebre. 


DO RO nad 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 441 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A Australia é a patria dos kangurus. 


COSTUMES 


Dos kangurus uns habitam as vastas planicies cobertas de hervas, 
outros vivem de preferencia nas brenhas; alguns procuram as monta- 
nhas pedregosas, muitos as florestas mais impenetraveis onde são obri- 
gados para acharem passagem a partir ramos e a arrancar raizes, ou- 
tros ainda as arvores. 

Vivem quasi todos solitarios; só muito raras vezes e accidental- - 
mente é que se encontram alguns reunidos n'um mesmo logar, quando 
a alimentação é ahi abundantissima; são porém sociedades fortuitas, me- 
ramente temporarias, essas a que nos referimos. O viajante depois de 
ter visto oitenta ou cem kangurus reunidos n'um ponto, decorridas pou- 
cas horas não encontra no mesmo local um unico. 

Quasi todos estes marsupiaes são diurnos; as pequenas especies po- 
rém são nocturnas e passam o dia dormindo em logares occultos. Alguns 
habitam fendas de rochedos d'onde não sáem senão para procurar ali- 
mento, voltando para lá logo que se encontram saciados. 

«Os habitos e genero de vida dos kangurus, diz Brehm, merecem a 
nossa attenção, porque tudo n'elles é curioso: movimentos, repouso, re- 
gime, reproducção, desenvolvimento e intelligencia.» ! Do auctor que 
acabamos de citar, o mais completo sobre o assumpto em questão, ex- 
traímos as informações que seguem. 

O movimento dos kangurus quando pastam consiste em um salto 
pezado e deselegante. Nestas condições elles apoiam toda a mão sobre 
o solo e collocam as patas de traz perto das de diante ou mesmo entre 
ellas. Apoiam-se ao mesmo tempo sobre a cauda; como porém, uma tal 
posição é extremamente fatigante, pouco tempo a conservam. Para o ar- 


1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 97. 


442 HISTORIA NATURAL 


rancamento de plantas, sentam-se sobre a cauda e as patas posteriores, 
deixando caír os membros de diante; desde que apanham uma, erguem-se 
para a comer. O corpo parece então repousar-lhes sobre uma tripeça 
cujos ramos são representados pelos membros posteriores e pela cauda. 
Raras vezes se apoiam contra o solo sobre trez patas ao mesmo tempo 
e sobre a cauda; isto acontece apenas quando os animaes teem qualquer 
coisa a fazer no chão com uma das mãos. Quando se encontram meio sa- 
tisfeitos, deitam-se por terra, estendendo os membros posteriores; se se 
lembram de continuar a comer, levantam-se apenas muito ligeiramente e 
apoiam-se sobre os curtos membros anteriores. Para dormirem, as pe- 
quenas especies sentam-se sobre os quatros membros com a cauda es- 
tendida para traz; esta posição permitte-lhes rapidamente fugir. 

Ao mais ligeiro ruido, os kangurus levantam-se sobre a extremidade 
das patas de traz e olham em torno de si; se vêem alguma coisa de sus- 
peito, deitam immediamente a fugir. É então que se vê bem a agilidade 
de que dispoem. Pulam exclusivamente sobre os membros posteriores e 
dao saltos como nenhum outro animal. Unem os membros anteriores con- 
tra o peito, estendem a cauda para traz, encurvam-se, depois estendem 
bruscamente com toda a força dos musculos femoraes os membros pos- 
teriores extensiveis e projectam-se no ar como frechas, descrevendo uma 
curva. Uns, ao saltar, conservam o corpo em posição horisontal e outros 
em posição obliqua. Quando nada os perturba, os kangurus dão saltos de 
dois metros e meio de extensão; se se apavoram por um motivo qual- 
quer, então os saltos attingem uma extensão dupla ou tripla. Nunca cáem 
em cheio sobre as patas anteriores, mas apenas de quando em quando 
sobre as extremidades dos dedos. Algumas especies durante o salto en- 
costam os membros anteriores ás partes lateraes do tronco; outras cru- 
zam-os sobre o peito. 

A perseguição dos kangurus pelos cães é muito dificil, o que muito 
bem se comprehende recordando que aquelles podem dar saltos de 
oito a dez metros de extensão, vencendo obstaculos que os cães são for- 
cados a costear com grande perda de tempo. 

De todos os sentidos dos kangurus o mais perfeito parece ser o ou- 
vido; a vista é fraca e o olfato obtuso. 

À intelligencia d'estes marsupiaes é pouco desenvolvida. São des- 
confiados, curiosos, timidos e tão faceis de excitar como de calmar. São 
desprovidos de memoria e este facto explica naturalmente a falta de pru- 
dencia que os caracterisa e bem assim o não chegarem no captiveiro a 
distinguir o dono e a affeiçoar-se-lhe. A curiosidade é nos kangurus um 
attributo caracteristico e extraordinariamente desenvolvido. Ás vezes, 
perseguidos pelos cães, correndo ou antes saltando vertiginosamente, 
cheios de justificado terror, nem por isso deixam de ceder ás sollicita- 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 443 


ções da curiosidade, voltando a cabeça para vêrem os perseguidores; 
não é raro acontecer então que vão bater violentamente de encontro a 
uma arvore, caindo aturdidos. | 

O regime alimentar dos kangurus é variadissimo. Alimentam-se de 
hervas, de folhas, de raizes, de cascas d'arvores, de rebentos e de fru- 
ctos. Contra a opinião de alguns auctores antigos que julgaram os kan- 
gurus ruminantes, dizem os modernos, os mais conscienciosos, que nunca 
nestes marsupiaes encontraram indicio de ruminação. O erro dos anti- 
gos foi decerto originado pelo facto de mastigarem os kangurus os ali- 
mentos por largo espaço de tempo. 

O cio, pelo menos a julgar pelos individuos captivos, tem epochas 
determinadas. Os machos dão-se combates violentos pela posse das fe- 
meas; os membros posteriores e a cauda são as principaes armas. Às 
pequenas especies são as que se excitam mais; o ardor genesico leva-as 
a arrancarem os pêllos a regiões inteiras do corpo. 

Os kangurus não são muito fecundos. As grandes especies quasi 
nunca produzem mais que um filho por parto. A gestação não é demo- 
rada; a do kanguru gigante, por exemplo, não dura mais de trinta e 
nove dias. Doze horas depois de nascido, o kanguru gigante tem apenas 
trinta e dois millimetros de comprido: é uma pequena massa molle, 
transparente, vermiforme, de nariz e orelhas mal indicadas ainda, de 
membros informes e de olhos cerrados. O aleitamento e a permanencia 
na bolsa materna duram oito mezes. É extrema a dedicação das femeas 
pelos filhos. | 


Os indigenas e os colonos da Australia caçam apaixonadamente os 
kangurus. Os processos empregados pelos primeiros são principalmente 
a armadilha e os laços. Muitas vezes fazem grandes caçadas em que um 


- certo numero de homens se escondem em determinados logares ao passo 


que outros tratam de espantar os kangurus e de os cercarem de modo 
que o unico caminho livre que lhes reste seja o que conduz aos pontos 
em que os outros caçadores se occultaram. Estes, quando os marsupiaes 
se approximam, lançam-lhes habilmente laços à cabeça. 

Os colonos inglezes empregam muito na caça dos kangurus uns cer- 
tos cães, productos do cruzamento do braco inglez e do bull-dog, nota- 
veis pela força, pela coragem e pela perseverança. De ordinario, trez a 
quatro cães d'estes bastam para apanhar um kanguru ou pelo menos 


444 HISTORIA NATURAL 


para o collocar ao alcance de uma arma de fogo. Esta caça nem sempre 
é destituida de perigos; ás vezes os kangurus fazendo uso dos membros 
posteriores e das unhas vigorosissimas fazem face aos cães e até ao ho- 
mem, deixando-os feridos. Perto dos cursos d'agua, os kangurus chegam 
a bater-se vantajosamente com os cães mais valentes. Como são muito 
altos, tomam pé em logares em que os cães são forçados a nadar; esta 
é a vantagem. Quando um cão se approxima, os kangurus deitam-lhe as 
patas anteriores e mergulham-o até o matarem por asphyxia. Procedem 
de egual modo em relação a um segundo, a um terceiro e aos mais que 
veem vindo, de modo a fazerem face, muitas vezes, a uma grande ma- 
tilha. | 


CAPTIVEIRO 


Todas as especies supportam com facilidade o captiveiro. Alimen- 
“tam-se de folhas, de raizes, de grãos e de pão. No inverno reclamam 
um aposento muito quente. Bem tratados reproduzem-se. Ha muitos nos 
principaes jardins zoologicos da Europa. 


USOS E PRODUCTOS 


Os kangurus são animaes mais uteis do que nocivos. À carne d'es- 
tes marsupiaes é um bom alimento. É precisamente esta a razão por 
que alguns naturalistas teem lembrado a conveniencia de fazer multipli- 
car na Europa estes mamiferos, creando-se assim uma famosa caça abun- 
dantissima em carne. N'esta multiplicação encontrariamos ainda a vanta- 
gem de uma vasta producção de boas pelles, importante artigo de com- 
mercio. Os estragos que estes animaes poderiam causar seriam insigni- 
ficantissimos e nem mesmo valeria entrar com elles em linha de conta 
para os confrontar com a utilidade que seriam capazes de naturalmente 
produzir. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 445 


“O KANGURU GIGANTE 


. 


E o maior animal da familia; d'ahi a designação especial por que 
é conhecido. Os colonos dão-lhe tambem o nome de boomer. Um macho 
adulto, sentado, tem a altura de um homem regular. Dois metros é o 
comprimento total; noventa centimetros pertencem à cauda. A femea é 

“mais pequena um terço, pouco mais ou menos, d'estas dimensões. 

O péllo é abundante, espesso, liso, molle e quasi lanoso, de um tri- 
gueiro misturado de pardo. O antebraço, a perna e o tarso são de um 
trigueiro-amarello claro, os dedos negros; a cabeça é mais clara anterior- 
mente do que aos lados e o labio superior é muito claro. As orelhas são 
trigueiras na face externa e brancas interiormente. A cauda desde a raiz 
até à parte media é da côr do dorso e depois negra até à extremidade. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O kanguru gigante foi descoberto em 1770 por Cook nas costas da 
“Nova-Galles do Sul. 


COSTUMES 


Vive nas extensas pastagens ou nos logares cobertos de arvoredo 
copado, tão abundantes na Australia. É para os logares arborisados que 
elle se retira no estio para escapar aos raios ardentes do sol. 

Com quanto o kanguru gigante se encontre em pequenos grupos de 
trez a quatro individuos, nem por isso se pode dizer com os antigos 
que elle seja sociavel: com effeito os membros de cada bando vivem 
uma vida perfeitamente egoista, indifferentes à sorte reciproca. Às vezes 
juntam-se muitos individuos n'um certo local onde os pastos abundam ; 
desde o momento porém em que o alimento falta ou escassea, sepa- 
ram-se rapidamente. Os antigos acreditaram que os bandos tinham uma 


446 HISTORIA NATURAL 


organisação e que n'elles os machos representavam o papel de chefes 
ou directores. Esta opinião, como o teem provado as observações ulte- 
riores, é perfeitamente erronea. 

Como todos, o kanguru gigante é timido e desconfiado; raras vezes 
consente que o homem se lhe approxime. | 


CAPTIVEIRO 


Houve tempo em que o kanguru gigante era mais commum nas 
“collecções zoologicas ou ménageries do que é agora. Ainda então a caça 
não era tão activa como é hoje. O numero tem decrescido sensivelmente 
e muitos individuos teem sido repellidos pure o interior das terras, onde 
é difficil apanhal-os. 

O kanguru gigante dá-se bem em Dto. Citam-se casos de 
individuos que teem vivido dez e quinze annos captivos na Europa. 

O kanguru gigante porém, não chega nunca a domesticar-se comple- 
tamente; nunca perde a timidez nativa e nunca chega a habituar-se aos 
guardas. 


OS HYPSIPRYMNOS 


Estes mamiferos a que muitos dão tambem o nome de hangurus- 
ratos, são os mais pequenos dos marsupiaes saltadores. Distinguem-se dos 
kangurus não só na corporatura que é menor, mas ainda na cauda que 
é mais curta e no labio superior que é fendido. Teem orelhas redondas 
como as dos pequenos ratos e um par de caninos de curta extensão na 
maxilla superior. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL | 447 


O KANGURU-RATO 


k esta a especie typo do genero. Tem as dimensões de um coelho, 


os péllos muito compridos e pardos-trigueiros, o dorso negro e claro e 


o ventre branco ou amarellado. O ultimo terço da cauda é coberto de 
péllos compridos, negros, formando tufo. Mede de comprimento total ses- 
senta e seis centimetros, dos quaes trinta pertencem á cauda. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


O kanguru-rato habita a Nova-Galles do Sul. 


COSTUMES 


Gould escreve o seguinte sobre os habitos de vida d'esta especie: 
«O kanguru-rato cava no solo um buraco onde forma o ninho, que se 
confunde com o meio ambiente por maneira tal que é impossivel desco- 


“bril-o, se se lhe não presta a maxima attenção. Escolhe um logar entre 


as hervas, perto de uma brenha. O animal conserva-se todo o dia dei- 
tado ahi, só ou com a femea, completamente occulto à vista dos que pas- 


sam, porque tem o cuidado de fechar a abertura que conduz ao ninho. 
“Os indigenas porém, não se deixam enganar. 


«É curioso vêr este animal apanhando a herva precisa para a cons- 


“trucção do ninho. Serve-se para isso da cauda que é prehensora. En- 


volve com ella um tufo de herva, arranca-a e transporta-a ao logar con- 
veniente. No captiveiro transporta egualmente ao seu poiso diversos ma- 
teriaes: era isto, pelo menos, o que faziam alguns individuos que lord 
Derby possuia no seu parque de Knowseley em condições tão semelhan- 
tes quanto possivel ás dos que vivem em liberdade. 

«Na Australia habita as planicies seccas e as collinas cobertas de ar- 


448 HISTORIA NATURAL 


vores e de brenhas mais ou menos espaçadas. Não vive habitualmente 
em bandos; todavia encontram-se sempre alguns individuos reunidos nos 
mesmos logares. Só ao cair da noite é que o kanguru-rato procura ali- 
mentos. Come hervas e raizes que habilmente sabe desenterrar. Os bu- 
racos abertos perto das brenhas denunciam aos caçadores a presença 
deste animal. Quando alguem o perturba durante o dia, corre com ra- 
pidez surprehendenie para o buraco mais proximo, para uma fenda ou 
para o tronco occo de uma arvore que primeiro encontra e ahi se es- 
conde.» ! 


O POTORU-RATO 


Tem a cabeça alongada, as patas curtas e a cauda semelhante à dos 
ratos. Mede quarenta centimetros de comprimento e quatorze de altura; 
a cauda tem a extensão de vinte e oito centimetros. Tem o corpo re- 
feito, o pescoço curto, os dedos das patas anteriores separados, o se- 
gundo e o terceiro das patas posteriores soldados um ao outro até à ul- 
tima phalange. Todos estes dedos são armados de unhas compridas e 
recurvas. À cauda é comprida, chata, muito forte, escamosa e coberta 
de péllos curtos e espalhados. Em geral o pêllo é comprido, um pouco 
brilhante, de um castanho escuro misturado de negro e de um castanho 
claro no dorso, de um branco sujo ou amarellado no ventre. A raiz e a 
face superior da cauda são trigueiras, os lados e a face inferior negros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 
O potoru-rato habita a Nova-(alles do Sul e a terra de Van-Diemen. 
E commum em Port-Jackson. 


! Citado por Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 44. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 449 


Durante o cio o potoru excita-se extraordinariamente. O macho per- 
segue a femea durante toda a noite, mordendo-a, batendo-lhe. Um dos 
machos que possue o jardim zoologico de Hamburgo, diz Brehm, chegou 
mesmo a matar uma femea e com ella um filho já bastante crescido que 
andava na bolsa. | 


ACCLIMAÇÃO 


«Haveria, diz Brehm, indubitavelmente uma grande vantagem em 
acclimar entre nós este animal curioso. N'um grande parque bem fechado 
poderia crear-se um certo numero de individuos, que depois se poriam 
em liberdade e se deixariam entregues a si mesmos. Assim, sem pre- 
juizo, se creariam peças de uma caça sem duvida attrahente. 


OS PHASCOLOMIOS 


Os marsupiaes comprehendidos n'este genero caracterisam-se perfei- 
tamente pela dentição que é a dos roedores. Não teem com effeito senão 
incisivos e mollares. Dos incisivos existe um par sómente em cada ma- 
xilla. São plantigrados e n'elles os membros anteriores e posteriores teem 
a mesma extensão. 


VOL. NI 29 


450 HISTORIA NATURAL 


O TEIXUGO DA AUSTRALIA 


Este animal é tambem conhecido pelo nome de rato de bolsa. É ne- 
cessario porém advertir que nenhum dos nomes que lhe são dados ex- 
prime uma semelhança real. Elle não se parece, com effeito, nem com 
o teixugo, nem com o rato. Tem o typo dos roedores, é verdade, mas 
dos roedores mais pezados e mais preguiçosos. 


COSTUMES 


Procura os logares arborisados e evita as pastagens descobertas. 
Cava um buraco entre as hervas, tapeta-o cuidadosamente de folhas sec- 
cas e ahi se junta com alguns companheiros para dormirem durante o 
dia. O potoru-rato é com effeito um animal nocturno que não vagueia 
senão depois do por do sol. O buraco ou poiso é disposto com habilidade 
tal que escapa facilmente à vista do europeu, mesmo á curta distancia 
de dois passos; só o olhar penetrante do indigena o descobre. 

O potoru-rato é um marsupial saltador; mas pulando differe dos 
outros saltadores, dos kangurus, por exemplo, porque em vez de esten- 
der os membros posteriores ambos ao mesmo tempo, estende-os um de- 
pois do outro. Esta circumstancia em nada prejudica n'este animal a ra- 
pidez do salto que é prodigiosa. 

Alimenta-se este marsupial principalmente de tuberculos, bolbos e 
raizes que desenterra. Comprehende-se por isto quanto será prejudicial 
às plantações onde chega a penetrar. 


CAPTIVEIRO 


Existe em quasi todos os jardins zoologicos da Europa. Contenta-se 
com uma alimentação muito simples e não reclama cuidados especiaes. 


ae DE a A e ci di ii = AÊ aid TA e do A 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 451 


Quando lhe não dão ou lhe não preparam uma habitação, elle proprio 
cava um buraco que fórra de feno e de folhas seccas. 

Como animal nocturno, o potoru-rato não gosta que o perturbem 
durante o dia, não gosta que o acordem; de noite, pelo contrario, mos- 
tra-se curioso, olhando attentamente quantos se lhe approximam. De 
noite deixa-se acariciar, ao passo que de dia responde aos affagos com 
demonstrações de mao humor, chegando a morder. 

Segundo alguns auctores, o potoru-rato seria um animal excessiva- 
mente timido; segundo Brehm tal opinião é erronea, porque em quantos 
viu e observou de perto notou uma coragem muito superior à dos maio- 
res kangurus. O naturalista citado aflirma que os machos, principalmente, 
são audaciosos e maos; não temem o homem, antes o atacam impruden- 
temente quando são por elle perseguidos. Os machos velhos são ainda 
hostis para os novos, dos quaes não poucos succumbem aos maos tratos. 

É. um marsupial curioso. Mede oitenta centimetros a um metro de 
comprido e trinta centimetros de altura. Poucas vezes peza menos de 
trinta kilogrammas; o pêllo é espesso, molle, claro no ventre e castanho 
passando ora ao amarellado ora ao pardo no dorso. As orelhas, largas e 
pequenas, são de um trigueiro fuliginoso externamente e brancas por 
dentro. Os dedos são de uma côr fuliginosa e os bigodes negros. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


A terra de Van-Diemen e as costas meridionaes da Nova-Galles do 
Sul são a patria do marsupial que estamos descrevendo. 


COSTUMES 


N 


O teixugo da Australia vive nas florestas mais espessas onde cava 
uma toca que lhe serve para dormir durante o dia. É um animal no- 
cturno; e, como tal, só depois do pôr do sol é que a vida activa princi- 
pia para elle, é só então que vagueia em procura de alimentos. Estes 
consistem em folhas, raizes que desenterra e em herva dura semelhante 
ao junco e que cobre vastos espaços. 


452 HISTORIA NATURAL 


O teixugo da Australia é um animal deselegante e de movimentos 
vagarosos, embora seguros. Indifferente e estupido, raras vezes se per- 
turba; percorre o seu caminho, sem que o faça parar qualquer obsta- 
culo. Contam os indigenas que este marsupial nas excursões nocturnas 
cãe às vezes, rolando como uma pedra, ao rio cujas margens percorre, 
mas que sem se perturbar prosegue a marcha no Jeito do rio, attinge a 
outra margem e continúa como se nada lhe tivesse acontecido. Brehm diz 
que nenhum animal o eguala em obstinação; o que uma vez emprehen- 
deu, leval-o-ha a cabo, mao grado todos os obstaculos. Se tiver come- 
cado uma toca, recomeçal-a-ha cem vezes com inalteravel paciencia, se 
cem vezes lh'a obstruirem. Os colonos australianos dizem que este mar- 
supial é pacifico e que de ordinario se deixa apanhar sem dar provas 
de inquietação ou descontentamento, mas que, se se lembra de resistir, 
se torna um adversario serio, fazendo mordeduras perigosas. Brehm con- 
firma estas asserções, baseado sobre o que conhece dos costumes de um 
individuo captivo no jardim zoologico de Hamburgo. 


CAPTIVEIRO - 


Como quasi todos os animaes australianos, este supporta muito bem 
a privação de liberdade. Quando o tratam e o alimentam bem, parece 
prosperar em captiveiro. Habitua-se ao homem até ao ponto de ser pos- 
sivel deixal-o percorrer livremente a casa. A indifferença nativa que o 
caracterisa faz-lhe esquecer facilmente a escravidão e supportar sem re- 
sistencia o destino que o homem lhe impõe; nunca tenta fugir. Em Van- 
Diemen é o companheiro habitual dos pescadores; roda em torno das 
cabanas como um cão. No entanto não chega a ligar-se à nossa especie 
por laços intimos de affeição; o homem é para elle tão indifferente como 
qualquer outro ser. O que ao teixugo da Australia importa é ter alimen- 
tos em abundancia; como o homem lh'os fornece, dá-se bem com elle 
em captiveiro. | 

Na Europa alimenta-se o teixugo australiano com hervas, raizes, 
fructos e grãos; o leite é para este marsupial o alimento predilecto. É 
preciso, observa Brehm, não lhe fornecer esta substancia em grande 
quantidade por uma só vez, porque, se tal acontece, o animal procura 
tomar banho dentro do vaso. 


e > MS me RS O a SD 


E TE SO TR A Td 2 So a 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 453 


O teixugo da Australia tem-se reproduzido em captiveiro na Europa ; 
observou-se que a femea pare trez a quatro filhos e que cuida d'elles 
com a maxima ternura em quanto contidos na bolsa marsupial. 


ACCLIMAÇÃO 


Tem-se tentado em França, e com bom resultado, ao que dizem, 
acclimar o teixugo da Australia. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne d'este marsupial é tida em conta de delicada na Australia; 
a pelle é tambem ahi aproveitada. Talvez que o paladar europeu não 
julgue da mesma maneira que o indigena o sabor da carne. 


No seguinte quadro schematico resumimos as divisões estudadas da 
ordem dos MARSUPIAES: 


454 HISTORIA NATURAL 


THYLACINO CYNOCEPHALO 
| O SARCOPHILO URSINO 
A DASYURA MALHADA 
O TAPUÁ-TAFA 
O ANTECHINO DE PATAS AMARELLAS 
O MYRMECOBIO LISTRADO 
A SARIGUEIA DA VIRGINIA 
O CANCRIVORO 
O ENEIANO 
CARNIVOROS . ...... / A SARIGUEIA LONTRINA 
O PERAMELIDEO NÁSICO 

/ O PERAMELIDEO RATADO 

MARSUPIAES.... O CHEROPO SEM CAUDA 
O PETAURISTA-ESQUILO 
O TAGUAN 
O PEQUENO ACROBATA 
A PHILANDRA DO ORIENTE 

A PHILANDRA RAPOZEIRA 
"O COALA CINZENTO 


O KANGURU GIGANTE 

O KANGURU-RATO 

O POTORU-RATO 

| O TEIXUGO DA AUSTRALIA 


HERBIVOROS. ...... 


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ORNITHORINCOS 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


Estes mamiferos, bem como os echidnos de que adiante nos occu- 
paremos, são animaes extremamente curiosos e singulares, cuja colloca- 
ção taxonomica constitue ainda hoje um problema a que os naturalistas 
dão diversissimas soluções. Fazendo uma ordem áparte para os conter e 
distinguindo-os profundamente dos echidnos, distanceiamo-nos um pouco 
da maioria dos auctores que costumam collocar uns e outros como duas 
familias de uma ordem unica, a dos MONOTREMOS. Reservamos para de- 
pois do estudo parcial dos ornithorincos e dos echidnos a justificação 
do nosso procedimento, que consiste em fazer ordens onde muitos fazem 
apenas familias. É possivel que o leitor não ache sufficientemente pon- 
derosas as razões que nos determinam no caso sujeito a affastarmo-nos 
de Figuier e de Brehm; nós lembramos no entanto que em pontos liti- 
giosos de classificação é mais acceitavel dividir em nome mesmo de pe- 
quenas differenças morphologicas do que agrupar em nome de seme- 
lhanças muito geraes e diflicilmente visiveis. Em obras da indole da 
nossa, pelo menos, é o que se nos afligura mais razoavel. Talvez o ri- 
gor scientifico perca um pouco com este desmembramento, com esta di- 
visão; o leitor porém, menos familiar ao estudo profundo da historia na- 
tural, lucrará um pouco. 

No entanto reservamos para mais tarde a discussão d'este ponto; 
depois de estudados os ornithorincos e os echidnos, exporemos as opi- 
niões existentes sobre 0 arranjo taxonomico, pleiteando então a nossa. 


456 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


Os ornithorincos teem o corpo achatado, muito semelhante ao dos 
castores e das lontras e os membros muito curtos, terminados por cinco 
dedos reunidos por uma membrana palmar. As patas anteriores são 
muito fortes, muito musculosas, proprias para nadar e para cavar; a 
membrana que une os dedos é muito flexivel, muito extensivel tambem 
e pode dobrar-se para traz quando o animal cava. As patas posteriores 
recurvam-se para traz e para fóra como as das phocas e a membrana 
palmar, mais estreita que nas patas anteriores, não excede a raiz das 
unhas que são longas e aceradas. Nos individuos velhos a face inferior 
das patas é desnudada; nos novos, pelo contrario, é bem provida de 
pêllos. 

À cabeça tem uma conformação parlicularissima. É pequena, acha- 
tada e terminada por um largo bico de pato em cujo extremidade se 
abrem as narinas. À membrana cornea que cobre os dois maxillares pro- 
longa-se para traz formando uma especie de escudo que cerca a base 
do bico. Existem em cada maxilla quatro dentes corneos; na maxilla su- 
perior o primeiro da frente é comprido, fino, agudo e o ultimo largo e 
chato em forma de mollar. Os olhos, situados na parte superior da ca- 
beça, são pequenos. Perto do angulo externo dos olhos abre-se o canal 
auditivo. A lingua é carnuda, coberta de verrugas corneas; atraz apre- 
senta uma dilatação que fecha completamente a parte posterior da bocca 
no ponto em que esta cavidade communica com a pharynge. 

O bico representa o papel de um verdadeiro philtro como nos patos; 
permitte ao animal como que peneirar a agua, separar as particulas ali- 
mentares e collocal-as n'umas especies de depositos que ficam situados 
aos lados da cabeça e onde o animal arrecada o que encontra quando 
mergulha. 

O macho apresenta, além dos attributos que lhe são communs a elle 
e à femea, um apparelho particular composto de uma glandula, de um 
canal excretor e uma unha ou esporão. 

Descrevamos. 

A glandula encontra-se situada sob um musculo cuticular, na face 
externa do femur; é grande, triangular, convexa superiormente, lisa, 
composta de diferentes lobulos, revestida por uma membrana fina, mas 
firme; é de uma côr acastanhada. Nasce d'ella um pequeno canal de pa- 
redes espessas, largo ao principio, que desce por traz da coxa e da perna 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 457 


e que adelgaça para terminar n'um pequeno sacco situado na excavação 
da pata. Este sacco, de quatro a cinco millimetros de diametro, é um 


“ reservatorio no qual é se accumula o producto segregado. Da parte media 


do sacco parte um outro canal muito pequeno e membranoso que commu- 
nica com o orgão da inoculação, que não é mais do que um esporão, 
grosso, conico, ponteagudo, caniculado e preso ou ligado ao tarso. Com- 
põe-se de uma lamina cornea e de um osso. O ourifício está no vertice 


sobre a face convexa. 
Segundo Varreaux, o esporão serviria para facilitar o acto sexual. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 459 


ORNITHORINCOS EM ESPECIAL 


A ordem dos ornithorincos comprehende um só genero e este uma 
especie unica. 


O ORNITHORINCO PARADOXAL 


É no dizer de Brehm e de Figuier o mais extraordinario dos mami- 
feros vivos. Bennett fez uma viagem à Australia expressamente para 0 
observar. O que se sabia até ao tempo d'esta viagem era destituido de 
precisão; os costumes conheciam-se mal, por informes vagos. Sabia-se 
que o ornithorinco vivia na agua e que os indigenas o perseguiam com 
ardor e lhe comiam a carne com prazer. À estes dados deficientes jun- 
tavam-se phantasias, descripções fabulosas dos indigenas. Dizia-se, por 
exemplo, que o ornithorinco punha ovos e os chocava como os patos; 
fallava-se das propriedades venenosas do esporão. 

A primeira viagem de Bennett realisou-se em 1832 e uma segunda 
em 1838; o.resultado das observações feitas foi em 1860 consignado 
em livro especial, publicado em Londres; é o que ha de melhor e de 
mais completo a consultar. Brehm extrata d'ahi o que ha de mais impor- 
tante e de mais apropriado para dar uma idéa do animal. 

Os colonos dão ao ornithorinco paradoxal o nome de toupeira da 
agua. 


aa ie dc id e GMs 


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460 HISTORIA NATURAL 


CARACTERES 


Mede meio metro, pouco mais ou menos, de extensão, incluida a 
cauda que tem approximadamente quatorze centimetros. O macho é 
maior que a femea. 

E coberto de sêdas espessas, grosseiras, de um castanho escuro 
com reflexos de branco argenteo. Por baixo d'estas sêdas ha um pêéllo 
fino, pardo, semelhante ao da phoca. Os pêllos do peito e do ventre são 
finos, sedosos, curtos, mas espessos. As sêdas são sempre duras, largas 
e lanciformes. O manto assim formado convem admiravelmente à vida do 
animal. 

A côr é variavel; o dorso, por exemplo, é ora claro, ora escuro, O 
que primitivamente fez pensar aos naturalistas n'uma multiplicidade de 
especies. As patas são de um castanho arruivado. A base do bico é de 
um pardo escuro em toda a volta, apresentando numerosos pontos cla- 
ros. À extremidade da maxilla superior é côr de carne ou ruiva des- 
maiada; a da maxilla inferior é branca ou manchada. 

Os animaes novos distinguem-se pelos bellos péllos finos e argen- | 
teos da face inferior da cauda e dos membros; pelo attrito, estes pêllos 
cáem e nos individuos velhos já se não encontram. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


À área de dispersão do ornithorinco paradoxal é muito limitada, 
restricta. Encontra-se apenas na costa oriental da Nova-Hollanda, nos ri- 
beiros e nas aguas tranquillas da Nova-Galles do Sul e no interior das 
terras. Muito commum em alguns d'estes pontos, elle é raro n'outros; 
parece faltar a norte e a sul da Australia. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 461 


COSTUMES 


Pela natureza da organisação que o caracterisa, o ornithorinco pa- 
radoxal procura, sempre que ha logar para preferencias, as margens 
dos pequenos cursos d'agua ou dos lagos em que crescem numerosas 
plantas aquaticas e onde existe constantemente uma sombra projectada 
por arvores copadas. É n'estes pontos que estabelece domicilio. A pri- 
meira toca que viu Bennett era aberta sobre uma riba escarpada, em 
meio das hervas e perto do nivel da agua. Essa toca era composta de 
um corredor sinuoso de seis metros de extensão, approximadamente, e 
de um vasto compartimento em que o corredor ia terminar. Plantas aqua- 
ticas seccas tapetavam toda a toca. 

De ordinario, cada toca offerece duas aberturas, uma superior e ou- 
tra inferior ao nivel d'agua. A extensão do corredor ou corredores é de- 
terminada pela necessidade de collocar o aposento principal fóra do al- 
cance das aguas; é por isso que ao lado de corredores de seis metros 
apparecem outros de doze e mesmo de dezesete. 

Os habitos de vida do ornithorinco paradoxal teem mais de noctur- 
nos que de diurnos; não obstante é impossivel classificar o animal de 
nocturno, por isso que muitas vezes procura alimentos durante o dia. 

Quando a agua é limpida seguem-se com facilidade os movimentos 
do ornithorinco, ora mergulhando ora emergindo para respirar. No en- 
tanto é raro encontrar o animal n'estas condições; de ordinario procura 
a agua turva, os logares proximos da margem e onde .a vasa agitada, 
toldando o liquido, o põe a coberto de observações perigosas. Parece 
que o instincto o aconselha no sentido da reserva e da prudencia. 

À alimentação principal do ornithorinco compõe-se de molluscos e 
de pequenos insectos aquaticos. 

Ácerca da reproducção do ornithorinco existiam, antes das viagens 
de Bennett, as mais disparatadas informações. Dizia-se muito a sério que 
a femea punha ovos como fazem as aves; d'aqui a resistencia justificada 
dos naturalistas antigos a collocarem o ornithorinco na classe dos mami- 
feros. Bennett destruiu todas as fabulas: descobrindo mamas ao animal, 
reconheceu desde logo que se tratava de um viviparo e procurou pa- 
cientemente saber como a parturição se realisava e qual o modo por que 
os filhos eram alimentados. Esta ultima investigação não era, como à pri- 
meira vista poderá parecer, ociosa, porque, embora o animal apresen- 
tasse mamas, e d'ahi se devesse concluir que aleitava os filhos, não dei- 


462 HISTORIA NATURAL 


xava de ser um problema saber o modo como esse aleitamento se fazia, 
visto que as mamas eram desprovidas de mamillos e o naturalista inglez 
não lográra. extrair d'ellas qualquer quantidade de leite. Segundo as 
observações de Bennett, de Varraux e d'outros naturalistas distinctos, o 
parto realisa-se no ornilhorinco de um modo perfeitamente analogo ao 
de todos os mamiferos; os filhos são expulsos vivos do utero materno. 
Nunca ninguem viu um ornithorinco mamar, nem isso parece possivel 
pela circumstancia de não existirem mamillos nas tetas. A crêr nas in- 
formações tidas como mais exactas, o aleitamento produzir-se-hia de um 
modo inteiramente curioso e singularissimo: a femea, nadando, iria len- 
tamente derramando o leite na agua e os filhos, seguindo-a de perto, 
il-o-hiam sorvendo. 

Das observações de Bennett resulta que o ornithorinco paradoxal 
não pode viver muito tempo debaixo d'agua. Esta conclusão enuncia pre- 
cisamente o contrario do que em outro tempo se acreditou geralmente. 
O animal quando mergulha precisa de tomar pé; é por isso que intro- 
duzindo o ornithorinco n'um meio tunel d'agua, elle morre. O ornitho- 
rinco forçado a estar quinze minutos sob a agua, retira-se della morto 
ou quasi morto. Tudo isto prova que se não pode dar ao animal a desi- 
gnação de aquatico. 


CAPTIVEIRO 


Eis o que escreveu Bennett ácerca de um ornithorinco que elle re- 
duziu ao captiveiro: «No momento em que foi apanhado na toca, o mêdo 
fez-lhe expulsar os excrementos que espalhavam em torno um cheiro dos 
mais fetidos. Não fez ouvir um unico som, nem mesmo procurou defen- 
der-se; apenas me arranhou um pouco a mão no momento em que ten- 
tou fugir. Era uma femea adulta; os pequenos olhos brilhavam-lhe, abria 
e fechava alternativamente os ouvidos e pude observar que o coração 
lhe batia precipitadamente. Pareceu habituar-se rapidamente à sua sorte, 
com quanto ainda tentasse vagamente escapar. Eu não podia segurar este 
ornithorinco pelo manto que era de pêllo muito molle. Metti-o dentro de 
uma pipa cheia de vasa, de hervas e de agua. Tentou sair; vendo porém 
que eram baldados todos os seus esforços n'este sentido, resignou-se, 
ficou socegado, deitou-se e pareceu adormecer. Passou comtudo a noite 
muito agitado, arranhando constantemente com as patas anteriores como 


DE O = 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 463 


se procurasse cavar uma toca. No dia seguinte, de manhã, vi-o profun- 
damente adormecido, enrolado sobre si mesmo, com a cabeça encostada 
contra o peito; quando o acordei, rosnou como um pequeno cão. Passou 
o dia inteiro tranquillamente; à noite porém, fez tentativas para evadir-se 
e rosnou sem cessar. Os europeus meus visinhos, que muitas vezes ti- 
nham visto o ornithorinco morto estavam agora encantados de vêr um 
exemplar vivo. Era esta, creio eu, a primeira vez que um europeu to- 
mára posse de ornithorinco e observára uma toca. 

«Quando parti, colloquei o animal n'uma gaiola pequena com hervas 
e levei-o comigo. Para distrail-o, prendi-lhe a uma pata uma correia 
comprida e colloquei-o perto da agua. Penetrou desde logo no liquido, 
nadando contra a corrente e procurando os logares em que mais abun- 
davam as plantas aquaticas. Depois de ter nadado sufficientemente, vol- 
tou à margem, deitou-se na herva e principiou a catar-se e a alisar o 
péllo com verdadeira voluptuosidade. Servia-se para isso das patas pos- 
teriores, dobrando o corpo com flexibilidade extraordinaria. Tudo isto 
durou pouco mais ou menos uma hora. Depois d'este trabalho de aceio, 
o ornithorinco parecia mais bello e mais brilhante do que antes. Dei- 
xou-se então acariciar por mim. 

«Alguns dias depois, fil-o tomar um segundo banho, mas d'esta vez 


“em agua limpida, onde podia seguir-lhe os movimentos. Mergulhou até 


ao fundo da agua, demorou-se ahi alguns instantes e voltou à superficie. 
Nadava ao longo das margens e servia-se do bico como de um orgão 
delicadissimo de tacto. Parecia encontrar com que nutrir-se, porque, de 
cada vez que retirava o bico da agua, principiava a mover as maxillas 
lateralmente como quando come. Não perseguiu os insectos que se agi- 
tavam em torno d'elle, ou porque não os via, ou porque dava a preferen- 
cia aos alimentos que ia encontrando. Depois de comer, deitou-se na 
herva que cobria a margem, com o corpo meio dentro, meio fóra da 
agua; catou-se e alisou, como da primeira vez, o pêllo. Voltou à prisão 
forçado e com um visivel desprazer, não socegando um momento. Toda 
a noite o ouvi arranhando a gaiola, que de manhã fui encontrar vasia. 
O ornithorinco tinha consiguido destacar uma taboa e evadir-se. Tor- 
nou-se assim impossivel toda a observação ulterior. 

O mesmo naturalista, referindo-se a uns pequenos ornithorincos 
que apanhou, continúa: «Deixava-os livremente correr no meu quarto, 
sem inconveniente. A minha pequena familia de ornithorincos viveu al- 
gum tempo e eu pude observar bem os seus costumes. Muitas vezes pa- 
reciam sonhar que andavam nadando e moviam os membros anteriores 
de um modo apropriado. Se os collocava no chão durante o dia, procu- 
ravam um logar escuro para se deitarem e dormirem; preferiam no en- 
tanto o logar onde habitualmente estavam. Outras vezes abandonavam 


464 HISTORIA NATURAL 


por capricho a antiga cama e iam deitar-se n'outro logar escuro. Quando 
estavam profundamente adormecidos, era possivel tocal-os sem que des- 
perlassem. 

«Á tarde os meus dois ornithorincos favoritos comiam a sua sopa e 
principiavam a brincar como cães, attacando-se com o bico, erguendo 
as patas posteriores, trepando um pelo outro, etc. Se um d'elles caía, 
em vez de se erguer e de continuar o combate, deixava-se ficar tran- 
quillamente deitado, coçando-se, em quanto o companheiro esperava pa- 
cientemente que elle recomeçasse a brincar. Eram muito vivos; os pe- 
quenos olhos brilhavam-lhes e as orelhas abriam-se e fechavam-se alter- 
nativamente e rapidamente. Não gostavam que se lhes deitasse a mão. 

«Os olhos, por isso que se achavam collocados muito superiormente, 
não podiam ver para diante e acontecia que os animaes batiam muitas 
vezes de encontro aos objectos e os deitavam por terra. Baixavam repe- 
tidamente a cabeça para verem o que em volta d'elles se passava. Ás 
vezes brincavam comigo; eu acariciava-os, fazia-lhes cocegas e elles da- 
vam pronunciados signaes de contentamento. Mordiam-me brandamente 
os dedos e comportavam-se exactamente como pequenos cães. Quando 
tinham o pêllo humido, alisavam-o, penteavam-o, como os patos fazem 
às pennas. Tornavam-se então mais bellos e mais brilhantes. Se os col- 
locava n'um vaso profundo, cheio d'agua, procuravam rapidamente sair 
d'elle; mas se a agua era pouco alta e no vaso havia hervas, então dei- 
xavam-se ficar, parecendo estarem muito à vontade. Recomeçavam a 
brincar na agua; quando se cançavam, deitavam-se sobre a herva e 
anediavam-se. Uma vez limpos e aceiados, corriam um pouco pelo 
quarto e chegavam por, fim ao logar em que habitualmente dormiam. 
Raras vezes se conservavam mais de dez a quinze minutos na agua. 
Durante a noite faziam-se constantemente ouvir, parecendo que brinca- 
vam; de manhã encontravam-se sempre tranquillamente adormecidos. 

«Estive tentado, ao principio, a consideral-os animaes nocturnos; 
convenci-me porém rapidamente da inexactidão d'este modo de ver, por 
isso que os ornithorincos repousavam tanto de dia como de noite e a ho- 
ras muito diferentes. Ao pôr do sol pareciam mais vivos, mais dispos- 
tos ao movimento; e isto acontecia tanto com os novos como com os ve- 
lhos animaes. Mas tambem é certo que velavam ou dormiam de dia ou de 
noite, indifferentemente. Muitas vezes dormia um em quanto o outro cor- 
ria; O macho era às vezes o primeiro a abandonar o ninho, ficando a 
femea a dormir, vindo deitar-se, depois de fatigado de correrias, no mo- 
mento em que a femea despertava para sair. Algumas vezes tambem 
despertavam simultaneamente. Uma tarde em que os dois andavam cor- 
rendo, a femea soltou um grito, como para chamar a attenção do com- 
panheiro, que se escondera n'um canto qualquer; respondeu-lhe um 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 465 


grito semelhante e a femea correu immediatamente ao logar donde elle 
partia.» ! Para treparem, os ornithorincos encostam o dorso contra uma 
parede e as patas contra um objecto proximo, subindo então rapidamente, 
graças aos vigorosos musculos dorsaes e às unhas agudas. 


ACCLIMAÇÃO 


Em captiveiro os ornithorincos alimentam-se facilmente. Bennett dava 
aos que possuiu pão humedecido em agua, ovos e carne. 

Teem sido até hoje infructiferas todas as tentativas feitas no sentido 
de conservar vivos na Europa alguns ornithorincos. Retirados do paiz 
natal, definham, perdem o brilho do péllo, adoecem e dentro de pouco 
tempo morrem. 


USOS E PRODUCTOS 


A carne do ornithorinco serve de alimento na Australia. O paladar 
de um europeu dificilmente se lhe habituaria, porque a impregna um 
forte e penetrante cheiro de secreção oleosa. Como justamente observa 
Brehm, os australianos comem toda a ordem de alimentos, desde os mais 
delicados até aos mais repugnantes; não causa por isso estranheza que 
os satisfaça a carne do ornithorinco paradoxal. 


—— e» E am 


! Citado por Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 292. 
VOL. UI 30 


Dest decido a A Cd a 


—o— oe (O = ED 9-—— 


ECHIDNOS 


CONSIDERAÇÕES GERAES 


À proposito da formação de uma ordem para conter os echidnos que 
muitos naturalistas consideram ao lado dos ornithorincos como uma sim- 
ples familia dos monotremos, relembramos ao leitor as observações fei- 
tas nas paginas precedentes. Ahi dissemos e n'este logar repetimos que 
reservamos para depois do estudo parcial de cada um dos grupos a jus- 
tificação do nosso procedimento. 


CARACTERES 


Os echidnos teem o corpo pezado, refeito, um tanto achatado, o 
pescoço curto continuando-se insensivelmente com a cabeça e com o 
tronco, a cabeça alongada, relativamente pequena e terminada por uma 
especie de bico fino, alongado, cylindrico e em cuja extremidade se en- 
contra um ourifício boccal muito pequeno e estreito. A maxilla superior 


excede um pouco nos echidnos a inferior; as narinas são pequenas e 
x 


468 HISTORIA NATURAL 


ovaes. A pelle nua que reveste as narinas é tenra e gosa de uma certa 
mobilidade. 

Os olhos são pequenos, encovados, lateraes e munidos de uma 
membrana subjacente ás palpebras e analoga à das aves. O ouvido não 
apresenta pavilhão exterior, nem mesmo rudimentar. O canal auditivo 
externo abre-se na parte posterior da cabeça; é largo internamente, mas 
a abertura de entrada reduz-se a uma fenda em forma de S, coberta por 
uma prega cutanea que o animal abre e fecha quando quer. 

O tronco é superiormente coberto de picos. Os membros são curtos, 
fortes, espessos e todos da mesma extensão; os posteriores são forte- 
mente recurvos para fóra e para traz e os exteriores rectos. Todas as 
patas teem cinco dedos, de pouca mobilidade, ligados por pelle até à 
origem das unhas, que são proprias para cavar e portanto muito com- 
pridas e muito fortes, principalmente as das patas posteriores. No macho 
as patas de traz apresentam um esporão corneo de um centimetro de 
comprido, pouco mais ou menos, forte, ponteagudo, tendo um ourificio 
e communicando com uma glandula particular, do volume approximado 
de um grão de hervilha. Este esporão, considerado como uma arma de- 
fensiva do animal, tem sido injustificadamente comparado ao dente vene- 
noso das serpentes. 

A cauda dos echidnos é perfeitamente rudimentar e apenas se re- 
conhece pela forma e disposição dos picos. À lingua, coberta à raiz de 
verrugas espinhosas, ponteagudas, dirigidas para traz, pode sair seis 
a oito centimetros fóra das maxillas; é coberta de um inducto viscoso 
segregado por glandulas salivares volumosas e que é de uma grande 
utilidade aos animaes d'este grupo para apanharem e reterem as sub- 
stancias alimentares. A abobada palatina apresenta sete ordens trans- 
versaes de pequenas escamas corneas, duras, ponteagudas, dirigidas 
para traz, correspondendo ás papilas linguaes e substituindo dentes. As 
glandulas mamarias apresentam cerca de seiscentos canaes excretores. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 


Habitam o continente australiano. 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 469 


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MAMIFEROS EM ESPECIAL 471 


ECHIDNOS EM ESPECIAL 


À ordem comprehende um só genero e esta uma especie unica. 


O ECHIDNO ESPINHOSO | 


A este animal foi primitivamente dado o nome de formigueiro espi- 
nhoso, que era em verdade muito significativo, mas que offerecia o in- 
conveniente fundamental de permiltir a confusão d'este mamifero com 
os formigueiros. Os colonos da Australia denominam-o um pouco impro- 
priamente ouriço, attendendo ao manto erriçado de espinhos agudos e 
perfurantes. 


CARACTERES 


O echidno espinhoso adulto mede approximadamente meio metro de. 
extensão e dezeseis centimetros de altura; a cauda tem, quando muito, 
quatorze millimetros. Os dois sexos differem apenas pelo esporão, cuja 
presença é exclusiva ao macho. Os individuos novos distinguem-se dos 
que o não são pela existencia de picos mais curtos. 


4792 HISTORIA NATURAL 


Os picos cobrem toda a parte superior do corpo, a partir do occi- 
pital; são muito espessos e pouco mais ou menos de egual comprimento 
até às nadegas. N'este ponto separam-se e formam dois feixes entre os 
quaes se encontra a cauda. Os do dorso são um pouco mais curtos que 
os dos lados do tronco. Uns e outros, não excedendo trez a seis centi- 
metros de comprido, são cercados na raiz por péllos curtos, de quinze 
millimetros de extensão e que se não vêem senão afastando os picos. 
Taes pêllos existem apenas na cabeça, nos membros e no ventre; são 
rijos, sedosos e de um castanho escuro. Os picos são brancos amarella- 
dos, de ponta negra. A pupila é negra, a iris azul e a lingua de um ver- 
melho vivo. 


DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA 
O echidno espinhoso habita todo o continente australiano. 
COSTUMES 


Habita mais as montanhas do que as planicies; prefere as florestas 
seccas onde cava tocas por entre as raizes das arvores. Subindo nas 
montanhas, attinge uma altura de mil metros acima do nivel do mar. 

O echidno espinhoso é um animal de habitos nocturnos; como tal, 
occulta-se durante todo o dia e só depois do sol posto vagueia em pro- 
cura de alimentos. Marcha muito vagarosamente e baixando sempre a 
cabeça até junto do solo. Quando cava, o que, segundo Brehm, faz ma- 
ravilhosamente, os seus movimentos são vivos e muito rapidos. Trabalha 
simultaneamente com as quatro patas e desapparece n'um momento de- 
baixo da terra. 

Na obscuridade é dificil vêr o echidno, porque a côr geral deste 
mamifero confunde-se com a do solo. a 

O echidno espinhoso não cava sómente para fazer tocas, mas ainda 
para encontrar alimentos; examina cuidadosamente cada fenda, cada bu- 
raco e desde que vê ou fareja qualquer substancia que lhe sirva para 
comer, cava para alargar o ourificio e apanhar essa substancia. O ali- 
mento principal do mamifero que estamos estudando, consiste em vermes 


ss 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 473 


e em insectos, especialmente formigas e termes. Procura-os com a ex- 
tremidade do focinho ou bico que é muito sensivel e que parece mais 
um orgão de tacto que de olfação. Para apanhar os insectos de que se 
alimenta, faz como os formigueiros: estende a lingua e recolhe-a preci- 
pitadamente desde que a ella adherem os animalculos, presos na visco- 
sidade do orgão. Como os formigueiros, elle ingere tambem areia e pe- 
quenos fragmentos de madeira secca; no estomago encontram-se-lhe 


- sempre estas substancias. 


O echidno espinhoso, sentindo-se perseguido, enrola-se, como o ou- 
riço cacheiro, e torna-se então difficil apanhal-o, porque os picos são 
muito acerados, agudissimos. N'estas condições, o melhor modo de o 
apanhar é segural-o pelas patas posteriores. Quando o animal se tem re- 
colhido a uma toca ou buraco de alguns centimetros apenas de profun- 
didade, é difficillimo tiral-o para fóra, porque, à maneira dos tatús, elle 
agarra-se com as fortes unhas ás paredes e applica contra ellas os pi- 
cos. O animal faz o mesmo em relação a todas as cavidades pequenas. 
Diz Bennett: «Deram-me um dia um echidno. Metti-o dentro de uma caixa 
de herborisação para melhor podel-o transportar; chegando porém a 
casa, vi que elle adherira ao fundo da caixa como um caracol a uma pe- 
dra. Não se via mais que um montão de picos de tal modo acerados que 
era impossivel alguem tocal-os sem se ferir. Eu não podia destacal-o da 
caixa; foi-me preciso introduzir-lhe lentamente uma espatula debaixo do 
corpo e levantal-a depois com força. O echidno pode: ter-se na mão que 
é perfeitamente inoffensivo.» 1 

Os indigenas acreditam que o macho fere os inimigos com o esporão 
e lança na ferida um liquido venenoso; as observações dos naturalistas 
provaram que era absolutamente falsa uma tal asserção. O echidno de- 
fende-se como o ouriço cacheiro, enrolando-se em esphera ou, se tem 
tempo para isso, cavando na terra uma toca em que se occulta. No en- 
tanto é frequentemente victima do thylacino que o devora, mesmo com 
os picos. 

Quando inquieto, o echidno faz ouvir um ligeiro grunhido. 

De todos os sentidos d'este mamifero os mais desenvolvidos são a 
vista e o ouvido; todos os outros são obtusos. A intelligencia é rudi- 
mentar. 

Sabe-se muito pouco relativamente à reproducção. A femea dá à 
luz em Dezembro alguns filhos que aleita durante muito tempo. 

Os naturalistas, com quanto o não affirmem seguramente, sentem-se 
todavia dispostos a crêr que o echidno espinhoso tem um somno hyber- 


! Citado por Brehm, Loc. cit., vol. 2.º, pg. 286. 


474 HISTORIA NATURAL 


nal. Fundam-se para dar este facto como provavel em que raras vezes 
se encontra o animal durante os mezes de seccura e em que quando a 
temperatura abaixa, ainda mesmo ligeiramente, elle câe n'uma especie 
de lethargia. 


CAPTIVEIRO 


O que sabemos da vida do echidno captivo é principalmente devido 
a Garnot, Quoy e Gaimard. Estes ultimos observadores possuiam um ma- 
cho vivo em Hobarttown. Parecia insensivel e estupido. Conservava-se 
todo o dia occulto, com a cabeça entre as patas, com os picos erriçados, 
embora não enrolado, e procurava os logares obscuros. Os esforços que 
fazia para sair da gaiola em que o haviam collocado, demonstravam o 
seu amor pela liberdade. Quando o depunham n'uma caixa cheia de 
terra, cavava, servindo-se das patas e do focinho, e dentro em dois mi- 
nutos, ou ainda em menos tempo, escondia-se inteiramente. Mais tarde 
principiou a lamber os alimentos que lhe davam e acabou por comer 
uma especie de pasta semi-liquida, feita com agua, farinha e assucar. 
Morreu em consequencia de um banho excessivamente prolongado. 

Garnot comprou um echidno em Port-Jakson a um homem que lhe 
affirmou tel-o alimentado durante dois dias sómente com vegetaes e que 
lhe afirmou que o animal comia em liberdade pequenos ratos, etc. Fun- 
dado nestes dados, Garnot fechou o echidno dentro de uma caixa com 
terra e deu-lhe legumes, sopa, carne fresca e moscas; 0 animal porém 
não tocou em nenhuma d'estas substancias. Limitava-se a beber agua 
com extraordinaria avidez; viveu assim, afirma Brehm, durante trez me- 
zes, até ser transportado a Mauricia. Ahi deram-lhe formigas e minhocas, 
que se recusou tambem a comer; parecia gostar muito do leite de coco. 
Esperava-se trazel-o à Europa, mas foi encontrado morto trez dias antes 
da partida. 

Este curioso mamifero dormia não menos de vinte horas por dia; 
no outro tempo, de resto bem diminuto, vagueiava. Quando, cami- 
nhando, encontrava qualquer obstaculo, procurava affastal-o e não se 
desviava senão depois de perfeitamente convencido da inutilidade de to- 
dos os seus esforços. 

No quarto em que dormia, escolhera um canto para depositar n'elle 
os excrementos; um outro canto, do lado mais escuro, era occupado por 
uma caixa onde elle repousava. Muitas vezes parecia impôr-se uns de- 
terminados limites, caminhando por aqui e por além sem nunca os ultra- 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 475 


passar. Caminhava com a cabeça baixa; c embora a marcha parecesse 
penosa, é certo que percorria doze a quatorze metros por minuto. O na- 
riz duro e movel parecia servir-lhe de guia. 

Para escutar abria os ouvidos. Era affeiçoado a caricias, mas muito 
timido; ao mais ligeiro ruido enrolava-se n'uma bola, como fazem os ouri- 
ços cacheiros. Quando perto d'elle se punha um pé no sobrado, só pas- 
sado muito tempo depois de dissipado o ruido assim feito é que come- 
cava a desenrolar-se. 

Um certo dia deixou de passeiar; Garnot foi buscal-o ao canto em 
que costumava deitar-se e sacudiu-o. Movia-se tão pouco, tão lentamente 
que parecia moribundo; Garnot collocou-o ao sol e friccionou-lhe o ven- 
tre com um panno quente, retomando o echidno rapidamente a antiga 
alegria. Mais tarde conservou-se quarenta e oito horas, depois setenta e 
duas e por fim oitenta sem se mover; mas ninguem lhe perturbou o 
somno. Só se tornava verdadeiramente activo: quando acordava esponta- 
neamente; se o despertavam, recaía na somnolencia primitiva. Ás vezes 
vagueiava de noite, mas tão silenciosamente que ninguem o perceberia 
se não acontecesse, como acontecia, de vir bater de encontro ás pernas 
do dono. 

O echidno quando novo alimenta-se perfeitamente com leite; cres- 
cendo porém, e desde que os picos principiam a apparecer, reclama ou- 
“tro genero de alimentação. É preciso então deixal-o ir de quando em 
quando até um formigueiro ou dar-lhe branco do ovo coagulado com 
uma certa quantidade de areia addiccionada. 

É provavel, diz Brehm, que ainda vejamos um dia o echidno espi- 
nhoso na Europa, por isso que os mamiferos de somno hybernal suppor- 
tam bem as longas viagens. 


USOS E PRODUCTOS 


Os australianos assam o echidno com a pelle, como fazem os bohe- 
mios ao ouriço, e comem-o; os colonos europeus aflirmam que, assim 
preparado, é um prato excelente. É esta a unica utilidade conhecida do 
echidno espinhoso. 


476 HISTORIA NATURAL 


Alguns naturalistas teem admittido ainda uma outra especie, o echi- 
dno sedoso. No entanto os modernos observadores não reconhecem tal 
especie, limitando-se a fazer d'esse grupo uma simples variedade. 


Os ornithorincos e echidnos que acabamos de estudar, são, como o 
leitor viu, singulares animaes cuja collocação taxonomica na vasta escala 
zoologica tem sido e é ainda hoje objecto de controversias entre os 
observadores e naturalistas mais distinctos. A razão d'estas controver- 
sias, a plena Justificação d'ellas encontra-as facilmente quem leu os ca- 
racteres morphologicos e os habitos de vida de uns e outros d'estes ma- 
miferos. Elles foram com effeito alternativamente incluidos nas ordens | 
dos desdentados e dos marsupiaes e posteriormente relacionados sob a 
designação commum de monotremos ou ornithodelphos. 

Nós, reconhecendo inteiramente a existencia de caracteres communs 
aos ornithorincos e echidnos, separamol-os em ordens em vez de fazer- 
mos d'elles simples familias de uma ordem unica, porque nos pareceu 
que sob o ponto de vista da vulgarisação, que é O Nosso, os caracteres 
morphologicos e dynamicos que os distinguem são porventura mais nu- 
merosos e mais facilmente reconheciveis que aquelles que os asseme- 
lham. Com efeito, ao lado de qualidades que tendem a collocar ornitho- 
rincos e echidnos n'uma unica ordem, qualidades que abaixo estudamos, 
ha outras, senão mais importantes, pelo: menos mais apreciaveis, mais 
visiveis que tendem, pelo contrario, a separal-os. N'este ultimo caso es- 
tão, por exemplo, a natureza do manto, a forma do bico, o aspectô ge- 
ral do corpo, o modo de aleitamento, a natureza do terreno habitado e 
ainda e sobretudo o genero de vida. É o que já vimos. O manto dos or- 
nithorincos é de um pêllo sedoso, o dos echidnos de picos agudos, pe- 
netrantes, como o dos ouriços; o bico dos ornithorincos é largo e acha- 
tado, como o dos patos, o dos echidnos estreito e arredondado; o aspe- 
clo dos ornithorincos é de patos a que alguem tivesse tirado as pennas 
para as substituir por péllos e tivesse collocado quatro membros em vez 
de dois; o aspecto dos echidnos é o de ouriços cacheiros, com que à 
primeira vista se seria tentado a confundil-os; o modo por que os orni- 
thorincos aleitam os filhos é verdadeiramente excepcional na classe dos 
mamiferos, o que se não dá com os echidnos; os ornithorincos procuram 
de preferencia os logares humidos, a vasa, as visinhanças dos cursos 
d'agua, ao passo que os echidnos buscam os terrenos seccos, os logares 
altos, as florestas nas montanhas; finalmente uns, os ornithorincos, teem 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 477 


habitos aquaticos e alimentam-se principalmente de vermes e molluscos, 
em quanto que os outros, os echidnos, teem habitos de vida subterra- 
nea e preferem a toda a alimentação as formigas e os termes. Estes ca- 
racteres distinctivos, numerosos e importantes, pesaram sobre o nosso 
espirito, sollicitando-nos no sentido de formarmos duas ordens distinctas 
onde outros vêem apenas familias de uma ordem unica. N'um ponto em 
que se não chegou ainda a uma conclusão definitiva e em que se deba- 
tem opiniões, ninguem estranhará a apparição de uma outra, distincta 
das existentes, parta ella d'onde partir, seja qual fôr, auctorisada ou 
obscura, a sua origem. Demais, não esqueça o leitor que, tendo em toda 
a conta o rigor scientifico, nos propomos sobretudo vulgarisar. Dada a 
unanimidade de convicções dos naturalistas sobre os logares dos orni- 
thorincos e echidnos, ao auctor d'este despretencioso trabalho restava 
sómente seguir o que estava decidido, acatar o que se resolveu no su- 
premo tribunal da sciencia, onde os juizes são—os grandes observado- 
res e as provas—os documentos vivos, a propria natureza. Não exis- 
tindo porém uma tal unanimidade, o auctor não tinha decisões a acatar 
e julgou-se auctorisado pelas razões acima expostas a dividir em duas 
ordens os ornithorincos e echidnos. 

Como este não seja porém o modo de ver de muitos naturalistas 
que, em vez de separarem, approximam os mamiferos em questão, para 
que o leitor avalie por si qual a opinião mais justa, sentimo-nos obriga- 
dos a estabelecer os caracteres da ordem dos monotremos ou, como dizia 
Blainville, dos ornithodelphos, em que Figuier e Brehm agrupam orni- 
thorincos e echidnos. 


OS MONOTREMOS OU ORNITHODELPHOS 


Brehm antes de apresentar os caracteres d'esta ordem, explica a 
dificuldade em que se teem visto os naturalistas para chegar a determi- 
nal-a. As palavras com que o faz, envolvendo uma nota justissima sobre 
a fauna australiana, merecem ser transcriptas: «Os monotremos repre- 
sentam a Australia no que ella tem de mais singular e independente. A 
descoberta da America alargou consideravelmente o quadro da zoologia ; 
mas nunca os naturalistas se viram em difficuldade para classificar sys- 


478 HISTORIA NATURAL 


tematicamente os animaes d'esta parte do mundo, por isso que as suas 
formas se não affastavam das que caracterisam os do antigo continente. 
Não acontece o mesmo relativamente à Australia. Os marsupiaes já nos 
forneceram uma prova do que aflirmamos e comtudo não são elles ainda 
assim os seres mais estranhos d'estas regiões.» * O auctor tinha em 
vista n'estas ultimas palavras referir-se aos monotremos, por isso que 
em seguida cita as palavras seguintes de Giebel: «Entre os animaes 
extraordinarios, são os monotremos os mais singulares; todas as irregu- 
laridades que encontramos nos desdentados vamos vêl-as de novo nesses 
mamiferos, mas n'um grao muito mais alto.» 

Brehm continúa ainda: «Quando se lança a vista sobre um ornitho- 
rinco ou sobre um echidno, pergunta-se desde logo e naturalmente a que 
classe pertencerão; não é pois de admirar que as primeiras pelles im- 
portadas para a Inglaterra fossem attribuidas à phantasia de um char- 
latão. Appareciam pelles de toupeira com bicos de patos e só com diffi- 
culdade e com repugnancia é que se tornou possivel admittir a idéa de 
que taes sêres existiam realmente.» ? 

Os monotremos teem dos caracteres exteriores de mamiferos apenas 
a pelle ou o manto; nas restantes propriedades morphologicas externas 
separam-se inteiramente de todos os outros representantes da grande 
classe. Um bico corneo substitue n'elles a bocca, e os orgãos genito-uri- 
narios vão dar a um ourificio unico, uma cloaca, como nas aves. Por 
esse ourificio commum se evacuam a urina, os excrementos e os produ- 
ctos de geração. O nome de monotremos dado aos ornithorincos e echi- 
dnos por E. Geoffroy Saint-Hillaire exprime esta particularidade de orga- 
nisação, porque, derivado de dois vocabulos gregos, significa um buraco 
unico. Esta disposição encontra-se tambem em alguns reptis. 

Os monotremos assemelham-se aos marsupiaes na conformação dos 
ossos da bacia; mas não teem como estes a bolsa marsupial, nem tra- 
zem comsigo os filhos. Não podem pois considerar-se uma ramificação 
dos marsupiaes, como alguns auctores teem pretendido. Dos desdentados 
approximam-se pelo caracter negativo da ausencia dos dentes. 

Figuier escreve tambem a proposito dos monotremos: «Não existem 
nos seres organisados as divisões nitidamente estabelecidas que os na- 
turalistas imaginaram para facilitar os estudos. Na creação tudo se en- 
cadea, tudo se liga. Os seres passam insensivelmente, sem hiatos, da 
organisação mais simples à mais complicada, da mais grosseira à mais 
delicada. A natureza faz as transições com uma arte infinita; suavisa por 


1! Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 283. 
2 Brehm, Obr. cit., vol. 2.º, pg. 284. 


Caméidi a de RR 
o A Ro TU f 
: 


MAMIFEROS EM ESPECIAL 479 


cambiantes intermediarias, o que poderia haver de duro na opposição 
de caracteres muito differentes. 

«Encontramos nos monotremos uma eloquente confirmação d'estas 
idéas. Elles teem simultaneamente alguma coisa dos mamiferos, das 
aves e dos reptis.» *! E com effeito elles possuem das aves e dos reptis 
a cloaca, como dissemos atraz, tendo dos mamiferos os caracteres mais 
essenciaes. Approximam-se ainda, como tambem já dissemos, dos des- 
dentados, e das aves possuem o bico. Dos reptis tem ainda um caracter 
importante—a clavicula dupla. 


Pelo que acabamos de transcrever e de expor, avaliará quem ler se 
é conveniente admittir uma ordem —a dos monotremos —com duas fa- 
milias, ornithorincos e echidnos, ou se, como pensamos, será mais ra- 
zoavel fazer duas ordens distinctas, embora a cada uma d'ellas fique 
pertencendo apenas um genero só e uma só especie. 


FIM DO TERCEIRO VOLUME 


1 L. Figuier, Obr. cit., pg. 9. 


INDICE DO TERCEIRO VOLUME 


MAMIFEROS 


RUMINANTES EM ESPECIAL 


(Continuação) 
Pag. 
os moscHos — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti- 
Ra. E rodastos. so ss usina 1-7 
o aLmiscareiro — Considerações historicas — Caracteres — Distribuição geo- 
graphica — Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . |. 7-10 
O MOSCHO MENOR OU MINIMO — Caracteres — Distribuição geographica — Cos- 
tumes — Captiveirg— Usos e Productos . . . cc. 11-12 
os vEADOS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti- 
ADE E ESG iai E RO A PRN E ERR EU e O 13-15 
OS AGONE = Caraotores geraes Lc causa cessa ee es 15-16 
o ALCE MAIOR — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Ini- 
migos — Captiveiro — Usos e Productos . . Lc cc. 16-19 
o ALCE ORIGINAL — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — 
Caça — Captiveiro — Usos e Productos. . . Lc cs 20-22 
os rangirEROS — Distribuição geographica. . . cs 22 


VOL. III 31 


482 INDICE 


O RANGIFERO DA AMERICA — Caracteres. 


O RANGIFERO DA EUROPA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Caça — Inimigos — Captiveiro — Usos e Productos 


os camos — Caracteres geraes 


o gamo — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — 
Captiveiro — Usos o Productos. "ss ins dy eo bes E 


OS VEADOS PROPRIAMENTE DITOS — Caracteres geraes. 


o vEADO ORDINARIO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Inimigos — Caça — Captiveiro — Doenças — Usos e Productos 


O VEADO DA BARBARIA — Caracteres — Distribuição geographica 
O VEADO DE BENGALA — Caracteres das Distribuição geographica 
O VEADO AMERICANO — Caracteres — Distribuição geographica 
os zorLiros — Caracteres — Distribuição PROP e é qi 


o zorLiTo commuM — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Caça — Inimigos — Captiveiro — Usos e Productos . 


As grrRAFASs — Caracteres geraes . 


A GIRAFA AFRICANA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Captiveiro — Usos e Productos 


AS ANTILOPES — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Ca- 
ptiveiro — Usos e Productos 


A ceRvICABRA — Distribuição geographica — Costumes — Caça — Captiveiro 
-lÚgoS O PrOGNGLOS tiara tara Epoeloro po A papa 


A saiga — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Inimigos 
— Caça — Captiveiro. 


A CERVICABRA DE PATAS NEGRAS — Caracteres — Distribuição geographica — 
Costumes 


AS GAZELLAS — Caracteres geraes 


A gazeLLA — Caracteres — Costumes — Distribuição geographica — Caça 
Inimigos — Captiveiro 


AS CAMURÇAS — Caracteres geraes. 


Pag. 
23 
23-31 


31 


32-34 


35 


39-39 
40 
40-41 
41 


41-42 


42-46 


41 


41-51 


51-53 


- 54-56 


57-59 


59-60 


60-61 


61-66 


66 


TS PR 


INDICE 
A CAMURÇA DA EUROPA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Inimigos — Caça — Captiveiro — Usos e Productos 


A conpoma — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
— Captiveiro — Usos e Productos . . . 


A AnTILOPE NEGRA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
AS ANTILOPES ORYx — Caracteres geraes 


A ANTILOPE LEUCORY — Caracteres — Costumes — Caça — Captiveiro — 
Usos e Productos — Distribuição geographica 


o nyLGó — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — 
RR VIE es at 


o gnou — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes —— Caça — 
Captiveiro — Usos e Productos 


as caBRASs — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Usos e 
ENCUNOS so E ir RS a 


o BoDEQuIM DOS ALPES — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Inimigos — Caça — Captiveiro 


O BODEQUIM DA HESPANHA — Caracteres 
AS CABRAS PROPRIAMENTE DITAS — Caracteres geraes . 


A camra syLvestre — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça. 


A CABRA ANÃ — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 


A CABRA DE ANGORA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Usos e Productos — Acclimação. 


A CABRA CACHEMIRA — Caracteres — Distribuição geographica — Usos e Pro- 
ductos — Acelimatação . . . cc ea 


A CABRA DA THELAIDA — Caracteres — Distribuição geographica — Captiveiro 


A CABRA DOMESTICA OU vULGAR — Caracteres — Distribuição geographica — 
Costumes — Usos e Productos . 


os carxerros — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Ca- 
ptiveiro — Usos e Productos 


Ts 


81-83 


83-86 


86-88 


88-93 


94 


94 


94-97 


97-98 


98-101 


101-103 


103-104 


104-107 


108-110 


484 INDICE 


O MUFLÃO AFRICANO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Captiveiro — Usos e Productos . ... 


o murLÃo EuroPEU — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Caça — Captiveiro 


o argaLIi — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — 
Captiveiro — Usos e Productos 


O MUFLÃO AMERICANO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Usos e Productos 


OS CARNEIROS PROPRIAMENTE DITOS — Caracteres — Origem 
o CARNEIRO MERINO — Caracteres — Distribuição geographica. . ... 


O CARNEIRO DE CORNOS PONTEAGUDOS — Caracteres — Distribuição geogra- 
phica cm Es ed DO O DR DR 


O CARNEIRO DE GRANDES NADEGAS — Caracteres — Distribuição geogra- 
phica - . . . E - e 


os Bovipios — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti- 
veiro — Caça — Usos e Productos . 


o BOI ALMISCARADO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Usos e Productos . . +. 1 vi ic. 


os racks — Caracteres geraes 


o 14cK GRUNHIDOR — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Caça — Captiveiro — Usos e Productos — Doenças 


os BsuraLos — Caracteres — Distribuição geographica 


O BUFALO BA CAFRARIA — Caracteres — Distribuição geographica — Capti- 
velr o e . . . e . . . . . . . . . . 


O BUFALO ARNI — Caracteres . 


o BUFALO ORDINARIO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Combates — Domesticidade — Usos e Productos 


OS BISONTES — Caracteres geraes . +. +. . 2 e a 


O BISONTE DA EUROPA — Caracteres — Costumes — Inimigos — Caça — Ca- 
ptiveiro = Ugos o Productos 2a qa Corso uv SD E» não 


Pag. 


110-113 


113-116 


116-118 


118-120 


120-128 


124-125 


125 


125-126 


126-130 


130-133 


133 


134-137 


137-138 


138-140 


140-141 


141-146 


146 


147-151 


INDICE 


O BISONTE DA AMeRICA — Caracteres — Distribuição geographica — Costa- 
mes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . |. 


os Bois — Caracteres geraes — Divisões 
I, BOIS SELVAGENS 
o gayaL — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 


o gauro — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti- 
veiro À 


Il. BOIS QUE SE TORNARAM SELVAGENS 

O TOURO HESPANHOL — Caracteres . 

NI. BOIS DOMESTICOS . 

o Bor geBo — Caracteres — Distribuição geographica 


o Bor oRDINARIO — Origem — Caracteres — Distribuição geographica — Cos- 
tumes — Usos e Productos — Doenças . |. 


RAÇAS BOVINAS PORTUGUEZAS 

1. Raça minhota ou gallega — Caracteres — Distribuição geographica 
2. Raça barrozi — Caracteres — Distribuição geographica . 

3. Raça mirandeza — Caracteres — Distribuição geographica 

4. Raça arouqueza — Caracteres — Distribuição geographica 

d. Raça do Ribatejo — Caracteres — Distribuição geographica 

6. Raça turina — Caracteres — Distribuição geographica . .. 
1. Raça alemtejana — Caracteres — Distribuição geographica 

8. Raça algurvia — Caracteres — Distribuição geographica . 


Quadro da classificação dos ruminantes 


1571-159 


159-160 


161 


161-163 


164 


164-165 


165-169 


io 


170 


170 


Ja 


11 


Ni-lT2 


172 


112 


173 


N4-175 


486 INDICE 


ORDEM DOS PACHYDERMES 


Considerações geraes — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Usos e Productos . .. Suites : 


PACHYDERMES EM ESPECIAL 


OS PROBOSCIDEOS OU, ELEPHANTES 

OS MASTHODONTES — Antiguidade . 

OS ELEPHANTES PROPRIAMENTE DITOS — Caracteres 

o mammouTH — Caracteres — Antiguidade . 

O DINOTHERIO — O ELEPHAS ANTIQUUS — O ELEPHAS MERIDIONALIS 

O ELEPHANTE D'ASIA E O ELEPHANTE D AFRICA — Considerações historicas — 
Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — Captiveiro 
— Usos e Productos . Er po 

os raPrIROS — Caracteres — Distribuição geographica 


O TAPIRO ASIATICO OU DE DORSO BRANCO — Caracteres — Costumes . 


O TAPIRO OU ANTA D'AMERICA — Caracteres — Distribuição geographica — 
Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . 


O TAPIRO VELLOSO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 


os HYRACES — Caracteres geraes . 


O HYRACE DA ABYSSINIA — Caracteres — Costumes — Caça — Captiveiro —. 


Usos e Productos 


os porcrnos — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
— Captiveiro — Usos e Productos . 


1. OS PORCOS BRAVOS OU JAVALÍS 


Pag. 


17-19 


181 
181 
182 
183 


1835-184 


184-207 
2071-208 


208-209 


209-214 
215-216 


211 


218-220 


- 221-228 


223 


Rd e Ls id 


INDICE 


O JAVALÍ ORDINARIO OU JAVARDO — Caracteres — Distribuição geographica — 
Costumes — Inimigos — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . |. 


O JAVALÍ DO JAPÃO — Caracteres . ; à : À : , ; : - 
O JAVALÍ DA INDIA — Caracteres . é ; - : : ; : : ” 
O JAVALÍ DOS PAPÚS — Caracteres . , Ê ! ; ; é é , A 


O JAVALÍ DE ORELHAS EM FORMA DE PINCEL — Caracteres . . 
O JAVALÍ DOS BOSQUES — Caracteres . ; : ; ; Ê ; Ene, 


Im. PORCOS DOMESTICOS — Origem — Caracteres — Creação — Usos e Produ- 
ctos A ro dl o DRA RES Ce ca DOI AN AR O DN RR DAT EP O E 


05 PHACocnEROs — Caracteres Seraes . a vice as e. 


O PHACOCHERO OU JAVALÍ ENGALLA DE ANGOLA — Caracteres — Costumes — 
DEN AO BORDAR o ss epi ca ds Ea 


O PHACOCHERO OU JAVALÍ DE ELIANO — Caracteres — Costumes — Captiveiro 
RR NSRELDUAÇÃO FEOM TANIA pr Saio La a la DO pda 


os rAJAçus — Caracteres — Distribuição geographica . . co. 


O TAJAÇU DE corLerra — Caracteres — Distribuição geographica — Costa- 
mes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . + cc. 


OS BABIROSAS — Caracteres geraes |. cu. au o e ea 


o BABIROSA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
RR o ss or 


Os HiPPOPOTAMOS — Caracteres geraes . . + cc e ea 


O HIPPOPOTAMO AMpuIBIO — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos — Prejuizos . .. 


os urNoceroxtES — Considerações historicas — Distribuição geographica 
Ra EBOLOgIOS mr si res a teen 


“ 


O RHINOCERONTE D'AsIA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes . . . . . - . . . . s . “ . . 


O RHINOCERONTE D'AFRICA — Costumes — Amigos e Inimigos — Caça — Ca- 
miivemro=- [sos oe Productos . . Roca cc: 


OS SOLIPEDES — Caracteres geraes . . |. 


487 


Pag. 
223-228 
229 
229 
229-230 
230 


231 


2931-234 


2394-235 


2395-236 


2360-231 


238 


2938-241 


241-242 


2492-244 


244-245 


245-202 


2650-266 


/ 


488 INDICE 


os equipros — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Do- 
mesticidade 

o cavaLLo — Caracteres — Considerações historicas — Costumes em domes- 
ticidade — Caracteres distinctivos — Regime — Andaduras — Sentidos 
— Vozes — Intelligencia e aptidões — Edades — Doenças — Destinos — 
Usos e Productos 

RAÇAS CAVALLARES — Divisões 

1. Raças arabes — Caracteres 

2. Raça persa — Caracteres — Aptidões e Emprego 

3. Raças turcas — Caracteres — Aptidões e Emprego 

4, Raça barba ou numida — Caracteres — Aptidões e Emprego . 

5. Raças inglezas — Caracteres — Aptidões e Emprego . 

6. Raças francezas — Caracteres. 

1. Raças allemis — Caracteres — Aptidões e Emprego . 


8. Raça hespanhola — Caracteres — Aptidões e Emprego 


9. Raças portuguezas — Typo galliziano — Typo betico-lusitano — Distri- 
buição geographica e Caracteres d'um e d'outro . ER ae à 


Os JUMENTOS — Caracteres geraes — Distribuição geographica 


o oxagrO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — 
Domesticidade — Usos e Productos o 


O JUMENTO D'AFRICA — Caracteres ed dg geographica — Costumes 
— Domesticidade pe 

o HEMIONE — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
— Captiveiro — Usos e Productos . 


os muARES — Divisões — Caracteres do mulo — Caracteres do agneiro — 
Considerações geraes — Destinos . . +. Liv. 


O JUMENTO DOMESTICO — Origem — Considerações historicas — Caracteres — 
Intelligencia — Regime e tratamento — Reprodueção — Erros e Prejui- 


zos — Usos e Productos . k b ! : i É y % 


As ZzEBRAS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes. 


Pag. 


266-268 


269-281 
281 
281-284 
28t 
285 
285-286 
286-288 
288 
288-289 


289-290 


290-291 


292 
2983-295 
296-297 
297-800 
300-802 


3903-309 


3909-310 


INDICE 489 


Pag. 

RM e mms Ds co so a eso o. 310 

REM ERR A SS o ra e ATO RE a 311 
A ZEBRA PROPRIAMENTE DITA — Caracteres — Considerações historicas — Dis- 
tribuição geographica — Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Pro- 

RR MP MN no pre o Ae reço pr sd rvos 011816 
Quadro da classificação dos pachydermes. . +. lc. 317 
ORDEM DOS AMPHIBIOS 

Considerações geraes — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
Ra sos Up o PR E ND sr e o Og 
AMPHIBIOS EM ESPECIAL 
as pHOCAS — Distribuição geographica — Costumes — Caça — Captiveiro — 
RE AMENOLOS e e O a A A Ra o ra A 
A PHOCA COMMUM OU BOI MARINHO — Caracteres — Distribuição geographica. 326 


A PHOCA DA GROELANDIA — Caracteres — Distribuição geographica  . |. 326-327 
A PHOCA DE TROMBA — Caracteres — Distribuição geographica . ... 327 
A PHOCA DE capuz — Caracteres — Distribuição geographica . . .... 328 
A PHOCA URSINA — Caracteres — Distribuição geographica . . . . 328-329 
À PHOCA CRINADA — Caracteres — Distribuição geographica . . 329 
Os rrRICHECOS — Caracteres geraes  . . . Loc cs 330 


O TRICHECO OU CAVALLO MARINHO — Caracteres — Distribuição geographica 
— Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . . . 330-553 


490 INDICE 


ORDEM DOS CETACEOS 


Considerações geraes — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Usos e Productos 


- CETACEOS EM ESPECIAL 


OS UNICORNES — (Caracteres geraes 


O UNICORNE OU LICORNE — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Pesca — Usos e Productos . 


os goLpHINHOS — Caracteres — Considerações historicas . 


O GOLPHINHO CoMMUM OU DELPHIM — Caracteres — Distribuição geographica 
— Costumes — Pesca — Usos e Productos .. 


A orcA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça — 
Usos e Productos 


AS TONINHAS — Caracteres geraes . 


A TONINHA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Pesca 
— Captiveiro — Usos e Productos . | 


OS CACHALOTES — Caracteres geraes . +. . . 


O CACHALOTE MACROCEPHALO — Caracteres — Distribuição geographica — 
Costumes — Pesca — Usos e Productos . 


AS BALEIAS — Divisão d'esta familia em rorquaes e baleias propriamente 
RR en eo so A E 


os RORQUAES — Caracteres geraes. 
AS BALEIAS PROPRIAMENTE DITAS — Caracteres 


A BALEIA COMMUM — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Inimigos — Pesca — Usos e Productos 


AS SIRENIDAS — Caracteres geraes. 


Pag. 


3359-340 


341 


3941-344 


3944-345 


9345-347 


3471-350 


350 


S92-354 


394 


3909-358 


359 


359 


- 3559-360 


360-367 


3967-368 


INDICE 491 


Pag. 
os pugongos — Caracteres geraes. +. . LL, 368 


O DUGONGO COMMUM OU CAMELO DO MAR — Caracteres — Distribuição geogra- 
phica — Costumes — Caça — Usos e Productos . . Lc... 8668-811 


os MANATINS — Caracteres — Distribuição geographica . . cl. 372 


O MANATIM AMERICANO OU PEIXE-BOI — Caracteres — Distribuição geographica 


— Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . . . 38712-8% 
O MANATIM OU PEIXE-MULHER DE ANGOLA — Caracteres — Distribuição geogra- 

RR RD o E ROdnObon o o silo us a E Da Ds 315 
Quadro da classificação dos cetaceos . . LL Lc. 376 


ORDEM DOS DIDELPHOS OU MARSUPIAES 


Considerações geraes — Singularidade d'estes mamiferos — Modo de re- 
produeção — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Usos 
RE Eroductos Classificação |; ra ss Cister eu oq B77-B8] 


DIDELPHOS OU MARSUPIAES EM ESPECIAL 


1. MARSUPIAES CARNIVOROS — Divisão . , ; ; : : ; à é 383 


os DAsyuriDOS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Usos 
RR ss, rp na e ação 1088-385 


OS rmILACINOS — Caracteres geraes .'. LL Lc 385 


O THILACINO cynocepHALO — Caracteres — Distribuição geographica — Cos- 
tumes — Caça — Captiveiro .. RC E RR eg sa oieee 4 3 OO DEM 


os sarcorniLos — Caracteres — Distribuição geographica . 388 


O SARCOPHILO ursino — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça —Captiveiro— Usos e Productos . . cc 388591 


4992 INDICE 


As DAsyuras — Caracteres — Distribuição geographica 


A DASYURA MALHADA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Captiveiro. 


os TAPUÁs — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes . 

o TAPUÁ-TAFA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes . 
os antECHINOS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes, 
O ANTECHINO DE PATAS AMARELLAS — Caracteres. 

Os MYRMECOBIOS — Caracteres geraes . |. 


O MYRMECOBIO LISTRADO — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Captiveiro 


OS DIDELPHOS PROPRIAMENTE DITOS — Caracteres — Distribuição geographica 
— Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos 


As sARIGUEIAS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
— Captiveiro 


A SARIGUEIA DA VIRGINIA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos 


AS SARIGUEIAS IMPROPRIAMENTE DITAS — Caracteres geraes 
o cancrivoRrO — Caracteres — Distribuição geographica -- Costumes 


O ENEIANO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Usos e 
Productos 


A SARIGUEIA LONTRINA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça. 


OS PERAMELIDEOS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
Captiveiro — Usos e Productos 


O PERAMELIDEO NAsICO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
-— Captiveiro— Usos e Productos . . +... 


O PERAMELIDEO RAIADO — Caracteres — Distribuição geographica — Usos e 
Productos 


os cHEROPOs — Caracteres geraes. 


Pag. 
391 


3992-393 
394 

395-396 

3296-397 
391 


3971-398 
398-400 
400-402 
403-405 


405-409 
410 


410411 
411-413 
413414 


415-416 


416-418 


419 


420 


ca É ag 26 ei 


E CR 


INDICE 


O CHEROPO SEM CAUDA — Origem d'este nome improprio — Caracteres — Dis- 
tribuição geographica — Costumes . 


OS PHALANGISTAS — Caracteres geraes — Distribuição geographica — Rei 
mes — Captiveiro — Usos e Productos 


OS PETAURISTAS — Caracteres geraes 
OS PETAURISTAS-ESQUILOS — Caracteres geraes 


O PETAURISTA-ESQUILO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Caça — Captiveiro . 


OS PETAURISTAS PROPRIAMENTE DITOS — Caracteres geraes . 
o TAGUAN — Caracteres — Costumes — Captiveiro — Caça . . 
OS ACROBATAS — Caracteres geraes 


O PEQUENO ACROBATA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Captiveira 


os cuscos — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes . 


O PHALANGISTA MALHADO — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Usos e Productos 


AS PHILANDRAS — Caracteres geraes — Distribuição geographica — Costumes 


A PHILANDRA RAPOZEIRA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu- 
mes — Captiveiro — Usos e Productos 


os coAaLAS — Caracteres geraes 


O COALA cinZEeNtTO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — 
RO. ese se CR ES e Ss 


II. MARSUPIAES HERBIVOROS — Divisão . ; Ê P à 


os KaxguRus — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça 
— Captiveiro — Usos e Productos . 


O KANGURU GIGANTE — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
RR cs ss 


os HypsIPRYMOS — Caracteres geraes . . . 0 0. 


O KANGuRU-RATO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 


493 


Pag. 


420-422 


422-424 


430-431 


432 


4335-434 


434-455 


435-437 


437 


438-439 


440 


440444 


445-446 
446 


44717-448 


494 | INDICE 


Pag. 
o poruru-ratro — Caracteres — Distribuição geographica — Acelimação . 448-449 


os PHASCOLOMIOS — Caracteres geraes. +. . 2. 1 + wc as 449 


O TEIXUGO DA AUSTRALIA — Caracteres — Distribuição geographica — Cos- 
tumes — Captiveiro — Acclimação — Usos e Productos . . . . 450-453 


Quadro da classificação dos marsupiaes . . LL ce. 454 


ORDEM DOS ORNITHORINCOS 
Considerações geraes — Caracteres . + . Lu 4559-457 
ORNITHORINCOS EM ESPECIAL. 


O ORNITHORINCO PARADOXAL — Caracteres — Distribuição geographica — Cos- 
tumas — Captivolro. assa ai UE ane é TO NS eo TT q 0 


ORDEM DOS ECHIDNOS 


Considerações geraes — Caracteres — Costumes — Distribuição geogra- 
phica — Usos 6 Produtos ana ua es o Lia LR ae TR SP CN E 


INDICE 


ECHIDNOS EM ESPECIAL 


O ECHIDNO EspINHOSO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes 
— Captiveiro — Acclimação — Usos e Productos. 


Considerações sobre a formação de duas ordens: a dos ornithorincos e a 
dos echidnos — Difficuldade de classificar estes animaes — Razão d'essa 
difficuldade — Modo de ver do auctor sobre a collocação taxonomica de 
taes mamiferos — Opiniões differentes dos naturalistas — Opiniões de 
Brehm e de Figuier — Alguns pretendem que os ornithorincos e echi- 
dnos sejam apenas familias de uma ordem unica, a dos MoxOrREMOS — 
Caracteres geraes d'esta ordem — Citações de Figuier e Brehm 


4171-476 


4716-479 


-. 


E. y 
Re 5 Gar 


Ma Eça 


COLLOCAÇÃO DAS ESTAMPAS DOS MAMIFEROS 


Estampas do primeiro volume 


ER mamem e 3 mulher la carico. 
ERR ANSUINÇOS = MR dns nd 
“Arterias e veias PAR sereno 
ERRRRUBlato Soc me cp e E ate ia ig é 
O aye-aye (de Madagascar) — O sagui — O 


O porquinho da India-—-A marmota da Alle- 
manha — À marmota commum .......... 
RR = O Castor tes asDS 


Estampas do segundo volume 


À lebre —O coelho manso — O coelho bravo. entre as paginas 


O jaguar —A panthera .................. 
O gato domestico—O gato Angora —O gato 
CS RESTO DDR PR 


O Ince = O lobo-tigre.................. 
O galgo da Hungria —O Terra-Nova ....... 
NEPSDGEN EU TODO, . eco. cr ss ces rcscraso 


VOL. III 


» 


» 


32-33 
60-61 
72-73 
1104-105 


3518-319 


68-69 


100-101.. 
136-137 
148-149 - 


176-177 
202-203 
282-283 
310-311 


32 


“ 


498 COLLOCAÇÃO DAS ESTAMPAS DOS MAMIFEROS 


A hyena listrada — O chacal-— À hyena ma- 


culada vos vis se SAE MR DRE E DR O entre as paginas 
O furão—A fuinha—A doninha—A marta — 

O armiBhos ds co Die ro MIR Sis E » » 
O urso escuro—O urso negro............ » » 
O dromedario— O camello ............... » » 


Estampas do terceiro volume 


À girafa... . does ms oiro mp o entre as paginas 
A gázella — O argalbi creia o a a » » 
O carneiro merino — À cabra............. » » 
O touro— À vacca—O novilho ........... » » 
O clephantes = ns » > 
O porco-D- javall. o. Ses » 
O-hippopotamo; .s;.s a e » » 
O rhinôcetonte ss asas a EANES a » » 
O cavallo arabe — O cavallo de Perche.....  » » 
O hemione— À zebra ......... ai ana » » 
A phoca—0O morco—O leão marinho...... » » 
A sarigueia femea e os filhos............. » RD 


3554-335 


41414-415 «+ 
4460-447 * 
9292-509 


46-47 + 

60-61 « 
104-105 + 
164-165 * 
184-185 +. 
222-223 + 
244-245 - 
2596-257 « 
280-281 + 
308-309 « 
5328-529 - 


404-405 


BRRATAS 


Na pg. 113, linha 15, onde se lê — de ordinario só o macho tem cauda — leia-se 
— de ordinario só o macho tem cornos. 


OBSERVAÇÃO 


No 1.º volume d'esta obra, fallando do orango-tango, dissemos a paginas 113, 
ao fundo — que nos navios que fazem o percurso da Asia 4 Europa é commum o em- 
prego d'aquelle quadrumano como creado. Para fazer esta affirmação, baseamo-nos 
sobre a auctoridade de um escriptor estrangeiro, por isso que, não tendo sahido 
nunca da Europa, nós nada sabiamos pessoalmente a tal respeito. Um nosso distin- 
cto collega que tem estado por vezes na Ásia, quiz ter a amabilidade de observar- 
nos que tal informação é inexacta, porque nunca vira nos navios em que viajára, 
nem mesmo lhe constára que existisse um uso semelhante. Ahi fica a rectificação e 


com ella os nossos agradecimentos a quem nos forneceu os dados para fazel-a. 


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Mattos, Julio Xavier de 
História natural 
illustrada 


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CARDS OR SLIPS FROM THIS POCKET 


UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY 


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RENAS 


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