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HISTORIA NATURAL
HISTORIA
NATURAL
ILLUSTRADA
COMPILAÇÃO FEITA SOBRE OS MAIS AUCTORISADOS
TRABALHOS ZOOLÓGICOS
JXJLIO IDE 3VE.AuTTOS
TERCEIRO VOLUME
PORTO
LIVRARIA UNIVERSAL
DE
3S/E.A.GA.IjIíÀES & I^OISTIZ — EDITORES
13 — Largo dos Loyos— H
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U. 3
Porto — Imprensa Commercial — Rua dos Lavadouros, 16.
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RUMINANTES
(CONTINUAÇÃO)
OS MOSCHOS
Alguns naturalistas collocam estes ruminantes entre os veados de
que se approximam pela elegância de formas. A não-existencia porém
de cornos é um caracter negativo que, quando outros não existissem,
bastaria para fazer considerar arbitraria uma tal collocação. Fazemos
pois dos moschos uma familia aparte, seguindo Brehm.
CAP.ACTEBES
Os moschos não teem cornos, nem fossas lacrimaes, nem pêllos cm
tufo nas pernas posteriores. A cauda d'estes ruminantes é perfeitamente
rudimentar; ou antes no logar de cauda existe um tubérculo, uma li-
geira saliência. Os machos distinguem-se de todos os outros ruminantes
pela existência de caninos saKentes na maxilla superior^ ora compridos
e dirigidos para fora, ora mais curtos e voltados para dentro. Teem os
moschos quatorze a quinze vértebras dorsaes, cinco a seis lombares,
6 TTTSTOBTA NATURAL
quatro a sois saibradas e treze caudaes atrophiadas. Ideias parles molles
recordam os anlilopes e os veados.
DISTRIBUIÇÃO CxEOGRAPHIfiA
Habitam a Ásia central e meridional, as ilhas e a parte occidental
da Africa cenlral.
COSTUMES
Vivem nas regiões pedregosas das altas montanhas, raras vezes
perto das florestas, e mais raramente ainda nos valles a que não descem
senão quando um inverno rigoroso, roubando-lhes nas montanhas todos
os meios de subsistência, os forçam a procurar alimentos em regiões
mais ricas de vegetação.
De ordinário vivem solitários; uma espécie apenas forma bandos.
Dormem quasi todo o dia, apparecendo apenas ao fim da tarde, á
hora do pôr do sol.
São geralmente vivos e ágeis; saltam e trepam admiravelmente.
Garacterisa-os uma grande timidez; ao menor perigo deitam a fugir. São
astutos; ás vezes diante de um grande perigo simulam-se mortos.
A fêmea pare um a dois fiihos de cada vez e com grandes inter-
vallos.
CAPTIVEIRO
Embora timidos, domesticam-se facilmente, chegando a ter pelo ho-
mem uma viva aífeição.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL
USOS E PRODUCTOS
A carne é boa e a pelle aproveitável, o que explica a perseguição
de que são victimas estes ruminantes. Ha uma espécie que produz al-
míscar.
O ALMISCAREIRO
Pertence a um género cujos membros se distinguem pela existência
de caninos muito compridos, de um péllo duro e de uma bolsa umbilical,
no macho, destinada á produccão de almíscar.
OONSroERAÇOES HISTÓRICAS
Os gregos e os romanos, com quanto apreciadores distinctos das
pomadas perfumosas que recebiam da índia e da Arábia, desconheceram
completamente o almiscareiro. Na China é, pelo contrario, conhecido ha
muitos milhares d'annos. Existem descripções antiquíssimas do animal,
como as de Abou Senna, Mosadius e Marco Polo, todas mais ou menos
deficientes ou phantasiosas. A primeira descrippão reputada exacta é a
de Palias.
HISTORIA NATURAL
CARACTERES
O almiscarciro 6 um ruminante elegantíssimo. Mede oilenla cenli-
metros de comprimento sobre sessenta e seis de altura. A parte poste-
rior do tronco é ura pouco mais elevada que a anterior; os membros
são delgados, o pescoço é curto, a cabeça é alongada e o focinho arre-
dondado. Os cascos são pequenos, finos, ponteagudos e susceptíveis de
se aíTastarem; as unhas, que são rudimentares, tocam o solo. Esta dis-
posição permitte ao animal manter-se sobre os campos cobertos de gelo.
O corpo é todo coberto de pêllos abundantes, de um ruivo-trigueiro e
mais compridos aos lados do peito, entre as coxas e no pescoço. Estes
pêllos são compridos, rijos e crespos. Os caninos no macho fazem uma
saUencia de trez a oito centímetros fora da bocca; são dirigidos para
baixo e para traz. Na fêmea estes dentes não excedem os lábios.
O almiscarciro entre a depressão umbilical e os órgãos genitaes
apresenta uma bolsa arredondada, saliente, de cinco a sete centímetros
de comprido sobre trez de largura e trez ou quatro de altura. Esta bolsa
é cercada de pêllos aos lados e tem na parte media uma certa porção
desnudada, onde vêem abrir-se dois canaes. Pequenas glândulas parie-
taes segregam o almíscar que por canaes se despeja na bolsa. No ani-
mal adulto, esta contem, termo médio, sessenta grammas de almíscar;
algumas vezes encontra-se muito mais. Os animaes não adultos ordina-
riamente não produzem mais do que oito grammas. Durante a vida do
animal, o almíscar oíferece a consistência do mel e uma cor entre ver-
melho e trigueiro; depois de morto o ruminante, a substancia odorífera
torna-se n'uma massa granulosa ou pulverulenta, de um trigueiro ruivo
que enegrece com o tempo. O cheiro diminue á medida que a côr escu-
rece. Este almíscar é solúvel na agua, quente ou fria, e no álcool.
DISTRIBUIÇÃO GEOaRAPHICA
O almiscarciro habita todos os cumes das montanhas da Ásia cen-
tral.
mamíferos em especjal
COSTUMES
Vivendo do preferencia nas montanhas, conserva-se geralmente a
uma altitude de mil a dois mil c trezentos metros acima do nivel do
mar. É raro, muito raro, encontrar-se n'um valle a uma altitude inferior
a trezentos metros. Vive solitário, excepção feita para a epocha do cio,
e occulto o dia inteiro; só de noite vagueia.
São rápidos e cheios de segurança os movimentos d'este ruminante.
Corre com ligeireza egual á do antílope, salta com a destreza do bode-
quim e trepa com a intrepidez do gamo. Sobre os campos cobertos de
gelo, onde a maior parte dos animaes a custo conseguem mover-se, o al-
miscareiro corre com facilidade espantosa. Quando o attacam de perto,
salta enormes precipicios sem se molestar, corre ao longo dos rochedos
onde mal encontra espaço para poisar as patas ou, se tanto é preciso,
attravessa a nado as correntes.
Tem sentidos muito perfeitos, mas uma intelligencia muito limitada
e uma grande timidez de caracter. Quando o surprehende um perigo,
foge, correndo desesperadamente sem bem saber para onde.
A epocha do cio é em Novembro ou Dezembro. Realisam-se então
entre os machos tremendos combates em que os dentes se tornam armas
terríveis. Raros são os machos adultos que não apresentam pelo corpo
largas cicatrizes, testemunhas d'esses renhidos combates. Durante o cio,
o cheiro d'almiscar exalado pelos machos é de uma pasmosa actividade;
dizem alguns caçadores que elle se sente a um quarto de légua de dis-
tancia. Em Maio ou Junho, isto é seis mezes depois das relações sexuaes,
a fêmea pare um a dois filhos, que nascem completamente formados. A
mãe conserva-os junto a si até uma nova epocha de cio. Os novos seres
ao fim de trez annos são adultos.
O almiscareiro escolhe, sempre que ha logar para isso, as liervas
melhores e mais succulentas.
CAÇA
A caça feita ao almiscareiro é das mais diíficeis; concorre para isto
a timidez excessiva do animal, a sua perpetua desconfiança, que poucas
10 HISTORIA NATURAL
vozes pcrmiltcm ao caçador encontral-o ao alcance da arma. De ordinário
a caça faz-so por meio de laços que se dispõem pelos caminhos que o
almiscareiro lom de attravessar. Na Sibéria apanlia-sc por meio de ar-
madilhas a que servem de engodo os licliens. lia logares onde se fecham
os valles com estacarias altas de todos os lados, deixando aberta ape-
nas uma fenda onde os laços se dispõem. N'outros pontos mata-se o al-
miscareiro á ílexa, attraindo-o por sons que lhe imitam a voz. (cAcontece
ás vezes, diz Brehm, que, em vez do almiscareiro, apparecem um urso,
um lobo ou um rapozo, enganados também pelo som.w * O almiscareiro
tem o costume de voltar sempre ao logar que uma vez escolheu para
repousar. É d'este costume, d'esta persistente tendência que os caçado-
res muitas vezes se aproveitam.
CAPTIVEIRO
As informações sobre este ponto são deficientissimas. Sabe-se ape-
nas de dois casos de captiveiro, um realisado em Paris, outro em Lon-
dres. Os animaes captivos não duraram muitos annos, mas viveram sem-
pre alegres e com saúde. O de Paris succumbiu a um desastre, a obs-
trucção do pyloro por uma porção de pôllos que ingerira.
usos E PRODUCTOS
A carne do almiscareiro não é boa; o almiscar porém, é um bello
producto de grandes resultados commerciaes. D'este almiscar ha muitas
qualidades, sendo considerado o melhor e o menos sujeito a sophistica-
ções o chamado Cabardin ou da Rússia. A pelle serve para a fabricação
de bonnets e vestidos.
> Broliin, nin: <■!/., vol. 2.», pg. 4(;i.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL
11
O MOSCHO MENOR OU MÍNIMO
É o mais pequeno dos ruminantes. DiíTere essencialmente da espé-
cie anterior pela não existência da bolsa de almiscar.
CARACTERES
Mede apenas cincoenta centimetros de comprimento, pertencendo
quatro á cauda; a altura, medida ao nivel da espádua é de vinte e dois
centimetros. A parte posterior do corpo é, como no almiscareiro, um
pouco mais alta do que a anterior. O pêllo é fino. A cabeça é ruiva com
o vértice quasi negro; a parte superior do corpo é de um trigueiro ama-
rellado com cambiantes ruivas e um traço negro ao longo da columna;
os lados do corpo são claros e o ventre branco. Os machos teem cani-
nos que excedem as gengivas de trez centimetros e que são fortemente
recurvos, dirigidos para fora e para traz.
DISTRIRUIÇAO GEOCRAPTTICA
Java, Singaporo e Pinang são a pátria d'este curioso animal
COSTUMES
Vivem nas florestas espessas, preferindo as montanhas ás planícies.
Tem hábitos solitários; só no tempo do cio se encontram juntos ma-
cho e fêmea. Vive o dia inteiro escondido nos arvoredos espessos, onde
12 HISTORIA NATURAL
om repouso se entrega á ruminação; ao cair da tarde sae em busca do
alimento que consiste principalmente em folhas, hervas e fructos de toda
a ordem.
Os movimentos d'cste animal são leves e graciosos; dá saltos rela-
livamente grandes e vence com destreza as maiores diíficuldades. É
muito ardiloso; quando se sente perseguido e tem poucas probabilida-
des de escapar, fugindo, fmge-se morto para desviar o inimigo e corre
quando o sente a distancia bastante. Os indígenas quando querem desi-
gnar de um modo expressivo um homem impostor, dizem d'elle: ma-
nhoso como o moscho menor, phrase que corresponde á nossa: astuto
como o rapozo.
Sobre a reproducção d'este ruminante nada lemos de authentico;
parece que a fêmea não produz em cada parto mais que um filho.
CAPTIVEIRO
Parece não soffrer muito com a perda de liberdade. Actualmente
encontra-se em muitas coUecções de animaes expostas na Europa. Tem-se
conseguido mesmo a reproducção em captiveiro.
usos E PRODUCTOS
Em Java a carne d'este ruminante é estimada como alimento. Os
pés, finíssimos e elegantes, engastados em ouro ou prata servem na con-
fecção de alguns objectos de luxo e de gosto, nos cachimbos, por
exemplo.
mamíferos em especial
13
os VEADOS
Constituem pela sua reunião uma familia importantíssima da ordem
dos ruminantes e fácil de conhecer e distinguir, como pelo estudo que
vamos fazer se deprehenderá.
CARACTERES
São ruminantes de cornos, de dimensões superiores ás dos mos-
clios, de caninos curtos, de corpo alongado, elegante, perfeito e rigoro-
samente proporcionado, de pescoço vigoroso, de olhos grandes e vivos,
de orelhas finas, direitas e muito moveis. Geralmente só os machos
apresentam cornos, isto é prolongamentos ramificados do frontal e que
todos os annos caem para ser por outros substituídos. A muda dos cor-
nos está ligada à actividade sexual. Se um veado se castra e na epocha
da operação possuia cornos, ficará perpetuamente com elles; se os não
tinha n'essa occasião, não os readquire; se a castração foi unilateral, só
do lado não operado tornam os cornos a reproduzir-se. No recemnas-
cido nota-se desde logo no ponto de inserção dos cornos um insoUto
desenvolvimento do frontal. Aos seis ou oito mezes apparece no logar
indicado uma sahencia óssea que persistirá toda a vida e da qual os cor-
nos tomarão origem.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Existem hoje, como existiram já em epochas geológicas anteriores
á nossa, em todas as partes do mundo, em toda a terra, excepção feita
da Austrália e de uma certa parte, ahás considerável, da Africa.
li IIÍSTOIUA NATURAL
COSTUMES
Eficoritram-sc nos climas quentes como nos írios, nas planícies como
nas montanhas, nos logares descobertos como nos bosques largamente e
densamente arborisados, nas regiões seccas como nas pantanosas, em
toda a parte e em todas as condições.
São animaes sociáveis; muitos reunem-se em bandos numerosíssi-
mos. Durante o estio, os velhos machos, separam-se de ordinário das
íemeas e vivem ou solitários ou unidos uns aos outros.
Na epocha do cio juntam-se aos bandos das fêmeas e provocam os
rivaes; é então que se ferem as luctas tremendas d'onde resultará a se-
lecção sexual.
São quasi todos animaes nocturnos; no entanto os que vivem nos
logares desertos, tranquillos, procuram de dia mesmo o alimento.
Todos estes ruminantes são vivos, ágeis, um pouco tímidos, rápidos
em todos os movimentos e intellígentes.
Alímentam-se exclusivamente de vegetaes e bebem muita agua.
A fêmea pare um, dois e ás vezes trez filhos, que nascem comple-
tamente desenvolvidos e que ao íim de alguns dias seguem a mãe por
toda a parte. A fêmea é de uma extraordinária solhcitude pelos recem-
nascídos, aos quaes defende contra todos os perigos. Espécies ha em
que o macho cuida também da prole com extremo desvello.
GAPTIVEIRO
O captiveiro ó para estes ruminantes uma crueldade contra a qual
perpetuamente se revoltam. Se é certo que em novos parecem aífei-
çoar-se ao homem e tributar-lhe uma grande dedicação, não é menos
certo que progredindo em edade se tornam mãos, coléricos, indóceis. O
rangifero, que ha muitos séculos vive captivo, esse mesmo não é, como
poderá suppôr-se, uma excepção; a sua domesticação é, no dizer de
Brehm e d'outros naturalistas, pronuncíadamente incompleta.
MAMÍFEROS EM Ebl»EClAL
CSOS E PUUDLCTOS
Se fizermos uma exceppão para o raiigiíero, cuja ulilidade para a
nossa espécie é, como veremos, incontestável, pode francamente dizer-se
que a família dos veados nos causa prejuizos apenas. É boa a carne?
Tiramos proveito dos cornos? É a pelle susceptivel de utilisar-se? Pode
decerto responder-se aífirmativamente. Mas o que é tudo isto, se nos lem-
bramos dos estragos produzidos por estes ruminantes nos logares cul-
tivados ?
Estão comprehendidos na familia que acabamos de descrever, como
géneros principaes : os alces^ os rangiferos, os gamos j os veados propiia-
rnc7Ue ditos o os zorlitos. D'estes géneros passamos a occupar-nos.
OS ALCES
São os representantes mais notáveis cm grandeza da familia dos
veados.
CAKAGTEHES
São fortes, pezados e muito altos. Teem cornos compridos, largos
e muito ramificados. Não possuem caninos. A cabeça é comprida, a rc-
16 HISTORIA NATURAL
j,náo nasal muito desenvolvida, o lábio inferior procidente e a cauda
curta; os olhos sào pequenos e as orelhas compridas e largas.
O ALCE MAIOII
É um animal de grandes propor^iões. O macho adulto tem dois me-
tros e sessenta centímetros a dois metros e oitenta de comprido sobre
dois metros de alto. O comprimento da cauda é de dez centímetros. O
pezo médio é de duzentos a trezentos kilogrammas, chegando alguns
animaes já velhos a attlngir quinhentos. O corpo é curto e grosso, o
peito largo, a espádua elevada, formando uma hgeira corcova, e o dorso
recto. Os membros são altos e muito fortes. Os cascos são finos, pro-
fundamente fendidos e hgados na origem por uma membrana extensível.
A cabeça c grande, alongada, o focinho comprido, grosso, largo, obtuso
e o pescoço curto, forte, muito vigoroso; o nariz é cartilagineo, o lábio
superior espesso, fendido, extenso e muito saUente. Os olhos são peque-
nos e muito encovados. As orelhas são compridas e largas, mas termi-
nando em ponta e moveis em todos os sentidos. Os cornos do animal são
constituídos por hastes curtas que se alargam trlangularmente. O péllo
é curto e espesso. Sobre a nuca e pescoço este péllo chega a attlngir
vinte centímetros de comprido, d'onde o nome de élmi à crinière dado
pelos francezes a este animal. A cor do manto é um trigueiro ruivo bas-
tante uniforme. A fêmea é mais pequena que o macho e é desprovida
de cornos; os seus cascos são mais compridos e mais finos e as unhas
mais curtas que as do macho. A cabeça da fêmea recorda a das mulas.
DISTRIBUIÇÃO GKOGRAriUCA
Habita as florestas do norte da Europa e da Ásia. Na Europa esten-
de-se até ás costas do Báltico; encontra-se na Prússia oriental, na Lithua-
mamíferos em especial 17
nia, na Livonia, na Suécia, em Noruega, em alguns pontos da Grande
Rússia, etc. Segundo Brehm, em 1746 matou-se o ultimo alce maior em
Saxe e em 1760 o ultimo também na Galiza.
É mais commum na Ásia do que na Europa; em todos os pontos
d'aquelle continente onde existem florestas, o notável ruminante atii
existe.
costumes
Os togares preferidos por este ruminante para habitação são as flo-
restas, principalmente as dos togares desertos e pantanosos. De Abril
até Outubro, o alce maior vive em togares baixos; depois, no inverno,
procura as regiões elevadas, não expostas ás inundações e não cobertas
de gelo. Quando o inquietam ou não encontra alimento bastante n'um
local, muda-se para outro.
É sociável; vive geralmente em pequenos bandos compostos de
quinze a vinte indivíduos; perto da epocha do parto, os velhos machos
abandonam estes bandos, que ficam exclusivamente formados por fêmeas
e pequenos machos, não aptos ainda para a reproducção.
Se o não incommodam, se ninguém o inquieta, o alce maior va-
gueia dia e noite, embora seja naturalmente nocturno.
Alimenta-se de folhas, de renovos e de cascas d'arvores, o que o
torna immensamente prejudicial. Quando se encontram n'uma floresta
arvores despidas de casca, pode estar-se certo de que o alce maior não
está longe; é assim que os caçadores sabem onde perseguil-o. Só im-
pellido pela necessidade, procura alimentação vegetal diíferente da que
referimos. Causa por isso mais estragos nos campos em cultura do que
nas florestas.
É menos ágil e menos gracioso que os veados propriamente ditos;
não se pense todavia que é moroso: calculasse que pode percorrer n'um
dia quatrocentos kilometros.
^ Passa por ser um bello nadador, que entra na agua não só quando
o força a necessidade, mas por prazer.
Quando corre, costuma erguer a cabeça de modo que os cornos lhe
flcam em posição horisontal; esta attitude fal-o cair muitas vezes. Quando
isto acontece, o animal, tentando levantar-se, agita muito as patas de
deante e estende as posteriores até junto da cabeça. D'aqui uma fabula
curiosíssima, segundo a qual o ruminante soíTreria de attaques epile-
VOL. III 2
18 IIISTOIIIA NATURAL
cticos, usando para a cura do processo singular de arranhar as orelhas
até ellas verterem sangue!
O ouvido e a vista do alce maior são sentidos perfeitíssimos; o ol-
lato é menos apurado. Não é intelhgente, mas não tem também a timi-
dez dos veados propriamente ditos.
Vive em boa harmonia com os seus congéneres, excepto na epocha
do cio, em que entre os machos se trava uma lucta tremenda para a
posse das fêmeas e direcção dos bandos. O cio nas costas do Báltico rea-
lisa-se em fins de Agosto, na Rússia asiática em Setembro e Outubro.
Durante esse tempo de excitação, o alce maior é perigoso até para o
homem, attacando, se é ferido, o caçador que não logrou matal-o.
A gestação dura trinta e seis a quarenta semanas. O primeiro parto
dá geralmente origem á apparição de um filho só e os que se lhe se-
guem á de dois, de ordinário de sexos differentes. Ao terceiro ou quarto
dia de vida extra-uterina, os recemnascidos seguem já a mãe; a ama-
mentação prolonga-se até á primeira epocha de cio que depois do parto
tem logar para as mães. Estas defendem corajosamente os filhos, che-
gando a proteger-lhes o cadáver.
INIMIGOS
Os principaes são o lobo, o lynce, o urso e o glutão. O lobo dà-lhe
caça no inverno, quando o gelo é muito; o urso apenas attaca indiví-
duos isolados; o lynce e o glutão lançam-se das arvores sobre o dorso
do ruminante que passa, agarram-se-lhe ao pescoço e abrem-lhe as ca-
rótidas. São estes últimos os mais terríveis inimigos do alce. Do urso e
do lobo defende-se com os cornos; em face do glutão e do lynce que o
attacam d'alto, fica desarmado.
CAGA
N'outro tempo fazia-se a este ruminante uma grande caça a tiro,
com laços e com armadilhas. Hoje essa caça diminuiu e ha mesmo toga-
res em que está prohibida, como em Noruega, onde por matar um alce
mamíferos em especial
19
maior se paga ou se pagava não ha muitos annos a multa de duzentos
e vinte francos.
GAPTIVEIRO
Gomo todos os ruminantes da vasta familia dos veados, este domes-
tica-se bem emquanto novo, mas acaba por se tornar mao, com os pro-
gressos da idade. Ao principio parece prosperar no captiveiro, mas de-
pois começa a emagrecer e muitas vezes morre dentro de um curto es-
paço de tempo. É diíficil conserval-o captivo por mais de trez a quatro
annos; como o provam numerosos casos narrados pelos naturalistas, por
melhores que sejam as condições de vida do alce captivo, por maiores
que sejam os cuidados do homem, por mais abundante que seja o ali-
mento, o animal não resiste á perda de liberdade.
usos E PRODUCTOS
No alce maior teem utilidade a carne, a pelle e os cornos. A carne
é melhor, mais tenra que a dos veados propriamente ditos e a pelle é
melhor e mais solida. Os ossos duros e de uma grande alvura, são tam-
bém muito estimados. N'outro tempo as differentes partes do corpo d'este
animal entravam na manipulação de diversíssimos medicamentos. É de
notar que todas estas utihdades do animal estão abaixo dos estragos que
elle produz. Nas florestas é um verdadeiro flagello.
20 HISTORIA NATURAL
O ALCE ORIGINAL
É assim que denominam em França o ruminante de que vamos occu-
par-nos. Não nos foi possivel saber se existe em portuguez algum nome
especial para designal-o; por isso conservamos a designação estran-
geira. *
CARACTERES
Distingue-se da espécie anterior pela existência de chanfraduras
mais profundas nos cornos, por menor abundância de pêilo comprido
sobre o pescoço e ainda porque a côr do manto é mais escura. No en-
tanto a independência especifica do alce original tem sido mais do que
uma vez contestada.
É mais alto que o cavallo. A cabeça tem mais de sessenta e seis
centímetros de comprido e é pezada. Os olhos são pequenos e encova-
dos; as orelhas assemelham-se ás do jumento; são como as d'este com-
pridas e peitudas.
É esta a descripção que do animal faz Hamilton-Smith.
COSTUMES
Os hábitos de vida d'este ruminante são os mesmos que caracteri-
sam a espécie anteriormente estudada. O alce original muda os appen-
1 A cada passo lactamos com a diflSculdade de saber a designação portugueza
das espécies. Conhece-se muitas vezes a descripção de um animal, mas não se lhe
conhece o nome em lingua portugueza. As averiguações n'este sentido são difficeis
de fazer.
mamíferos em especial 21
dices frontaes mais tarde que o alce maior, em Janeiro ou Fevereiro e
mesmo, quando os invernos são rigorosos, em Março.
DISTRIBUIÇÃO rrEOCxRAPHICA
Enconlra-se ao norte e um pouco a leste da America.
CAÇA
O preconceito indigena de que quem come a carne do alce original
fica habilitado a correr trez vezes melhor do que ingerindo outra carne
qualquer, faz com que este ruminante seja tenazmente perseguido. Os
indígenas dando caça a este animal, procuram principalmente fazel-o
entrar na agua onde o seguem em canoas e onde lhes é fácil matal-o.
CAPTIVEIRO
h
Gomo todos os ruminantes da famiha, o alce original domestica-se
facilmente em quanto novo, chegando a conhecer dentro de poucos dias
o dono e a seguil-o por toda a parte; pouco e pouco porém, á medida
que avança em idade, torna-se selvagem, colérico, perigoso. Andubon
conta o facto de um alce original captivo que, ainda novo, parecia ser
absolutamente indomesticavel. O caso é certamente excepcional.
22 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODUCTOS
A carne é um alimento bom; com os cornos fabricam-se colheres e
outros utensílios domésticos; a pelle contribuo para a formação de ca-
noas. Ha uma praça celebre entre os indígenas onde se eleva uma alta
pyramide formada na maior parte por cornos de alce original.
OS RANGIFEROS
Na família dos rangiferos ambos os sexos apresentam cornos, con-
sistindo em uma haste cylindrica, muito curta, ramificada em dois gran-
des galhos achatados, dos quaes um se eleva para o ar ramíficando-se
a seu turno e o outro se estende horisontalmente. Os cascos são muito
largos. As formas são pezadas; a cabeça é sobretudo desgraciosa.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Pertencem exclusivamente ás regiões frigidas do hemispherio bo-
real.
mamíferos em especial
o RANGIFEKO DA AMERICA
Ha naturalistas que concedem ao rangifero da America as honras de
espécie á parte. Para fundamento d'esta opinião allegam que o rangi-
fero da Europa diífere do rangifero da America pela estatura, pela côr e
pelo género de vida.
Será completamente assim? Não podemos dizel-o. O rangifero ame-
ricano é certamente maior que o europeu, tem os cornos mais pequenos
e o manto mais escuro; segundo naturalistas auctorisados, elle viveria
solitário nas florestas e não emigraria. Ha porém observadores que con-
sideram todos estes caracteres como secundários e insignificantes e por
isso não crêem possivel uma distincção de espécies. Tal é o estado da
questão.
O RANGIFERO DA EUROPA
Este ruminante é conhecido desde uma remota antiguidade. Júlio
César deixou-nos d'elle uma descripção muito exacta. Em 1675 Schefler,
de Strasburgo, pubKcou um livro de grande merecimento sobre a Lapo-
nia, onde o animal é muito bem estudado. Linneu que o observou, elle
próprio, minuciosamente, legou-nos a seu respeito um trabalho impor-
tante que outros naturalistas completaram depois. Hoje pode conside-
rar-se este ruminante como completamente conhecido, ainda nas maiores
minuciosidades dos seus hábitos de vida.
24 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
Mede um metro c setenta centímetros a dois metros de comprido,
tendo a cauda quatorze centímetros. A altura, medida ao nível da espá-
dua é de um metro e quinze centímetros. Os cornos são mais pequenos
e menos bellos que os dos veados propriamente ditos.
O tronco do rangifero não differe do tronco do veado senão em affe-
ctar posteriormente mais largura; mas o pescoço e a cabeça são mais
pezados, menos graciosos, os membros são mais curtos e os cascos me-
nos elegantes. De resto, o rangifero está longe de ter o porte do veado.
Na fêmea os cornos são mais pequenos e menos divididos que no
macho, affectando sempre uma forma mais ou menos irregular.
O manto do rangifero europeu é mais denso que o de qualquer ou-
tro ruminante da família. Os pêllos são ondulados, rijos e quebradiços;
são mais compridos e mais flexíveis na cabeça, no pescoço e nos mem-
bros do que em qualquer outra parte. Na parte anterior do pescoço,
estes péllos formam uma espécie de crina que algumas vezes desce até
ao peito. No inverno o péllo cresce muito e isto explica por que o ran-
gifero supporta frios excessivos, rigorosíssimos. O rangifero selvagem
muda de pêllo duas vezes por anno. O rangifero domestico apresenta-se
de verão com o manto extremamente escuro; de inverno, pelo contrario,
a côr geral do manto é clara.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita o norte da Europa sendo ahi vulgar em muitas regiões.
COSTUMES
Vive exclusivamente nas montanhas, nos pontos mais elevados e
desguarnecidos de vegetação, onde a custo medra alguma rara planta.
mamíferos em especial
25
Evita os logares baixos e as florestas. Apenas na Sibéria, segundo infor-
mação de Palias e Wrangel, o rangifero habitaria as florestas, os logares
largamente arborisados. No dizer d'esle ultimo naturalista, o rangifero
emprehende em Maio uma verdadeira emigração, abandonando as flores-
tas onde se abrigou do frio, para partir em bandos para as regiões se-
ptentrionaes, mais abundantes em musgos e lichens, e onde o não per-
seguem os insectos. Nas florestas, com effeito, os mosquitos e outros
animalculos aliados, egualmente incommodos, atroam os ares. Os rangi-
feros são ás vezes forçados a attravessar cursos d'agua; escolhem então
os logares menos largos e passam encostados uns aos outros, cobrindo
quasi toda a superfície d'agua. Vistos de longe n'estas condições, pare-
cem florestas errantes.
Em a Noruega não se reahsam estas emigrações. Quando muito, o
rangifero ahi passa do topo de uma montanha a um outro.
O rangifero selvagem é um animal em extremo sociável; vive de
ordinário em bandos muito mais numerosos que os formados por quaes-
quer outros ruminantes da familia. Solitários, encontram-se apenas ve-
lhos machos expulsos dos bandos.
O rangifero é um animal admiravelmente apropriado á vida dos
paizes do Norte. Graças á conformação dos cascos, elle pode perfeita-
mente correr pelos pântanos e pelo gelo e bem assim trepar com extraor-
dinária facilidade pelos flancos das montanhas.
Um facto muito curioso, muito interessante e que ainda hoje não tem
uma explicação defínitiva é que o rangifero em marcha faz ouvir a cada
passo um ruido particular comparável ao produzido por uma faisca elé-
ctrica. Teem-se emittido acerca d'este phenomeno muitas opiniões, accei-
tando hoje alguns naturahstas a hypothese de que o ruido seja articular.
É talvez a conjectura mais acceitavel.
O rangifero caminhando sobre os terrenos pantanosos e sobre o
gelo, alarga os cascos resultando d'ahi uma pista muito mais parecida
com a da vacca do que com a do veado propriamente dito.
O rangifero selvagem nada com facihdade extrema; attravessa rios
larguissimos. O rangifero domestico, pelo contrario, não entra na agua
sem uma repugnância manifesta.
Sob o ponto de vista dos sentidos, o rangifero é um animal admiravel-
mente dotado. O olfato é muito fino, tendo o poder de apreciar os cheiros
á distancia de quinhentos ou seiscentos passos; o ouvido é tão apurado
como o dos veados propriamente ditos; a vista é de tal modo prespicaz
que toda a prudência ó pouca ao caçador, mesmo quando mais occulto se
imagina. O tacto é de uma sensibihdade extrema; o mais ligeiro insecto
que pouse sobre o dorso do ruminante é por elle sentido. O palladar é apu-
rado; por elle consegue o animal fazer uma rigorosa selecção de plantas.
26 HISTORIA NATURAL
O rangifero selvagem possue, no dizer de todos os caçadores, uma
grande prudência e até bastante astúcia. Não tem medo dos outros ani-
maes; o terror que o homem liie inspira não 6 de modo nenhum ins-
tinctivo, mas, pelo contrario, um resultado da experiência. Ora para que
a experiência logre produzir n'um animal os seus benéficos effeitos, é
mister admittir da parte d'elle uma certa intelHgencia.
No estio, quando os pastos são abundantes, o rangifero preocupa-se
pouco com a alimentação; tem logar então de escolher plantas succu-
lentas. No inverno, porém, carece para alimentar-se de desligar com os
cascos os lichens e musgos que cobrem as paredes. Em Noruega, mesmo
de inverno, evita as florestas, e busca os pântanos. Nunca remexe o solo
com os cornos, como erradamente se tem dito, mas só com os cascos. É
de madrugada e ao fim da tarde que o rangifero procura o alimento.
Durante o dia deita-se e rumina ou sobre o gelo ou perto d'elle.
Em Noruega a estação do cio para o rangifero é nos fins de Setem-
bro. Ha então entre os machos longos combates impetuosos e terríveis.
A gestação dura até meiados de Abril; o parto produz um filho apenas,
muito gracioso, que a fêmea aleita durante muito tempo e a que tributa
uma enorme aíTeição. Na primavera é vulgar encontrarem-se famihas
compostas exclusivamente de um macho, uma fêmea e um recemnascido.
Só quando os filhos são grandes é que as famílias se reúnem em bandos
de cuja direcção se encarregam naturalmente os velhos machos. Os ran-
giferos velam cuidadosamente pela mutua segurança: em quanto o bando
repousa e rumina um d'entre todos conserva-se erguido e vigilante; se
este precisa de deitar-se, levanta-se logo um outro que o substitue.
CAÇA
Não é fácil emprehender a caça do rangifero; Brehm diz que é pre-
ciso ser-se um apaixonado naturalista para ter animo de arcar com as
difficuldades de todo o género que a perseguição a este ruminante acar-
reta. É necessário, primeiro que tudo, possuir uma constituição robus-
tíssima; são precisos valentes pulmões para ascender aos topos elevados
das montanhas, membros musculosos que resistem ás longas caminha-
das, estômago que permitia soff'rer prívações alimentares sem quebra
immediata da saúde, um largo dorso emfim que permitia accommodar
sobre elle as provisões de muitos dias, porque n'esta caça, como na do
dromedário, é indispensável levar o mantimento que em parle alguma
mamíferos em especial
se encontra. E ainda não é tudo. Para caçar o rangilero é preciso ter a
coragem de viver dias seguidos em plena solidão e de dormir sem com-
modidades na primeira gruta ou na primeira cabana de pedra que se
encontra.
Para se deitar n'uma cabana de pastor, seria preciso ao que anda
em caça descer quatrocentos ou quinhentos metros e subil-os na manhã
do dia immediato. Seria um trabalho absolutamente impossível; as com-
modidades por tal preço degeneram naturalmente em violências. De
resto, na caça do rangifero é indispensável da parte do caçador um
enorme dispêndio de atlenção: é preciso observar cuidadosamente a di-
recção do vento, a altura do sol, o bom ou mau tempo, conhecer os
legares favoritos do ruminante, saber-lhe perfeitamente os costumes, se-
guir-lhe escrupulosamente a pista, emfim não descurar a observação da
circumstancia ainda a mais fútil na apparencia — :uma pedra deslocada,
uma folha partida ou arrancada do tronco, etc. É pois como dissemos e
como acaba de provar-se, uma caça diíTicil pelo conjunto enorme de con-
dições que exige da parte do que a emprehende. Ha ainda a conspirar
com todas as outras, uma difficuldade grande n'esta caça: é a circums-
tancia de se harmonisar admiravelmente a cor do rangifero com a do
solo por forma a ser precisa da parte do caçador uma vista extrema-
mente prespicaz para descobrir o ruminante a distancia de podel-o ferir.
Quando se encontra um bando de rangiferos é precisa toda a pru-
dência; o menor movimento bruscamente executado é motivo bastante
para pôr os animaes em debandada. Para evitar este inconveniente, que
implica nem mais nem menos que a annulação completa de todo o tra-
balho anterior, é necessário que o caçador saiba esconder-se á vista dos
ruminantes e marchar para elles, rastejando, sem ruido. Os caçadores
norueguezes procedem assim e não atiram sobre os ruminantes senão á
distancia máxima de cento e vinte passos, o que pode exphcar-se pela
pouca perfeição das armas de que usam.
Na Sibéria o processo de caça é outro. Ahi os caçadores, para quem
a maior ou menor quantidade de rangiferos mortos decide da abundân-
cia ou miséria da vida durante o anno, esperam o periodo de emigra-
ção do ruminante para procederem ao attaque. Sabendo que os rangife-
ros teem de attravessar em bandos um certo curso d'agua, occultam-se
sob a folhagem marginal ou por traz de rochedos próximos e ahi aguar-
dam pacientemente o momento de chegada dos animaes. Então, no ins-
tante em que os rangiferos penetram na agua, os caçadores, abando-
nando os escondrijos, penetram rapidamente em pequenos barcos e cer-
cam o bando dos emigrantes; em quanto uns tomam a passagem aos
quadrúpedes, procurando suspendel-os, fazel-os parar, outros ferem-os
com piques, espécie de lanças compridas.
28 HISTORIA NATURAL
Esta caça, geralmente productiva, não deixa de offerecer grandes
perigos. Os rangiferos perseguidos na agua tentam defender-se, arreme-
tendo contra os barcos e procurando voltal-os. Se o conseguem, a silua-
pão dos caçadores torna-se desgraçada, porque é então muito raro que
consigam escapar a nado, tal é a perseguição que lhes movem os ran-
giferos, servindo-se dos cornos e dos cascos para os obrigarem a mer-
gulhar. Wrangel, que descreve esta caça, reputa desesperada a situação
do caçador caído á agua; é-lhe quasi impossível, diz o escriptor citado,
sair do meio da massa d'estes animaes.
INIMIGOS
Além do homem, tem o rangifero outros inimigos. D'entre todos é
o lobo o mais temivel, principalmente no inverno. Se o gelo é muito e
forma sobre o solo uma camada muito espessa, o rangifero não receia
muito o lobo; mas se o gelo é em pequena quantidade, se tem caído de
pouco tempo, então a marcha é para o rangifero muito fatigante e o re-
ceio de encontrar o lobo torna-se absorvente. Quando nas altas monta-
nhas, os rangiferos se juntam em bandos, os lobos agremiatn-se também
e travam-se então entre as espécies luctas vigorosas, tremendas. Os car-
niceiros seguem os ruminantes que emigram, fazendo-lhes constante-
mente uma guerra, cujo resultado é a diminuição do numero d'estes.
O glutão, o lynce e o urso são também inimigos perigosíssimos do
rangifero.
Os inimigos porém que incontestavelmente devemos reputar mais
perigosos para o rangifero são trez pequenos insectos: uma mosca de
ferrão comprido, perfurante e duas espécies de tabão ou moscardo. Ou-
çamos o que a este respeito diz Brehm: «São estas moscas que deter-
minam a emigração dos rangiferos; é para lhes fugir que os míseros ru-
minantes buscam as costas do mar ou os topos das montanhas; são ellas
que os atormentam noite e dia, ou antes durante o longo dia que dura
o verão inteiro. Para comprehender os tormentos por que passam os po-
bres rangiferos, seria necessário ter-se experimentado uma applicação
constante de ventosas durante dias e semanas. Os moscardos produzem
aos rangiferos tormentos ainda maiores, mais cruéis. Uma das espécies
deposita os ovos na pelle do dorso dos pobres ruminantes e a outra nas
narinas; as larvas criam-se ahi. As da primeira espécie furam a pelle,
penetram no tecido cellular, alimentam-se ahi do pús que a sua pre-
mamíferos em especial
29
sença determina, originam abcessos dolorosissimos, abrem caminhos sub-
cutâneos e apparecem á superfície no momento de experimentarem as
ultimas metamorpboses. As larvas da segunda espécie mergulham nas
fossas nasaes, furam-as, penetram no cérebro, determinando diíferentes
formas de modorra ou coma ou attingem o palatino e impedem o ran-
gifero de comer até que consiga expulsal-as á força de espirros. É em
Julho ou começos de Agosto que a fêmea doestes moscardos deposita os
ovos e é em Abril ou Maio que as larvas se desenvolvem. A doença pode
reconhecer-se desde o começo pela diíFiculdade que os rangiferos expe-
rimentam em respirar; nos animaes novos a morte sobrevem rapida-
mente. Para os desgraçados rangiferos ha uma espécie de gralha que se
torna então um verdadeiro bemfeitor. Caindo sobre o dorso do rumi-
nante, extrae-lhe dos abcessos os vermes; os rangiferos que sabem
quanto isto lhes aproveita, deixam a ave levar tranquillamente a cabo a
melindrosa operação.» *
GAPTIVEIRO
Quando se captiva novo ainda, o rangifero domestica-se depressa.
No entanto não pode nunca ser comparado aos outros animaes domésti-
cos; aíTirma Brehm que mesmo os descendentes de rangiferos que se
encontram reduzidos ao captiveiro desde tempos immemoriaes, perma-
necem ainda n um estado de semi-selvageria. Para a direcção dos reba-
nhos não podem dispensar-se nem os homens, nem os cães.
Observemos desde já que a vida do rangifero domestico differe
completamente da que passa o rangifero selvagem. O animal em domes-
ticidade é mais pequeno e mais feio; os cornos caem-lhe mais tarde; a
reproducção faz-se n'uma estação differente; finalmente vive em perma-
nentes viagens. Ás vezes vive inteiramente sob o dominio do homem;
outras porém, procura elle próprio a liberdade, sendo então o dono for-
çado a procural-o. O dono de um rebanho de rangiferos passa uma vida
tormentosa, porque em vez de ser, como parece, o senhor dos seus ani-
maes, é, pelo contrario, o escravo d^elles, sendo forçado a emigrar
quando elles emigram, a viver nas alturas ou á beira do mar consoante
apraz aos ruminantes e, o que muito custa, a defendel-os contra os atta-
ques do lobo. O que vale ao homem n'estes trabalhos é o cão, que lhe
Brehm, Obr. ciL, vol. 2.°, pg. 486.
30 HISTORIA NATURAL
presta enormes serviços. Sem elle, o homem não conseguiria decerto
manter em ordem rebanhos de rangiferos superiores muitas vezes a tre-
zentas ou quinhentas cabeças. É o cão, que correndo vigilante em torno
do rebanho, consegue impedir que alguns individues se percam ou fazer
que retomem o seu logar os que se tresmalharam. Ás vezes, completa-
mente fatigado, exhausto inteiramente pelas viagens forçadas, o homem
deixa-se repousar, adormecer, entregando exclusivamente aos cães a
guarda dos preciosíssimos rebanhos.
Os serviços enormes que o rangifero captivo presta á nossa espé-
cie serão estudados no capitulo que segue.
usos E PRODUGTOS
A propósito, escreve L. Figuier: «O rangifero é um animal precioso
para as populações desherdadas que vivem dispersas pelo circulo polar.
Sem elle, a existência do homem seria impossível n'estes rudes climas.
Custa a fazer uma idéa exacta dos serviços que o rangifero presta a al-
gumas populações septentrionaes, nomeadamente aos Lapões. Para estes
o rangifero representa simultaneamente de cavallo, de boi e de car-
neiro. Com eífeito, reduzido ao estado domestico, atrela-se como um ca-
vallo e arrasta com rapidez trenós e carros; a velocidade de que dis-
põe é mesmo superior á do cavallo, apesar de correr sobre o gelo.
Sobre um terreno solido, o rangifero pode percorrer sete a oito léguas
por hora; geralmente percorre quatro ou cinco sem esforço n'aquelle
espaço de tempo. No palácio do rei da Suécia existe o retrato de um
rangifero que transportou um official encarregado de despachos urgentes,
á distancia de trezentas e vinte léguas em quarenta e oito horas, o que
representa uma velocidade constante de seis léguas e meia por hora.
Chegado ao seu destino, o pobre animal caiu morto.
«... Não assignalamos ainda a qualidade verdadeiramente essencial
d'este ruminante das regiões árcticas. A fêmea dá um leite superior ao
da vacca, do qual se faz uma manteiga e um queijo de excellente gosto.
A carne, que é magnifica, constitue um precioso recurso . ahmentar,
quasi o único nas regiões polares. O pôUo do rangifero fornece cober-
turas espessas e quentes e a pelle transforma-se em um coiro macio e
forte, que serve admiravelmente para a fabricação de calçado. Com os
pêllos rijos das patas do rangifero guarnece-se as solas dos sapatos para
impedil-os de escorregar. Os péllos compridos do pescoço utiUsam-se
mamíferos em especial
31
para a costura e os tendões fornecem um fio resistente. Com os cornos
velhos cio rangifero fabricam-se utensílios diversos, taes como colheres,
cabos de facas, etc; e, se são novos, extrae-se d^elles gelatina, fazen-
do-os ferver em agua. Os próprios excrementos do animal, depois de
seccos, servem ainda para se queimarem. Alguns povos aproveitam
mesmo os lichens amolecidos que contem o estômago do ruminante. Os
esquimós e os groelandezes junctam a estes lichens carne picada, sangue
e gordura e põem a fumar esta mistura que para elles é uma verdadeira
delicia. Os tongousas, habitantes nómades da Sibéria adicionam á mis-
tura bagas e fazem assim espécies de bolos por que dão um grande
apreço.» *
Em vista das utilidades que tem para a nossa espécie o rangifero,
comprehende-se perfeitamente a razão de um facto archivado por Brehm;
é que os lapões sendo incapazes de roubar ouro ou qualquer objecto
precioso, não são todavia superiores á tentação de roubarem o rangifero.
Tudo se pode confiar d 'esses desgraçados habitantes dos climas frigidis-
simos, menos um rangifero. Resistem á sedução do ouro, á sedução das
pedras preciosas, á de tudo quanto a maioria dos homens appetecem; não
resistem á tentação de roubar os rangiferos. Não os condemnemos em
nome de uma moral absoluta e irracionalmente inflexível; attenteraos
bem nas duras condições de vida d^esses desherdados e tenhamos para
elles um intimo perdão. Roubando o rangifero, o lapão procura apenas
— um companheiro.
OS GAMOS
Este género é caracterisado pela existência de cornos redondos na
base e espalmados nas extremidades. Nos gamos a cauda é muito com-
prida e o péllo é malhado tanto nos indivíduos novos como nos adultos
ou nos velhos. Na fêmea não ha cornos.
1 L. Figuier, Obr. cít., pg. 2(VJ.
32 HISTORIA NATURAL
O GAMO
Este luminaiile é de menores dimensões que aquelles de que nos
lemos occupado. Desde o focinho até á raiz da cauda não mede mais que
um metro e sessenta e cinco centímetros de comprimento, tendo de al-
tura um metro. Distingue-se dos veados propriamente ditos pelos mem-
bros que são mais curtos e menos fortes, pelo tronco que é menos ro-
busto, pelo pescoço que é mais curto, pelas orelhas e pela cauda que
são menos compridas e finalmente pela cor do manto. No estio, o dorso,
as coxas e a extremidade da cauda são de um ruivo trigueiro; o ventre,
a face interna das pernas são brancos e os olhos cercados de escuro;
os pêllos do dorso são brancos na raiz, ruivos no meio e negros na
ponta. No inverno, a cabeça, o pescoço e as orelhas são de um pardo
trigueiro, o dorso e os lados do tronco negros e o ventre cinzento, por
vezes com cambiantes ruivas. Ha gamos brancos, durante todo o anno.
Os gamos inteiramente negros são raros.
Crêem alguns naturaUstas ser o gamo originário das costas do Me-
diterrâneo, tendo-se pouco espalhado para o norte. Wagner, fundado em
sólidos documentos, faz remontar a apparição d'este ruminante aos tem-
pos ante-historicos. Hoje o bello animal encontra-se em França, na Itália,
na península ibérica e sobretudo na Inglaterra, onde existe em grande
numero.
COSTUMES
Diz-se geralmente que o nome latino cervus dama, por que este
animal é conhecido, o deve á circumstancia de ser ou ter sido uma caça
favorita das senhoras.
L
mamíferos em especial 33
O gamo prefere as regiões accidentadas, onde ha charnecas, bos-
ques de terreno pedregoso ou florestas cujo solo se cobre de herva
curta. Nos hábitos de vida assemelha-se um pouco aos veados propria-
mente ditos. Tem os sentidos perfeitos como os d'estes últimos, mas não
a agihdade d'elles. Os modos são graciosíssimos: trota ligeiramente,
salta barreiras de dois metros de altura e nada muito bem. O regimen
alimentar do gamo é o mesmo que o dos veados propriamente ditos;
tem no entanto uma maior inclinação a roer as cascas das arvores, o
que o torna extremamente prejudial. Faltando do regimen, um facto de-
vemos mencionar: é que o gamo come muitas^ vezes plantas venenosas
que o matam. Ou o instincto n'este ruminante nunca possuiu aquelle grão
de subtil desenvolvimento que o torna para o animal um guia seguro,
o melhor de todos os guias, ou, por uma circumstancia qualquer, pela
approximação do homem talvez, elle perdeu esse poder. Brehm conta
que no jardim zoológico da Prússia um rebanho inteiro de gamos suc-
cumbira á mgestão de cogumelos.
O gamo é de ordinário fiel á morada que uma vez escolheu; em-
bora a abandone por algum tempo, volta a ella.
Durante o período do cio, o gamo reune-se aos companheiros para
formar bandos ou rebanhos que se confundem por algum tempo, sepa-
rando-se depois. N'essa epocha o animal apresenta-se excitadíssimo;
brame a noite inteira e entrega-se a combates encarniçados com os co(n-
panheiros. Assim, nos jardins zoológicos é impossivel manter junclos os
machos de edade superior a trez annos. Ordinariamente, um macho co-
pula oito fêmeas. A quadra agitada dos amores é de curta duração; não
excede quinze dias e reahsa-se em melados de Outubro.
A gestação dura oito mezes; o parto tem pois logar em Junho, pro-
duzindo um só filho, raras vezes dois, pelos quaes a mãe revela uma
extraordinária sollicitude. Aos seis mezes apparecem no gamo as saUen-
cias frontaes e aos oito rompem os cornos, que se vão lentamente des-
envolvendo e complicando.
CACA
Caça-se o gamo pelo processo da montaria e pelo da embuscada. É
necessária n'esta caça uma extraorninaria prudência, porque o rumi-
nante em questão é dos mais vigilantes e tímidos. Uma circumstancia
interessante e da qual muitas vezes se aproveitam os caçadores, é que
VOL. III 3
34 HISTORIA NATUKAL
O animal não foge diante dos homens que assobiam e cantam, assim
como não foge diante dos cavallos ou dos carros.
Esperar o animal de embuscada para matal-o, não é difficil, desde
que se conhece a pronunciada tendência que elle tem a voltar á morada
primitiva, ao logar primeiro escolhido para habitação.
O processo da montaria emprega-se fazendo levantar em torno dos
sitios habitados pelo gamo altas estacarias n'uma extensão circular de
mais de uma milha, e perseguindo depois o animal no interior de modo
a que elle não encontre por onde sair. Este género de caça, aíRrma Sa-
muel Hearne, é ás veze^ extraordinariamente productivo.
GAPTIVEIRO
O gamo vive perfeitamente nos jardins zoológicos. Nem é astuto,
nem mau, mas, ao contrario, alegre e amigo de brincar; apenas durante
o mau tempo se conserva inquieto. Parece que o impressiona agradavel-
mente a musica. Na epocha do cio apresenta-se um pouco irritável; de
resto, este estado é transitório, dura muito pouco tempo.
usos E PRODUCTOS
A pelle do gamo é nos usos industriaes preferível á dos veados
propriamente ditos. A carne é boa, principalmente desde Julho a mela-
dos de Setembro; na epocha do cio impregna-se de um forte cheiro a
bodum, motivo por que então se não deve abater o ruminante.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 35
OS VEADOS PROPRIAMENTE DITOS
N'este grupo só o macho apresenta prolongamentos frontaes. As
fossas lacrimaes são apparentes. Nos machos velhos e ás vezes, embora
mais raramente, nas fêmeas velhas os caninos superiores são proemi-
nentes.
I
O VEADO ORDINÁRIO
É um dos mais bellos exemplares do grupo. É forte, elegante, de
um porte altivo e nobre. Tem dois metros e trinta centímetros de com-
primento, não contando a cauda que mede quinze centímetros. A altura
é, ao nivel da espádua, de um metro e cincoenta e, ao nivel do sacro,
superior um pouco. N'este ruminante o peito é largo, as espáduas são
salientes, o dorso é recto e chato, a região do sacro arredondada, o
pescoço comprido, fino e comprimido lateralmente, a cabeça comprida,
o focinho fino, o dorso do nariz recto, os olhos expressivos, de pupilla
oval e alongada. As fossas lacrimaes são dirigidas obhquamente para o
angulo da bocca; são grandes e formam uma cavidade estreita, alon-
gada, cujas paredes segregam uma certa porção de massa gordurosa,
que o animal expulsa exercendo atritos do corpo contra as arvores. Os
cornos são extensos e muito ramificados. A haste principal ou tronco da
arborisação córnea apresenta sulcos longitudinaes, uns rectos, outros si-
nuosos, existindo entre elles tubérculos alongados, arredondados ou irre-
gulares. Os membros são de comprimento médio, finos, mas vigorosos;
as patas apresentam cascos direitos, finos e ponteagudos. A cauda é có-
nica, de extremidade aguda. O corpo é coberto de duas espécies de
pêllo: um fino, outro sedoso, grosseiro e espesso. No estio o péllo ó
mais raro e mais curto do que no inverno. A cor do animal varia se-
gundo as estações, a edade e o sexo. De inverno os pêllos ásperos são
de um pardo trigueiro e no estio ruivos trigueiros; os péllos finos são
36 HISTORIA NATURAL
cinzentos com a ponta ruiva. Os pêllos que cercam a Locca são negros
e os que contornam o anus, amarellados. O animal nos primeiros tem-
pos de existência é ruivo trigueiro com manchas brancas. De sexo para
sexo, as variantes de cor são notáveis também. Os veados completa-
mente brancos ou maculados de branco são raros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O veado ordinário existe em toda a Europa, excepção feita para o
extremo norte, e bem assim n'uma grande parte da Ásia. Nos paizes ha-
bitados tem diminuído consideravelmente, havendo alguns, como a
Suissa, d'onde tem completamente desapparecido. Na Polónia, na Galiza,
na Bohemia, na Moravia, na Hungria, na Transylvania e no Tyrol não é
raro, antes abundante; existe em grande numero no Cáucaso.
COSTUMES
O veado ordinário prefere sempre as montanhas ás planícies; mas
o que principalmente e acima de tudo estima são as florestas de gran-
des arvores copadas. É ahi que se organisam os grandes bandos em que
entram individues de todas as edades e d'ambos os sexos, assim como
as pequenas agremiações simplesmente formadas de machos já velhos.
De inverno, o veado desce á planície, porque a isso o forçam circums-
tancias superiores; no estio porém, sobe de novo ás montanhas. Em ge-
ral, e a menos que o não perturbem ou que lhe não falte o alimento, o
veado conserva-se íiel á habitação primeiro escolhida; na estação do
cio, é verdade, aífasta-se d'ella, mas sempre para voltar desde que a
excitação genésica passa.
O veado ordinário conserva-se geralmente recolhido durante o dia
inteiro no seu escondrijo; de tarde sac a procurar o ahraento, o que
faz mais cedo de verão do que de inverno. Observemos no entanto que
nos legares perfeitamente tranquillos em que sabe que ninguém irá per-
turbal-o, o veado ordinário vagueia mesmo durante o dia. Ouando sae á
busca de alimento, caminha a trote; de madrugada, volta marchando
mamíferos em especial 37
lentamente. No dizer de alguns naturalistas, o orvalho é-lhe extrema-
mente desagradável.
No veado ordinário todos os movimentos são graciosos, elegantes e
ao mesmo tempo revestidos de um certo caracter de nobreza. Marcha
lentamente, trota com grande rapidez e corre com uma velocidade es-
pantosa; quando trota, alonga o pescoço e quando gallopa, lança-o para
traz. Dá saltos prodigiosos, vence os maiores obstáculos e attravessa
sem hesitação rios e até braços de mar.
O caçador experimentado reconhece pela inspecção da pista o veado
e reconhece se se trata de um macho ou de uma fêmea e até mesmo
determina com pequeno erro a idade do animal cujos vestigios no solo
examina. Para os cálculos em questão serve não só a inspecção dos ves-
tigios que as patas deixam no* solo, senão também a distancia reciproca
d'esses vestigios.
O veado ordinário possue os sentidos do ouvido, da vista e do ol-
fato extremamente desenvolvidos. Parece que os sons de alguns instru-
mentos musicaes lhe produzem uma impressão agradável, porque quando
os ouve suspende a marcha, deixa-se ficar parado no logar d'onde prin-
cipiou a escutal-os.
O veado é extremamente timido. Parece porém, que a timidez não
constituo n'este ruminante um caracter original, mas é simplesmente o
resultado da experiência que lhe ensina a precaver-se do homem, de
quem ha muitos séculos se habituou a esperar apenas a dureza das per-
seguições. O que nos confirma n'esta opinião é o facto de que os veados
nos togares em que os não attacam, em que lhes não fazem caça, estão
muito longe de oíTerecer a timidez de que vimos faltando e, pelo contra-
rio, consentem que o homem se approxime d'elles até á distancia de
trinta passos; ha-os mesmo que levam a confiança até se acercarem do
homem, lambendo-lhe as mãos.
No tempo do cio o veado é de uma irritabilidade extraordinária. É
então um animal perigoso, porque chega a arremetter contra o homem;
os livros de historia natural archivam muitos d'estes factos desgraçados,
succedidos uns nos bosques, em liberdade, outros cm captiveiro, nos
jardins zoológicos. A fêmea nunca experimenta estes acccssos de fúria.
Segundo Dietrich de Winckell, a estação do cio começa em Setembro e
termina em melados de Outubro; mas, segundo o mesmo auctor, já em
fins de Agosto os machos, quando estão muito gordos, entram em cio,
fazendo ouvir altos gritos de uma tonalidade desagradável. É então tam-
bém que entre os machos se ferem os grandes combates de que deriva
a posse da fêmea. Ás vezes os combatentes enlaçam, prendem os cornos
por modo que se lhes torna impossível separarem-se e acabam por mor-
rer de fome no logar do combate.
38 HISTORIA NATURAL
A gestação dura quarenta a quarenta c uma semanas, parindo a fê-
mea, conforme foi fecundada no começo ou no fim da epocha do cio, em
Maio ou Junho um filho, raras vezes dois. O reccmnascido 6 nos primei-
ros trcz dias de vida muito fraco; a mãe tem por elle uma extraordiná-
ria sollicitude. Ao fim da primeira semana porém, o filho encontra-se já
perfeitamente apto para seguir a mãe por toda a parte; a amamentação
dura até á mais próxima quadra do cio que se realisa.
INIMIGOS
Além do homem que lhe move guerra, tem o veado por inimigos
naturaes o lobo, o lynce, o glutão e o urso. De todos, os mais perigosos
são o lobo e o lynce; o primeiro, porque em matilhas persegue o veado
no tempo das neves e o segundo, porque do alto das arvores se lhe atira
de improviso sobre o dorso.
CACA
Foi uma diversão muito vulgar n'outro tempo a caça do veado. Hoje
é rara e onde existe, parece ter-se tornado privilegio exclusivo de ricos
proprietários. O abandono da caça do veado é hoje tal que os naturalis-
tas contemporâneos nem a descrevem.
CAPTIVEIRO
Nas primeiras edades, o veado domestica-sc facilmente. Os machos
porém, á medida que envelhecem, tornam-se mãos c perigosos para as
pessoas que d^ehes se approximam; as fêmeas são dóceis sempre. Po-
de-se ensinar ao veado muitos jogos de destreza; ha saltimbancos que
os exibem perfeitamente educados n'esta especiahdade.
mamíferos em especial 39
DOENÇAS
O veado, do mesmo modo que o rangifero, é vivamente atormen-
tado por algmis insectos que lhe depositam os ovos na pelle, mais tarde
dilacerada pelas larvas. Ainda o incommodam cruelmente alguns episoa-
rios, para escapar aos quaes o ruminante se vê forçado muitas vezes a
passar horas inteiras mcttido em agua. Além d'estes males, que por si só,
seriam sufficientes para tornal-o infehz, o veado soíTre outros muitos,
entre os quaes avultam a gangrena do íigado, a dysenteria, a carie den-
taria e a phtysica. Estas doenças fazem nos rebanhos incalculáveis es-
tragos.
usos E PRODUGTOS
^.
Segundo alguns naturalistas, a utilidade que o veado pode ter para
a nossa espécie não compensa de modo nenhum os estragos de que é
auctor. É precisamente por esta razão que em algumas locahdades se
tem julgado conveniente destruil-o. «Por elevado que seja, diz Brehm,
o preço da carne, da pelle ou da armação do veado, por maior que seja
o prazer de caçal-o, este animal será sempre mais nocivo do que útil.» *
O mesmo escriptor que acabamos de citar affirma que houve um
tempo em que a superstição fazia considerar todas as partes orgânicas
do veado e ate mesmo as suas excreções como de capital vantagem na
cura de muitas doenças. E então, como facilmente se comprehende, o
valor do veado era muito maior do que é hoje.
1 Brehm, Ohr. ciL, vol. 2.% pg."500.
40 IIISTORTA NATURAL
O VEADO DA BARBARIA
A dislincção morpliologica a estabelecer entre esta espécie e a pre-
cedente deriva apenas da armação que ó no veado da Barbaria menos
complicada que no veado ordinário.
Sob o ponto de vista dos costumes ha entre as duas espécies uma
semelhança perfeita.
BTSTRIEriÇAO fiEOGRAPnTCA
Habita as florestas do noroeste d'Africa, sendo ahi muito commum:
com efleito os cornos constituem um artigo importante de exportação.
O VEADO DE BENGALA
Difl^ere do veado commum em possuir uma estatura mais alta c um
pêllo mais comprido. , Os cornos tomam n'esta espécie, a certa altura,
uma direcção vertical.
Os costumes não diff*erem dos que caracterisam as espécies estuda-
das do mesmo crenero.
mamíferos em especial
41
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Representa o veado commum nas planícies de Nepol.
O VEADO AMERICANO
Distingue-se das espécies precedentes em ser de mais avultadas
proporções. Mede de altura, ao nivel da espádua, metro e meio e a ar-
mação tem mais de um metro de comprimento.
Os costumes não oíferecem em relação ás espécies precedentes dif-
ferenças sensíveis.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
A America septentrional é a pátria d'este ruminante.
OS ZORLITOS
Não teem dentes caninos. A cauda é quasi nulla e os pêllos da re-
gião posterior do tronco são susceptíveis de se erriçarem sob a influen-
42 HISTORIA NATURAL
cia da contramão dos músculos culiculares. Os cornos não são muito ex-
tensos, nem experimentam mudanças bruscas de direcção; de resto,
apresentam de ordinário apenas dois galhos terminaes, um anterior e
outro posterior.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
Pertencem á Europa e ás regiões quentes da Ásia.
O ZORLITO COMMUM
Podemos consideral-o o typo do género. Por isso o descreveremos
minuciosamente sob o ponto de vista morphologico.
CARACTERES
Mede cerca de um metro e quinze cenlimetros de comprimento so-
bre setenta e quatro centimetros de altura; a cauda encontra-se redu-
zida a um coto de dois centimetros de extensão, apenas. A altura de oi-
tenta centimetros e o comprimento de um metro e trinta centimetros
que o animal chega a attingir, são dimensões excepcionaes.
O zorlito commum é elegante. Differe do veado ordinário cm ser
mais pequeno e ter a cabeça curta e obtusa. A parte anterior do corpo
do zorlito commum é mais vigorosa que a posterior, o dorso é quasi re-
cto, a espádua acha-se collocada a um nivel menos elevado que o sacro,
o pescoço é alongado, os membros são altos e delgados e os cascos finos,
pequenos c ponteagudos. As orelhas, de comprimento médio são bastante
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 43
separadas c os olhos grandes e vivos. A armação córnea c sustentada
por largas saliências frontaes, sendo as hastes fortes. Segundo Orlasius,
para avahar pela armação a edade do animal é mais importante atten-
der á forma d'ella e às suas inflexões angulares do que ao numero de
galhos ou ramos que varia muito de individuo para individuo. De resto, é
quasi inútil observal-o, ha enormes deformações nos cornos do ruminante;
muitas vezes, nas colleções apparecem formas extraordinárias e impre-
vistas. A fêmea não costuma ter armação; no entanto Radde viu uma
que apresentava um corno collocado ao meio da região frontal e Block
viu outra que ofl^crecia aos lados do coronal duas hastes do comprimento
de seis centímetros. Factos d'esta natureza são excepcionaes, raríssimos.
O péllo do zorlito é macio e varia com as estações. De inverno é
mais comprido, especialmente nas partes inferiores, do que de verão.
Os membros, o dorso e os lados do corpo são ruivos no estio e pardos-
trigueiros no inverno; o ventre e a face interna das coxas são sempre
de uma cor mais clara que a do resto do corpo. A região frontal e a
parte mais anterior do focinho são quasi negros, os lados da cabeça de um
ruivo amarellado e o mento é branco. De cada um dos lados do lábio
superior existe uma pequena mancha branca e no meio do lábio inferior
uma outra trigueira. A face externa das orelhas é sempre de uma cor
mais accentuada que a de qualquer outra parte; a face interna é co-
berta de pêllos de um branco amarellado. A parte posterior do corpo é
amarellada no estio e branca no inverno. De resto, a cor varia extraordi-
nariamente; assim existem zorlitos perfeitamente negros, outros inteira-
mente brancos, etc.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Existe na Europa, excepto nos paizes do norte, e n'uma parte con-
siderável da Ásia. Tem desapparecido de muitas regiões onde vivia.
COSTT'MES
Habita de preferencia as grandes florestas, qualquer que seja a col-
locação d'enas, ou na montanha ou na planície. A espessura, a sombra
parecem ser o seu meio.
44 HISTORIA NATURAL
Comparando o zorlito commum com o veado ordinário, encontram-se
^Tandes semelhanças e grandes differenças. Os movimentos do zorlito
são vivos e graciosos como os do veado; como este, dá saltos enormes,
salta grandes barreiras e nada perfeitamente. A vista, o ouvido e o ol-
fato são no zorlito, como no veado, excellcntes. Emfim o zorlito é, como
o veado, de uma grande timidez. Só quando muito novo se domestica.
Quando é surpreliendido, solta gritos de terror e começa a correr desa-
tinado sem saber para onde, indo assim facilmente cair nas mãos dos
inimigos. Acerca d'esta timidez do zorlito pode repetir-se o que foi dito
a propósito do veado: que ella é, pelo menos em grande parte, um
eíTeito da experiência que ao animal revela os perigos immensos que o
cercam. E tanto assim é que nos legares tranquillos, socegados, em que
se não faz a caça do zorlito, a approximação do homem não é para este
motivo de receio.
A voz do zorlito varia muito de tonalidade e de expressão com as
idades.
O zorlito juntando-se aos seus congéneres não chega nunca a for-
mar bandos ou rebanhos tão numerosos como os dos veados ordinários.
A maior parte do anno vive em pequenas familias compostas em geral
de macho, fêmea e filhos. O macho é o guia, o guarda e o defensor da
familia.
A alimentação do zorlito é semelhante á do veado ordinário; gosta
de folhas, de gomos, de cereaes ainda verdes, de hervas e em geral de
todas as plantas delicadas. Dá também uma grande importância ao sal e
á agua fresca.
Os zorhtos, quando em grande numero, podem causar estragos im-
portantes nas culturas que ficam nas visinhanças das florestas. Se pene-
tram nos campos, escavam o solo para collocar a nu as batatas, exacta-
mente como o faz o veado.
Relativamente ao cio do zorlito, parece dever admittir-se que elle
se realisa em duas epochas diíferentes do anno, ou antes que ha um
verdadeiro cio no verão, em Agosto, e um falso cio no inverno, em No-
vembro. A fêmea quando está para parir distanceia-se do macho, isola-se
d'elle completamente e vae procurar um sitio retirado, solitário, tran-
quillo onde dá á luz. As fêmeas ainda novas não teem de ordinário mais
que um filho por parto; as velhas produzem dois ou trez. A mãe é de
uma sollicitude extraordinária pelos filhos; procura com cuidado extremo
collocal-os ao abrigo de inimigos e se sente que estes se approximam,
avisa disto os filhos batendo com as patas no chão ou soltando um grito
particular, característico. Se alguém rouba á fêmea um filho, a inquie-
tação d'ella é extrema. Dietrích de Winckell affirma que muitas vezes,
impressionado pela viva inquietação das mães, se vira constrangido a
mamíferos em especial • 45
dar a liberdade a pequenos zorlitos que apanhara; compensava-o do sa-
crifício feito o espectáculo da alegria extraordinária da pobre fêmea, de
novo em posse do filhinho.
Ao fim de oito dias os novos seres estão aptos a acompanharem a
mãe aos pastos e ao fim de dez ou doze acompanham-a já por toda a
parte. É então que a fêmea volta a encontrar-se com o macho de que se
separara na occasião do parto e que agora retoma a direcção da fami-
ha. Os novos zorlitos, nascidos em Maio, mamam até Agosto ou Setem-
bro; no entanto comem desde o segundo mez de existência hervas que
a mãe lhes ensina a escolher. Estes novos seres aos quatorze mezes es-
tão aptos para a reproducção e tornam-se então chefes de uma família.
É ao quinto mez de existência, isto é em Outubro, que apparecem
as saliências frontaes no zorUto; no inverno próximo apresentam-se os
primeiros galhos da extensão de oito a dez centímetros. Em Março é a
primeira muda de péllo e em Dezembro a primeira queda dos cornos. A
muda do péllo e a queda da armação relacionam-se com a actividade das
funcções genitaes, porque se reahsam depois do cio. A nova armação
apparece no inverno e acha-se completamente desenvolvida quando o
animal possue já o manto de estio.
CACA
A caça do zorhto faz-se pelos mesmos processos que servem á do
veado commum. Na epocha do cio, os caçadores attraem muitas vezes o
animal, imitando o grito da fêmea.
INIMIGOS
O lynce
rapozo .,
novos.
e o lobo são os principaes; no entanto o gato montez, o
e, muitas vezes também, a doninha destroem os zorhtos ainda
46 mSTORIA NATURAL
GAPTIVEIRO
Quando se apanha alguns dias apenas depois do nascimento, o zor-
lito domestica-se com facilidade. É de notar que em capliveiro nunca
chega a atlingir as proporções que o caracterisam em hberdade. Win-
ckell narra minuciosamente o caso de um zorUto-femea captivo que per-
tencia a um dos seus irmãos; este ruminante acompanhava as pessoas
da casa, como se fora um cão, e vivia n'uma completa paz com todos os
animaes domésticos. Na epocha do cio, embora se retirasse para a flo-
resta, o bello animal não deixava de visitar todos os dias o dono; desde
que se encontrava no estado de prenhez voltava deMtivamente para
casa. O famoso ruminante teve um fim desastrado, como quasi todos os
que vivem em captiveiro e não receiam approximar-se do homem: foi
morto a tiro.
, Os naturahstas estão de accordo em aífirmar que para a domestica-
ção são preferíveis sempre as fêmeas aos machos, porque estes á pro-
porção que envelhecem se vão tornando mãos, irasciveis, impudentes,
perigosos até para as creanças. Além d'isto, o zorlito macho não vive em
captiveiro de boa harmonia com os animaes domésticos.
usos E PRODUGTOS
o zorlito fornece-nos a carne, a pelle e os cornos e é menos preju-
dicial que o veado ordinário.
A Girafa
Maçalhães 8: Moniz , Editore;
mamíferos em especial
47
AS GIRAFAS
Gomquanto ligadas aos veados e ás antílopes por numerosos cara-
cteres aífins, as girafas constituem no entanto uma familia distincta. Dão-
Ihes direito a isso a singularidade das formas exteriores e a natureza
dos cornos que são permanentes e cobertos de pelle.
Esta familia comprehende um género único que a seu turno abrange
uma só espécie. D'esta passamos a occupar-nos.
A GIRAFA AFRICANA
O grande poeta latino, Horácio, via na girafa um mixto de panthera
c de camelo e, segundo lirehm, escriptores que vieram depois, encon-
trando-a representada nos monumentos do antigo Egypto, consideraram-a
como simples producto da imaginação artística. Júlio Gcsar fazendo appa-
recer este singular animal nos circos produziu uma viva impressão entre
os romanos do seu tempo. A Miguel Baudier e a Belon, dois escriptores
francezes do ultimo quartel do século xvi, se devem as primeiras des-
cripções exactas do animal.
CARACTERES
Esta espécie distingue-se por um pescoço de comprimento desme-
surado, por membros altos, por um tronco volumoso, por um dorso in-
clinado, mais alto na região anterior, por uma. cabeça elegante, emfim
por dois cornos curtos e cobertos de pellc. A grande altura dos mem-
48 HISTOHIA NATUIUL
bros e a extensão desmesurada do pescof.o fazem parecer a girafa, nota
Figuier, um dos animaes mais altos e ao mesmo tempo mais curtos da
classe dos mamíferos. A girafa mede com eífeito còrca de trez metros e
trinta centímetros de altura ao nivel da espádua e de cinco a seis me-
tros e vinte e tantos centímetros ao nivel da cabeia; comludo o tronco
apresenta de comprimento nada menos de dois metros e trinta centíme-
tros. A cauda mede oitenta centímetros de comprimento, não incluindo
os pèllos terminaes que a excedem muito. A parte posterior do dorso é
sessenta centímetros, pouco mais ou menos, mais baixa que a anterior
ao nivel da espádua. Da extremidade do focinho á raiz da cauda a ex-
tensão é de quatro metros e trinta centímetros.
Além das dimensões, outras particularidades existem que devemos
fazer notar. Horácio quando dizia que a girafa era um composto de pan-
tliera e de camelo, tinha um certo fundo de razão; somente o notável
poeta devera ter ido mais longe ainda e ter aíTirmado que na girafa ha
todo um composto de muitos outros animaes differentes. Ella tem com
elleito, a cabeça e o corpo do cavallo, o pescoço e as espáduas do ca-
melo, as orelhas do boi, a cauda do jumento, os membros da antílope
e o péllo' da panthera. Esta mistura dá ao ruminante em questão um as-
pecto monstruoso. A girafa é com effeito um animal desproporcionado,
deselegante, em que tudo é feio excepto os olhos c o manto.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A girafa habita hoje a Africa central e meridional entre o decimo
sétimo grão de latitude norte e o vigessimo quarto de latitude sul; o h-
mite de dispersão a oeste é desconhecido. No Gongo e na Senegambia
não existe, talvez porque estas regiões são montanhosas.
COSTUMES
A girafa capliva nos jardins zoológicos não pode bem ser avahada.
É em liberdade, é nas bellas florestas do sul d'Africa que eha deve ser
vista para bem se estudar, diz Gordon Gumming. A girafa é o exemplo
mamíferos em especial 49
mais frisante que existe da conformidade ou adaptação de um animal ao
meio em que vive. O auctor que acabamos de citar, aílirma que é mui-
tas vezes difficil e até em certas condições impossivel distinguir as gira-
fas dos troncos d'arvores visinhas. Os selvagens mesmo, a despeito de
uma vista excepcionalmente perfeita, teem muitas occasiões de se illu-
direm, confundindo as girafas com os troncos e os troncos com as gi-
rafas.
Este ruminante é sociável; encontra-se sempre aos grupos de seis
a oito individues. Nos legares tranquillos e seguros reunem-se as girafas
em maior numero, vinte e seis a trinta individues, segundo Gordon Gum-
ming. Brehm entretanto affirma que nunca ouviu fallar senão de peque-
nos grupos. Os movimentos da girafa, affirmam-o quantos teem visto
este ruminante, oíferecem alguma coisa de singular.
A marcha é lenta e a corrida é um galope pezado, mas rápido em
virtude do comprimento desmesurado dos membros. O pezo da parte
anterior do corpo é tal que o ruminante para se levantar precisa de
pender o longo pescoço para traz, deslocando assim o centro de gravi-
dade. De resto, o pescoço da girafa anda em constante movimento, di-
zendo Lichtenstein que elle pode comparar-se ao mastro de um navio
açoutado pelas vagas. Para alcançar uma girafa em corrida é preciso um
bom cavallo; e quasi sempre, senão sempre o cavallo se fatiga muito
antes da girafa. Quando bebe ou quando apanha qualquer coisa do solo,
a girafa toma uma posição singularmente extravagante. Não se ajolha,
como algumas vezes se tem dito, mas abre ou alfas ta consideravelmente
os membros anteriores e estende o pescoço até tocar o chão com os
lábios.
A girafa ordinariamente não repousa senão de noite; deita-se como
o dromedário, caindo primeiro sobre as articulações dos membros de
diante e dobrando depois os posteriores. Para dormir deita-se de lado,
incurva os membros anteriores e inclina o pescoço para traz, repousando
a cabeça sobre as coxas. O somno do ruminante é curto e leve; pode
durante alguns dias seguidos deixar de deitar-se, repousando em pé.
A girafa tem um regimen vegetal; em virtude da sua conformação
particular não procura a herva do solo, mas as folhas d'arvores. Gompre-
hende-se perfeitamente, pelo que acima dissemos, quanta difficuldade
teria o animal em procurar á superfície do solo a ahmentação; pelo con-
trario, é-lhe extremamente fácil apanhar as folhas das arvores, ainda
das mais elevadas.
A hngua da girafa é de uma extrema mobihdade, o que certamente
tem grande importância para o eífeito de apanhar as folhas. De resto,
como se sabe, a lingua é na maioria dos ruminantes um órgão que serve
para a prehensão das substancias alimentares. Na girafa este órgão é de
VUL. 111 i
50 HISTORIA NATURAL
uma importância capital e tem para cila os mesmos usos que para o ele-
phante a tromba. O ruminante estende-a c apanha com ella os objectos
ainda os mais pequenos e delicados.
Quando procura o alimento, a girafa é guiada mais pela vista do
que pelo olfato; e a prova c que não poucas vezes se deixa cair em illu-
sões como a de apanhar uma flor artificial confundindo-a com um pro-
ducto da natureza.
Ao sul da Africa as mimosas de espinhos constituem o principal ali-
mento da girafa. Quando tem folhas frescas pode, como o dromedário,
passar longo tempo sem beber; no tempo secco porém, quando as arvo-
res se encontram já despidas de folhas e quando não ha senão hervas
amarellentas, então percorre distancias grandes, de léguas ás vezes, para
encontrar um curso d'agua onde possa mitigar a sede.
A girafa rumina de pé e parece executar esta funcção por um es-
paço de tempo menor que. qualquer outro animal da mesma ordem.
A girafa é intelhgente e vive em boa harmonia não só com as con-
géneres, mas ainda com outros animaes, se estes a não perturbam. Em
occasiões de perigo, se algum carniceiro a attaca, a girafa defende-se
vigorosamente, não com os cornos, mas a coice. Lembrando o vigor e
comprimento dos membros da girafa, facilmente se acredita que este ru-
minante possa, como aflirma Brehm, com uma pancada das largas patas
matar um leão.
Na epocha do cio, os machos combatem para a conquista da fêmea.
A gestação dura quatorze mezes e uma semana a quatorze mezes e meio.
Nos jardins zoológicos de Londres e Vienna observou-se da parte das
mães pelos recemnascidos uma grande indifferença, a ponto de ter de
fazer-se alimentar os novos ruminantes por vaccas. Dez horas depois do
nascimento a girafa corre já e ao terceiro dia principia a saltar.
GAPTIVEIRO
A girafa é geralmente estimada por toda a parte; d'aqui o desejo
de mantel-a captiva. Não é difficil obter a reahsação de tal desejo; não
ha animal que melhor se domestique. Cria aífeição ao homem e revela
em todos os seus actos uma intelligencia notável e uma ilhmitada con-
fiança por quantos a cercam. Infelizmente o ruminante não pode subsis-
tir por muito tempo nos cHmas da Europa; attaca-o uma doença que
affecta o systema ósseo e que tem mesmo o nome de doença das girafas,
mamíferos em especial 51
a qual se deve talvez attribuir á falta de movimentos e de alimentação
apropriada. Brehm crê que para atalhar ao mal seria necessário fornecer
ao ruminante o tanino em altas doses, porque, diz este naturalista «as
folhas de mimosa de que ellc se alimenta na pátria, são muito ricas
d'esta substancia.» *
usos E PRODUGTOS
A carne da girafa serve para alimento, a pelle dá um excellente
coiro, os cornos e os cascos emfim servem para a confecção de differen-
tes utensílios.
AS antílopes
Esta família, constituída por géneros na apparencia tão distinctos
uns dos outros como os de que nos vamos occupar, é conhecida, pelo
menos n'algumas das suas espécies, desde a mais alta antiguidade.
CARACTERES
Dada a extrema variedade de géneros e espécies que esta familia
abrange e, que estão longe de manter entre si grandes analogias de
apparencia, é diíTicil estabelecer de um modo geral os caracteres mor-
phologicos. lia com effeito na familia em questão animaes que recordam
Brehm, Obv. cit., vol. 2.», pg. 527.
52 HISTORIA NATURAL
O boi, outros que lembram o zorlito, outros o cavallo, outros ainda o al-
miscareiro.
Em geral, pode no entanto dizer-se que as antilopes são animaes
elegantes, de péllos curtos e de cornos mais ou menos tortuosos. A nuca
é coberta de péllo comprido que de ordinário se alonga em torno da
bocca de modo a constituir uma verdadeira barba como nas cabras.
A conformação interior das antilopes recorda, pode isto dizer-se de
um modo geral, a dos veados.
A fêmea tem duas ou quatro mamas, raras vezes cinco. Dá á luz
um filho por cada parto, muito raras vezes dois. A gestação dura seis
mezes e os filhos ao cabo de quatorze ou dezoito mezes, e ás vezes
mesmo de menos, encontram-se já perfeitamente aptos para a repro-
ducção.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
As antilopes encontram-se em toda a Africa, na Ásia e na Europa
centraes e meridionaes e na America do Norte.
COSTUMES '
Na sua grande maioria, as antilopes vivem nas florestas; ha espé-
cies no entanto que preferem as altas montanhas, elevando-se até ao li-
mite extremo das neves perpetuas. Umas procuram as florestas pouco
densas, outras as de arvores mais copadas, muitas emfim os pântanos
ou as visinhanças dos cursos d'agua. As espécies de grandes dimensões
reunem-se em bandos muito numerosos; as de pequenas dimensões vi-
vem em sociedades menores, de ordinário duas a duas.
Os hábitos das antilopes são ao mesmo tempo diurnos e nocturnos;
n'isto se distinguem estes ruminantes dos veados. Os movimentos são
vivos e graciosíssimos. Um bando ou rebanho de antilopes constituo sem-
pre para nós um espectáculo encantador, tanta é a belleza de formas
d'estes animaes e tanta a elegância de todas as attitudes que tomam,
de todos os movimentos que executam. A deselegancia de contornos, o
pezado dos movimentos são com eíTeito uma excepção n'esta famiha.
mamíferos em especial 53
Os sentidos são nas antílopes notavelmente desenvolvidos, princi-
palmente a vista, o ouvido e o olfato. Não são decerto animaes muito
intelligentes ; são-o comtudo mais que muitos outros ruminantes. São
curiosas, vigilantes e nunca se abandonam a um repouso descuidado;
sabem aproveitar as lições da experiência. Desde que se sentem perse-
guidas, as antílopes não se entregam ao somno sem que alguma fique de
sentinella para avisar do menor perigo.
O regimen das antílopes é exclusivamente vegetal: comem folhas,
hervas, gommos, rebentos, etc. Algumas espécies são de uma grande
sobriedade; contentam-se com lichens. Se encontram plantas verdes, po-
dem passar muito tempo sem beber. As espécies que habitam o deserto
oíTerecem disto um exemplo frisante.
CAPTIVEIRO
A maior parte das antílopes supportam bem o captiveiro, reprodu-
zem-se n'estas condições e são agradáveis ao homem. Algumas tornam-se
verdadeiros animaes domésticos.
usos E PRODUGTOS
As antílopes são animaes utiUssimos. Não é possível estabelecer con-
fronto entre os estragos que podem causar e que são diminutos e os
benefícios que nos prestam fornecendo-nos a carne, um bom alimento, a
pelle e os cornos, de grande préstimo industrial.
54 HISTORIA NATURAL
A CERVICABRA
Asscmelha-se um pouco ao gamo, sendo comludo mais pequena,
mais elegante e mais graciosa ainda do que elle. Tem pouco mais ou
menos um metro e trinta centimetros de comprido, a cauda mede deze-
seis centimetros e a altura, ao nivel da espádua, é de oitenta centime-
tros. O corpo é delgado, o dorso recto e a parte posterior do tronco
mais alongada que a anterior. A cabeça é arredondada, alta atraz, alon-
gada adiante; os olhos são grandes e muito vivos. As orelhas são gran-
des, ponteagudas, e as fossetas lacrimaes formam uma bolsa que o ani-
mal abre ou fecha á vontade. Os membros são delgados, compridos, os
posteriores mais altos um pouco que os anteriores. Os cornos são muito
compridos; medem quarenta e quatro centimetros, são dirigidos de
diante para traz a direito e contornados em passo de espiral. Muito pró-
ximos um do outro na raiz, separam-se na extremidade por um espaço
de trinta centimetros. Ao longo d'estes cornos existem saUencias annula-
res que são tanto mais numerosas quanto mais velhos são os animaes.
A cor do animal varia também muito segundo a -idade e o sexo. Os
velhos machos são muito escuros, quasi negros; as fêmeas são pardas e
os indivíduos muito novos são trigueiros ou ruivos. Em torno dos olhos
existe um largo circulo branco. Os pêllos são curtos, lisos, espessos, um
pouco rijos e crespos, como na maior parte dos veados. Os cascos são
de um comprimento médio, ponteagudos e elegantes.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPITTCA
A cervicabra é originaria das índias, onde habita em grande nu-
mero; encontra-se principalmente em Bengala.
mamíferos em especial
55
costumes
A cervicabra é um animal sociável, vivendo aos grupos de quinze
a dezeseis individues, pouco mais ou menos. Estas pequenas sociedades
são geralmente guiadas por um só macho e habitam de preferencia os
legares descobertos.
Este ruminante é de uma prudência extrema. Affirmam os observa-
dores que, emquanto um rebanho pasta ou descança, ha sempre alguns
machos ainda novos ou algumas fêmeas já velhas que se conservam de
sentinella, prestes a avisarem os companheiros do menor perigo.
A cervicabra alimenta-se exclusivamente de hervas e plantas sabo-
rosas; pode passar muito tempo sem beber.
Acerca da reproducção não encontramos informações exactas. Pa-
rece que não existe uma epocha determinada de cio, mas que o coito
se reahsa indiíTerentemente em qualquer estação ou em qualquer mez
do armo. Nove mezes depois da approximação sexual, a fêmea dá á luz
um filho que nasce completamente desenvolvido. A mãe esconde o filho
em um logar coberto d'arvores e amamenta-o, conduzindo-o depois para o
rebanho onde fica até ter a idade precisa para a reproducção. Por esse
tempo, o macho que dirigia o rebanho, tomado de ciúmes contra o in-
truso, repelle-o, obriga-o a procurar outro rebanho. A fêmea está apta
para a reproducção aos dois annos e o macho aos trez.
Mao grado todos os cuidados de que se cerca e de que falíamos
atraz, a cervicabra é victima não poucas vezes da panthera e do tigre.
CAÇA
A caça á cervicabra pelos meios ordinários, como é fácil deduzir
do que dissemos sobre a timidez e prudência d'este ruminante, seria
quasi impossivel. O mais leve ruido desperta este animal o mais pe-
queno perigo obriga-o a fugir. O indígena não emprega pois os meios
usuaes, vulgares; elle que conhece bem o animal não poderia fazel-o.
Para a caça do famoso ruminante, o indígena serve-se de um meio en-
genhosíssimo: toma um macho domesticado, prende-lhe aos cornos mui-
56 HISTORIA NATURAL
los laços corredios, dá-llic depois a liberdade e procura approximal-o de
um rebanho selvagem; desde que o ruminante domestico se defronta
com os seus congéneres livres, estes, machos e fêmeas, atiram-se contra
elle n'um combate pertinaz, do que resulta que, no calor da acção, mui-
tos se prendem aos nós corredios c são então facilmente aprisionados.
É este o melhor género de caça conhecido.
CAPTIVFJRO
Domestica-se facilmente a cervicabra desde que se apanha nos pri-
meiros tempos de existência. Supporta bem e por muito tempo o capti-
veiro, mesmo na Europa, vivendo em harmonia com os seus congéneres,
com todos os animaes domésticos e dando provas de dedicação ao ho-
mem. Quando se lhe concede um grande espaço, vive prosperamente;
confinada, pelo contrario, dentro de estreitos limites, a cervicabra defi-
nha, torna-se má e attaca muitas vezes os guardas.
Nas índias, este ruminante é tido na conta de sagrado. São encar-
regadas mulheres de lhe darem o ahmento, paga-se a músicos que tocam
em sua honra e só os bhramanes podem comer-lhe a carne.
usos E PRODUGTOS
A única utiUdade que retiramos da posse da cervicabra é a do
agrado que nos produz, das boas horas que passamos ao pé d'ella. No
estômago d'este ruminante existem bezoartes ou concreções calcareas
que n'outro tempo eram consideradas medicamentos poderosos.
mamíferos em especial
A SAIGA
Pertence a um género de antílopes que habita a Europa.
CARACTERES
Tem a estatura do gamo, o nariz de notável proeminência anterior,
as orelhas muito curtas e largas e o focinho curto também. O péllo é es-
pesso, molle, um pouco mais comprido na região da nuca, no dorso e
na parte anterior e inferior do pescoço que em qualquer outra parte. A
cabeça e o pescoço são de ordinário cinzentos; as espáduas, o dorso e
os flancos de um branco ou cinzento amarellado; o ventre e a face in-
terna dos membros são brancos; finalmente a parte media do dorso é
de um trigueiro accentuadamente escuro.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita a Europa oriental desde a Polónia até aos montes Altai.
COSTUMES
A saíga é sociável; no outomno agremia-se em bandos de alguns
milhares de individues que se dirigem ás regiões mais quentes para pas-
sarem o inverno, e voltam ao ponto de partida na primavera.
Outubro é a epocha do cio; travam-se então entre os machos gran-
des combates violentos para a conquista das fêmeas. Em Maio realisa-se
58 HISTORIA NATURAL
O parto, dando a fêmea á luz um filho único. Ao fim do primeiro mez ap-
pareccm os cornos c ao quarto cncontram-se já com metade do compri-
mento que deverão attingir definitivamente.
A saíga, como muitos outros animaes, gosta immensamente de sal e
procura-o com tenacidade. Strabon, naturalista antigo, disse que a saíga
(juando bebe aspira a agua não só pela bocca como pelo nariz; Brehm,
confirma esta informação.
Se um rebanho se apascenta, ha sempre uma saíga que vigia pelos
companheiros; se esta se deita, ergue-se uma outra que a substitue.
A vista não é boa n'este ruminante; em compensação porém, o ou-
vido e o olfato são muito desenvolvidos. Á menor suspeita de perigo, a
saíga junta-se ás companheiras, olha em torno de si com inquietação e
foge o menos ruidosamente possível; o macho caminha na frente, ve-
lando pela segurança do bando.
INIMIGOS
Os mais terríveis são o lobo e um insecto, o tabão. O lobo attaca os
bandos, destroe-os ás vezes completamente e devora os indivíduos, dei-
xando-lhes apenas o craneo. O tabão deposita sobre a pelle da saíga os
ovos, às vezes em quantidade tal que as larvas correspondentes deter-
minam uma gangrena e produzem a morte do animal. Entre as aves en-
contra também a saíga um poderoso inimigo, a águia.
CACA
Não é diíficil a caça da saíga, por dois motivos diíTerentes: porque
este animal se cança com facilidade e porque o menor ferimento é para
elle fatal. Persegue-se a cavallo e com o auxilio dos cães; o cavallo fati-
ga-o pela corrida e os cães matam-o ás dentadas. Também se caça a
saíga com armas de fogo e com aves de rapina. Quando este ultimo caso
tem logar, não é o falcão que se emprega, mas a águia real que é por
instincto um dos mais implacáveis inimigos do ruminante om questão.
mamíferos em especial
59
GAPTIVEIRO
Nos primeiros tempos de existência a saiga domeslica-se perfeita-
mente. Segue o dono como um cão, não tendo mesmo duvida em attra-
vessar atraz d'elle rios a nado. Diante dos seus congéneres selvagens, a
saíga domesticada foge precipitadamente.
A CERVICABRA DE PATAS NEGRAS
É um animal elegante, de dois metros de comprimento sobre um de
altura. Tem os cornos extensos, negros, caminhando até certa altura ver-
ticalmente e formando depois um arco de concavidade interna. O pêllo
é ruivo ou amarello carregado; o ventre, o peito, a face interna dos
membros e das orelhas, os lábios, uma pequena macula sub-occular e a
face inferior da cauda são brancos. Ao longo do dorso corre uma facha
escura que se divide na origem da cauda e desce para as coxas.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPUICA
Habita o sul da Africa.
60 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
É muito sociável este ruminante; encontram-se ás vezes bandos que
os caçadores aífirmam conter alguns centos de cabeças. De resto, não
encontramos esclarecimentos de qualidade alguma sobre os hábitos de
vida d'este ruminante africano.
AS GAZELLAS
São animaes de extrema elegância, de uma graça sem egual, de
uma agilidade incomparável. «No deserto, diz Brelim, a gazella é uma
apparição encantadora, poética; não admira pois que desde os mais re-
motos tempos a tenham cantado com amor os poetas do Oriente. O es-
trangeiro, o habitante das frias regiões do Norte, comprehendem, ao
vôl-a em liberdade, porque é que tanto lhe querem os árabes.» * E na
verdade os árabes estimam a gazella acima de tudo; n'ella encontram
um termo de comparação para tudo quanto é bello, para tudo quanto é
encantador: um olhar que os fascina é um olhar de gazella, um pescoço
bem contornado, elegante é um pescoço de gazella, etc.
Os antigos Egypcibs consagravam a Isis uma gazella. É também a
este ruminante que se refere, comparando-o a um amigo, o auctor do
Cântico dos Cânticos.
Brehm, Ohr. cit., vol. 2.", pg. 532.
'in dei
Jmp Lamoureui, a, Taris
Çaq}l
A Gazella 2. O Arguli.
Ma^alhãtes & Moniz, editores.
mamíferos em especial 61
CARACTERES
*ks gazellas teem os cornos em anneis, as orelhas compridas e pon-
teagudas e a cauda curta, terminada por um tuffo de péllos.
Estudaremos uma espécie única.
A GAZELLA
A grandeza máxima da gazella parece ser de metro e meio de com-
prido, incluida a cauda, sobre sessenta e seis centimetros de alto, ao ni-
vel da espádua. O corpo é refeito embora a altura dos membros o faça
parecer delgado. A parte posterior do tronco é um pouco mais elevada
que a anterior; a cauda é curta, os membros são altos e íinos e os cas-
cos elegantes. O pescoço é comprido. As orelhas teem uma extensão
pouco mais ou menos egual a trez quartos da cabeça; os olhos são gran-
des, vivos e ao mesmo tempo de uma extraordinária doçura. N'esta es-
pécie ambos os sexos apresentam armação; os cornos do macho são po-
rém, mais fortes que os da fêmea. N'um e n'outro sexo, estes appendi-
ces frontaes são inclinados para cima e para traz, mas com a extremi-
dade livre voltada para diante e para dentro de modo a darem idéa de
uma lyra. A cor do péllo é um amarello arenoso, em geral; no dorso e
nos membros porém predomina o ruivo e no ventre, o branco. De resto,
parece-nos inútil insistir, como fazem alguns auctores, sobre as cambian-
tes mais ou menos pronunciadas ou hgeiras de cor, oflerecidas por esta
ou por aqueha região do corpo, por isso mesmo que existem na espécie
muitas variedades sob este ponto de vista especial.
62 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita o norte da Africa, o alto Egypto, a Arábia, o centro da «Ásia.
COSTUMES
A gazella encontra-se sempre nos legares desertos, nas planicies;
nas montanhas e á beira dos rios é raríssima. Em Kordofahm encon-
Iram-se muitas vezes rebanhos ou bandos de gazellas de quarenta a cin-
coenta cabeças; nos legares favoritos do elegantíssimo ruminante é, to-
davia, muito raro encontrar sociedades de mais de trez a oito indiví-
duos. D'estas sociedades, as mais pequenas compoem-se ordinariamente
de macho, fêmea e um filho — que os acompanha até á mais próxima
estação do cio.
A gazella vive em movimento quasi constante e é por isso que quem
viaja pelo deserto tem a certeza de encontral-a passado pouco tempo;
exceptuando na epocha do grande calor o tempo que vae do meio dia
ás quatro horas da tarde, em que o animal rumina tranquillamente á
sombra das mimosas, todo o resto do dia o passa em movimento. Note-
mos com L. Figuier que, apesar de se encontrar a cada passo no de-
serto, não é tão fácil como poderia parecer o vél-a distinctamente, pela
razão de que o manto tem uma cor muito parecida com a do solo. E
com eíTeito, o leitor decerto se recorda de que atraz dissemos que a
cor fundamental do pêllo da gazella é um amarello arenoso. É por isso
que a vista de um europeu não pôde distinguil-a á distancia relativa-
mente curta de um kilometro; os árabes, cuja vista tem um grande
exercido nas percepções a distancia, percebem a gazella a oito kilome-
tros.
As gazellas quando ruminam á sombra das mimosas procedem sem-
pre com a cautella excessiva que a timidez naturalmente lhes inculca;
d 'entre todas ha uma que faz sentinella e que, emquanto as outras estão
deitadas, se conserva de pé, attenta a quanto se passa para avisar do
menor perigo. A um signal da sentinella todo o bando se pòe em fuga.
A vista, o ouvido e o olfato são sentidos perfeitíssimos na gazella;
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 63
a memoria é excellente, o que lhe permitte tirar immeiísos recursos da
experiência.
A gazella é inoffensiva e naturalmente timida, o que de modo ne-
nhum significa que lhe falte a coragem nos momentos precisos. Nos ban-
dos ou rebanhos é frequente, sobretudo na epocha do cio, ferirem-se
tremendos combates em honra das fêmeas. No entanto a gazella vive em
paz com os outros animaes e não é mesmo muito raro encontral-a arre-
banhada com outras espécies de antílopes. A timidez da gazella é antes
prudência.
O tempo do cio é variável segundo as condições climatéricas. Ao
norte d'Africa realisa-se no mez de Agosto e prolonga-se até Outubro;
nos trópicos principia ao declinar de Outubro e prolonga-se até fins de
Dezembro. É por este tempo que se travam as luctas sangrentas e tena-
císsimas em que não é raro que os machos combatentes partam a arma-
ção. O vencedor, o mais forte é o preferido pela fêmea. Ao norte o parto
tem logar nos fins de Fevereiro ou começos de Março e ao sul desde
Março até Maio. A gestação dura cinco a seis mezes e o producto é um
filho único, extremamente fraco nos primeiros dias- de existência. Esta
fraqueza dos filhos impõe aos pães o dever de uma sollicitude continua,
se me consentem a phrase. E de facto macho e fêmea vigiam o recem-
nascido e o protegem contra os animaes ferozes. Esta vigilância, este
amor, esta sollicitude, forçoso é confessal-o, nem sempre dão o resul-
tado a que miram; metade talvez das gazellas nos primeiros dias de
vida são victimas, afíirma Brehm, dos carniceiros, o que não deixa de
ser-nos útil, porque a reproducção illimitada da gazella implicaria a ruina
de toda a vegetação.
CAÇA
Caça-se a gazella com ardor, com verdadeira paixão. Isto explica-
nos a multiplicidade de meios empregados na perseguição do animal.
Com effeito, caça-se o animal usando das armas de fogo, empregando o
falcão, recorrendo ao auxilio dos galgos ou ainda ao das águias.
A caça com o falcão e com a águia é simples, é fácil: o caçador
leva preza a ave de rapina até avistar a gazella e larga-a então; a ave
eleva-se na atmosphera até uma certa altura, fita d'ahi a preza e desce
sobre ella lançando-se-lhe ao pescoço, abrindo-lhe as artérias, sangran-
do-a até á morte. O homem n'este caso torna-se mero espectador; in-
tervém apenas para apanhar e conduzir comsigo o animal abatido. A
64 HISTORIA NATUKA.L
caça pelas armas de fogo é um pouco mais diíficil, o que naturalmente
se comprehende recordando o que dissemos da prudência da gazella.
N'este processo de caça, todos os cuidados são poucos da parte do ho-
mem para não se fazer sentir pelo ruminante antes de ter attingido uma
distancia a que possa com segurança atirar. Brehm, no entanto, conta
que n'uma excursão ao norte da Abyssinia lograra simplificar este pro-
cesso de caça por um meio engenhoso. O naturalista ia a cavallo na com-
panhia de um amigo e levando um creado: desde que avistavam um
bando de gazellas, o naturalista desmontava, fazendo-se substituir na
sella do cavaho pelo creado; o naturahsta seguia a pé, rastejando na di-
recção dos ruminantes, em quanto os dois cavalleiros, companheiro e
creado, continuavam o caminho. As gazellas attentas á marcha dos ca-
vallos, esqueciam-se de vigiar em torno; assim Brehm conseguia appro-
ximar-se d'ellas até uma pequeníssima distancia. A caça por este meio
tornava-se ás vezes muito productiva.
Em alguns togares, quando muitos caçadores em perseguição das
gazellas fazem ouvir de momento a momento as detonações dos tiros, é
bello ver os ruminantes correrem para as collinas, para os pequenos
montes cobrindo-lhes rapidamente as eminências, expiando d'ahi como
de um observatório todos os movimentos dos perseguidores. Sobre o azul
do ceu desenham-se então nitidamente os contornos elegantíssimos do
animal è todas as suas formas se apreciam exactamente a distancia.
Nos desertos não é raro que a gazeUa perseguida se esconda por
traz de pequenas coUinas de areia tão communs ahi.
É digno de observar-se que a gazella quando perseguida pelo ho-
mem, não foge com toda a velocidade de que é capaz; a carreira do ru-
minante só se faz com toda a rapidez quando a perseguição é a de um
cão de caça. N'este caso, a fuga é extraordinariamente rápida; parece
que a gazella voa.
Os meios que acabamos de expor são os principalmente emprega-
dos na caça do ruminante em questão; no entanto no interior da Africa
emprega-se também as armadilhas. Cada um d'estes apparelhos é for-
mado, segundo a descripção de Brehm, de um circulo de madeira oíTe-
recendo um certo numero de ouriflcios nos quaes penetram outros tantos
paus em direcção inclinada e convergente para baixo, sendo na extremi:
dade livre ponteagudos. A cada uma d'estas armadilhas prende-se um
nó corrente hgado a um grosso pau. A armadilha colloca-se n'um pe-
queno fosso cavado na areia, nos togares que são transito habitual da
gazella. O ruminante ao passar colloca uma pata sobre qualquer dos paus
da armadilha, resvaUa, cae ao fosso, magoa-se, procura desprender-se
agitando-se, e assim serra o nó. Vendo-se preza a um grosso pau que a
incommoda, a gazella foge, corre com toda a velocidade possível, arras-
mamíferos em especial 65
ta o pau e consegue apenas partir a perna enleiada. O caçador, quando
vae examinar as armadilhas e descobre que uma gazella se deixou pren-
der, colloca-lhe na pista um cão adestrado que vae descobrir o animal
guiado pelo sulco que o pau deixou sobre o solo.
liNIMIGOS
Além do homem, conta a gazella entre os seus inimigos mais terri-
veis o cuguar e os cães do deserto.
GAPTIVEIllO
A gazella, apanhada quando nova, supporta bem o captiveiro e do-
mestica-se mesmo com uma certa faciUdade. Nas casas dos europeus ao
norte e este d'Africa véem-se quasi constantemente gazellas domestica-
das. Estas gazellas seguem o dono por toda a parte, como fazem os cães,
entram pelas salas, rodam em torno da meza de jantar, implorando ali-
mento, saem de casa, fazem excursões no deserto, mas voltam ao fim da
tarde ou quando ouvem a voz do dono.
Nos chmas europeus é também possível conservar a gazella longo
tempo em captiveiro, desde que se lhe dá sufíiciente campo e os cuida-
dos precisos, especialmente os que se referem a preserverar o animal
dos rigores dos frios. No estio é preciso fornecer ao ruminante espaço
suíTiciente para que elle possa desenvolver-se, caminhar em liberdade;
no inverno é necessário fornecer-lhe um aido quente. Não ha decerto
melhor ornato para um parque do que um bando de gazellas.
Alimenta-se a gazella captiva de pão, feno, cevada, trevo e hervas
verdes, se as ha. Gosta muito de agua com mistura de farello, como é
uso vulgar dar ás cabras. Bebe pouco; um simples copo d'agua basta-
Ihe para um dia. Aprecia muito o sal.
A gazella reproduz-se em captiveiro principalmente ao sul, desde
que é bem tratada. Fornecem-nos a prova os jardins zoológicos euro-
peus.
VOL. III
66 mSTOlllA NATURAL
AS CAMURÇAS
Tecm o porte das cabras, de que adiante havemos de occupar-nos,
e são caracterisadas pela posse de cornos lisos, immediatamente coUo-
cados acima das orbitas, verlicaes até certa altura e bruscamente recur-
vos para traz na extremidade. Nas camurças, os appendices frontaes
existem nos dois sexos e quasi com a mesma forma. A cauda é curta e
as glândulas mamarias duas.
Conhece-se uma espécie única de que passamos a fazer a des-
cripção.
A CAMURÇA DA EUROPA
Assemelha-se muito ás cabras, distinguindo-se todavia por um corpo
curto, refeito, pernas compridas e fortes, pescoço alongado, orelhas
ponteagudas e pela forma dos cornos. Mede um metro e vinte a um
metro e vinte oito centímetros de comprimento, não incluindo a cauda
cuja extensão é de oito centímetros; a altura, ao nivel da espádua, é
de setenta e seis centímetros e a extensão dos cornos de vinte e oito a
trinta. A região posterior do tronco é um pouco mais elevada que a an-
terior. Um macho velho pode pezar quarenta a cincoenta kilogrammas,
sendo todavia certo que raras vezes excede trinta. O macho tem os cor-
nos um pouco maiores e mais afastados que os da fêmea.
O manto da camurça da Europa varia muito de estação para esta-
ção. No estio é de um trigueiro arruivado, passando a amarello claro
no ventre. Ao meio do dorso ha uma Unha de um trigueiro carregado.
A garganta é amarella e a nuca de um branco amarellado. As espáduas,
as coxas, o peito e as partes lateraes do tronco são de um pardo es-
curo; a parte posterior do tronco é branca. A face superior e a raiz da
cauda são de um pardo arruivado; a face inferior e a extremidade são
mamíferos em especial 67
negras. Uma facha negra, perfeitamente delimitada, parte da orelha e
passa por diante dos olhos. Manchas de um amarello ruivo encontram-se
no angulo anterior do olho, entre as narinas e o lábio superior.
No inverno a camurça é de um trigueiro muito escuro, tendo po-
rém o ventre branco. A parte inferior dos membros é mais clara que a
superior e oíTerece reflexos ruivos. Os pés e a cabeça são de um branco
amarellado Uma facha longitudinal negra estende-se da ponta do focinho
até ás orelhas.
A muda de pêllo faz-se tão insensivelmente que o animal só durante
muito pouco tempo apresenta o manto de inverno, ou o manto de verão,
taes como acabamos de descrevêl-os.
DISTRIBUIÇÃO GEOGIUPIIICA
«A pátria da camurça, diz Brehm, são os Alpes. Encontra-se este
ruminante desde a Sabóia até Abruzzes passando pelo sul da França;
depois, para o sudoeste, atravez das montanhas da Dalmácia até á Gré-
cia, sobre os rochedos de Veluzi; para o norte até aos Carpathos, em
Tatra. Diff'erirão especificamente as camurças dos Pyrineus, de Hespanha
e dos Alpes? Não sabemos responder. Nos Alpes as camurças são vulga-
res, exceptuando a Baixa-Austria onde se lhes faz uma guerra, uma per-
seguição continua.
«Encontram-se ainda as camurças no Cáucaso, na Geórgia, na Sibé-
ria; são porém pouco conhecidas, motivo por que nos abstemos de fa-
zer-lhes a descripção.)) *■
COSTUMES
A camurça prefere para viver as regiões elevadas, principalmente
no estio. Ao amanhecer, a camurça desce, procurando pastos, pelos flan-
cos das montanhas; ao meio dia deita-se á sombra de um rochedo ou
Brehmj Obr. cii., vol. 2.", pg. 552.
68 HISTORIA NATURAL
de uma arvore e depois de um certo tempo, sobe de novo a montanha
era demanda de um logar onde repouse mais longamente e onde ru-
mine. Á noite, abriga-se entre os rochedos, nas grutas ou sob as sahen-
cias que elles oíFerecem, na vertente septentrional ou occidental da mon-
tanha, se é no estio, na meridional ou oriental, se é no inverno. Quando
a noite é clara, quando ha luar, vô-se a camurça pastar; não é pois um
animal exclusivamente diurno.
A camurça vive sohtaria, excepto no tempo do cio. Então, reune-se
ás congéneres, formando-se bandos, que foram em outro tempo muito
mais numerosos do que são hoje.
Pela rapidez dos movimentos, a camurça rivaUsa com qualquer outro
antílope das montanhas. Trepa com destreza, salta com segurança, corre
com facilidade pelos legares ainda os mais perigosos, n'aquelles mesmos
que as cabras se não atrevem a pisar. Quando marcha de vagar, tem
alguma coisa de pezada, de deselegante; quando corre porém, quando
foge, torna-se bella, graciosa, elegantíssima. Os saltos que dá são admi-
ráveis; Wolten viu uma camurça captiva saltar um muro de quatro me-
tros e meio de altura. O mesmo observador, medindo a distancia que de
um salto pode percorrer a camurça, encontrou sete metros. Corre com
segurança extrema por cima dos rochedos mais escarpados. Mesmo
quando ferida, mesmo com uma perna quebrada, a camurça marcha por
caminhos perigosos com assombrosa agihdade.
Somente no gelo, diz Tschudi, a camurça marcha devagar, com
precaução. É também ahi que a sua caça se torna relativamente fácil.
Schinz diz que ás vezes a camurça se aventura tanto na ascensão
dos rochedos que chega a ponto de não poder nem continuar a marcha,
nem retrogradar, sendo forçada pelo cansaço, pela fadiga a deixar-se
cair nos precipícios. Tschudi contesta isto e assegura que em casos taes
a camurça se não deixa cair, mas se atira ao precipício, qualquer que
seja a altura, forcejando por tocar o solo de modo a molestar-se o menos
possível; para isso estende violentamente o pescoço para traz. Embora
presinta, como deve presentir, que o salto lhe será fatal, nem por isso
deixa de díil-o; é ainda Tschudi que o aífirma.
A camurça tem admiravelmente desenvolvida a memoria dos lega-
res. Conhece todos" os caminhos que uma vez trilhou; conhece, pode di-
zer-se, todas as pedras dos seus domínios.
Os sentidos são excepcionalmente perfeitos n'esta espécie; a vista,
o ouvido e olfato attingem com effeito, na camurça o mais alto grão de
desenvolvimento. Assim dotado, o famoso ruminante pode exercer, e
exerce, em torno de si uma vigilância constante; mesmo dormindo, pa-
rece que os seus órgãos continuam a funccionar. Para descançar, raras
vezes se deita; de ordinário toma a posição mais conveniente para poder
mamíferos em especial C9
fugir ao mais leve perigo sentido. Geralmente é sob as saliências dos ro-
chedos que se esconde, com o dorso coberto e os lados do corpo livres,
de modo a abranger em torno de si um largo espaço. Quando um bando
ou rebanho pasta, ha sempre uma camurça que faz sentinella, destacada
ao longe, a distancia; essa sentinella que pasta só, ergue de instante a
instante a cabeça, olha em todas as direcções, fareja em todos os senti-
dos. Se sente um homem (e é capaz de senlil-o a uma distancia consi-
derável) não socega em quanto não consegue vél-o. O bando, conhece-
dor do perigo, agita-se, inquieta-se, corre de um lado para o outro,
farejando, olhando sempre, procurando calcular a fuga. Se descobre o
homem, a camurça olha-o com curiosidade e, se ehe se não move, eUa
não se move também. Mas desde que o caçador executa a mais hgeira
deslocação, a camurça foge, corre com espantosa velocidade em busca
de um asylo qualquer, de um escondrijo próximo. «Quando o guia pre-
sente um perigo, escreve Tschudi, assobia, como faz a marmota, bate
no chão com uma das patas de diante e deita a fugir; os outros se-
guem-o a galope.» *
Sob o ponto de vista das faculdades intellectuaes, a camurça é tam-
bém perfeitamente dotada; é prudente, examina, considera, calcula an-
tes de executar qualquer movimento. Tem uma memoria excellente;
mesmo decorridos muitos annos, sabe onde a perseguiram, reconhece o
logar onde encontrou abrigo. Ha regiões em que a caça da camurça é
prohibida; ahi o ruminante é atrevido, cheio de confiança e abeira-se do
homem como se quizesse conhecel-o de perto, tomar com ehe relações.
Pelo contrario, nas locahdades em que a perseguem, a camurça foge do
homem desde que o vê, embora a uma enorme distancia.
No estio a camurça alimenta-se de plantas alpinas, nomeadamente
das que crescem perto do hmite das neves, rebentos de pinheiros e de
abetos. No inverno é forçada a contentar-se com hervas que atravessam
o gelo, com musgos e lichens. Não é exigente na alimentação e supporta
ás vezes por muito tempo a fome. A agua porém é-lhe sempre indispen-
sável. Gosta muito de sal. Se os pastos são bons, a camurça engorda
consideravelmente; na epocha do cio porém, e no inverno, quando uma
espessa camada de gelo cobre o solo, emagrece muito. Então desce ás
florestas e ahi come os lichens que, como barbas, pendem das arvores.
Estabelece-se perto dos pinheiros e desde que o tempo o permitte, vae
d'arvore em arvore procurando ahmento. Ha quem affirme que nos in-
vernos rigorosos, as camurças morrem á mingua de sustento. Tschudi
aflirma também que ás vezes a camurça procurando os lichens prende
Tschudi, Ob)\ cit, pg. 440.
70 IIISTORTA NATURAL
OS gallios aos ramos de alguma arvore, fica suspenso e ahi morre. O na-
turalista que acabamos de citar encontrou o esqueleto de uma camurça
assim morta.
O cio principia em fins do outomno. Os velhos machos que durante
todo o inverno tinham vivido solitários, reunem-se então em bandos. É
também então que teem logar as luctas tremendas dos machos, luctas
em que de ordinário algum dos contendores é morto, se ellas se dão
nas montanhas ou sobre precipicios. O mais forte consegue n'estas con-
dições despenhar o mais fraco. O vencedor seguido da fêmea isola-se
para viver com ella até ao meio do inverno, epocha em que todos os
pffix^s se agremiam em bandos. Vinte semanas depois do coito, em fins
de Abril ou Maio, a fêmea pare um, raras vezes dous filhos. Poucas ho-
ras depois de nascida, a pequenina camurça encontra~se já apta para se-
guir a mãe e ao fim de alguns dias é quasi tão ágil como ella. A solli-
citude da mãe é extrema; pelo contrario, o pae não liga á prole a mí-
nima importância. A camurça conserva-se na companhia da mãe até ao
fim de Maio.
Antes de parir, a camurça tem-se separado do rebanho e procurado
um logar próprio, solitário, no qual permanece com a prole. E' de ver
como ella ensina pelo exemplo ao filhinho tudo quanto elle carece de sa-
ber: trepar, correr, saltar. De resto, o filho paga em dedicação todos
os desvelos maternos. Muitos caçadores aífirmam ter visto os filhinhos
immoveis deante do cadáver da mãe. Os orphãos são recolhidos e cuida-
dos pela primeira fêmea que apparece.
O crescimento da camurça é rápido: aos trez mezes apparecem os
cornos e aos trez annos está adulta. Pode attingir, segundo se pensa, a
idade de vinte ou trinta annos.
INIMIGOS
São numerosos' os inimigos da camurça e terríveis os perigos que
corre, desde as quedas de grandes penedos que matam muitos d'estes
ruminantes até ás avalanches que sepultam rebanhos inteiros. O lynce,
o lobo e o urso são, entre os mamíferos, os mais temíveis perseguido-
res da camurça. Os carniceiros aerios, a águia por exemplo, são peiores
ainda, porqu-e o ruminante mal pode evitar-lhes o attaque. No entanto,
segundo Brehm, o homem subsiste como o mais cruel de todos os ini-
migos pela teimosia com que persegue o pobre ruminante.
mamíferos em especial 71
CAÇA
Está perfeitamente averiguado lioje que o numero de camurças foi
n outro tempo maior do que é hoje. A introducção das armas de fogo
na caça, explica esta diíTerença. As perseguições á camurça teem uma
longa historia. Desde os tempos mais remotos que taes perseguições são
consideradas, na phrase apaixonada dos caçadores, um nobre prazer. Os
homens mais altamente collocados da gerarchia social, imperadores, ar-
cebispos, duques, archiduques, príncipes, todos mais ou menos e desde
muito cultivaram o nobre prazer, repitamos a phrase.
Ora, digamol-o desde já, a caça da camurça não é um exercício fá-
cil, ao alcance de todos; quem o tentar precisa de ser sóbrio, robusto,
infatigável, pratico nas montanhas e conhecedor dos costumes do ani-
mal. «O caçador carece, diz Tschudi, de uma vista excellente, de uma
cabeça ao abrigo das vertigens, de um corpo solido, endurecido, capaz
de supportar os caprichos atmosphericos das regiões geladas, de cora-
gem, de presença de espirito, de uma intelligencia rápida, de muita de-
cisão, e emfim de bons pulmões e de músculos infatigáveis. Não lhe
basta ser um atirador excehente; é-lhe preciso ser também um trepador
perfeito, mais atrevido que a mais atrevida cabra.» * Se nos lembrar-
mos das alturas a que é forçado a subir o caçador de camurças, se por
um momento imaginarmos as posições extravagantes que 6 obrigado a
tomar e os perigos por que passa, não acharemos hyperbohcas as pala-
vras do auctor de Os Alpes.
O caçador, segundo Brehm, veste um fato cinzento e quente, toma
um pau gancheado e colloca ás costas um sacco com pólvora, chumbo e
mantimentos, geralmente pão, queijo e alguma bebida alcoohca. Ou ca-
minha calçando uns grossos sapatos de montanha, ou, o que é talvez
melhor, vae descalço, levando resina com que fricciona os pés para não
escorregar. A arma é geralmente uma carabina, de coronha leve. É quasi
indispensável n'esta caça um bom occulo de alcance.
O caçador antes de principiar a sua excursão venatoria n'um dado
local, percorre-o pedindo informações aos pastores; se as pedisse aos
caçadores não obteria resposta. Uma vez conhecido o local, que é ge-
ralmente de algumas léguas quadradas, parte de noite para a caça de
1 Ohr. at., pg. 450.
72 mSTOniA NATURAL
modo a ter attingido as pastagens da camurça antes do erguer do sol.
Gaminlia silencioso sempre, lendo em vista a direcção dos ventos, até
se approximar dos legares, antes reconhecidos, em que a camurça re-
pousa. Então esconde-se por traz de algum rochedo ou de algum malto,
até romper o sol. N'esta occasião o guia do rebanho ergue-se lenta-
mente; os companheiros imitam-o. l5 o momento em que o caçador pode
escolher a victima, geralmente um macho que facilmente se conhece
pelo tamanho e aíTastamento dos cornos. O caçador atira e o animal cae;
os outros ficam por um momento espantados a olhar para o ponto d'onde
parte o fumo, para fugirem logo depois.
lia um outro processo de caça que consiste em perseguir a camurça
oLrigando-a a subir até um ponto d'onde lhe seja absolutamente impos-
sível sair. Esta caça, comprehende-se bem, é diíTicil e perigosíssima, mas
em geral productiva; o rebanho de camurças, seguido pelo caçador, che-
gando a um ponto para além do qual não pode passar, retrograda e
vem assim passar ao lado do homem, ás vezes mesmo por cima do corpo
d'elle. É então que o caçador pode matar muitos individues. N'estas ex-
cursões o homem, tentado pela caça, commette verdadeiras imprudên-
cias; ás vezes encontra-se em situações desesperadas em que toda a
presença de espirito é pouca para salvar-se de uma morte imminente.
A caça da camurça pelos tempos de gelo na montanha é perigosís-
sima. Quantos caçadores mortos n'estas inglórias e obscuras excursões!
O frio, a queda de fragmentos de gelo, a difficuldade de caminhar, o
somno irresistível, eis os perigos princípaes, as causas de morte mais
communs. De resto, um tal processo de caça é sempre pouco productívo,
porque geralmente a camurça no tempo das neves abandona a montanha
pelos largos descampados.
Hoje que o numero de camurças é diminuto, mal vale a penna ten-
tar a caça. Tschudi affirma que, mesmo depois de ter atirado sobre uma
camurça, se a não feriu de morte, o caçador passa trabalhos horríveis
para a apanhar. Se a bala não partiu direita á cabeça, ao pescoço ou ao
coração, a camurça consegue fugir com notável rapidez e o caçador é
forçado a seguir ás vezes dias inteiros o rastro de sangue para apanhar
o animal. Acrescente-se que o caçador que leva ás costas uma camurça
morta, carece de adoptar precauções de toda a ordem para não ser
visto pelos caçadores das locahdades que vae attravessando. Se é visto,
a inveja e as rivahdades despertam-se, o que, não poucas vezes, occa-
siona luctas bem pouco edificantes. O naturahsta que vimos de citar diz
que os interesses colhidos hoje na caça da camurça não compensam de
modo nenhum o trabalho e o tempo que ella exige. No entanto o ardor,
o enthusiasmo dos caçadores parece não diminuir, antes augmentar á
medida das diíficuldades e da falta de lucros. Assim conta o mesmo au-
mamíferos em especial 73
ctor a este respeito dois casos interessantissimos: um refere-se a um
velho de setenta e um annos que soíTreu a amputação de uma perna e
que, não obstante, continuou a caçar, enviando ao medico dois annos
depois da operação uma pelle de camurça por elle próprio morta; o ou-
tro caso, não menos curioso refere-se a um rapaz que dizia a Saus-
sure: «meu pae e meu avô morreram na caça da camurça e eu estou
perfeitamente convencido de que me espera a mesma sorte; comtudo
ainda quando me quizessem dar uma fortuna com a condição de renun-
ciar á caça, não acceitaria.»
CAPTIVEIRO
A camurça, apanhada em quanto nova, domestica-se facilmente.
Alimenta-se principalmente de leite de cabra, de bervas saborosas e de
pão. Dá-se perfeitamente com as cabras, de que tem muitos costumes, e
com os cães. Segue o dono e parece supportar muito bem o captiveiro.
De resto, a sobriedade que a caracterisa, faz com que seja fácil, pouco
dispendioso o sustental-a. Devemos observar que á medida que a idade
progride, a camurça vae-se tornando selvagem, usando muitas vezes
das armas naturaes.
São muito raros os casos de reproducção em captiveiro. A união
sexual da camurça com a cabra domestica, é fecunda.
usos E PRODUGTOS
A camurça fornece-nos a carne que é um bom alimento, a gordura
que é de qualidade superior, melhor que a da cabra, e emfim a pelle
que, como se sabe, é consistente, macia, de muita utilidade e que n'ou-
tro tempo se empregava na confeição de vestidos.
74 IIISTOniA NATURAL
A CONDOMA
Esle animal não ó conhecido na Europa senão desde a ultima me-
tade do século xviir. É certo que na Europa tinham apparecido por mui-
tas vezes e desde a mais remota antiguidade os cornos d'este animal.
No entanto não se sahia qual elle fosse, porque se não vira um exem-
plar completo. Hoje o animal é muito conhecido e Brehm que o obser-
vou vivo dá d'elle uma descrippão completíssima, superior a quantas co-
nhecemos d^oulros auctores.
CARACTERES
A condoma é uma antílope muito maior que o veado ordinário. O
macho adulto mede três metros e trinta centímetros de comprido desde
o focinho até á extremidade da cauda. A fêmea é mais pequena; raras
vezes excede dois metros e sessenta centímetros de comprimento sobre
um e sessenta de altura ao nivel da espádua.
Nas formas a condoma recorda o veado. Tem o corpo refeito, o pes-
coço de comprimento médio, a cabeça curta, a região frontal larga e o
focinho ponteagudo. O lábio superior 6 coberto de péllos, os olhos são
grandes e as orelhas mais compridas que metade da cabeça. Os cornos
constituem para este animal, na phrase de Brehm, um ornamento es-
plendido. N'um macho velho elles podem attingir cento e trinta e dois
centímetros de comprido. Custa até a comprehender como o animal pôde
com elles e sobretudo como com taes appendices consegue atravessar os
togares arborisados. Os cornos são inclinados para traz e um pouco para
fura; ás vezes o aíTastamento entre as extremidades livres dos cornos
chega a ser de um metro. Estes appendices frontaes são conformados
em espiral, comprehendendo cada volta doesta um terço do comprimento
total do órgão.
O manto d'este animal, formado de pellos lisos, curtos e um pouco
grossos, oíferece uma certa belleza. A côr fundamental é difficil de ex-
primir: é um composto de pardo, trigueiro e ruivo. A parte posterior
do ventre e a face interna das pernas são de um liranco pardacenío. A
mamíferos em especial 75
cauda é de um trigueiro accentuado na face superior e branco na iníe-
rior, terminando por um tufo de pellos negros. Os olhos offerecem um
circulo ruivo. Sobre o trigueiro do tronco destacam-se sete a nove fa-
chas transversaes brancas, algumas bifurcadas. Collocadas a egual dis-
tancia umas das outras, estas fachas descem do dorso para as partes
latcraes do tronco; as das fêmeas são mais estreitas que as do macho
c as do recemnascido são mais numerosas que as do adulto.
Habita a Africa, sendo ahi abundante cm todas as regiões. No Gabo
da Boa-Esperança foi n'outro tempo mais vulgar do que e hoje.
COSTUMES
Ora habita as planícies, ora as montanhas, mas sempre as florestas,
sobretudo as de arvores espinhosas. Os machos vivem sohtarios e as
fêmeas em pequenas agrcmiapões de quatro a seis individues. Comtudo,
alguns caçadores affirmam que os machos novos, repellidos dos reba-
nhos pelos velhos, formam pequenos grupos onde invariavelmente reina
uma grande alegria.
A condoma oíTerece sob o ponto de vista dos costumes, notáveis
semelhanças com o veado. Percorre grandes espaços e muda regular-
mente de morada. O porte é tão altivo como o do veado e a marcha tão
graciosa como a d'elle. Emquanto a não perturbam, a condoma segue ao
longo dos flancos das montanhas ou nas planícies, evitando cuidadosa-
mente picar-se ou prender a armação. Ahmenta-se principalmente de fo-
lhas e gomos d'arvores, sem comtudo despresar as hervas. Se por um
motivo qualquer se amedronta, caminha a trote, raras vezes a galope.
Mesmo quando este ultimo caso se dá, a velocidade nunca é muita.
Nas florestas, a condoma quando marcha ó forçada para se não prender
a lançar para traz a cabeça até que as extremidades dos cornos razem
a superfície do dorso. O macho não faz ouvir a voz senão na opoca do
cio.
U) HISTORIA NATURAL
A quadra dos amores é em fins de Janeiro. O macho solta de tarde
grarides gritos que altracm os rivaes á lucla. A parturição realisa-se em
fins de Agosto; o trabalho de gestapão dura pois sete a oito mczes. A
fêmea alimenta, ensina, vigia o recemnascido; o macho não collabora
n'esta empreza delicada.
A condoma pela robustez de que é dotada tem poucos inimigos a
temer; defcndc-se corajosamente dos carniceiros mais temíveis.
CACA
Ha um modo fácil para caçar a condoma, desde que se possue uma
boa arma de fogo: é a embuscada. Depois do meio dia, a condoma, que
precisa de beber agua em grande quantidade, desce das montanhas em
busca de um riacho, de uma corrente qualquer. Como n'estas excursões,
a antilope segue sempre os mesmos caminhos, um caçador que os co-
nheça, espera-a e atira-lhe. Sendo a condoma um animal vigilante, muito
bem dotado de sentidos, o caçador raras vezes poderá fazer-lhe fogo a
uma distancia inferior a duzentos passos; é por isso que não pode dis-
pensar-se uma boa arma de alcance.
Os indígenas, usando de armas primitivas ou de má quaUdade, não
podem empregar este processo de caça. Adoptam um outro. Reunem-se
a outros companheiros em grande numero, e perseguem a condoma na
certeza de que em pouco tempo a fatigarão. A antilope perseguida de
um lado foge para o opposto, onde todavia encontra também persegui-
dores; obrigada a fugir de novo, acontece-lhe o mesmo que anterior-
mente, até que o animal se fatiga e lucta, mas acaba por ser vencido e
morto a golpes de frecha.
GAPTIVEIRO
A domesticação das condomas é fácil em quanto são novas. Os na-
turalistas que as teem visto n'estas condições são concordes em nol-as
apresentar como animaes encantadores, alegres e dóceis. Nos jardins
zoológicos da Europa, estas antílopes são raríssimas.
mamíferos em especial 77
usos E PRODUGTOS
A carne da condoma é, segundo dizem, excellente; Brehm que a
comeu, compara-a á do veado. A medulla dos ossos é para certas popu-
lações africanas um acepipe de primeira ordem. A morte em caça de
uma condoma é para os cafres e para os abyssinios um motivo de festa.
A pelle é também muito estimada; fornece correias, coberturas para sel-
las, cliicotes, etc. Segundo Gerbe, os hollandezes pagam por altos pre-
ços esta parte do animal. Os cornos servem ainda em algumas povoa-
ções para reservatórios de mel, de sal, de café, etc.
A antílope negra
Tem pouco mais ou menos as dimensões do veado. A cor geral do
pêllo é um negro Insidio, de grande belleza. Os cornos teem pelo menos
duas vezes o comprimento da cabeça e são annelados nos seus dois ter-
ços inferiores. Os cornos existem em ambos os sexos, sendo na fêmea
mais delgados que no macho.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
É originaria do Gabo da Boa-Esperança,
78 IlISTOr.lA NATUHAL
COSTUMKS
Não encontramos inclicai^ões positivas sobre o género de vida da
antilope negra. Não sabemos quaes os logares que babita de preferen-
cia, qual a epocba da reproducção, quaes os seus hábitos emfim. A jul-
gar pelo numero de mamas deve dar á luz dois filhos por parto. Gordon
Cumming que a viu liraita-se a represental-a como um bello animal, vivo,
magestoso e timido.
AS antílopes okyx
Este género é conhecido desde a mais aíTastada antiguidade. De uma
das suas espécies encontramos a imagem em diversas posições nos mo-
numentos do Egypto e da Núbia. Ahi apparece ás vezes com uma corda
ao pescoço o que sem contestação indica que o animal era objecto de
caça e de captiveiro a esse tempo. As lyras dos gregos eram feitas dos
cornos d'esles animaes.
Este género comprehende três espécies, das quaes mencionaremos
uma apenas, por mais importante.
A antílope leucoryx
Esta espécie é também algumas vezes designada pelo nome de oryx
da Nubicc. É um animal pezado e muito característico. A armação d'este
MAMIFEIIOS EM ESPECIAL 70
ruminante differe por tal lorma da de todas as outras antílopes que qual-
quer confusão é impossível. Os cornos lêem pelo menos metade do com-
primento do corpo; nos machos adultos medem, termo médio, um metro
e quinze centímetros de comprido e apresentam vinte e seis a quarenta
anneis em toda a extensão. A espessura que é de quatro a cinco centí-
metros na raiz, vae diminuindo pouco e pouco até á extremidade. Diri-
gindo-se para fora e para traz n'uma curva de grande raio e de conve-
xidade superior, os cornos que na origem são muito próximos affastam-se
mais nas extremidades. O péllo do animal é curto, grosseiro e espesso.
A cor geral é um escuro fuliginoso com cambiantes ruivas e manchas
trigueiras mais ou menos numerosas na cabeça, focinho e dorso.
COSTUMES
Os hábitos de vida da antílope leucoryx são os mesmos que os das
outras espécies; relativamente ao captiveiro, á caça e aos usos e pro-
ductos também o que se diz de uma espécie diz-se de todas. Assim as
considerações que seguem deve o leitor consideral-as como relativas a
todas as espécies de oryx.
As oryx, segundo Brehm, encontram-se aos pares ou em pequenos
bandos compostos de macho fêmea e filhos. Os grandes bandos de vinte
e mais cabeças, como um que viu Gordon Gumming, são raros. Nos to-
gares desertos as oryx não são raras; comtudo, porque as caracterisa
uma grande timidez, é diíficil vêl-as; geralmente conseguem fugir antes
que o observador tenha tempo ao menos de avistal-as. Parece, ainda se-
gundo o observador citado, que estas antílopes evitam as florestas e pro-
curam os descampados, as largas planícies, onde encontram ahmento em
abundância. Quando chega o inverno e com elle a epocha da fome, as
oryx teem conseguido accumular uma tal quantidade de gordura que
podem muito bem fazer face á crise natural, alímentando-se quasí exclu-
sivamente de ramos desfolhados d'arvores. Então com efí*eito, as mimo-
sas constituem o único alimento fresco de que lhes é possível utíhsa-
rem-se. Quando se apascentam, appoíam os membros anteriores contra
os troncos d'arvores para poderem attingir os ramos mais elevados. As
oryx teem uma marcha excessivamente rápida; só os bons cavallos con-
seguem seguil-as.
Das oryx umas vivem em boa harmonia com as antílopes, outras pelo
contrario existem em hostihdade permanente contra todas as espécies.
80 HISTORIA NATURAL
A leucoryx pertence a este ultimo grupo. As oryx não são tão tímidas
como as outras antílopes; desde que se sentem excitadas, precípi-
tam-se furiosas contra o adversário, tentando feril-o. Deíendem-se admi-
ravelmente dos cães; pendendo a cabeça para diante, agitam os cornos
com tanta violência e com tanta rapidez para a direita c para a esquerda
que se os cães não conseguem evitar a pancada, são traspassados. As
oryx batem-se mesmo, não sem vantagem ás vezes, com os carniceiros
mais temíveis, com a panthera e o leão, por exemplo.
A gestação no animal captivo dura duzentos e quarenta e oito dias.
Sobre a reproducção do ruminante em liberdade faltam informações.
CAÇA
A caça das oryx só se faz a cavallo. Como estas antílopes são admi-
ravelmente dotadas de sentidos, particularmente do olfato e como teem
a marcha excessivamente rápida, a caça exige muitas precauções. O ca-
çador para poder approximar-se das oryx precisa caminhar contra o
vento e sempre fazendo o menor ruido possível. Se assim não proceder,
as antílopes em questão, sempre vigilantes, conseguirão fugir quando o
caçador se encontra ainda a uma distancia superior a quinhentos pas-
sos. Quando se persegue uma oryx, deve ter-se a certeza de que só
passadas algumas horas e depois de se terem cansado uns poucos de
cavaUos é que se consegue fatigal-a e attingir a approximação conve-
niente para poder atirar com probabilidade de êxito.
GAPTIVEIRO
Trazidas ao captiveiro, as antílopes oryx chegam a conhecer Ò
dono; no entanto é necessário um extremo cuidado com ellas, porque
são irritáveis e fazem dos cornos um uso pouco agradável. Vivem em
desharmonia permanente com todos os outros animaes captivos, ainda
quando da própria espécie. São teimosas; se, por exemplo, não lhes ap-
petecer andar, nada ha capaz de fazel-as deslocar. Se se emprega a
violência, o único resultado que se colhe é o irrital-as, fazendo-as em-
mamíferos em especial 81
pregar os terríveis meios de defeza que possuem. Emfim, são animaes
perigosos em captiveiro. Tem^se conseguido na Europa a reproducfão
de alguns individuos.
usos E PRODUGTOS
A carne das oryx utilisa-se como alimento e dos cornos fazem-se
no Cabo pontas de lanpa.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Todas as antílopes oryx habitam os togares mais seccos e mais ári-
dos da Africa. A espécie leucoryx encontra-se na Africa central e septen-
trional; as outras espécies vivem ao sul d*o mesmo continente.
O NYLGO
Este ruminante é geralmente considerado entre os naturalistas como
a transição do veado para o boi. É notável tanto pelo porte como pela
cor. Tem o corpo alongado, refeito e a parte anterior do corpo um pouco
mais alta e mais larga que a posterior. Entre as espáduas apresenta uma
pequena bossa. O pescoço é de comprimento médio, a cabeça pequena,
fina; as narinas são largamente fendidas, os olhos vivos e as orelhas gran-
des e compridas. Os cornos são pequenos, cónicos, de vinte centímetros
de comprido e recurvados em semi-circulo; na fêmea, quando existem,
são mais curtos que no macho. As pernas são altas e fortes, os cascos
VOL, III .6
82 IllSTOlUA NATURAL
grandes e largos, a cauda qiic desce até á articulação tibio-tarsica é co-
berta de pêllos curtos em cima e compridos na parte inferior. A fêmea
apresenta duas mamas. Os péllos em geral são curtos e rijos; os da
parte superior do pescoço formam uma crina levantada e os da parte
inferior constituem ao meio um tufo comprido e pendente.
A cor geral 6 um pardo trigueiro com um ligeiro reflexo azulado.
A parte anterior do ventre, as pernas de diante, a face externa das co-
xas são escuras e as pernas de traz são negras; os dous terços poste-
riores do ventre e a face interna das coxas são brancos.
Os machos adultos teem mais de dois metros de comprimento e um
metro e trinta centímetros de altura ao nivel da espádua.
/
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita as índias orientaes. Raro nas costas, é vulgar no interior das
terras.
COSTUMES
O que se sabe da vida do nylgó é muito pouco. Tem-se dito que elle
vive perto dos juncaes, em cujo interior porém se não aventura, receioso
do tigre. Sabe-se que os machos luctam pela posse das fêmeas em com-
bates sempre mortíferos. O nylgó é talvez o mais resoluto dos represen-
tantes da grande família das antílopes. Quando o perseguem, volta-se ar-
rojadamente contra o caçador, procurando feril-o, a despeito de todos
os golpes de que o tornem victima. Mesmo submettido ao captiveiro, o
nylgó é o terror dos guardas; embora se mostre dócil, a verdade é que
não devemos confiar em apparencias, sobretudo na epocha do cio.
Segundo informações dos viajantes, o nylgó vive o dia inteiro na
floresta. Só de madrugada ou depois do pôr do sol procura o alimento.
Produz grandes estragos nas florestas, motivo por que é geralmente de-
testado.
A gestação dura oito mezes; a primeira produz um filho e as outras
dois. Em captiveiro o cio realisa-se em Março; em liberdade o parto tem
logar no mez de Dezembro.
mamíferos em especial 83
CAÇA
Os indígenas fazem a caça do nylgó com verdadeira paixão. Os pro-
cessos variam segundo a posição social do que se propõe caçar; uns vão
a cavallo, outros a pé, uns sós, outros com grandes séquitos, uns muni-
dos das armas primitivas, outros com famosas espingardas modernas.
Recordando o que dissemos do caracter do nylgó, facilmente se compre-
hende que a caça d'este animal não é destituída de perigos.
CAPTIVEIRO
Dissemos a propósito dos costumes o bastante para dar idéa dos
inconvenientes ligados ao captiveiro do nylgó. A domesticação é anti-
quíssima nas índias. Na Europa o primeiro par domesticado que se viu
foi em 1767, na Inglaterra. Antes do fim do século xviii foram vistos
outros na França, na Hollanda e na Allemanha. Hoje raro será o jardim
zoológico europeu em que o nylgó se não encontre.
O GNOU
Constituo a única espécie de um género que os antigos denomina-
ram catoblepas. É um animal curioso, verdadeiro mixto de antilopc, de
boi e de cavallo ou, segundo a expressão de Brehm, «verdadeira cari-
catura de todos estes animaes tão graciosos e tão nobres.» De resto,
pelos costumes é tão singular como pela forma.
84 mSTOIUA NATURAL
CARACTERES
O adulto mede dois metros c meio de comprimento, incluida a
cauda que tem cincoenta centímetros de extensão; a altura ao nivel da
espádua é de um metro e quinze centímetros. A fêmea é um pouco mais
pequena. N'esta espécie os cornos existem em ambos os sexos e são
achatados e recurvados, primeiro para baixo e depois para cima e um
pouco para fora. Na fêmea são mais fracos do que no macho. A cor do
manto é um trigueiro mais ou menos carregado consoante as regiões e
passando ora para o ruivo, ora para o amarello, ora para o negro.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Habita o sul da Africa até perto do equador. Foi n'outro tempo
muito vulgar no Cabo, d'onde todavia desappareceu quasi. É commum
ainda no paiz dos hottentoles.
COSTUMES
O gnou é um exemplo notável de mamíferos emigrantes. Todos os
annos com eífeito, reahsa uma emigração que Smith attribue a um ins-
tincto e que Brehm faz depender simplesmente da falta de alimentos no
logar d'onde se retira.
O gnou é muito ágil, admiravelmente conformado para viver nas
vastas planícies.
Príngle aífirma que o gnou fica como doido quando lhe mostram
uma bandeira vermelha presa na extremidade de uma haste. Caminha
para o homem, arremettendo, foge á menor ameaça, volta para de novo
fugir e assim sempre emquanto a bandeira encarnada se agita. Ha n'isto
alguma coisa que recorda as corridas dos toiros.
mamíferos em especial 85
Gordon diz que o gnou não foge quando perseguido pelo homem.
Segundo este escriptor os gnous cercam o perseguidor, saltando em
torno, executando movimentos de um grande cómico.
Parece que os velhos machos vivem isolados ou em pequenos gru-
pos de quatro a cinco individues. A voz do gnou adulto recorda a do
boi.
Os sentidos da vista, do ouvido e do olfato são desenvolvidos n'este
ruminante. A intelhgencia não é muito grande.
Nada se sabe relativamente á reproducção; nem se conhece a epo-
cha do cio, nem o numero de fdhos dados á luz em cada parto.
CAÇA
O gnou corre com extrema velocidade e por muito tempo, o que
torna difficil a caça. Diz-se que, perseguido desperto, investe contra o
homem procurando feril-o com os cornos e com as patas e que até, uma
vez convencido de que não pode escapar pela fuga, se atira a precipí-
cios ou á agua, para terminar por uma vez os soíTrimentos.
Os hottentotes matam o gnou com tiros de frechas envenenadas e
os cafres esperam-o de traz das arvores, attravessando-lhe o peito com
lanças quando elle passa. Não é vulgar o emprego de armadilhas ou
de fossos contra o gnou.
CAPTIVEIRO
O gnou depois de velho é perfeitamente indomeslicavel; conserva
até morrer a selvageria do estado Hvre. Mesmo em novo, embora perca
um pouco da rudeza brutal que o distingue, é sempre um máo compa-
nheiro e, sobretudo, um companheiro perigoso. É indiíferente ás caricias,
é desagradável de vêr-se e não chega a reconhecer ou, pelo menos, a
dar provas de que reconhece quem lhe distribuo os alimentos. Preso, o
gnou perde a faculdade de trotar e de dar os grandes saltos que no es-
tado de liberdade lhe são tão próprios.
86 IIISTOniA NATURAL
USOS E PRODUGTOS
A utilidade que retiramos do gnou é a mesma que retiramos de to-
dos os animaes selvagens da Africa. Fornece-nos uma carne que é tenra
e succulenta, uma pelle de que se faz um bom couro e emfim cornos que
servem para cabos de facas, de garfos e para análogos usos industriaes.
AS CABRAS
Os ruminantes d'esta familia teem um tamanho regular, o corpo re-
feito e vigoroso, as pernas fortes e pouco elevadas, o pescoço grosso, a
cabeça relativamente curta, a região frontal larga, os olhos grandes e
vivos e as orelhas direitas, terminadas em ponta e muito moveis. Ambos
os sexos apresentam cornos com estrias, ora recurvados para traz em
semi-circulo ora contornados no vértice em forma de lyra. Gomo quasi
sempre, os cornos são no macho muito mais fortes que na fêmea.
Paliando das diíferentes espécies, completaremos o estudo dos ca-
racteres morphologicos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
IlabilaraxTi originariamente o sul da Ásia, a Europa e o norte da
Africa. Hoje ha espécies espalhadas em toda a superfície do globo. Existe
uma espécie própria da America do Norte.
mamíferos em especial 87
COSTUMES
Vivem de ordinário nas montanhas, onde procuram os logares mais
selvagens, mais solitários. É espantosa a altura a que ascendem algumas
espécies. Onde quer que existam rochedos elevados é certo encontra-
rem-se estes ruminantes. De inverno porém, descem ás planícies.
Brehm descreve as cabras como animaes sociáveis, ágeis, vivos, pru-
dentes, astutos mesmo. Correm, saltam constantemente e apenas se dei-
tam para ruminar. Marcham com extraordinária seguranpa nos logares
ainda os mais perigosos. Incapazes de sentirem a vertigem collocam-se
nas arestas de rochedos e fitam indifferentes os abysmos mais profundos.
São muito vigorosas e resistem por longo tempo á fadiga. E é por isto
exactamente que ellas são próprias para habitar logares ingratos, onde o
alimento só se obtém á custa de grandes esforços. Não deve confundir-se
a prudência das cabras com medo; porque a verdade é que, quando ha
necessidade d'isso, ellas combatem com denodo, com coragem, com va-
lentia, talvez até com prazer.
Os hábitos das cabras são mais diurnos do que nocturnos.
Alimentam-se de plantas que brotam nas montanhas. Sabem esco-
Ihel-as e para encontrarem bons pastos obrigam-se muitas vezes a ver-
dadeiras emigrações. Carecem muito d'agua e não podem viver, por isso,
nos logares seccos.
Os sentidos da vista, do olfato e do ouvido são desenvolvidos nas
cabras; o primeiro d'estes porém, é talvez menos perfeito que qualquer
dos outros. São intelhgentes e sabem perfeitamente utiKsar-se das lições
da experiência para evitar os perigos.
O numero de filhos varia entre um e quatro. Os novos seres, pou-
cos minutos depois de dados á luz, encontram-se em condições de segui-
rem os pães ainda nos logares mais alcantilados e cheios de perigos. A
epocha do cio e da parturição variam com as diíferentes espécies, como
veremos.
usos E PRODUCTOS
Comparando os prejuizos que as cabras nos causam com os benefí-
cios que nos proporcionam, ve-se que estes predominam. As cabras são-
88 HISTORIA NATURAL
nos úteis pela carne, pela pelle, pelos cornos, pelos pêllos e ainda pelo
leite que nos fornecem.
Tem sido objecto de vivas discussões entre os naturalistas o esta-
belecer o numero de géneros e espécies comprehendidos na vasta famí-
lia das cabras. A nós que não temos em vista, nem podemos estudar to-
dos os géneros, nem todas as espécies, essa discussão não nos preoc-
cupa. Trataremos apenas de descrever as espécies consideradas como
mais importantes ou pela variedade dos costumes que nos apresentam,
ou pelos productos que nos ministram ou emfim porque habitam togares
mais conhecidos e mais accessiveis.
O BODEQUIM DOS ALPES
É um formoso e elegantíssimo animal de um metro e quarenta e
cinco a um metro e sessenta centímetros de comprimento sobre um me-
tro de altura, pouco mais ou menos. O corpo é refeito, vigoroso, o pes-
coço de comprimento médio e a cabeça relativamente pequena; as per-
nas são vigorosas, os cornos extensos, recurvados para traz, fortes, e os
olhos vivos, de uma expressão intelligente. O péllo que é espesso, varia
segundo as estações, sendo grosseiro, crescido e encrespado, no inverno,
e curto, fino e brilhante no estio. A cor do manto varia também com as
idades e as estações. No inverno predomina o pardo arruívado e no es-
tio o pardo amarellado. No dorso existe uma raia trigueiro-clara, pouco
pronunciada. A região frontal, o vértice da cabeça, o nariz e o peito são
de um trigueiro acentuado. Na maxílla inferior, por baixo das orelhas e
por traz das narinas, apparece um amarello arruívado. As orelhas são
trigueiro-amarellas por fora e brancas por dentro. As pernas são escu-
ras e a linha mediana inferior do corpo é branca. Á proporção que o ani-
mal envelhece, a cor do manto vae-se tornando mais uniforme. Existem
cornos em ambos os sexos, sendo os do macho notáveis pelo tamanho e
pelo vigor. Estes appendices são na raiz muito approximados; subindo,
recurvam-se para traz em semi-circulo e afíastam-se nas extremidades.
Na raiz são consideravelmente mais grossos do que na ponta. Uma se-
mamíferos em especial 89
cção horisontal d'estes órgãos representa um quadrilátero alongado; os
círculos de crescimento são representados por nós e saliências muito
pronunciadas, sobretudo na face anterior e na parte media do órgão. Os
cornos crescem indefinidamente; no entanto, o crescimento que nas pri-
meiras idades se faz de um modo rápido, é muito vagaroso depois que
o animal se torna velho. Esses appendices frontaes chegam a attingir
um metro e quinze centímetros de comprimento e quinze kilogrammas
de pezo. Na fêmea os cornos parecera-se mais com os da cabra domes-
tica que com os do bodequim macho e são pequenos, cyhndricos, hgei-
ramente recurvados para traz. Os appendices frontaes apparecem ao fim
do primeiro mez de existência; a idade d'elles.e, portanto, do animal
pode avahar-se pelo comprimento e pelo numero de sahencias circula-
res que no adulto chegam a ser vinte e quatro.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O nome de bodequim dos Alpes com que designamos este animal não
quer de modo nenhum dizer, como á primeira vista pareceria, que elle
é abundante n'estas montanhas. Damos-lhe aquelle nome principalmente
para o distinguir de uma outra espécie que habita a Hespanha. O bodequim
de que nos estamos occupando não só não é vulgar nos Alpes, mas mesmo
é ahi tão raro que durante alguns annos se suppoz extincto. A espécie
existe ainda nos Alpes, mas em numero limitadissimo. Já no século xv e
no século passado foi preciso- tomar algumas medidas para obstar a que
o formosíssimo ruminante desapparecesse totalmente.
Sabe-se por informação de historiadores antigos que o bodequim exis-
tiu algum tempo cm toda a immensa cordilheira dos Alpes. Era então
vulgar, porque muitas vezes appareceram nos circos romanos cem e du-
zentos indivíduos. Mas depois, porque a caça era muito activa, a espé-
cie foi rareando, sendo já difficil na Suissa, no século xv, apanhar al-
guns indivíduos. A caça foi n'essa epocha prohibida, sob penas impor-
tantes, o que de nada valeu, porque, a despeito das medidas tomadas,
continuou sempre. No século xvi foram de novo tomadas algumas medi-
das de protecção ao bodequim dos Alpes; a caça era permittida apenas
a um numero hmitado de pessoas. Gomo porém se acreditava então que
as differentes partes do animal possuíam enérgicas virtudes therapeuti-
cas, a caça continuou ainda, máo grado as multas impostas aos caçado-
res. O numero de indivíduos foi decrescendo sempre e no século passado
00 HISTORIA NATURAL
foram retomadas as antigas medidas prohibitivas da caça, com pouco re-
sultado, decerto, se nos lembrarmos de que no começo do nosso século
se chegou a crer que a espécie desapparecera completamente. Hoje exis-
tem ainda alguns, segundo Tschudi, n'uma parte muito restricta dos Al-
pes. Mas, como observa um notável naturalista, são taes os prémios of-
ferecidos pelos muzeus zoológicos por um exemplar, que a caça conti-
nua sempre e é bem possível que n'um futuro, talvez não remoto, os úl-
timos representantes da espécie tenham desapparecido. Sendo o bode-
quim dos Alpes tão bello como é, custa pensar que um dia virá em que
tenha deixado de existir. Hoje que o preconceito das suas virtudes the-
rapeuticas parece ter cessado, cremos que o único incentivo á caça do
animal provém exclusivamente dos prémios dados pelos muzeus zoológi-
cos. Ora parece-nos e parecerá a toda a gente verdadeiramente estra-
nho que sejam os próprios naturalistas, tão empenhados em conservar a
espécie, os mesmos que indirectamente estão contribuindo para extin-
guil-a !
COSTUMES
O bodequim dos Alpes é sociável; hoje porém, como o numero é
muito restricto, não se encontram senão pequeníssimos bandos. O logar
que o animal prefere são sempre as alturas inacessíveis a quasi todos
os outros animaes. Os machos, sobretudo, attingem elevações verdadei-
ramente espantosas. Á noite os bandos descem para as florestas e vol-
tam ao romper do dia para as alturas. No estio procuram as vertentes
dos montes expostas ao norte; no inverno preferem as vertentes meri-
dionaes.
Todos os movimentos do bodequim são vivos e ágeis. Corre com
grande rapidez e trepa com uma hgeireza extraordinária. Não é raro que
o animal suba ao longo de paredes quasi verticaes. A mais Hgeira rugo-
sidade, a aspereza mais insignificante c que á vista do homem passa
desapercebida, é para o bodequim um como degrao. Não é susceptível
de vertigens; fita com indifferença os precipícios, os abysmos mais pro-
fundos e salta pelos rochedos collocados a seis mil metros de altura com a
mesma segurança e a mesma distracção com que nós andamos pelas ruas.
Acerca d'este famoso ruminante espalharam os antigos as fabulas
mais disparatadas, algumas das quaes, transmittidas pela tradição oral,
chegaram até nós. Segundo uma d'essas phantasias, o bodequim cairia
sobre os cornos.
mamíferos EMESPEGIA'L 01
o olfato, a vista e o ouvido são sentidos muito perfeitos no bodc-
quim dos Alpes; a intelligencia é também desenvolvida. O bodequim é
timido, o que, mesmo quando não fosse o eífeito de um instincto, se ex-
plicaria facilmente como resultado da caça secular e pertinaz de que é
victima.
A alimentação do bodequim dos Alpes é-lhe fornecida pelas plantas
mais succulentas e saborosas que crescem n'estas montanhas.
A quadra do cio tem logar em Janeiro. Como acontece com muitos
outros animaes, estes entregam-se então ás grandes luctas que caracte-
risam geralmente a selecção sexual. Attendendo a que estas luctas se
realisam em togares perigosíssimos pela altura, facilmente se compre-
henderá como são terríveis para o mais fraco dos contendores e como
muitas vezes a morte de um é o resultado final. Cinco mezes depois do
acto sexual, isto é em fins de Junho ou principies de Julho, a fêmea dá
á luz um filho único, pouco mais ou menos do tamanho de um cabrito,
mas admiravelmente próprio já para a vida das montanhas e dotado de
uma extraordinária coragem. A mãe é uma soberba educadora, cheia de
desvellos, de solhcitude. O amor do filho é também notável; se a mãe
foi ferida, não sairá de ao pé d'ella e persistirá mesmo junto do seu ca-
dáver, embora no primeiro momento tenha fugido cheio de terror.
INIMIGOS
Os principaes inimigos do bodequim, sobretudo em quanto pequeno,
são a águia, o lynce e o lobo. D'estes o mais terrível é sem duvida o
primeiro. As fêmeas sabem honrar o sentimento materno, defendendo
corajosamente e á custa da própria vida, os recemnascidos.
CAÇA
A caça do bodequim dos Alpes é ainda hoje duplamente altractiva
— pelo preço estipulado para cada exemplar vivo ou morto e pelos pe-
rigos que offerece. Quem não é caçador mal pode comprehender que o
perígo possa constituir um attractivo; para o homem que uma vez ex-
02 HISTORIA NATURAL
perimentou as sensações fortes, inseparáveis da caça aos ruminantes
montanbezes, a aífirmação nada tem de estranha. Rccorde-se o leitor do
que atraz dissemos fallando da perseguição á camurça e perceberá que
não é sem razão que os naturalistas consideram os perigos de uma caça
como o mais poderoso incentivo para ella. Tschudi, o pittoresco paisa-
gista de Os Alpes, dá-nos uma idéa dos perigos da caça ao bodequim nas
palavras que seguem: «Passar a noite sem abrigo de espécie alguma
perto do gelo, não ser possível ao homem preserverar-se do perigo de
morrer de frio senão entregando- se a um exercício violento, são decerto
motivos bastantes para tornarem bem amargos os prazeres da caça. Mas
mil outros perigos vêem ainda juntar-se a estes. Conta uma velha chro-
nica que um caçador da camurça e do bodequim, ao attravessar o ge-
leiro de Simmernalp, caiu n'uma fenda profunda aberta nos rochedos. Os
companheiros de caça, suppondo-o perdido para sempre, encommenda-
ram-lhe a alma a Deus e continuaram a marcha; ao voltarem da caça
porém, tiveram a idéa de tentar um recurso qualquer para salvar o in-
feliz. Correram na direcção de uma casa que ficava a uma meia légua do
logar da queda, deitaram a mão a um cobertor, único recurso que en-
contraram, cortaram-o em longas tiras e partiram com a rapidez possível
para junto do desgraçado. Emquanto isto se passava, Staeri (era este o
nome do caçador infehz) soífria o mais tremendo martyrio: na occasião
de cair, havia-se insinuado entre duas paredes de gelo e ahi, fixado nos
bordos pelos braços, mergulhado até ao peito na agua gelada, esperava
que cada instante fosse o ultimo de vida para elle. Por fim os compa-
nheiros chegam, a corda formada de tiras é atirada abaixo, Staeri con-
segue amarral-a cuidadosamente em volta do corpo e principia a subir
de vagar, guindado pelos companheiros. Mas quasi ao chegar acima as
tiras rompem-se e o desgraçado candidato d morte (assim lhe chama o
chronista) recae no abysmo. O que restava da corda já não era bastante
para chegar até ao fundo e Staeri, além d'isso, partira um braço na
queda. Os companheiros ainda assim não o abandonam; cortam em tiras
mais estreitas o que lhes resta do cobertor e atiram a nova corda ao
precipício. Staeri enrola este fraco hame em torno do corpo, tão sohda-
mente quanto lh'o permitte o braço partido. A ascensão recomeça, fa-
zendo o infehz os mais desesperados esforços para secundar os seus ami-
gos. Por fim chegou acima. Uma vez salvo do perigo, o pobre caçador
caiu desmaiado, sendo preciso transportal-o até casa. Em toda a sua vi-
da, fallou sempre com terror dos momentos de agonia passados no fundo
do abysmo, entre rochedos.» *
1 Tschudi, Ohr. ciL, pg. 650.
mamíferos em especial 93
•
Devemos notar com o naturalista a quem pedimos a citação ante-
rior, que a caça do bodequim, dados os perigos sem numero que oíTe-
rece, não está em relação com os lucros que produz. É pois incontestá-
vel que são esses perigos mesmos que sollicitam o caçador, que é uma
verdadeira paixão que o incita á perseguição do animal. Não insistire-
mos mais sobre este ponto; o que escrevemos acerca da caça da ca-
murça é o bastante para comprehender-se quantos perigos, quantas pri-
vações, quantas desesperanças, quantas hostilidades da natureza tem
diante de si o que se aventura á perseguição do bodequim dos Alpes.
GAPTIVEIRO
O bodequim adulto não pode reduzir-se ao captiveiro. O novo apa-
nha-se e conduz-se das montanhas para as casas, fazendo-o preceder
por uma cabra domestica que o amamenta pelo caminho. É fácil domes-
tical-o. Vive harmonicamente com os outros animaes captivos, nomeada-
mente com a cabra. As relações sexuaes entre o bodequim e a cabra
são fecundas. Os mestiços que d'ahi resultam, são fortes e assemelham-se
mais ao primeiro que ao segundo d'estes ruminantes. Quanto á cor, ora
se parecem com o pae, ora com a mãe. Os mestiços são também fecun-
dos; entrando em relações reproductivas com as cabras produzem filhos
que, como elles, se parecem principalmente com o bodequim. Emfim os
mestiços da segunda geração fecundados por um bodequim, dão filhos
que a custo se diíTerençam d'este.
É de notar que o bodequim á medida que avança em annos vae per-
dendo as boas qualidades que o caracterisam emquanto novo para se
tornar selvagem, intratável e muito perigoso até.
94 HISTORIA NATURAL
O BODEQUIM DE HESPANHA
É conhecido também pelo nome de cabra dos montes ou cahra mon-
tez. A denominação de bodequim de Hespanha não é perfeitamente justa,
porque o animal não vive só n'este paiz, mas ainda em Portugal; deve-
ria chamar-se antes bodequim da peninsula hispânica, porque existe effe-
ctivamente e é até vulgar em quasi todas as altas montanhas de Hespa-
nha e Portugal. Na serra Morena, na serra Nevada, nas montanhas de
Andaluzia, na serra da Estrella, em todas estas paragens se encontra
com frequência.
Os costumes d'esta espécie são análogos aos da espécie que acaba-
mos de estudar e não merecem menção especial.
Os mezes mais próprios para a caça d'este ruminante são Julho e
Agosto, porque é então que se torna possível passar as noites á altura
de trez mil metros ou mais, sem receio do frio.
A carne do bodequim de Hespanha é um bom alimento e a pelle,
segundo Brehm, paga-se em Granada por vinte ou trinta francos.
AS CABRAS PROPRIAMENTE DITAS
São mais pequenas que o bodequim. Teem os cornos prismáticos,
de bordos cortantes, sem nodosidades na face anterior, divergentes e
munidos de saUencias transversaes. Pelos demais caracteres asseme-
Iham-se ao bodequim.
mamíferos em especial 05
A CABRA SYLVESTRE
É este o ruminante que, com taes ou quaes probabilidades, se consi-
dera geralmente como o ascendente primitivo da cabra domestica.
A cabra sylvestre tem com effeito os mesmos caracteres essenciaes
que a domestica, diíferindo d'ella apenas pelo tamanho e pela direcção
dos cornos. As relações sexuaes de uma com outra são fecundas; o cru-
zamento dá um typo intermediário aos dois.
caracteres
A cabra sylvestre é mais pequena que o bodequim e maior que a
cabra domestica. Mede cento e sessenta centímetros, comprehendida a
cauda que tem vinte e dois, e um metro de altura ao nivel da espádua;
o sacro fica um pouco mais elevado. O corpo é alongado, a cabeça cur-
ta, a região frontal larga, o focinho obtuso e o dorso do nariz quasi re-
cto. Os membros são relativamente altos e os cascos obtusos. Os olhos
são pequenos e as orelhas de tamanho médio; a cauda é muito curta. Os
cornos chegam a attingir nos velhos machos um metro e trinta centíme-
tros de extensão; são porém fracos e descrevem um arco de concavi-
dade posterior. São muito approximados na raiz e divergem nas extre-
midades, ficando separados por uma distancia de cerca de vinte e cinco a
vinte e nove centímetros. O manto é composto de duas ordens de pêHos:
um fino, curto e outro comprido e rijo. Em ambos os sexos existe \in\
tufo volumoso de péllos por baixo da mandíbula e que constituo o que vul-
garmente se chama barba. A cor geral do manto é um pardo arruivado
ou um amarello trigueiro com reflexos ruivos, mais claro aos lados do
tronco e no ventre. Sobre a linha media do dorso estende-se uma tira
negra perfeitamente delimitada. Os membros anteriores são de um tri-
gueiro escuro na face de diante e dos lados; por cima dos cascos exis-
tem de ordinário, tanto nos membros anteriores como nos posteriores
porções de pe!lo brancas. Os lados da cabeça são de um pardo arruiva-
do, a região frontal é trigueiro-escura, bem como o são a raiz do nariz,
o queixo e a barba.
96 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Encontra-se principalmente a oeste e ao centro da Ásia. Procura
sempre os togares elevados, as montanhas onde ha neves perpetuas.
COSTUMES
A cabra sylvestre é, como todos os animaes da familia, muito so-
ciável. Encontra-se geralmente em rebanhos de dez a vinte individues
submettidos á direcção de um velho macho experimentado.
Os hábitos de vida da cabra sylvestre teem uma grande analogia
com os do bodequim. Gomo elle, corre pelos caminhos mais perigosos
com toda a segurança, fita durante horas seguidas os precipícios, sem
vertigem, trepa admiravelmente e dá saltos assombrosos. É muito timida
e muito vigilante, o que lhe permitte evitar numerosos perigos.
O olfato e o ouvido são órgãos apuradissimos n'esta espécie.
A aUmentação da cabra sylvestre consiste principalmente em plan-
tas saborosas que crescem na montanha e em folhas d'arvores. De ma-
nhã, muito cedo, o ruminante abandona a floresta em que passou a noite,
sobe aos legares mais altos das montanhas onde se apascenta o dia in-
teiro até que, ao declinar da tarde, retoma o caminho da floresta.
O coito reahsa-se em Novembro. A fêmea pare em Abril dois filhos,
raras vezes um só. Poucas horas depois do nascimento, os filhos encon-
.tram-se já em condições de seguir a mãe pelas montanhas. Crescem ra-
pidamente e, uma vez reduzidos ao captiveiro, domesticam-se facilmente.
Se na casa em que estão captivos ha cabras domesticas, a educação
faz-se mais rapidamente ainda. Os captivos habituam-se facilmente aos
novos companheiros cujos hábitos imitam, saindo a pastar quando elles
saem e entrando em casa quando elles entram.
mamíferos em especial
CAÇA
A perseguição da cabra sylvestre oíferece diíficuldades grandes que
alguns naturalistas chegam a comparar ás da caça do bodequim. Os to-
gares perigosos que o ruminante habita, a timidez de que é dotado e
principalmente a vigilância que sem cessar exerce em torno de si, são
os motivos das diíficuldades que andam inherentes a esta caça.
Vamos passar em revista as principaes variedades ou raças de ca-
bras.
A CABRA ANA
Não mede mais de sessenta e seis centímetros de comprimento so-
bre cincoenta de altura, ao nivel da espádua. Tem o corpo refeito, as
pernas curtas e fracas, a cabeça larga e o focinho comprido. Os cornos
existem nos dois sexos e são do comprimento de um dedo apenas, re-
curvados primeiro para traz e para fora e depois, no terço final, um
pouco para diante. O corpo é coberto por um pêllo curto, espesso, de
côr geralmente escura e algumas vezes com espaços brancos. Os exem-
plares completamente negros são muito raros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
Habita uma larga extensão do interior da Africa. Os limites de dis-
[persão geographica não são bem conhecidos.
98 IIÍSTOIUA iNATLllAL
COSTLMES
Nas povoações margiriaes do Nilo Branco é vulgar encontrar-se a
cabra anã no estado domestico. É um ruminante alegre e que trepa ao
longo dos troncos d'arvores com grande facilidade. Hrehm que a viu de
perto nas suas viagens á Africa, exprime-se assim: «Foi a cabra anã a
que primeiro me provou, com grande admiração minha, que os ruminan-
tes podem trepar ás arvores. Nada mais gracioso do que ver oito a dez
d'estes pequenos animaes comendo sobre o topo de uma grande mimosa.
Muitas vezes as vi em posições que, se não fosse testemunha presencial,
me pareceriam impossíveis. Pousavam as quatro patas sobre um ramo
de modo que, por mais que se agitasse, guardavam sempre o equilí-
brio.» *
Os donos d'estas cabras não teem grandes cuidados nem grandes
trabalhos com ellas. Deixam-as sair de manhã muito cedo e conservam-
Ihes á tarde a porta das cortes aberta para recolherem.
Estas cabras, apezar de pequenas, produzem muito leite.
A CABRA DE ANGORA
Constituirá uma simples raça da cabra domestica, como querem al-
guns, ou uma espécie, como pretendem outros? Não nos parece possível
decidir desde já esta questão. Os que dão á cabra de Angora o titulo de
typo especifico baseam-se sobre o facto negativo de serem estéreis as
relações sexuaes d^ella com a cabra domestica. Estes naturalistas acham-
se dispostos a consideral-a como descendente do bodequim habitante das
montanhas do Thibet com que tem muitas analogias morphologicas.
Brchm, Obr. cíC, vul. 2/^, pg. ÕDÕ.
mamíferos EMESPEGIA-L DD
CARACTERES
A cabra de Angora é um ruminante formoso e grande, de corpo re-
feito, pernas fracas, pescoço e cabeça curtos, de pêllo e cornos inteira-
mente differentes dos que nas outras cabras se observam. Os cornos
existem em ambos os sexos; no macho são fortemente comprimidos, tem
os bordos cortantes, a extremidade obtusa, separam-se ou afastam-se ho-
risontalmente, descrevem em toda a extensão uma dupla espiral e teem
a ponta dirigida para cima. Os da fêmea são mais pequenos, mais arre-
dondados, de simples contorno e voltados para baixo, na direcção das
orelhas que são pendentes, e também um pouco para fora. Os pêllos do
manto são compridos, espessos, moUes, luzidios e um pouco crespos. Só
no focinho, orelhas e parte inferior dos membros é que os pêllos são
curtos e lisos. Ambos os sexos apresentam uma barba muito comprida,
formada de pêllos rijos. De ordinário estas cabras são inteiramente bran-
cas; os individues com manchas escuras são muito raros.
Os pêllos extensíssimos d'esta cabra não são, como algum tempo se
suppoz, verdadeiras sedas; pelo contrario, elles encobrem as sedas. É
precisamente o inverso do que tem logar n'outras espécies de longo
pêllo e, como observa Brehm, este caracter pode servir para fazer dis-
tinguir a cabra de Angora. No estio o pêllo cae por camadas, mas cresce
logo depois com extrema rapidez. O pêllo d'esta cabra tem um pezo que
osciUa entre mil duzentas e cincoenta e duas mil e quinhentas grammas.
DISTRIBUIÇÃO GEOGIIAPIIIGA
Parece que os antigos não conheceram esta espécie. Belon é o pri-
meiro que no século xvi a menciona. O nome que designa este rumi-
nante vem-lhe da pequena cidade Angora, na Turquia Asiática, que ella
habita e d'onde se tem espalhado pela Europa.
lUU IllSTOKlA NATURAL
COSTUMES
A pátria d'este ruminante é secca e quente. Vem d'alii a impossi-
bilidade de- conserval-o em regiões frias e tiumidas onde, a despeito de
todos os cuidados, não pode subsistir, ileduzida desde muito á domesti-
cidade a cabra de Angora é admiravelmente bem tratada. Durante o es-
tio o dono, para conservar-lhe a belleza do pèllo, não foge ao cuidado
de laval-a e penteal-a algumas vezes por dia.
usos E PRODUGTOS
o pêllo d'esta cabra é empregado em muitos usos industriaes e
serve para a fabricação de luvas e de meias, de estofos, etc. O valor de
uma cabra varia, diz Gerbe, segundo os legares entre quarenta e cinco
a sessenta francos. A tosquia tem logar no mez de Abril. O commercio
do pêllo d'esta cabra é importantíssimo. Segundo Gerbe, em Angora
quasi todos os habitantes negoceiam em pelles, fazendo-se só ahi uma
exportação no valor de quatro milhões e cincoenta mil francos e ficando
ainda para consumo do paiz um numero de pelles orçadas em quatro
centos e cincoenta mil francos.
A finura do pêllo diminuo com a idade do animal. O péllo da cabra
de um anno é o melhor e que mais caro se paga; o péllo da cabra de
seis annos cessa de ter cotação em mercado, reputa-se inútil.
A CCLl MATACÃO
Em vista do alto valor d'este ruminante teem sido feitas muitas ten-
tativas para o accUmar na Europa, e algumas com extraordinário resul-
tado. É assim que, segundo informações de Brehm, alguns centos de in-
dividues transportados em 1787 para os Baixos-Alpes francezes ahi prós-
mamíferos em especial 101
peraram admiravelmente. Cem cabras que Fernando vir comprou e fez
conduzir para perto de Madrid, mulliplicaram-se alii por forma tal que
foi necessário transportal-as para as montanhas do Escurial. Levadas mais
tarde para a Carolina do Sul, deram-se ahi perfeitamente. A Sociedade
imperial de acclimatação importou para França um grande numero de ca-
bras de Angora, que ahi teem prosperado. Diz-se mesmo que o pello
d'estas cabras é melhor ainda em França que no paiz natal.
A influencia do clima francez fez-se sentir apenas sobre a epocha do
cio, que, sendo primitivamente em Outubro, passou a ter logar em Se-
tembro.
O alimento d'estas cabras consiste essencialmente em feno, palha e
farello; preferem os alimentos seccos aos pastos. São-lhes indispensáveis
o sal e a agua pura e boa. É preciso preserveral-as da humidade e do
frio, principalmente depois da tosquia. A falta de cuidado n'esta occasião
implica a morte de muitos individues.
Os hvros de historia natural, que tivemos occasião de consultar, não
se referem a tentativas de acchmação em Portugal. Não sabemos se teem
sido feitas ou não; o que porém pode aíflrmar-se com probabilidade é
que essa acclimatação devia reaUsar-se entre nós perfeitamente, melhor
mesmo do que em França ou na Hespanha.
A CABRA CACHEMIRA
Ê de pequenas dimensões: o macho adulto mede um metro e vinte
e cinco centímetros de comprimento sobre sessenta e seis centímetros de
altura. Tem o corpo alongado, o dorso arredondado, a região do sacro
ligeiramente mais elevada que a da espádua, as pernas fortes, grossas,
os cascos terminados em ponta, o pescoço curto, a cabeça volumosa, os
olhos pequenos, e as orelhas pendentes tendo de comprimento metade
da cabeça. Os cornos são compridos, contornados em espiral, comprimi-
dos e apresentando na face anterior um sulco em toda a extensão. Sepa-
ram-se a partir da raiz, tomando uma direcção obhqua para cima e para
traz; a ponta dobra-se para dentro. Apresenta esta cabra duas ordens de
pêllos: um curto, extremamente fino e molle e um outro, que cobre o
primeiro e que é formado de sedas compridas, rijas, finas e lisas. A face
102 HISTORIA NATURAL
e as orelhas são cobertas de péllo curto. A cor do manto varia muito,
lia cabras cachemiras negras, trigueiras, c amarelladas; os exemplares
mais communs são brancos. Algumas vezes as partes lateraes da cabeça
são de uma côr diíTerente da do resto do corpo.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
Esta espécie c vulgar nas montanhas do Thibct. Foi acclimada cm
Bengala, onde existe comtudo em menores proporções.
usos E PRODUCTOS
O péllo d'este animal é verdadeiramente precioso. Fabricam-se com
elle tecidos finíssimos de grande valor. A tosquia faz-se em Maio ou Ju-
nho. Depois d'esta operação, separam-se cuidadosamente as duas espé-
cies de péllos a que acima nos referimos; as sedas reservam-se para
tecidos grosseiros c os péllos mais finos para tecidos mais delicados e,
por isso mesmo, de muito mais valor. O péllo utiUsavel que uma cabra
cachemira produz eleva-se de ordinário a cem ou cento e vinte gram-
mas; cento e oitenta ou duzentas e cincoenta grammas é já um pezo ex-
cepcional. O pôllo do macho é mais abundante que o da fêmea, mas de
qualidade inferior a este. Houve tempo em que as pelles de cabra ca-
chemira constituíram um importantíssimo artigo de commercio; hoje, me-
didas coercitivas de toda a ordem, restricções á liberdade de vender
teem feito baixar consideravelmente este ramo de actividade mercantil.
O mesmo tem acontecido, e por eguaes motivos, á industria de tecela-
gem, outr'ora importantíssima e hoje tão decaída que os operários emi-
gram por falta de obra.
Para fazer-se idéa do valor d'esta cabra basta lembrar que, segundo
Gerbe, um chaile de cachemira vale bem mil e quinhentos a mil e no-
vecentos francos. Na Europa tem-se já conseguido fabricar chailes com
a verdadeira lã de cachemira e é isto o que tem feito baixar o preço de
tal vestido á quantia que mencionamos; antes da concorrência europeia,
os preços eram outros, muito mais altos.
mamíferos em especial
Í03
ACCLIMATAÇAO
O valor da cabra cacbemira estimulou naturalmente o desejo de ac-
climalal-a na Europa, semelhantemente ao que se fizera em relação á ca-
bra de Angora. Jaubert, posto ao serviço de Ternaux, introductor em
França do fabrico de chailes, partiu em 1818 para a compra das cabras
cachemiras; adquiriu mil e trezentas cabeças mas apenas pode desem-
barcar em Marselha, em 1819, quatrocentas; as outras morreram na via-
gem. As mesmas quatrocentas que chegaram, vinham muito doentes. Pela
mesma epocha Diard e Duvaucel, naturalistas francezes, enviavam ao
Jardim das Plantas uma cabra cacbemira, macho; esta cabra deu-se bem
no chma francez e copulando-se com as fêmeas compradas por Jaubert,
teve uma extensa prole.
As cabras cachemiras ahmentam-se como as cabras de Angora. Exi-
gem calor no inverno e movimento no eslio. Crescem tão rapidamente
que ao fim de um anno se encontram perfeitamente aptas para a repro-
ducção.
f A CABRA DA THEBAIDA
É também conhecida pelo nome de cabra do Egypto. Pode conside-
rar-se até certo ponto como constituindo a transição entre as cabras e
os carneiros.
É mais pequena que a cabra vulgar de que em seguida nos occupa-
remos, embora tenha os membros mais altos. O pêllo é mais curto que
o d'esta ultima. O que n'este ruminante ha de mais característico é a ca-
beça. O dorso do nariz apresenta ao meio uma forte elevação que dá ao
focinho uma apparencia inteiramente desagradável. A pelle que cobre a
maxiha superior e o lábio são por este facto arrepanhados para traz de
forma que os dentes incisivos inferiores ficam á vista, desnudados. Os
olhos são pequenos e as orelhas pendentes e muito alongadas, do tama-
104 HISTORIA NATURAL
nho da cabeça. Os cornos ou não existem cm nenhum dos sexos ou, se
existem, são muito curtos, perfeitamente rudimentares. Não ha barba
n'esta espécie. Comprehende-se pelo que deixamos dito quanto ha de re-
pulsivo n'este animal. A cor mais vulgar do manto é o trigueiro ruivo
quasi uniforme. Os individues que apresentam maculas pelo manto são
muito raros. As mamas nas fêmeas que aleitam, affectara a forma de um
sacco estreito em cima e largo em baixo e teem um comprimento ex-
traordinário, quasi egual ao dos membros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
Habita desde a mais remota antiguidade o Alto Egypto,
CAPTIVEIRO
O primeiro exemplar vivo d'este estranho ruminante veio á Europa
no começo d'este século. Hoje a espécie é frequente nos jardins zooló-
gicos.
Sobre os seus costumes sabemos apenas que é um animal sóbrio,
dócil e que reclama poucos cuidados.
A CABRA DOMESTICA OU VULGAR
Esta cabra differe da cabra sylvestre pelos cornos que, depois de se
terem elevado e recurvado para traz, como n'esta, incurvam horisontal-
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o
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mamíferos em especial 105
mente para fora e um pouco para diante de modo a figurarem um co-
meço de espiral. Estes appendices frontaes são arredondados nas duas
faces, assim como nos bordos posterior c externo; o bordo anterior po-
rém é cortante, desegual, e algumas vezes tuberculoso de espaço a es-
paço. A superfície dos cornos apresenta em quasi toda a extensão anncis
transversaes muito approximados. A fêmea apresenta ás vezes cornos
como os do macho, apenas menos fortes e menos extensos; outras vezes
não apresenta nenhuns. As cores mais vulgares n'esta espécie são o
branco e o negro, ora isolados, ora misturados. O pcllo é duro e de com-
primento desegual nas diíferentes partes do corpo.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A cabra domestica encontra-se hoje em toda a superfície da terra.
COSTUMES
A cabra vulgar é um animal essencialmente diurno. Passa a manhã
e a tarde pelos montes procurando alimento e ao approximar da noite
recolhe-se a casa, entrega-se á protecção do homem. É possível conser-
val-a captiva, como se faz na AKemanha, durante o dia inteiro; n estas
condições todavia, por abundante que seja a alimentação, o animal ema-
grece, perde constantemente pezo, torna-se emfím, na phrase signifíca-
tiva de um auctor allemão, «a sombra de si mesma.» Isto comprehen-
de-se facilmente. A cabra tem por meio próprio e habitual a montanha;
quanto mais árida, quanto mais selvagem esta for, melhor o animal ahi
se encontra. Gosta dos legares desertos, das paisagens tristes. Retel-a cm
casa é contrariar-lhe os instinctos.
A cabra domestica c um animal vivo, muito ágil, disposto, sobre-
tudo em quanto novo, aos folguedos de toda a ordem e admiravelmente
adaptado á vida rude e hostil das montanhas. É sóbria, é vigorosa, re-
siste á fadiga e desconhece inteiramente a vertigem. A cabra domestica,
como todas as cabras, caminha com extraordinária segurança pelos ro-
chedos mais altamente collocados em montanhas como os Alpes; fíta os
100 TIISTOTIÍA NATTIRAL
precipícios com incliíTercnça e sol)C ás vezes a pontos que ao homem
parecem absolutamente inacessíveis.
A disposição aos folguedos que caracterisa a cabra domestica nos
primeiros tempos de existência, não pode dizer-se que cesse no animal
adulto; embora com menor intensidade, essa disposição alegre contínua,
a despeito dos progressos da idade, persiste, pode dizer-se, durante
toda a vida do animal. É esta disposição particular que a leva a promo-
ver ás suas congóneres, aos outros animaes e até mesmo ao homem pe-
quenas luctas nas quaes intenta, não ferir ou mostrar recursos de va-
lentia, mas simplesmente agitar-se, fazer agitar os outros, diverlir-se
em fim.
A cabra domestica é dócil e revela mesmo pelo homem uma ex-
trema dedicação. Se é tratada com desvello, se é acariciada pelo dono,
este pode fazer d'ella quanto quizer, pode exigir-lhe toda a ordem de
serviços na certeza de que será obedecido. É assim que se faz com que
uma cabra puche durante horas inteiras um carro de creanças.
A cabra domestica é muito intellígente e chega a comprehender a
voz humana, submettendo-se ás ordens que recebe. Esta inteUigencia
fal-a sentir amargamente a mais pequena injustiça de que a tornem vi-
ctima. Se a maltratam, se a castigam sem razão, torna-se má, hostil, fa-
cilmente colérica. Emfim, podemos fazer da cabra domestica um typo de
docilidade e de paciência ou de rudeza e hostilidade, segundo o modo
por que a tratarmos.
Nas montanhas hespanholas e nos Alpes francezes emprega-se a ca-
bra domestica como guia dos rebanhos de carneiros. Prestam n'esta ta-
refa serviços importantíssimos e tornam-se auxihares indispensáveis dos
pastores.
Em alguns togares, nos Alpes por exemplo, deixam-se as cabras en-
tregues a si mesmas. Um creado condul-as ás pastagens, abandona-as
ahí e só volta a buscal-as no outomno; apenas uma vez por dia ou mesmo
por semana vae um pastor levar-lhes uma certa quantidade de sal que
ellas, pelo costume, vêem buscar a um logar e a uma hora determi-
nados.
No interior d'Africa as cabras pastam livremente; mas ao dechnar
da tarde voltam para casa a recolherem-se n'um abrigo, que já tivemos
occasião de descrever n'esta obra, e onde ficam resguardadas do attaque
nocturno dos carniceiros. Como o leitor já sabe pelo que dissemos a pro-
pósito do leão e do lynce, esse abrigo nem sempre é tão seguro como o
indígena quereria; já n^outro logar mostramos que não é absolutamente
raro, máo grado todos os cuidados, que uma ou muitas cabras sejam
roubadas durante a noite pelos carniceiros.
A cabra domestica foi levada para a America pelos europeus e ada-
mamíferos em especial
07
ptou-se alii perfeitamente. Brehm observa que a creapão (Veste utilíssimo
ruminante é muito descurada no Brazil, no Perií e no Paraguay, mere-
cendo, pelo contrario, extrema attenção no Chili.
Relativamente ao regimen alimentar é digno de menção este facto:
muitas plantas, que para outros animaes são venenos, nas cabras não
produzem o menor eíTeito deletério; estão n'este caso, entre outras, a
cicuta e o tabaco. A cabra em liberdade bebe apenas agua pura; em casa
porém acceita agua tépida com farello em suspensão.
A cabra ao fim de seis mezes de existência está cm condições de
reproduzir-se. O cio na fêmea realisa-se duas vezes por anno: uma em
Setembro ou Novembro e uma outra em Março. Estas epochas são para
a cabra domestica de uma grande agitação. Se a copula não chega a
realisar-sa a fêmea adoece. O cio no macho dura todo o anno, ou melhor
— não ha para elle epocha do cio, antes está apto sempre a satisfazer
as necessidades sexuaes das companheiras. Um macho vigoroso, entre
os dois e os oito annos, basta para copular cem fêmeas. Depois de uma
gestação que dura vinte e uma a vinte e duas semanas, a fêmea dá á
luz um ou dois filhos, raras vezes trez e muito excepcionalmente quatro
ou cinco. Quando este ultimo caso se dá, geralmente a mãe ou alguns
dos filhos morrem depois da parturição. Os cabritos ao fim de dois dias
acompanham a mãe por toda a parte. Crescem muito rapidamente; ao
fim de dois mezes teem cornos e ao fim de um anno estão adultos.
usos E PRODUGTOS
A utilidade da cabra domestica é immensa; em muitas regiões é
ella, segundo a expressão de um escriptor francez, «a riqueza dos po-
bres». É um ruminante cuja alimentação custa muito pouco no inverno,
não custa nada no verão e que, quando bem nutrido pode, segundo
os cálculos de Lenz, produzir oitocentos e cincoenta htros de leite por
anno. Este beho ruminante fornece-nos ainda a carne, os cornos e a
pelle, productos de indiscutível utihdade. A carne, com quanto um pouco
secca, é sa])orosa; a pelle serve para luvas, em algumas terras para
calças c na Grécia para odres em que se conserva o vinho; os cornos
emfim, torneados, servem para usos diversíssimos nas industrias, ha-
vendo até togares em que a medicina os aproveita á maneira de vento-
sas para obter cífeitos revulsivos.
08 ITTSTORTA NATÍJRAL
OS CARNEIROS
Os ruminantes que constituem esta família distinguem-se das cabras
pela região frontal que é cliata, pelos cornos que são angulosos, trian-
gulares, de rugosidades transversaes contornadas em espira e pela au-
sência de barba. São em geral animaes elegantes, de corpo fino, pernas
altas e delgadas, cauda curta, olhos e orelhas grandes e pêllo crespo,
lanoso.
A comparação entre o esqueleto d'estes animaes e os das cabras
não faz descobrir diíTerenças muito salientes. Os carneiros teem treze
vértebras dorsaes, seis lombares e sagradas e trez a vinte e duas coccy-
gianas.
A direcção dos cornos é caracteristica : n'uns, o corno do lado es-
querdo é contornado para a direita e o direito para a esquerda, ficando
as extremidades voltadas para fora e divergentes; n'outros, o corno di-
reito é contornado para a direita e o esquerdo para a esquerda, conver-
gindo então as pontas para traz. Esta ultima forma recorda a das ca-
bras.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Os carneiros selvagens babitam as montanhas do hemispberio norte.
Encontram-se na Europa, na Ásia central e septentrional, ao norte da
Africa e na America septentrional. Pertencem na maior parte ao antigo
continente. Cada grupo de montanhas apresenta as suas raças ou varie-
dades particulares, distinctas d'outras raças ou variedades principalmente
pela conformação dos cornos.
COSTUMES
São animaes montanhezes; alguns parece não viverem bem senão
nas regiões mais elevadas. Ascendem muitas vezes a uma altura de seis
mamíferos em especial
lUÍ)
mil e seiscentos metros. Nas planicies só vivem os carneiros domésticos.
Estes mesmos comtuclo, preferem as montanhas, vivem melhor ahi.
Os carneiros selvagens procuram os togares em que ha hervas e é
por isso que no inverno se encontram muitas vezes nas planicies. No
estio as montanhas oíFerecem-lhes plantas saborosas; no inverno porém
são forçados a contentar-se com lichens, musgos e hervas. Sabendo per-
feitamente escolher os alimentos, se os ha variados e em abundância,
dão todavia provas de extrema sobriedade em epochas pouco férteis;
hervas seccas e cascas d'arvores parece bastarem-lhes então.
Brehm faz notar que nos carneiros, melhor talvez do que em qual-
quer outra espécie, é visivel a influencia degradante do captiveiro. Na
expressão d'este naturalista «o carneiro domestico é apenas a sombra
do carneiro selvagem. A cabra, mesmo na domesticidade conserva o ca-
racter independente; o carneiro, esse degenera n'um verdadeiro es-
cravo. O carneiro selvagem é vivo e ágil, reconhece e evita os perigos,
é corajoso e gosta dos combates, das luctas. No carneiro domestico tudo
isto desapparece : a vivacidade é substituída pela indolência, a prudência
por uma incondicional confiança no homem, a coragem emfim por um
medo, por uma espantosa pusilanimidade. O carneiro domestico, por
grande que seja, tem medo de um cãosito e o mais inoíTensivo animal
basta para atterrar um rebanho inteiro. Os carneiros domésticos mar-
cham cegamente atraz do guia; se este o conduzir para um precipício,
irão confiados, embora os espere a morte. Nenhum animal se domina,
nenhum se guia tão facilmente como este; parece que a feUcidade para
elle consiste em encontrar quem tome sobre si todos os cuidados que
lhe deveriam pertencer.
Os carneiros multiplicam-se rapidamente. Depois de uma gestação
de vinte a vinte e cinco semanas a fêmea dá á luz um a dois filhos já
suíficientemente fortes para a seguirem por toda a parte. A mãe, no es-
tado selvagem, defende-os de todos os perigos, mesmo á custa da pró-
pria vida; no estado domestico, pelo contrario, a mãe não tem pelos
recemnascidos senão a indifferença que a distingue acerca de tudo quanto
a cerca. Os filhos ao fim de um anno encontram-sc aptos para a rcpro-
ducção.
CAPTIVEIRO
Os carneiros selvagens trazem-se rapidamente ao estado domestico
e conservam ainda atravez de algumas gerações a vivacidade nativa.
IIU HISTORIA NATURAL
Reproduzcm-se bem no capliveiro o liaLituam-sc rapidamente ás pessoas
que d'elles se occupam, obedecendo-liies quando esculam a sua voz e re-
cebendo com prazer as caricias que lhes fazem.
Os carneiros propriamente domésticos vivem sujeitos ao homem
desde tempos immemoriaes. Não sabemos quaes fossem os antepassados
d'esta espécie, nem o primeiro logar que occuparam no globo; sabemos
só que hoje se encontram em toda a terra, como companheiros constan-
tes da nossa espécie.
usos E PRODLCTOS
Tudo no carneiro tem utilidade: a pehe, a lã, os cornos, a carne e
até os excrementos.
O MUFLAO AFRICANO
Ha naturaUstas que incluem esta espécie na famiUa das cabras, por-
que d'estas tem muitos caracteres. O muflão africano pode ser collocado
ao lado da cabra da Thebaida, como constituindo a transição entre a fa-
mília das cabras e a dos carneiros. Os cornos d'este animal recordam os
das cabras, differindo d'elles comtudo: são primeiro horisontaes, incur-
vando depois muito rapidamente para baixo e para traz. Apresenta ao
longo .da face inferior do pescoço, desde a maxiUa inferior até á origem
dos membros anteriores, uma porção de péllos compridos perfeitamente
distinctos dos que cobrem o resto do corpo, que são muito mais curtos
e menos claros. Os péUos da face inferior do pescoço, chegando á raiz
dos membros de diante, como são muito extensos, prolongara-se até ás
articulações dos joelhos, cnvolvendo-as; é por isso que ao muílão afri-
cano se dá cm França o nome de laufíão de folhos. Os cornos teeni ses-
MAMIFEHOS EM ESPECIAL 1 1 1
senla e seis centimetros de comprimento e apresentam na base quatro
faces. O pèlio, exceptuando o da face inferior do pescoço e o da extre-
midade da cauda, é semelhante ao da cabra domestica. O dorso é ruivo
ou amarello carregado e apresenta manclias. O ventre e a face interna
dos membros são brancos; ao meio do dorso estende-se uma linlia es-
cura.
O macho adulto mede dois metros de comprimento sobre um melro
e quinze centimetros, approximadamente, de altura.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A área de dispersão geographica d'este ruminante é muito extensa.
Vive nas montanhas das cercanias do Cairo, nas margens do Nilo, na
Abyssinia, no Sinai, no Atlas, em Marrocos, na Algéria, etc.
COSTUMES
Segundo as informações do Dr. Buvry, o muQáo africano habita de
preferencia os rochedos das montanhas elevadas. Não vive em bandos ou
rebanhos como a maior parte dos carneiros, mas isolado. Só no tempo
do cio, que tem logar em Novembro, é que algumas fêmeas se juntam
temporariamente a um macho. Durante esta epocha ha entre os machos
os combates, a que tantas vezes nos temos referido, para a posse ou do-
mínio da fêmea durante a excitação genésica. Quatro ou cinco mezes de-
pois da copula, a fêmea dá á luz um ou dois filhos que se conservam na
companhia d'ella durante quatro mezes e que a abandonam antes de um
novo periodo de excitação genital.
No estio, o mufião africano alimenta-se, como as cabras, de plantas
nascidas nas montanhas; no inverno, come lichens, musgo e hervas.
12 IIISTORÍA NATUUAL
GAGA
O mesmo naturalista a quem pedimos as informações anteriores, as-
severa que a caça do muílão africano é diíficii, não só porque o animal
vive a grandes alturas, mas ainda porque é muito vigilante e se lhe torna
fácil, no meio do silencio que reina de ordinário nas grandes elevações,
ouvir a distancia o mais leve rumor produzido pelos movimentos de quem
caça. lia ainda uma outra circumstancia que difficulta a caça d'este ru-
minante: é que, tendo uma extraordinária resistência vital, ainda depois
de gravemente ferido é capaz de fugir com extrema rapidez e por largo
tempo ás perseguições do caçador. O Dr. Buvry diz que, tendo lançado
por terra com dois tiros um muflão, se dispunha a apanhal-o quando elle
deitou a correr precipitadamente; o naturahsta guiado pelo traço de san-
gue do animal caminhou horas e horas antes que podesse encontral-o.
E depois de todo este trabalho, depois d'esta immensa caminhada por
atalhos e rochedos, em meio de perigos, foi o naturahsta dar com o ani-
mal no fundo de ura precipício onde caíra ou onde se atirara sendo pre-
ciso que um companheiro indígena descesse cautelosamente para trazer
acima o cadáver de que apenas se utilisou a peUe.
CAPTIVEIRO
o muflão africano dá-se bem em captiveiro e habitua-se perfeita-
mente ao homem, como se vé nos jardins zoológicos. Supporta o clima
da AUemanha do Norte e reproduz-se captivo, como se tem visto por
muitas vezes em diíferentes paizes, nomeadamente em Bruxehas onde
existe um par quQ todos os annos invariavelmente produz dois filhos.
Brchm diz ter observado alguns exemplares que em captiveiro conser-
vam toda a selvageria, toda a desconfiança que os caracterisa no estado
da liberdade. A inteUigencia do muflão africano é muito limitada.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 1 1
USOS E PRODUCTOS
Os árabes estimam muito a carne d'este ruminante; Brelim, que a
comeu, acha-a excellente, mais delicada, superior mesmo á do veado.
O pêllo serve nas mãos dos Árabes para o fabrico de cobertores e tape-
tes; da pelle fazem, pela tanificação, marroquim.
O MUFLAO EUROPEU
Tem de comprimento um, metro e trinta centimetros, incluida a cauda,
que mede oito ou dez; a altura é oitenta centimetros e o pezo varia de
vinte e cinco a quarenta kilogrammas. Os cornos teem um comprimento
de sessenta e seis centimetros e um pezo de quatro a seis kilogrammas.
O corpo é muito refeito, muito vigoroso. O pêllo é curto e muito denso,
principalmente no inverno. Não tem barba; os péllos do peito são mais
compridos que os d'outras partes do corpo. A côr geral do péllo é um
ruivo que faz lembrar o da rapoza. A cabeça é cinzenta, o focinho, os
bordos da cauda, os pés e o ventre são brancos. A linha media do dorso
é escura.
De ordinário só o macho tem cauda; ás vezes, porém, a fêmea tam-
bém os apresenta em estado rudimentar. No macho estes appendices são
compridos e fortes, muito espessos na base e delgados na extremidade.
Na raiz são muito approximados; do meio por diante recurvam-se em
forma de gancho. O corno direito é contornado para a esquerda e o es-
querdo para a direita ; os cornos apresentam trinta a quarenta rugosida-
des irregulares que se estendem até á ponta. Na fêmea, os cornos, quando
existem, affectam a forma de pyramides obtusas de cinco a oito centi-
metros de altura.
VOL. III
114 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
O muílão europeu habita ainda hoje as montanhas pedregosas da
Córsega e da Sardenha. Cré-se geralmente que elle viveu outr'ora em
outros pontos do meio dia da Europa. O muílão selvagem da ilha de
Chypre é uma espécie distincta.
Apezar da caça activa de que é victima, o muílão europeu é abun-
dante; encontram-se ainda rebanhos de cincoenta a cem cabeças.
COSTUMES
Houve tempo em que a espécie abundava por tal forma que n'uma
só caçada se matavam quatro a cinco mil indivíduos; hoje, pondo em pra-
tica todos os meios, deve considerar-se fehz quem conseguir matar trinta
ou quarenta.
O muílão da Europa, distanciando-se muito n'este ponto do muílão
africano, vive em sociedades, cujo commando pertence ao macho mais
velho e mais forte do rebanho. Na epocha do cio estas sociedades decom-
poem-se em pequenas famihas, formadas ordinariamente de um macho
e de algumas fêmeas por elle conquistadas em combate. A quadra dos
amores que tem logar em Dezembro e Janeiro, ó agitadíssima. As luctas
dos machos são terríveis, acabam geralmente pela morte de um dos ad-
versários que é precipitado n'um abysmo.
A gestação dura vinte e uma semanas; em Abril ou Maio a fêmea
dá á luz dois filhos suíTicientemente vigorosos para correrem desde logo
atraz da mãe que, poucos dias passados, egualam em temeridade e prom-
ptidão de movimentos. Ao fim de quatro mezes apparecem os cornos nos
pequenos machos, que da idade de um anno estão aptos para a repro-
ducção. No fim de trez annos teem attingido o máximo desenvolvimento.
O muílão é um excellente trepador; nas planícies fatiga-se muito ra-
pidamente e por isso um cão o apanha dentro de muito pouco tempo.
Os principaes inimigos do adulto são o lobo e o lynce; os recem-
nascidos são victimas ainda da águia e do abutre.
mamíferos em especial 115
CAÇA
A perseguição do homem a este ruminante é porfiada. A melhor epo-
cha de caça são os mezes do cio; imitando a voz da fêmea, o caçador
consegue attrair os maclios até á distancia de poder atirar-lhes. Os adul-
tos só por acaso se podem apanhar vivos; os recem-nascidos captivam-se
facilmente, matando a mãe.
gaptiVeiiio
o mufião, uma vez preso, habitua-se rapidamente ás relação com
a nossa espécie, conservando sempre a agilidade e viveza que o cara-
cterisam no estado livre. Chega a um gráo de domesticidade tal que
acompanha o homem por toda a parte como o cão. É no entanto um ani-
mal desagradável sempre no captiveiro, por dois motivos capitães: por-
que percorre constantemente a casa atirando tudo ao chão, mexendo em
tudo e porque, á medida que avança em idade, vae readquirindo a sel-
vageria primitiva, vae-se tornando mau, usando dos cornos contra o ho-
mem, não só para se defender, como por prazer de attacar, de fazer
mal. De resto, é pouco inteUigente, mal dotado de memoria.
As relações sexuaes d'esta espécie com outras do mesmo grupo são
fecundas; os mestiços que d'ahi resultam são fecundos também. As ten-
tativas de cruzamento com a cabra domestica, ensaiadas em muitos jar-
dins zoológicos, teem sido até hoje frustradas.
Um facto digno de notar-se é que algumas vezes os mestiços re-
sultantes do cruzamento do muílão europeu com o carneiro domestico,
apresentam quatro cornos.
As espécies mais visinhas do muflão europeu, quer morphologica-
mente, quer pelos costumes, são :
o MUFLÃO de giiypre, quc só n'esta ilha se encontra;
o MUFLÃO DA PÉRSIA, quc habita principalmente a provincia de Ma-
candarim e as montanhas da Arménia;
o MUFLÃO DO iiiMALAYA, quc vívc uo Pcqucno Thibct e em Cabul;
Finalmente o muflão do gabo, que vive a este do Cabo e na Serra
IIG HISTORIA NATURAL
Moreh. Estas espécies distinguem-se pela curvatura dos cornos e não
merecem descripção especial.
O ARGALI
É o carneiro selvagem da Ásia e é lambem o maior representante
da familia.
CARACTERES
É um animal forte de dois metros e quinze centimetros de compri-
mento sobre um metro e trinta de altura. Os cornos são tão grandes
que o raposo azulado pode introduzir-se na cavidade d'elles. A estatura
do animal indica força e vigor. Os cornos dão-lhe uma physionomia es-
pecial. Na raiz cobrem completamente a parte posterior da cabeça. Muito
approximados no começo, recurvam-se a pequena altura formando ver-
dadeiros ss. O comprimento d'estes órgãos é de um metro e quinze cen-
timetros a um metro e trinta e a circumferencia, na base, é de dezeseis
a vinte centimetros. Estes appendices são cobertos em toda a extensão
de rugosfdades muito approximadas. O manto oíTerece péllos compri-
dos e rijos que cobrem outros finos, moUes e espessos. A cor varia
com as estações; é trigueira escura no inverno e ruiva no verão. A fê-
mea apresenta também cornos, mas mais delgados que os do macho e
quasi rectos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita todas as regiões desertas das montanhas da Ásia central.
Existiu outr'ora em alguns pontos da Rússia asiática d'onde todavia des-
appareceu completamente desde 1832.
MAMÍFEROS EM ESPECIA-L 1 I
COSTUMES
Evita as montanhas húmidas e muito arborisadas, assim como as
grandes alturas. Prefere ás elevações extraordinárias, em que tão bem
se dão as cabras, as montanlias de seiscentos a mil metros de altura
apenas. É ahi que elle vive de inverno e de verão.
É sociável; por isso se encontram bandos de oito a dez indivíduos,
cuja direcção pertence sempre ao macho mais vigoroso.
Na epocha do cio os combates dos machos são violentos; se o mais
fraco não toma o expediente de fugir, será inevitavelmente atirado a um
precipício onde encontra a morte.
A fêmea dá á luz em Março um ou dous filhos, de pêllos pardos e
crespos. Estes seguem desde o primeiro dia a mãe e com ella se con-
servam até á primeira estação de cio, posterior ao nascimento. No ma-
cho os cornos apparecem aos dois mezes.
De verão, o argah ahmenta-se de plantas que crescem nos valles
adjacentes ás montanhas que habita; no inverno, come musgos, hchens
e hervas seccas. O frio não o incommoda muito; o manto que é espesso
basta para o preserverar.
É muito tímido; desde que vê um homem, deita a fugir, correndo
com extraordinária velocidade por togares alcantilados, perigosíssimos.
CACA
Comprehende-se pelo que acabamos de dizer que a caça do argali
seria diíTicihma se a curiosidade extrema do animal o não compromet-
tesse a cada instante. Os caçadores suspendem ás vezes a roupa a uma
haste vertical e emquanto o ruminante, levado pela curiosidade, íixa
attentamente o espantalho, vão elles por outro lado approximando-se.
Nas planícies a caça faz-se com auxilio de cães, que suspendem a mar-
cha do ruminante até que o caçador chegue. O uso das armadíllias é
também frequente.
HISTORIA NATURAL
GAPTIVEIRO
Emquanto novo, o argali domesíica-se facilmente. É diííicil porém
conserval-o em captiveiro e muito mais fazel-o viajar. Não existe na Eu-
ropa, pelo menos nos jardins zoológicos conhecidos.
usos E PRODUGTOS
A carne do argali é magnifica, a pelle serve para a fabricação de
vestidos de inverno e outros agasalhos e dos cornos íazem-se utensihos
de cosinha.
O MUFLAO AMERICANO
O macho adulto mede dois metros de comprimento total e um me-
tro e quinze centímetros de altura. A fêmea é mais pequena: não ex-
cede metro e meio de comprido e um metro e dez centímetros de alto.
O corpo é refeito e vigoroso e a cabepa assemelha-se muito á do hode-
quim. Tem o dorso do nariz recto, os olhos grandes, as orelhas peque-
nas, o pescoço curto, o dorso alongado, o peito forte e largo, a cauda
curta, medindo apenas quatorze centímetros de comprido, as coxas vi-
gorosas, as pernas fortes e curtas, os cascos curtos também e talhados
quasi a direito anteriormente. Os cornos são fortíssimos e extensos; me-
didos ao longo da curvatura que formam, sobre o bordo externo, teera
setenta centímetros de comprimento. A circumferencia é, na base de
trinta e sete centimetros e no meio de trinta e um. A distancia de uma
mamíferos em especial
110
extremidade á oulra é de cincoenta e oito centimetros. Os cornos, muito
approximados na raiz, dirigem-se para fora e para diante, voUam-sc
para Iraz e recurvam-se quasi circularmente para baixo e para diante,
voltando-se de novo a ponta para cima e para fora. Não são comprimi-
dos e achatados, como os de tantos outros animaes, mas largos, cobertos
de muitas rugosidades transversaes e apresentando saliências finas em
toda a extensão. O pcllo é semeltiante ao do bodequim. A cor geral é
também, como a d'este ruminante, um trigueiro escuro. Os machos ve-
lhos são muitas vezes cinzentos claros ou mesmo brancos. A fêmea apre-
senta também cornos, que diíferem dos do macho em serem mais fracos,
menos extensos, menos recurvados e semelhantes aos das cabras; recur-
vam-se para traz e para fora e terminam em ponta adelgaçada.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Segundo Richardson e Audubon este animal é vulgar na Califórnia.
COSTUMES
O muílão americano povoa sempre os logares mais selvagens da re-
gião que habita, parecendo dar-se ahi admiravelmente. Nas montanhas
encontra cavernas que lhe servem de abrigo e vegetaes para a alimen-
tação.
Este ruminante é muito sociável e, como a espécie é ainda abun-
dante, não é raro cncontral-o em bandos numerosos, de trinta cabeças
segundo uns, Richardson por exemplo, de oitenta segundo outros, como
o príncipe de Wied, notável naturalista muitas vezes citado n'esta obra.
As fêmeas com os filhos constituem na maior parte do anno bandos á
parte. Os velhos machos, a seu turno, vivem em bandos separados. Em
Dezembro porém, que é o tempo do cio, os bandos de machos c fêmeas
confundem-se, travando-se então entre os primeiros as grandes luctas
características da excitação genésica.
A fêmea dá á luz em Junho ou Julho; o primeiro parlo produz ape-
nas um filho, os outros produzem dois regularmente.
Í20 HISTORIA NATURAL
O muflão americano é, como o bodequim, um excellentc trepador;
é também, como todos os animaes da família, excessivamente timido.
CAÇA
Para formar idéa das diíTiculdades de toda a ordem que se ligam a
perseguição d'este animal, basta lembrar que elle habita montanhas onde
os perigos se deparam a cada instante e que tem pelo homem tanto hor-
ror como pelo lobo. Nunca foi possível apanhar um d'estes ruminantes
vivos, nem adulto, nem recem-nascido. Isto explíca-se pelo facto de que
a mãe, desde que o parto acaba, marcha com os filhos para logares
inaccessíveis ao homem. Debalde muitos naturahstas teem promettido va-
hosos prémios aos caçadores indígenas por um exemplar vivo. Mao grado
esforços de toda a ordem empregados por estes homens, de sobejo ex-
perimentados na caça do animal, nenhum conseguiu até hoje o promet-
tido e desejado premio.
usos E PRODUCTOS
A carne é utilisada como alimento; a do macho, principalmente na
epocha do cio, tem um gosto semelhante á do carneiro domestico. Os in-
dígenas servem-se da pelle para fazer camisas; eha é forte e solida, mas
muito macia.
OS CARNEIROS PROPRIAMENTE DITOS
Sob a designação de carneiros propriamente ditos comprehende-se
em historia natural o conjuncto das raças ou variedades do género que
mamíferos em especial 121
SC lornaram domesticas desde uma data impossível de fixar-sc e que
deve ser muito remota, attendendo a que os caracteres que apresentam
são profundamente distinctos dos que distinguem as espécies selvagens.
Milne-Edwards cré que todos os carneiros domésticos se derivam do mu-
ílão europeu ou do argali. P. Gervais no seu livro Historia natwral dos
mamiferos * aíTirma, pelo contrario, que os carneiros domésticos são ani-
maes de que é impossível encontrar algures os representantes selva-
gens. Segundo este ultimo escriplor, os caracteres mais salientes, que
distinguem os carneiros propriamente ditos das espécies selvagens, são:
o comprimento da cauda, que de ordinário desce até abaixo da curva
das pernas e a natureza dos cornos que são cheios e mais affastados na
raiz do que nos muílões. Em algumas variedades faltam os cornos, mesmo
nos machos.
Acerca da origem dos carneiros domésticos existem, além das opi-
niões que acabamos de apresentar, outras ainda, segundo as quaes elles
descenderiam do muflão africano ou de uma espécie já extincta. A ver-
dade é que nada de positivo se sabe sobre o assumpto. Acontece-nos
aqui o mesmo que quando tratamos do cão e em geral de todas as es-
pécies domesticas; a origem escapa-nos inteiramente.
O carneiro, como a cabra, como o boi, como o cão, existe sob o
domínio do homem desde os tempos ante -históricos; é d'ahi que vem a
nossa ignorância sobre a origem do animal. De resto, de todas as hypo-
theses emittidas uma nos parece desde logo inadimissivel : a que faz pro-
ceder os carneiros domésticos de uma espécie única, extincta. E recusa-
mos à priori uma tal hypothese não só porque se não baseia n'um único
facto positivo de pre historia, senão porque é impossível acreditar que
todos os carneiros domésticos, tão diversos uns dos outros, tenham at-
tingido uma tal differenciação pela simples acção accidental do meio cli-
matérico e da selecção artificial. Seja como for, sobre o assumpto em
questão é melhor declararmo-nos ignorantes do que fazer conjecturas
sem fundamento e sem verificação possível.
A base para estabelecer a difi^erenciação entre as variedades ou ra-
ças dos carneiros domésticos consiste no exame dos appendices córneos,
do manto ou velo e do comprimento e forma da cauda.
Os appendices córneos fazem differenças verdadeiramente notáveis
e características entre as raças; o velo afi^ecta também differenças notá-
veis derivadas do comprimento, finura e molleza dos péllos; emfim a
cauda pelas extensões differentes que apresenta é também um caracter
differencial digno de attenção.
Vid. Loc. dt., tom. ii, pg. 192 e aeguinteá.
122 HISTORIA NATURAL
Já acima dissemos que era notável a influencia da domesticidade
sobre os carneiros; que se os comparamos ás espécies selvagens sob o
ponto de vista dos costumes, somos quasi tentados a descrer que devam
ser uns e outros egualmente contidos n'um ramo único de ruminantes.
É aqui o logar de acrescentar ao que dissemos algumas indicações
importantes.
Os carneiros domésticos são animaes- sóbrios, pacíficos, soffredores
e, sobretudo, medrosos e cobardes. Segundo Brehm, só na epocha do
cio é que estes animaes apresentam alguma coisa de semelhante ás es-
pécies selvagens. Fora d'essa quadra, são, entes incaracterísticos, incon-
dicionalmente submettidos á direcção do homem, degradados, sem intel-
ligencia, sem iniciativa. O mais leve ruido apavora estes animaes; e nos
dias de temporal, de trovoada e de relâmpagos, muitos correm como
doidos e chegam a atirar-se à agua. Brehm conta que nas vastas planí-
cies da Rússia e da Ásia os pastores são victimas da timidez ridícula dos
carneiros: estes com eííeito, na occasião das grandes tormentas de neve,
ora correm desesperados a atirar-se à agua, ao mar até, ora se que-
dam imraoveis n'um sitio e se deixam com resignação cobrir de neve;
assim perdem os pastores n'um só dia milhares de cabeças. Quando um
incêndio se declara n'um curral, é difficil, diz Lenz, salvar alguns carnei-
ros; atterrados, ou se encostam uns aos outros de modo que é quasi
impossível separal-os, ou se atiram ás chammas. O mesmo auctor conta
que tendo dois cães de caça entrado n'um estabulo, os carneiros que
ahi se encontravam se atterraram tanto e se apertaram de tal modo uns
contra os outros que a maior parte d'elles succumbiram á asphixia.
Os carneiros preferem os legares altos e seccos aos baixos e húmi-
dos. Presentem com grande antecedência as variantes de tempo. Já
n'outro logar falíamos da alimentação d'estes animaes.
O tempo mais apropriado ás relações sexuaes d'estes ruminantes
é, entre nós, Outubro. Nos paizes quentes ha duas epochas de cio em
cada anno. A gestação é approximadamente de cento e cincoenta dias.
Cada parto produz geralmente um filho; o numero de dois é raro. Os
borregos que nos paizes quentes nascem de verão mamam de ordinário
dois mezes, os que nascem no inverno mamam três e mais.
Até aos seis mezes, a cria chama-se anho, cordeiro ou borrego; de-
pois do primeiro anno malato; o que fica para a cobrição toma o nome
vulgar de sementão.
A quaUdade dos ahmentos dados aos carneiros deve variar conforme
se tem em vista obter boa carne ou boa lã. Ha paizes em que a carne
é considerada como o producto principal; é o que acontece na Inglaterra.
N'outros paizes, ao contrario, como em França, a lã é o producto mais
importante e a carne é um producto de menor importância.
mamíferos em especial
123
A lã, segundo Figuier, ^ pode ser fincij entrcfma ou grosseira, O fio
de diâmetro egual em toda a extensão é o mais estimado; se é recto a
lã chama-se lisa e se é flexuoso a lã diz-se ondulada. Se as flexuosida-
des são muito approximadas umas das outras, a lã é frisada. Na boa lã
exigem-sc como qualidades essenciaes a flexibilidade, a macieza, a exten-
sibilidade e a elasticidade. Estas condições favorecem a fabricação dos
estofos de lã. Segundo Figuier, a maior parte das propriedades a que
acabamos de referir-nos parece dependerem da gordura que penetra
mais ou menos no íio da lã e que se chama bedum. Se este é abundante
á superfície do pêllo, communica á lã macieza e flexibilidade; se é es-
pesso e fortemente corado torna as lãs rudes, ásperas, grosseiras.
As lãs são brancas, ruivas e pretas. Estas ultimas são consideradas
de pouco valor; as primeiras porém, as brancas, são muito apreciadas.
Dos carneiros poucos são os que se aproveitam para a reprodu-
cção ; os outros castram-se e a epocha própria para esta operação é a
que decorre entre o quinto e sexto mez do animal.
De Março ou Abril em diante ordenham-se as ovelhas para o fabrico
de manteiga e dos queijos, operação que se prolonga até Agosto, de or-
dinário.
A tosquia tem logar geralmente em Maio. É n'este tempo que são
precisos da nossa parte maiores cuidados em relação ao animal, que
então sente, como é fácil prever, muito mais que em qualquer outra
epocha as mudanças atmosphericas.
O cordeiro logo depois de nascido apresenta oito dentes incisivos;
ao fim de um anno ou de um anno e meio, os dois anteriores caem e
são substituídos por outros. No segundo anno caem os dois outros imme-
diatos, no terceiro anno mais dois e assim até que todos os primitivos
tenham sido substituídos por outros. Os novos dentes vão-se tornando
amarellos com a idade e ao mesmo tempo vão-se descarnando.
Dos usos e productos dos carneiros já n'outro logar tivemos occa-
sião de fallar.
Resta-nos estudar algumas das raças mais importantes.
Vid. /ve.«? Mammifhrc.!^, jDg. 23
IIISTOIUA NATURAL
O CARNEIRO MERINO
É sem contestação a raça mais importante. Muito descurada até ao
século passado, tem sido de então para cá objecto de extraordinários
cuidados.
CARACTERES
É de proporções regulares, refeito, solidamente organisado. Tem a
cabeça grande, o focinho obtuso, a região frontal chata, o nariz um
pouco arqueado, os olhos pequenos e as orelhas de tamanho médio e de
ponta obtusa. Os cornos são muito fortes, recurvos em c e tendo ses-
senta e seis centimetros, medida a extensão segundo a curvatura. As fê-
meas muito raras vezes apresentam estes appendices frontaes. O pescoço
é curto e oíferece inferiormente uma dilatação semelhante á papeira.
Os membros são baixos, mas fortes e soHdos e os cascos obtusos. O
mais importante n'este animal é a lã, que é curta, macia, fina, crespa e
branca amarellada.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
SuppÔe-se que o carneiro merino é originário do norte d'Africa,
donde veio para a Europa. A espécie é vulgar ha muito tempo em Hes-
panha e Portugal. E,xiste também em abundância na Austrália.
Os naturaUstas costumam dividir o carneiro merino em duas gran-
des classes: viajantes e sedentários. Suppoz-se muito tempo que os car-
mamíferos em especial 125
neiros viajantes tinham uma lã superior á dos sedentários, mas não é
verdade.
O CARNEIRO DE CORNOS PONTEAGUDOS
Uma raça também importante é a do carneiro de cornos ponteagu-
dos. Este animal é de tamanho regular e apresenta cornos muito exten-
sos, muito divergentes, contornados em espira n'uma direcção rectilínea
e terminados em ponta aguda. O manto é claro; a cabeça e as pernas
são escuras. O velo d'este carneiro é formado por duas ordens de pêl-
los: uns compridos e rijos, outros finos, curtos; só estes últimos se apro-
veitam e ainda assim em estofos grosseiros apenas. Este carneiro cria-se,
tendo em vista mais a carne que a lã.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Habita exclusivamente a Turquia da Europa e o Danúbio. Vive em
rebanhos numerosos, principalmente nas montanhas.
O CARNEIRO DE GRANDES NÁDEGAS
É uma raça curiosa. Este carneiro é um animal de grandes propor-
ções e de apparencia repulsiva. Gomo o nome indica, 6 caracterisado
126 IIISTOIUA NATIJJIAL
pela grandeza extraordinária dos músculos nadegueiros, o que não pouco
contribuo para dar-lhe um aspecto altamente desagradável. A cabeça é
escura, volumosa e muito curta. Não apresenta lã capaz de fiar-se. O manto
é formado por um pôUo curto e grosseiro como o das espécies selva-
gens. Só cmquanto novo apresenta pello lanoso. Os cornos são muito
curtos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
É vulgar em toda a Africa central.
Não nos occuparemos aqui das diversas raças francezas e inglezas.
Mencionaremos somente as nossas.
As raças portuguezas são :
o BORDALEiRO SERRANO OU GALLEGo, prcto OU brauco, pcqucuo, de
lã feltrosa, isto é em que predominam os péllos lanosos, ou churra, em
que existem em maior abundância os péllos rijos, semelhantes aos das
cabras;
o BORDALEIRO coMMUM, de maiorcs dimensões e de lã muito fri-
sada, vivendo nos mattos do Alemtejo;
Emfim o CARNEIRO poRTUGUEz DE TYPO MERINO, muito Semelhante
aos merinos hespanhoes e vivendo também no Alemtejo.
OS BOVIDIOS
Este grupo de ruminantes, ao qual pertence o nosso boi domestico,
é sem contestação o que abrange os animaes de maior utihdade de toda
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 1 J ',
a classe. Vivos ou mortos, teem sempre utilidade para nós: vivos, collo-
cam a nosso serviço todas as enormes forças de que dispõem; mortos,
offerecem-nos ainda em cada órgão um incontestável valor. São mais do
que auxiliares e collaboradores do homem; chegam a ser importantes
companheiros.
CARACTERES
São animaes fortes, grandes e pezados. Teem cornos lisos e arre-
dondados, focinho largo, de narinas separadas, e cauda fina e comprida,
terminada por um tufo de pôllos extensos. O pescoço que é forte c grosso
apresenta inferiormente uma certa porção de pelle solta e pendente que
que se chama papada.
O esqueleto d'estes animaes é forte e pezado, e a região frontal
larga; as orbitas são muito separadas e as saKencias frontaes de que
nascem os cornos encontram-se nas partes lateraes e posteriores do cra-
neo. O sacro é formado por quatro ou cinco vértebras soldadas; as vér-
tebras caudaes podem attingir o numero de dezenove. Os dentes incisi-
vos são grandes e largos, mas gaslam-se depressa pelo altributo. Os
mollares são em numero de quatro pares e extraordinariamente desen-
volvidos; a forma ^a superfície de mastigação varia para as diíTerentes
espécies. Os cornos são muito característicos. Gomo deixamos dito, são
hsos arredondados; se algumas vezes apresentam rugosidades transver-
saes é apenas na raiz. De ordinário os pcllos são curtos; ha espécies po-
rém em que são muito compridos, pelo menos em alguns pontos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
A Africa, a Ásia central e meridional, a Europa e a parte septeii-
trional da America do Norte, podem ser consideradas como a pátria dos
bovidios. Hoje porém, encontram-se, ao menos no estado domestico, em
toda a superíicie da terra.
128 HISTORIA NATURAL
GOSTUMKS
As espécies selvagens habitam logares, os mais diversos: as flores-
tas ou os campos nús e desertos, as planícies ou as montanhas até uma
'altura de cinco mil c quinhentos metros acima do nivel do mar, os loga-
res pantanosos ou os logares seccos, emfim as regiões mais differente-
mente caracterisadas. Uns levam uma vida errante; outros, em menor
numero, são sedentários. As espécies que vivem nas montanhas descem
aos valles no inverno; as que vivem ao norte dirigem-se, por esse
mesmo tempo, para o sul, impellidas como as primeiras pela falta de
alimento.
Os bovidios são animaes sociáveis, que se reúnem sempre em re-
banhos numerosos, por vezes de milhares de individues. Estes rebanhos
são dirigidos sempre por um chefe, o mais forte e mais experimentado
dos membros do rebanho. Os mãos chefes são muitas vezes expulsos
dos rebanhos.
Estes ruminantes teem hábitos diurnos.
Apesar de pezados, podem mover-se rapidamente; ás vezes mani-
festam uma agilidade bem pouco a esperar d'enes. De ordinário porém,
como é natural á corpulência que apresentam, marcham a passo, lenta-
mente. Os que habitam as montanhas são hábeis trepadores e dão saltos
de uma extensão relativamente notável. Todos nadam bem e todos dis-
põem de uma força considerável.
De todos os sentidos é o olfato o mais perfeito; a vista é de ordi-
nário má e o intendimento limitadíssimo, principalmente nas espécies
domesticas, que não precisam de fazer esforços intellectuaes, porque o
homem lhes supre a todas as necessidades.
De ordinário os bovidios são de um caracter dócil, cheio de con-
fiança; ha-os porém selvagens, teimosos e de grande coragem. Excita-
dos, attacam sem vacillar os mais poderosos mamíferos; servem-se dos
cornos com tamanha agihdade que, mesmo em lucta com os animaes
mais perigosos, são, não raro, vencedores.
Normalmente os bovidios vivem entre si nas melhores relações de
harmonia; na epocha do cio comtudo, entregam-se a combates temíveis.
N'algumas espécies selvagens, o macho apresenta um cheiro de al-
míscar suíficientementa forte para impregnar toda a carne tornando-a
impossível de comer-se. Nos bovidios domésticos este cheiro é quasi ina-
preciável.
mamíferos em especial 129
Estes ruminantes alimentam-se de plantas de qualidades muito diíTe-
rentes. Comera folhas, goramos, rebentos, ramos, hervas, cascas, lichens,
musgos e plantas aquáticas e dos pântanos.
Era captiveiro comem hervas de todas as qualidades. Gostam muito
de sal, como quasi todos os ruminantes e não podem passar sem agua
em abundância; alguns chegam mesrao a perraanecer deitados durante
horas inteiras era cursos d'agua ou era tanques.
Nove a doze mezes depois da copula, a feraea dá á luz ura filho,
muito raras vezes dois. O bezerro ou novilho nasce completamente for-
mado e em condições de seguir desde logo a mãe, que o aleita, que
o trata cora extraordinário carinho e que o defende nos perigos com
uma coragem visinha da temeridade. O bezerro torna-se adulto entre os
trez e os oito annos; é esta a idade era que se encontra apto para a re-
producção.
A duração raedia da vida dos bovidios é de quarenta e cinco a cin-
coenta annos.
CAPTIVEIRO
As espécies selvagens trazem-se cora facihdade ao estado doraes-
tico. Subraettem-se rapidaraente ao dorainio do homera e chegara a obe-
decer a uma creança. Não teem maior dedicação pelo dono do que por
qualquer outra pessoa; uma vez domesticados, os bovidios são egual-
mente dóceis e carinhosos para todos.
CAÇA
A caça ás espécies selvagens é perigosíssima. Dizem os naturalistas
mais conhecedores do assumpto que nera ura leão, nera ura tigre são
raais terríveis que um touro furioso, cego de raiva. É por isto mesmo
que a caça é porfiada e constituo para alguns povos uma verdadeira
paixão ou, como dizera os caçadores, uraa nobre paixão.
VOL. III
30 lilSTOIllA NATLIlAL
USOS E PllODUCTOS
Os bovidios selvagens causam, é incontestável, uns certos estragos
na cultura, roendo as cascas das arvores, devastando os prados, maltra-
tando as plantações. Se comparamos porém estes prejuízos ás vantagens
de toda o ordem que as espécies domesticas nos prestam, pondo á nossa
disposição as suas forças, fornecendo-nos a sua carne, os seus ossos, a
sua pelle, os seus cornos, o seu leite, o seu pello, até mesmo os seus
excreta^ soberbo adubo para as terras, é impossível deixar de ter os bo-
vidios na conta de animaes utilíssimos. Perfilhamos sem restricções a
opinião de Brehm quando diz que, se se classificassem os animaes pela
utilidade que teem, daria aos bovidios o primeiro logar entre os rumi-
nantes. *
/
Os bovidios encontram-se hoje divididos em dez espécies perfeita-
mente authenlicas, ou melhor — acceites por todos. Além d'estas porém,
uma outra existe, que parece fazer a transição entre os carneiros e os
bois e para comprehender a qual se estabeleceu um género á parte.
Começaremos por ella.
O BOI ALMISCARADO
Este ruminante tem a cabeça volumosa e larga, o focinho curto e
obtuso, inteiramente coberto de pêllo, os lábios finos e o pescoço muito
Vid. Ohr. ciL, vol. 2.% pg. 268.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 131
curto. Os cornos são primeiro recurvados para baixo e para fora e de-
pois para diante, ficando as extremidades dirigidas para fóra e para
cima. Estes appendices cobrem a região frontal e quasi toda a parte su-
perior do craneo do ruminante; são comprimidos e grosseiros na raiz,
lisos e arredondados na ponta. As pernas, que são grossas, terminam
por cascos estreitos. O manto compõe-se em grande parte de sedas
muito compridas no pescoço e nas espáduas e muito curtas no dorso e
na região lombar. Nos membros estas sedas cobrem um péllo fino, cin-
zento, que se forma no inverno, persiste durante toda esta estação e cae
no estio para ser logo substituído por um outro. A côr geral é um tri-
gueiro muito escuro, quasi negro nas partes inferiores do animal; no
dorso ha uma pequena mancha clara e a extremidade do focinho, os lá-
bios e o mento são brancos.
As dimensões do animal não são grandes; podem dizer-se intermé-
dias entre os grandes carneiros e os pequenos bois.
DISTRIBUIAO GEOGRAPmCA
o boi almiscarado é próprio das regiões do norte da America
septentrional. Este ruminante é conhecido desde as primeiras explora-
ções do Novo-Mundo.
COSTUMES
O conhecimento dos costumes d'este ruminante deve-se principal-
mente aos naturahstas Hearne, Richardson, Parry e Franklin. Segundo
elles, a espécie habita essas tristes steppes cobertas de musgo que na
Sibéria se designam pelo nome de tundra e que não são senão immen-
sos pântanos, cheios de poços, attravessados em todos os sentidos por
cursos d'agua, mais ou menos consideráveis, e de quando em quando
interrompidos por algumas pequenas colhnas. É ahi n'esses lugares in-
fectos, inhospitos, onde voejam milhares de insectos importunos e onde
vivem perigosas espécies, é ahi que o boi almiscarado habita em mana-
das de vinte c trinta cabeças cada uma. O manto espesso prolcge-os
contra os rigores do frio.
132 IIISTOIIIA NATURAL
Durante o estio, este ruminante alimenta-se das liervas dos pânta-
nos e no inverno de lichcns.
O numero de machos é sempre muito inferior ao das fêmeas em
cada manada. No periodo de excitação genérica são, apezar d'essa cir-
cumstancia, terriveis os combates que de ordinariamente acabam pela
morte do vencido.
A despeito da apparencia, este ruminante é ágil, rápido em todos
os movimentos; trepa e salta como as cabras.
É mal dotado de sentidos e por isso pouco vigilante. É fácil ao ca-
çador, marchando contra o vento, approximar-se d'elle quando pasta.
Quando dois ou trez caçadores cercam a manada de modo a fazerem
fogo em differentes direcções, os sitiados, em vez de dispersarem,
unem-se uns contra os outros, fornecendo assim occasião propicia a no-
vas descargas. O boi almiscarado que apenas é ferido, precipita-se con-
tra o caçador e é perigosíssimo porque sabe admiravelmente usar dos
cornos. No dizer dos indígenas, mata muitas vezes os lobos e os ursos.
A epocha do cio é para esta espécie em fins de Agosto.
O boi almiscarado em quanto não attinge a idade adulta apresenta
a cor geral do manto muito mais clara que depois.
CACA
Os esquimós caçam com ardor este ruminante, principalmente no
outomno. Os processos de caça variam. Uns empregam o arco e a fre-
cha. Este meio produz poucos resultados, porque, mesmo a pequena dis-
tancia, é difflcil attravessar com a frecha o manto espesso do animal.
Outros approximam-se valentemente das manadas, provocam o touro até
que avance colérico para elles e então, negando-lhe o corpo, enterram-
Ihe uma lança nos flancos. Este meio, mais perigoso e mais cheio de
difficuldades, porque exige uma grande coragem e uma grande agilidade,
é todavia o único verdadeiramente productivo. Um processo que não é
usado pelos indígenas, mas que um inglez ensaiou com successo, con-
siste em fazer perseguir o touro por cães, atirando sobre elle a tiro em
quanto dura a lucta do ruminante desesperado com os carnívoros que
agilmente lhe evitam os golpes. Este meio parece efficaz e não apresenta
em tão alto grão os perigos inherentes ao processo anterior.
mamíferos em especial 133
[;SOS E PRODUCTOS
o cheiro de almíscar é tão forte no animal que impregna toda a
carne, tornando-a inacceitavel aos paladares finos. Note-se porém, que
nem a vacca nem o novilho apresentam esse cheiro; por isso os euro-
peus lhes comem o. musculo. Os indígenas de um paladar grosseiro e fá-
cil de satisfazer, utilisam egualriíente toda a carne, venha ou não impre-
gnada do vivo cheiro do almíscar. A pelle, a lã e o péllo grosseiro do
ruminante constituem para os indígenas outros tantos artigos de com-
mercio, porque todas estas partes do corpo são utilisaveis: a primeira
para o fabrico de calçado, a segunda para vestidos e a ultima para ca-
belleiras.
OS lACKS
Este género representa a transição entre os bovidios e os búfalos.
Os cornos do iacks tem uma forma semelhante á dos bois; o craneo o
arredondado na parte superior como o dos búfalos. A cauda é curta,
mas terminada por pellos muito extensos.
O género comprchcnde uma espécie única que vamos descrever.
34 HISTORIA natt:ral
o lACK GRUNIÍIDOK
Este ruminante, que os antigos ciiamavam pcephagus grimniens, é
conhecido desde um tempo remotissimo. Eliano conhecia-o e deixou-nos
d'elle uma descripção, mencionando mesmo o processo de caça empre-
gado pelos indigenas para o matarem. Palias, que aqui temos citado
mais de uma vez, descreveu-o também no estado de captiveiro.
CARACTERES
Mede, pouco mais ou menos, dois metros a dois metros e trinta
centímetros de comprimento. A cauda, incluindo os pêllos que a termi-
nam, offerece uma extensão de meio metro. Pelo porte é como que um
intermediário do búfalo e do boi domestico. Sob um ponto de vista mor-
phologico, parece um composto do boi, do cavallo e da cabra. Do cavallo
tem a redondeza do corpo, a cauda e a maneira de pisar, do boi a ca-
beça e da cabra os longos pêllos sedosos que dos lados do tronco lhe
descem até aos pés. O iack grunhidor é negro, excepto nos pêllos com-
pridos que em torno do corpo lhe formam uma como franja e nos da
cauda que são perfeitamente brancos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A espécie encontra-se no estado selvagem em uma parte muito ex-
tensa da Ásia central, nomeadamente na Mongoha, no Thibet e no Tur-
kestan.
I
mamíferos em especial \:\o
COSTUMES
o ruminante quando no estado livre ou selvagem vive em logares
elevados, embora para n'elles obter uma alimentação suíficiente llie seja
preciso percorrer enormes extensões. Parece que o iack não pode viver
bem a uma altura inferior a dois mil e seiscentos metros acima do nivel
do mar. Ora, como justamente observa Brehm, a presença de um bovi-
dio a uma tal altura tem, decerto, muito de excepcional, desdiz do que
sabemos dos hábitos de vida das outras espécies. Á altura de dois mil
e seiscentos metros a pressão atmosplierica é metade da que se observa
ao nivel do mar.
Os movimentos do iack são rápidos. Os sentidos são perfeitos: des-
cobre de muito longe o inimigo. O iack é extremamente timido; mesmo
nos logares em que não é perseguido, foge do homem como se d'elle
esperasse alguma grande adversidade.
O epitheto de grunhidor com que se designa este ruminante, foi-lhe
dado em attenção á voz, que em verdade se não parece nem com o mu-
gir do boi, nem com o balar do carneiro, nem com o relinchar do ca-
vallo, mas precisamente com o grunhir do porco.
O cio parece ser na primavera. A fêmea pare em cada parto um só
filho que nasce tão ágil e tão cheio de vivacidade que acompanha desde
logo a mãe pelas maiores elevações e atravez dos mais perigosos cami-
nhos.
CAÇA
l^ara obter os pellos extensos que franjam o corpo do iack, faz-se-
Ihe uma caça pertinaz, ora perseguindo-o com cães, ora atirando-lhe
frechas. A caça é perigosa; porque, se o animal 6 apenas ferido, atirar-
se-ha sobre o caçador com rapidez assombrosa e extraordinária coragem.
3C HISTORIA NATURAL
CAPTIVEIRO
Quando velho, este ruminante 6 perfeitamente indomável; em novo,
pelo contrario, domestica-se com grande facilidade. Na Ásia o iack copu-
la-se com os outros bovidios, melhorando-se assim as raças domesticas.
Marco Polo conhecia já este facto e aíTirmava que se reduzia o iack ao
captiveiro, precisamente para este fim. O iack grunhidor domestico não
differe physicamente dos seus congéneres selvagens a não ser na cor.
Na domesticidade este animal não reclama senão pequenos cuidados,
como são: ter sempre agua pura e ter sempre sal, quando se conserva
nos estábulos. Mas de ordinário, vivendo quasi todo o dia fora de casa,
elle próprio se encarrega de procurar quanto lhe é preciso, sem o mais
hgeiro incommodo para o homem.
usos E PRODUCTOS
Para os thibetanos o iack é um animal utihssimo em domesticidade.
Servem-se d'elle como de um cavallo para o montar e ainda como besta
de carga. Obedece ao dono, mas mostra-se desconfiado para com os es-
tranhos, que sentem sempre uma grande diíficuldade em o montar e em
o carregar.
O iack grunhidor supporta facilmente uma carga de cem a cento e
vinte kilogrammas, attravessando com ella os togares mais perigosos e
accidentados.
Os viajantes que montam pela primeira vez este valente ruminante,
ao verem-se por elle transportados á beira mesmo de terríveis precipi-
cios, e por togares estreitos e perigosíssimos, não podem ser superiores
a um grande terror que os avassala; só a experiência consegue intro-
duzir no espirito do homem uma perfeita confiança nos admiráveis ins-
tinctos d'este bello animal.
Segundo Gérard, ha regiões em que se obriga o iack a puxar pela
charrua.
A carne d'este ruminante é, no dizer dos que a teem provado, ex-
cellente, sobretudo quando o animal c ainda muito novo, porque é en-
mamíferos em especial
tão muito mais delicada, muito mais tenra. Da pelle fazem-se correias e
dos pôllos fazem-se cordas. A parte porem, mais preciosa do animal ó a
cauda, que ha muito se toma como emblema de guerra e que no Oriente
se paga por preços verdadeiramente fabulosos.
DOENÇAS
Todos os annos morrem numerosos iacks grunliidores, victimas prin-
cipalmente dos epizoarios. A alimentação insufficieate ou variada de mais
é também uma causa mórbida frequente. Os exemplares trazidos para a
Europa teem cá prosperado admiravelmente; provam-o sobretudo os jar-
dins zoológicos de Amsterdam, de Francfort, de Munich, de Hamburg e
o Jardim das Plantas de Paris.
OS BÚFALOS
Estes ruminantes approximam-se mais do verdadeiro boi que os
iacks. Teem o corpo refeito, a região frontal curta e redonda. Os cornos
inserem-se nos ângulos posteriores do craneo, são comprimidos lateral-
mente, arredondados nas extremidades e cobertos de saliências tuber-
culosas ou de anneis irregulares na base; curvam-se primeiro para baixo
e para traz, depois para fora, e por fim para cima e um pouco para
diante. Em algumas espécies, estes appendices dirigem-se quasi directa-
mente para traz, descrevendo apenas um pequeno arco de concavidade
anterior. O pôllo é grosseiro e quasi completamente negro. A língua é
Jisa.
138 ITlSTOníA N\T['RAT.
DISTRIBUIÇÃO GEOORAPIIICA
Os búfalos pertencem á Africa c á Ásia.
O BÚFALO DA CAFRARIA
É o maior, o mais pezado, o mais forte e o mais selvagem dos bú-
falos. Os cornos (e é isto o. que de mais notável offerece o animal) são
muito largos, muito approximados e muilo dilatados na base de modo a
formarem por cima dos olhos uma espécie de coifa protectora da cabeça.
Os olhos são incovados e as orelhas, de mais de trinta centímetros de
comprido, pendentes. O corpo é pezado, volumoso e os membros são
fortes e vigorosos. A cauda é nua em toda a extensão, excepto na extre-
midade onde apresenta, como o nosso boi domestico, pêllos extensos. A
cor geral do ruminante ó um trigueiro muito escuro.
DISTUIBUICAO GEOGRAPIIíCA
Este búfalo encontra-se no Cabo e nas florestas do interior da Africa.
Ao sul de Rordophan e nas florestas virgens das margens do Nilo Azul
aprcsenta-se muitas vezes em manadas consideráveis.
^lAMIFKROS KM ESPECIAL
COSTUMES
O búfalo da Cafraria ó um animal furioso, máo. Os indigenas le-
mem-o mais que ao leão ou ao elephante. Em Kordopban ninguém se
atreve a caçal-o, máo grado o valor que tem. Os cafres teem por elle
o mesmo receio que os habitantes de Kordophan. Kolbe escreve a res-
peito d'estes búfalos: «São animaes perigosíssimos. O que os incitar,
mostrando-lhes um panno vermelho ou perseguindo-os, não pode contar
com a vida; começam a mugir, a escarvar o solo e sem modo por coisa
alguma, nada será capaz de retel-os. Qualquer que seja o numero d'ho-
mens armados que se lhe opponham, precipita-se contra ehes atravez da
agua e do fogo.» Conta este mesmo auctor que um búfalo seguiu um dia
um rapaz vestido de vermelho, atirando-se ao mar atraz d'elle e percor-
rendo a nado uma distancia de meia légua. Se o não matam a tiro de
um navio, quem poderia prever o desenlace d'esta situação deUcada?
Quando mata um homem, o búfalo da Cafraria leva ainda a malva-
dez até ao ponto de o calcar aos pés e de o rasgar com os cornos. Este
búfalo é de uma extraordinária resistência vital; não morre aos primei-
ros golpes. Ainda depois de gravemente ferido, vive muitas horas e ataca
violentamente o perseguidor.
O búfalo da Cafraria gosta muito de se espojar na vasa e passa
muitas vezes horas seguidas deitado na agua.
Segundo Drayson, a pelle d'este búfalo é tão espessa que uma baila
não a attravessa senão quando o tiro é dado a uma pequena distancia.
Dos búfalos da Cafraria, ainda segundo o mesmo escriptor, uns, os mais
novos, vivem juntos com as fêmeas em grandes bandos ou manadas, ao
passo que outros, os velhos, repelhdos por aquelles, vivem sohtarios
nas florestas. Os primeiros não attacam o homem que os não persegue;
os segundos, pelo contrario, sendo de uma selvageria immensa, atiram-se
de improviso sobre quem quer que vêem, ou seja um caçador ou um
simples passageiro inofensivo. São estes últimos que inspiram aos cafres
um enorme terror. O búfalo da Cafraria é, além de máo, muito astuto.
Simula-se ás vezes morto para deixar approximar o caçador e feril-o en-
tão á vontade. Drayson conta a propósito que um cafre, andando á caça
na floresta, encontrara um velho macho soHtario sobre o qual atirou. O
búfalo ferido deitou a correr. O cafre na persuasão de que o ferimento
tivesse sido mortal, foi-lhe no encalço sem precauções de espécie al-
guma, seguindo attentamcnte a pista do ruminante. Teria dado cem pas-
Í40 HTSToniA nati:ral
SOS, quando de repente ouviu por traz d'elle um grande ruido e recebeu
ao mesmo tempo um embate violentíssimo dos cornos do animal, sendo
arrojado a grande altura. Por felicidade caiu sobre os ramos entrelaça-
dos de uma arvore, de sorte que o búfalo julgandó-o perdido, desappa-
receu na floresta. O pobre homem que na queda partiu duas costellas,
desistiu para sempre de novas capadas. D'esta curta narrativa de Dray-
son deprehende-se que o búfalo ferido, simulara fugir para tomar, quando
o caçador menos o esperasse, uma direcção nova e vingar-se assim trai-
çoeiramente. Algumas vezes acontece também, como o mesmo Drayson faz
notar, que o búfalo mortalmente ferido emitte um grito que serve de si-
gnal a outros búfalos, os quaes se precipitam então furiosamente sobre
o caçador.
CAPTIVEIRO
Th. de Heuglin, chefe de uma expedição scientifica á Africa central,
trouxe para a Europa um pequeno búfalo da Gafraria, que obtivera ao
sul de Kordophan. Este búfalo, que ao tempo em que Brehm escrevia as
Maravilhas da Natureza vivia ainda no Jardim zoológico de Sch(jenbrunn,
era de uma extraordinária docilidade e deixava-se afagar não só por
Heuglin, mas por todos. Casanova trouxe também para a Europa um bú-
falo da mesma espécie e, como o primeiro, muito dócil.
O BÚFALO ARNI
É notável pelas dimensões; ó o gigante da família. Mede dois me-
lros e trinta centímetros de altura ao nivel da espádua e trcs metros e
quarenta e cinco centímetros de comprimento desde o focinho até á raiz
da cauda. No British Museum existe um par de cornos que teem, medi-
dos de ponta a ponta segundo a curvatura, dois metros de extensão. São
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 141
triangulares, rugosos, rectos nos primeiros dois terços e recurvos de-
pois, ficando as pontas dirigidas para dentro e para traz.
Dos costumes d'este curioso animal, sabe-se apenas que em liber-
dade é ferocíssimo, passando a caça d^elle pela mais perigosa de todas.
Em captiveiro perde toda a selvageria primitiva; na índia é empregado
na agricultura e montado como o cavallo.
O BÚFALO ORDINÁRIO
Tem o corpo alongado, um tanto redondo, o pescoço curto, grosso,
liso e vigorosíssimo. A cabeça é mais larga e mais curta que a do boi
domestico. O focinho é também curto e as pernas, de comprimento mé-
dio, são fortes, vigorosas. A cauda é muito comprida, a espádua quasi
elevada em forma de bossa, o dorso inclinado, o peito fino e o ventre
volumoso. Os olhos são pequenos, de expressão selvagem e má e as
orelhas compridas e largas com péHos curtos na face externa e compri-
dos na interna e dispostos horisontalmente. Os cornos são compridos,
fortes, muito espessos na raiz e depois successivamente adelgaçados,
terminando em ponta obtusa. Estes appendices são dirigidos primeiro
para baixo e para fora, depois para cima e para traz e por ultimo para
dentro e para diante formando assim um triangulo; só no terço final são
arredondados. Na primeira metade toda a superfície apresenta rugosida-
des transversaes; a ponta e a face posterior são hsas. Os péllos são ra-
ros, rijos, quasi sedosos; os das espáduas, da parte anterior do pescoço,
da região frontal e da extremidade da cauda são alongados. A cor geral
do corpo d'este ruminante é o pardo escuro ou o negro; os exemplares
brancos ou maculados são raros.
142 IIISTOIUA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
Esta espécie é originaria da índia.
COSTUMES
O búfalo ordinário gosta muito da agua; é por isso fácil encontral-o
em logares baixos e pantanosos, onde se alimenta de plantas más, des-
presadas por outros animaes. Os movimentos são pezados, mas enérgi-
cos e firmemente sustentados por muito tempo. A natação é para elle
um exercício sobre todos fácil.
O ouvido e o olfato são os sentidos mais perfeitos n'este ruminante;
a vista é má.
O búfalo ordinário não cede a nenhum outro bovidio em selvageria
e malvadez; nem mesmo em captiveiro chega a perder completamente
estes dotes nativos.
CACA
Slolz informa-nos de que na índia o processo geralmente empre-
gado na caça do búfalo ordinário consiste em circumdar um certo espaço
de terreno por uma paliçada na qual existe uma abertura apenas e de-
pois dispor, a partir d'essa abertura, em duas linhas formando angulo,
um certo numero de homens que, postados em cima de arvores, agitam
violentamente os ramos e fazem um grande ruido desde que um bando
de búfalos se approxima e se interna no espaço comprehendido pelas
duas hnhas. Os animaes, espantados pelo inesperado ruido, penetram
pela abertura única no espaço fechado pela pahçada e ahi são prezos
com laços e depois vendados.
MAMIFEKOS EM ESPECIAL 143
COMBATES
O búfalo é o inimigo natural do tigre; em combate com elle sae de
ordinário vencedor. É tal a confiança na valentia e coragem do rumi-
nante, que os pastores de búfalos domesticados não teem o minimo re-
ceio de attravessar, montados n'estes animaes, os legares infestados pelo
tigre.
Conta o naturalista Johnson que tendo um tigre attacado o ultimo
homem de uma caravana, um pastor de búfalos que estava perto correu
em soccorro do desgraçado, ferindo o carniceiro com um sabre; este
largou a primeira victima e atirou-se contra o pastor: os búfalos porém,
vendo o dono em perigo, precipitaram-se sobre o tigre e começaram a
atiral-o ás cornadas uns para os outros, como se atira uma pella, aca-
bando por matal-o.
Os príncipes indianos aproveitando a natural animosidade entre bú-
falos e tigres, teem instituído combates horrivelmente commoventes d'es-
tas duas espécies, tão distinctas no logar hierarchico da serie zoológica,
mas tão próximas na ferocidade e na exaltação da lucta. Gõrtz descreve
estes combates estranhos. N'uma arena, onde existem togares reserva-
dos para as damas e para os grandes da terra, collocam-se duas jaulas,
uma contendo um tigre, outra um búfalo selvagem. Abertas as jaulas a
um signal dado, o tigre, saindo, precipita-se sobre o búfalo que se con-
serva dentro das suas grades. O tigre, com a agihdade de felino, trepa
ao pescoço do búfalo e consegue feril-o gravemente; este porém, batendo
vigorosamente com o carnívoro contra as grades fortíssimas da jaula,
quebra-lhe os ossos, obriga-o a retirar-lhe as garras do pescoço, atira-o
ao chão e acaba por matal-o, varando-o com os cornos extensos e pode-
rosíssimos. No Japão a jaula do búfalo nunca excede muito o tamanho
do ruminante, precisamente para que ehe saia victorioso; os japonezes
que fazem do tigre o representante dos europeus e do búfalo o emblema
da sua raça, teem o máximo empenho em que seja este o vencedor.
N'uma vasta arena em que os combatentes fossem um tigre e um só bú-
falo, o tigre triumpharia, sem duvida, do contendor. Nas florestas a van-
tagem constante do búfalo sobre o tigre provem-lhe da possibilidade que
tem de chamar a si os companheiros, reforçando e multiplicando assim
a própria valentia.
Ui HISTORIA NATURAL
DOMESTIGIDADE
Com quanto, segundo o dizer de naturalistas auctorisados, se não
possa pôr em duvida que o búfalo domestico é originário da índia, o que
é certo é que já ahi se não encontra no estado selvagem. Hoje encon-
tra-se em outros paizes do Oriente, na Pérsia, no Egypto, na Syria e tam-
bém na Europa, na Itália, na Grécia e na Turquia.
O búfalo domestico gosta principalmente dos legares pantanosos,
que na Itália, felizmente para elle e infelizmente para os habitantes do
paiz, encontra em abundância. No Egypto é um animal estimado. Em to-
das as casas existe um tanque onde os búfalos passam uma grande parte
do dia mergulhados até ao pescoço; as inundações tão vulgares n'este
paiz e que são tantas vezes o desespero dos habitantes, são para o bú-
falo um motivo de prazer. Foge então para os campos cobertos d'agua
e só volta para casa quando as fêmeas, incommodadas pelo excesso do
leite, sentem a necessidade de ser mugidas. O búfalo domestico é bom
nadador; segundo a opinião dos que uma vez tiveram occasião de assis-
tir a um tal espectáculo, nenhum ha superior ao de um grande numero
de búfalos attravessando a nado um largo rio. Os pequenos pastores de
oito a dez annos montam-se no dorso dos animaes e assim se deixam ir
sem medo, quando mesmo as aguas estão agitadas. É, com effeito, per-
feitamente admirável a habihdade com que os búfalos nadam. «A agua
parece ser, diz Brehm, o seu verdadeiro elemento; brincam, mergu-
lham, deitam-se de lado, um pouco mesmo sobre o dorso, deixam-se ar-
rastar pela corrente sem mover os membros ou a attravessam de lado
a lado. Passam pelo menos seis a oito horas por dia na agua; ahi estão,
ahi ruminam á vontade.» * Se o privam d'agua por muito tempo, o bú-
falo domestico torna-se inquieto e até mao. E prefere a agua pura e pro-
funda á vasa dos legares pantanosos. No Egypto, diz Brehm, vé-se mui-
tas vezes este ruminante partir a galope (o que só faz quando enfure-
cido) na direcção do Nilo e atirar-se á agua. Segundo o escriptor que
acabamos de citar,' na índia e na Itália não poucas pessoas teem sido
victimas d'esta attracção do búfalo domestico pela agua; ahi, onde é cos-
tume atrelar-se o búfalo aos carros, tem acontecido que, ao passar por
1 Brehin, Ohr. cit., vol. 2.«, pg. 642.
1
mamíferos em especial 145
perto de um rio, o ruminante se atira a elle, desapparecendo sob a
agua com carro e passageiros.
Em terreno firme, o búfalo não é tão ágil como na agua. A marcha
é então pezada e a corrida, com quanto rápida, sempre mais ou menos
penosa. Quando se enfurece ou procura a agua, caminha galopando, ou
melhor — caminha rapidamente por uma successão de saltos bruscos e
deselegantes; não sustenta porém esta marcha para além de duzentos
passos.
O búfalo domestico é para quem o vê pela primeira vez uma causa
de terror, tanta é a selvageria do seu aspecto. Ninguém deixa de jul-
gal-o um animal ferocíssimo. No entanto, a opinião formada sob a influen-
cia das primeiras impressões é perfeitamente illusoria. No Egypto, por
exemplo, o búfalo domestico é tão dócil que a guarda d'elle se confia a
creanças. Brehm, diz ter visto infinitas vezes rapariguitas montadas so-
bre o dorso do ruminante attravessarem o Nilo e acrescenta que nunca
ouviu fallar de um accidente qualquer. De resto, o valente animal sub-
mette-se resignadamente a todos os serviços que lhe impõem, aos tra-
balhos agrícolas, á conducção de carga, ao transporte de pessoas, exi-
gindo apenas em troca: ahmento e agua em que possa banhar-se algu-
mas horas por dia. E não se pense que reclama uma alimentação abun-
dante; é sóbrio, tão sóbrio que nem o camelo, nem o jumento o exce-
dem. Não toca nas hervas tenras e saborosas que são o attrativo dos
outros bovidios; procura antes os vegetaes mais seccos, mais duros,
mais insípidos. Também se satisfaz com vegetaes dos pântanos, qualquer
que seja a espécie a que pertençam. E o que é certo é que um tal género
de alimentação, por insufíiciente que pareça, lhe convém admiravelmente,
como o prova a quantidade e boa quahdade do leite que produz a fê-
mea, leite de que se faz exceli ente manteiga em abundância.
Este animal tão útil, tão paciente, tão justamente considerado no
Egypto, tem uma qualidade antipathica: é sujo; espoja-se na lama e fica
depois tão satisfeito como se saísse de um banho. Os turcos odeiam este
animal porque elle se atira furioso contra os estandartes vermelhos do
propheta; julgam-o um animal maldito, que despreza as leis divinas.
Pelo contrario, outros povos ha que o teem na conta de sagrado e lhe
attribuem virtudes semelhantes ás que os christãos concedem ao cordeiro
symbohco, qui tolit peccata mundi^ como diz a invocação.
O búfalo domestico é silencioso; só as fêmeas quando aleitam e os
touros em fúria fazem ouvir a voz onde ha misturado o mugido do boi
e o grunhido do porco.
Ao Norte os búfalos entregues a si copulam-se na primavera, isto
é em Abril ou Maio. Dez mezes depois, que tanto é o tempo que dura a
gestação, a fêmea pare um filho único a que dedica uma sollicitude
VOL. III * 10
146 HISTOniA NATURAL
enorme e que defende nos perigos com extraordinária coragem. Aos
qualro ou cinco annos o animal é adulto; a media da vida é para esta
espécie de dezoito a vinte annos.
O único inimigo sério da espécie é, como dissemos já, o tigre. Além
d'este, poucos se atrevem a accommettel-o e os que o fazem ás vezes,
como o lobo, são victimas da sua temeridade.
usos E PRODUCTOS
Naturalistas ha que chegam a considerar o búfalo domestico mais
vahoso ainda que o boi; fundam a sua opinião em que o búfalo presta
os mesmos serviços e dá os mesmos productos que o boi, sem exigir
nem o alimento nem os cuidados d'este ultimo. Encontro n'este modo de
vêr um exagero. A carne do búfalo adulto é insupportavel, ao passo que
a do nosso boi é em todas as idades excellente. Para ter carne de bú-
falo capaz de ser comida é preciso malar o animal em pequeno, o que
equivale a ter de prescindir de todos os serviços que, ii'uma idade pos-
terior, poderia prestar-nos. Não acontece o mesmo com o boi domestico;
e este facto parece-me de uma alta importância e de certo modo atte-
nuante da opinião que dá maior valimento ao búfalo do que ao boi, este
dócil e paciente companheiro para o qual toda a nossa gratidão é pouca.
v<4
OS BISONTES
Foram conhecidos dos antigos que d'elles nos legaram descripções
minuciosas e exactas. São animaes feios e disformes, grandes como os
bois selvagens, negros e de cornos muito affastados. A descripção que
temos de fazer das espécies mais importantes dispensa-nos de proseguir
em indicações relativas à generahdade.
mamíferos em especial 14'
o BISONTE DA EUROPA
É, depois do elephante, do rhiaoceronte e da girafa, o maior ma-
mifero terrestre que actualmente existe. Este animal mede hoje ordina-
riamente um metro e sessenta e cinco centímetros de altura sobre dois
metros e meio de comprimento; o pezo médio é de seiscentos kilogram-
mas. Na Prússia porém, em 1555 matou-se um macho que tinha dois
metros e dezeseis centímetros d'alto sobre quatro metros e dezesete mil-
limetros de comprido; o pezo d'este gigante era de novecentos e cin-
coenta e dois kilogrammas. EstasJ dimensões e este pezo não são já hoje
attingidos. A cabeça d'este ruminante é volumosa e larga, muito maior
que a do boi ordinário.
O bisonte europeu é forte, refeito; a porção anterior do corpo é
muito desenvolvida e faz parecer a posterior delgada. A espádua eleva-se
em bossa de modo que o dorso desce em declive sensível até á região
sagrada. O pescoço é curto e grosso e a cabeça, como dissemos, volu-
mosíssima. Os cornos, que medem cincoenta centímetros de extensão,
devem considerar-se curtos relativamente á cabeça. Nascidos quasi ao
meio do craneo, estes appendices recurvam-se para fora e para baixo,
depois para cima e para diante, apresentando as pontas dirigidas para
dentro e para traz; na raiz oíferecem rugosidades annulares, na ponta são
perfeitamente lisos. Os membros, sem serem grandes, são todavia mais
extensos e mais elegantes que os do boi ou do búfalo; os cascos são
grandes, largos e altos. A cauda com os extensos péllos terminaes passa
abaixo da articulação tibio-tarsica. Desprovida dos péllos terminaes que
medem trinta e tantos a quarenta centímetros, a cauda chega apenas ao
meio da tibia. Os péllos do manto são em geral compridos; os da cabeça
e das pernas são crespos, como que frisados. Ao longo da maxilla infe-
rior, o bisonte europeu apresenta uma longa barba. Os péllos da parte
posterior do corpo são lanosos. De resto, as quahdades do péllo variam
com as estações; no verão o péllo é menos comprido, menos espesso e
menos luzidio que no inverno. A cor do péllo é no estio mais clara que
na estação dos frios em que predomina o escuro.
O macho differe da fêmea apenas na grandeza e na extensão dos
cornos.
148 HISTORIA NATUIIAL
COSTUMES
O bisonte da Europa habita no estio e no outorano os logares mais
húmidos e occultos das florestas. No inverno prefere os logares elevados,
expostos e seccos. Os machos velhos vivem solitários; os novos vivem
em manadas de quinze a vinte individues, no verão, e de trinta a qua-
renta, no inverno. Cada uma d'estas manadas, como nota Figuier, tem
uns certos domínios fixos, que não ultrapassa nunca. Dentro de cada
manada existe de ordinário, até á epocha do cio, a máxima harmonia;
entre manadas distinctas, pelo contrario, as relações não são boas, ven-
do-se geralmente a menos numerosa obrigada a separar-se, tanto quanto
possível, da mais forte.
Não pode dizer-se que o bisonte europeu tenha hábitos nocturnos;
no entanto prefere pastar de madrugada e ao fim da tarde ou mesmo de
noite. Cascas d'arvores, folhas, gommos e hervas, parecem constituir a
sua ahmentação. É-lhe indispensável a agua fresca.
Todos os movimentos do bisonte da Europa parecem pesados; o ani-
mal porém é vivo. O passo é acelerado, e o galope um tanto pezado,
mas rápido; quando corre abaixa a cabeça e levanta a cauda.
O bisonte da Europa não accommette um homem inofensivo e mes-
mo, no verão, evita encontrar-se com a nossa espécie; mas se o ferem,
se o incitam, encolerisa-se e é um perigosíssimo inimigo. Enfurecido es-
tende a lingua para fora da bocca, move nas orbitas os olhos injectados
de sangue e atira-se com extrema valentia sobre quem quer ou o quer
que seja que o tenha exasperado. Como acontece nos búfalos, os machos
sohtarios n'esta espécie são também aquelles que mais ha a receiar; at-
tacam mesmo quem os não incita.
O cio começa em Agosto ou Setembro e dura duas a trez semanas.
Os combates dos machos para a posse das fêmeas são, como facilmente
se prevê, dadas as forças extraordinárias do animal, horríveis e tenacís-
simos. A morte dos contendores mais fracos não é um acontecimento
raro. A gestação dura, como na espécie humana, nove mezes; em Maio
pois, ou começos de Junho, a fêmea reaUsa o parto.
Antes do parto, a fêmea tem-se separado dos companheiros, procu-
rando um logar sohtario e perfeitamente tranquillo. Ahi occulta o filho
durante os primeiros dias da existência d'elle. A mãe defende o seu pro-
ducto com enorme coragem, com risco mesmo da própria vida; é então
mamíferos em especial 149
perigosíssimo approximar-se alguém da fêmea, ainda mesmo que a não
hostilise, porque se enfurece e é terrível.
Nos primeiros tempos de existência, o bisonte é um animal alegre
e agradável mesmo, embora os instinctos de ferocidade que mais tarde
o hão-de caracterisar principiem desde logo a apparecer. Cresce lenta-
mente; só ao fim de nove annos pode considerar-se adulto. Em compen-
sarão attinge a idade de trinta a cincoenta annos. As fêmeas duram or-
dinariamente dez annos menos que os machos. Estes, quando envelhe-
cem, tornam-se cegos ou perdem os dentes. Não podendo então alimen-
tar-se bem, caem em progressivo abatimento e morrem dentro de pouco
tempo.
A reproducção n'esta espécie é muito lenta. A fêmea só pare de
trez em trez annos um filho único; e ha uma epocha de alguns annos
em que se conserva absolutamente estéril, antes que de novo entre em
gestação.
INIMIGOS
Os que merecem pela sua importância mencionar-se são o urso e
o lobo. O bisonte defende-se porém, admiravelmente. O urso e o lobo só
conseguem matal-o, se o encontram só e esgotado pelas fadigas, dete-
riorado pelas fomes em tempo de gelo. Deve pois ter-se como phantas-
tica, perfeitamente falsa na generalidade, a crenpa de que trez lobos ma-
tam um bisonte, attraindo-lhe a attenção um d'elles que se lhe coUoca
na frente, emquanto os outros dois o mordem no ventre. Trez ou mesmo
quatro lobos são poucos para fazerem frente ao hercúleo ruminante; só
muitos conseguiriam (e parece que excepcionalmente conseguem) trium-
phar de um só bisonte.
CAÇA
No tempo em que as armas de fogo eram inteiramente desconheci-
das, considerava-se um grande feito, que os poetas celebravam, matar um
bisonte da Europa. Gomprehende-se perfeitamente quanta coragem era
precisa para attacar um animal tão possante e tão feroz. Hoje que sobre
elle se pode fazer fogo a distancia, a morte dada em caça a um d'estes
150 HISTORIA NATURAL
ruminantes, sem deixar de ser na maioria dos casos uma prova de cora-
gem, perdeu mui lo do antigo valor.
Na caça do bisonte europeu, empreza geralmente tentada apenas
por gente rica, emprega-se um numero considerável de homens e um
apparato verdadeiramente espantoso. No século passado estas caçadas
foram ainda mais apparatosas do que são hoje. Mesmo actualmente, po-
rém estas caçadas são de um extraordinário apparato; entram n'ellas
centos de pessoas e centos de cães. Já alguns dias antes de principiar
um d'estes exercícios, centos de aldeãos são obrigados a afugentar os bi-
sontes para o logar em que terá de reahsar-se a caçada. Os caçadores
téem sempre o cuidado de procurar uma collocação suíficientemente res-
guardada para não poderem ser attingidos pelo animal que perseguem.
É por isso que Brehm chama á morte dada ao bisonte n^estas condições
um assassinato.
N'outro tempo a gente do povo, quando se propunha caçar o bi-
sonte, ia a pé, tendo por única arma uma lança. Os caçadores plebeus
caminhavam sempre em numero de dois: um procurava, gritando e agi-
tando um panno vermelho, attrair a atten^-ão do ruminante; o outro era
o encarregado de dar o golpe mortal. Os cães eram de ordinário um
auxiUar d'esta ordem de caçadas, tão pouco apparatosas, mas tão cheias
de perigos e tão férteis em movimentos de assombrosa coragem.
CAPTIVEIRO
O bisonte europeu tem sido muitas vezes reduzido ao captiveiro,
mas não inteiramente domesticado. Por maiores que sejam os cuidados
e attenções do homem por este ruminante, por longo que seja o tempo
de captiveiro, a verdade é que ehe não attinge nunca um perfeito es-
tado de domesticidade e que nem mesmo aquelles que lhe dão de co-
mer se podem julgar a salvo de qualquer tentativa de aggressão.
Um facto, inesperado talvez, é que o bisonte em captiveiro se re-
produz mais rapidamente que em liberdade. Observações feitas nos jar-
dins zoológicos vieram provar que era falsa a opinião geralmente acre-
ditada de que o bisonte entrava como causa das modificações operadas
nas raças dos nossos bois. A verdade é que o bisonte se não copula com
as espécies domesticas; pelo contrario, existe de uns pelos outros um
ódio nativo, uma invencível repugnância instinctiva.
mamíferos em especial 1 5 1
usos E PRODUGTOS
A carne do bisonte europeu é geralmente muito estimada e, no di-
zer dos que a teem provado, no gosto d'ella ha alguma coisa que lem-
bra a do boi e ao mesmo tempo a do veado. A carne da fêmea ou do
animal quando ainda muito novo, é, sobretudo, considerada excellente.
Esta carne depois de salgada é na Polónia tida em conta de uma iguaria
delicadíssima.
A pelle do animal dá um coiro de grande duração, mas muito po-
roso, que apenas serve para fazer correias.
Dos cornos e dos cascos ha paizes em que se fabricam vasos para
bebidas; houve tempo em que a estas partes do animal se attribuiam
virtudes therapeuticas.
O BISONTE DA AMERICA
É o maior de todos os mamíferos do continente americano. O macho
attinge trez metros de comprido, não incluindo a cauda que é de ses-
senta e seis centímetros ou mais com os pêllos que a terminam. A al-
tura é de dois metros ao nivel da espádua e de um metro e sessenta e
seis centímetros no sacro. O pezo varia entre seiscentos e mil kilogram-
mas. A fêmea é mais pequena; não excede quatro quintos d'estas dimen-
sões.
Este ruminante assemelha-se um pouco ao seu congénere europeu;
comtudo é fácil distinguil-os. O bisonte americano tem os membros e a
cauda relativamente curtos, a "parte anterior do corpo mais desenvolvida,
mas a posterior mais estreita e os pêllos do manto mais extensos. Tem
a cabeça proporcionalmente maior, a região frontal mais larga, o pes-
coço curto, a espádua muito elevada, a parte posterior do tronco estrei-
ta, fraca e a cauda curta. Os cornos são curtos e grossos, recurvados
152 HISTORIA NATURAL
para cima e para fora e tondo a ponta dirigida um pouco para dentro;
as orellias são curtas c finas e os olhos grandes, escuros.
Os pelios da caljeça, do pescoço, das espáduas, do peito, da parte
superior das coxas e da cauda são muito compridos; os péllos da cabeça
são crespos e os que circumdam a maxilla inferior formam uma barba.
Os péllos que cobrem o resto do corpo são espessos, mas muito curtos.
Ao principiar a primavera os péllos caem e os que os substituem mudam
de cor. As partes do corpo em que os péllos são mais compridos aíTe-
ctam a cor negra; as outras partes são de um pardo-trigueiro uniforme.
O manto do estio 6 mais claro; é de um trigueiro amarellado. Os cornos,
os cascos e o focinho são de ura negro accentuado. Os indivíduos bran-
cos ou malhados de branco são muitíssimo raros.
É esta a descripção que Brehm faz do bisonte da America.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Este bisonte, outr'ora espalhado em abundância por todo o conti-
nente da America do Norte não existe hoje senão n'uma parte muito li-
mitada, muito restricta d'ene. Todos, os annos é forçado a recuar diante
dos homens, negros e brancos, e diante dos lobos; assim se encurta
sempre e progressivamente a sua área de dispersão geographica. Ainda
assim, a oeste do continente americano existe por milhares. Houve tempo
em que este ruminante era vulgar nas costas do Atlântico; nos começos
do século XVIII já ahi era raríssimo. No fim d'esse mesmo século era
ainda commum em Kentucky e a oeste da Pensylvania; hoje é raro tam-
bém n'estas paragens. Desde que os europeus começaram de estabele-
cer-se na America do Norte, o animal rareia constantemente; e se existe
ainda hoje por milhares, como dissemos, nas pradarias extensíssimas de
oeste, maior é, segundo Brehm, o numero de cadáveres que cobrem o
solo.
COSTUMES
o bisonte americano é talvez o mais sociável de todos os bovídios.
Observemos comtudo que os sexos se não misturam senão na epocha do
mamíferos em especial
153
cio e que de ordinário os machos formam agrupamentos separados d'ou-
tros exclusivamente constituidos pelas fêmeas e os filhos não adultos.
Estes agrupamentos seguem uns aos outros; e é por isso que á primeira
vista parecem constituir todos uma única manada de milhares de cabe-
ças.
O bisonte americano não vive sempre no mesmo logar, antes muda
de sede segundo as estações. No estio procura os descampados; no in-
verno busca de preferencia as florestas. Além d'isto, emprehende to-
dos os annos, regularmente, grandes viagens, descendo em Julho para o
sul e voltando na primavera para o norte. Estas emigrações fazem-se
desde o Canadá até ás costas do golpho México e desde o Messuri até ás
Montanhas Pétreas. Os bandos emigrantes são constantemente acompa-
nhados de longe por lobos que vão marchando na esperança de apanha-
rem algum retardatário cujos músculos lhes offereçam lauto banquete.
Nuvens d'aguias e de abutres voam, seguindo os emigrantes; soUicita
estes carniceiros do ar a mesma esperança que anima os de terra. Os
caminhos que seguem os bisontes n'estas viagens são os mesmos sem-
pre, e são por isso conhecidos pela designação de estradas dos búfalos.
Eu advirto para comprehensão d'esta designação que na America o bi-
sonte indígena é conhecido pelo nome de búfalo. Estas estradas são ge-
ralmente parallelas entre si e extensíssimas.
Brehm explica a sociabilidade do bisonte como o effeito de duas
causas concorrentes; a mudança das estações e a reproducção. A prima-
vera dispersa os bisontes e se o anno fosse uma permanente primavera
não os veríamos juntos; mas o outomno reune-os. A reproducção inci-
tando os sexos a procurarem-se, é uma causa de sociabihdade mais po-
derosa ainda. É em Julho oju Agosto que os machos se misturam com as
fêmeas, procurando cada um a sua companheira. É também então a epo-
cha dos combates e das luctas, terríveis decerto, mas que, no dizer de
Audubon, nunca terminam pela morte de algum dos contendores. Ha
muitas espécies em que o contrario é, como sabemos, vulgar. O vence-
dor, uma vez conquistada a fêmea, separa-se com ella dos companheiros
e procura um logar tranquillo e isolado, onde se conserva até ao mo-
mento da parturição.
O cio dura, termo médio, um mez; os machos que não lograram
encontrar fêmea n'essa epocha de ardor sexual, conservam-se ainda por
muito tempo, por algumas semanas, furiosos e mãos. Na quadra do cio,
o macho exala um enérgico cheiro a almíscar que de longe o denuncia
ao caçador; este cheiro, impregnando a carne do animal, torna-a detes-
tável, incapaz de ser comida por um europeu. A excitação nervosa d'essa
epocha esgota o animal que se esquece de comer e emagrece então con-
sideravelmente.
101 HISTORIA NATURAL
Em Março ou Abril, isto ó nove mezes depois da copula, a íemea
pare um filho único. Algum lempo antes a fêmea separa-se do compa-
nheiro e reune-se a outras fêmeas, como eha gravidas. Gomo em todas
as espécies de bovidios, n'esta os cuidados maternos são de uma extraor-
dinária sollicitude; a mãe desconhece inteiramente toda a ordem de pe-
rigos quando se trata de salvar o filho ameaçado. Este é sempre um
animal vivo, alegre, disposto a todos os exercícios infantis.
O bisonle americano, apesar da apparencia de preguiça e da estru-
ctura do corpo, é um animal de uma agilidade relativamente notável.
Percorre, a despeito da pouca extensão dos membros, grandes espaços
com prodigiosa rapidez; nunca marcha lentamente como o boi domes-
tico : o passo é apressado, o trote vivo e o galope tão rápido como o de
um bom cavallo. Nada vigorosamente e por um grande espaço de tempo;
não vacilla em attravessar uma corrente d'agua, ainda quando ella apre-
sente uma extensão de dois ou mais kilometros.
No bisonte americano o ouvido e o olfato são os sentidos mais per-
feitos; a vista é má.
Este ruminante, com quanto habitualmente timido, se o excitam en-
colerisa-se, tornando-se então corajoso, temivel, ardente na vingança.
De resto, longe de ser indomável, como erradamente se tem dito, do-
mestica-se com facilidade e chega a sentir por quem o trata uma grande
dedicação.
A voz do bisonte americano consiste n'um mugido surdo; quando
muitos d'estes animaes soltam a voz ao mesmo tempo ouve-se ura ruido
só comparável á trovoada.
O regimen alimentar d'este bisonte varia um pouco com as estações :
no estio o animal nutre-se de hervas succulentas; no inverno é forçado
a contentar-se com hervas seccas, hchens e musgos. De resto, o animal
é sóbrio; satisfaz-se completamente com pouco e não escolhe mesmo a
quahdade.
Além do homem e de alguns carniceiros, tem o bisonte da America
um terrível inimigo — o inverno. Esta estação não é hostil ao animal so-
mente porque é fria, mas ainda porque durante ella se torna difficil achar
alimento. É então que a lucta para a vida se torna mais difíicultosa,
mais áspera; o gelo, cobrindo os pastos, deixa o animal em penosas con-
dições. E embora o bisonte, com uma previdência que faz honra ás suas
faculdades intellectuaes, tenha feito para esta penosa estação uma forte
reserva de gordura, é certo que ella se esgota e que o ruminante, for-
çado a uma alimentação mesquinha, abate e emagrece consideravel-
mente. Também muitas vezes acontece que o bisonte, caminhando por
sobre a agua coberta de uma espessa camada de gelo, porque este parte
sob o pezo do corpo, vem a morrer aíTogado. Outros que vêem cami-
mamíferos em especial
155
nhando atraz d'elle, lêem a mesma sorte; assim se perdem n'um só dia
algumas dezenas de indivíduos.
CAÇA
Além do urso escuro e do lobo, devemos contar o homem como um
terrivel, o mais terrivel inimigo do bisonte americano. «N'outro tempo,
escreve Moellhausen, quando o hufalo podia ser de certo modo conside-
rado como o animal domestico dos indigenas, não se notava que as ma-
nadas diminuíssem, antes a multiplicação era crescente e prospera. Desde
o momento porém, em que os europeus, apparecendo na America do
Norte, tomaram o gosto á carne do ruminante e acharam que lhes con-
vinha o manto d'elle, espesso e abundante, trataram desde logo de es-
tabelecer sobre estes dados um ramo de commercio. Ao mesmo tempo
despertaram nos indigenas o desejo de possuírem alguns objectos bri-
lhantes que inventaram e que começaram a oíTerecer-lhes em troca dos
productos da caça ao ruminante; desde então a perseguição começou.
Milhares de bisontes foram mortos desde logo para que os europeus lhes
aproveitassem o largo manto. Em poucos annos diminuiu de um modo
espantoso o numero de ruminantes. Talvez não venha longe o tempo em
que o bello animal exista apenas na memoria dos homens e em que
trezentos mil indigenas se vejam privados de alimento. Arrastados pela
fome tornar-se-hão, com milhões de lobos, um flagello para a civihsação
visinha e será preciso então destruil-os.» É triste sem duvida este qua-
dro, mas verdadeiro, decerto.
O modo mais vulgar por que os indigenas fazem a caça ao bisonte
americano, é a cavallo e á frecha. O cavallo deve ser bom, vigoroso,
capaz de galopar horas inteiras sem fadiga; de ordinário o indígena es-
colhe um que elle próprio tem encontrado em estado selvagem nas
steppes. O cavalleiro carece de ser vigorosíssimo também e de conhecer
perfeitamente a arte de equihbrar-se sobre o animal quando este, para
fugir ao bisonte enfurecido, pula e galopa tremendo de susto. Deve
também o cavaUeiro ser um admirável atirador, porque tem de fazer
pontaria ao bisonte de cima do cavallo que se agita em todas as direc-
ções e procura evitar o embate do terrivel ruminante em cólera.
Actualmente na caça do bisonte empregam-se também as armas de
fogo e assim se consegue matar um grande numero d'estes ruminantes
n'uma só excursão.
156 HISTORIA NATURAL
O emprego do laço é também muito vulgar; o bom caçador atira-o
com inacreditável destreza de cima do cavallo em galope.
Os diíferentes processos de caça que acabamos de mencionar, ofle-
recem um grande risco. Ás vezes o ruminante ferido atira-se contra o
cavallo que assustado salta e cospe da sella o cavalleiro; este umas ve-
zes é victima da queda, outras do bisonte, que não lhe dando tempo
para que se levante se precipita sobre elle e o mata ás cornadas. Os
naturalistas Wyeth e Richardson contam alguns d'estes casos funestos.
Os lobos perseguem o bisonte americano; raras vezes porém con-
seguem sair da lucta triumphantes, mesmo quando em grande numero.
O cão bull-dog é também um irreconciliável inimigo do bisonte da Ame-
rica; mas poucas vezes logra vencel-o. O bull-dog, adestrado n'estas lu-
ctas, procura prender o bisonte pelos lábios, porque é esta sem duvida
a situação mais perigosa para este; ainda assim o ruminante encontra
muitas vezes meio de salvar-se, erguendo os membros posteriores e
deixando-se cair para diante com todo o pezo do corpo sobre o carni-
ceiro que esmaga.
GAPTIVEIRO
A introducção do bisonte americano nos jardins zoológicos da Eu-
ropa não é antiga; no de Hamburgo só ha um anno existe um par. O
bisonte, com quanto timido nos primeiros tempos de captiveiro, acaba
por adquirir confiança nos que d'elle se occupam e por se ligar ao ho-
mem por laços de aíTeição. Prospera notavelmente desde que se lhe mi-
nistra agua em abundância e se lhe permitte viver ao ar, n'uma certa
liberdade, n'uma independência que elle aprecia mais que tudo. O bi-
sonte tem-se reproduzido em captiveiro na Inglaterra e em Colónia. Os
mestiços copulam-se com o boi domestico, sendo os filhos fecundos.
Comprehende-se que o bisonte americano podesse tornar-se um excel-
lente animal domestico.
usos E PRODUCTOS
O bisonte é utiKssimo. A carne secca, tal como se prepara na Ame-
rica, é um artigo importante de exportação n'este paiz. A lingua gosa
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 157
da reputação de um excellente prato. Da pelle fazem os indígenas vesti-
dos, coberturas, sellas, cintos, etc. Dos ossos fazem facas e dos tendões
cordas d'arco e fio resistente. Aproveitam-se ainda os cascos, a lã e até
os excrementos que são um soberbo combustivel.
OS BOIS
Os bois propriamente ditos tem a região frontal chata e extensa, os
cornos grandes, pouco desenvolvidos e inseridos na base á altura da
crista frontal. Teem de ordinário treze vértebras dorsaes, seis lombares
e quatro sagradas. O pêllo é curto, mas espesso. É esta divisão dos bo-
vidios a que, sem contestação, abrange as espécies mais úteis ao ho-
mem.
Decomporemos, á maneira de Brehm, este grande grupo em trez:
— bois selvagens ou bravos, bois que se tornaram selvagens e bois do-
mésticos.
I. BOIS SELVAGENS
o GAYAL
Mede trez metros de comprido e um metro e sessenta centímetros
de altura, ao nivel da espádua. A cauda é de oitenta centímetros. Tem
o corpo volumoso e forte, o pescoço curto, a cabeça grande e larga pos-
158 HISTORIA NATURAL
teriormente, os cornos curtos, mas fortes, muito espessos na base, recur-
vando-se em semi-circulo primeiro para cima e para fora, depois um
pouco para dentro, achatados de diante para traz na raiz, cheios de ru-
gosidades transversaes, redondos e lisos na ponta. O pôUo é curto e es-
pesso. Este boi tem quatorze pares de costellas, ao passo que as outras
espécies teem dezesete. Oííerece cinco vértebras lombares, cinco sagra-
das e cinco caudaes.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A espécie habita as montanhas arborisadas do sul e do centro da
índia e da ilha de Ceylão a uma altitude de mil a mil e trezentos metros
acima do nivel do mar.
COSTUMES
O gayal é vivo e ágil como todos os animaes montanhezes. O gé-
nero de vida d'este ruminante não differe notavelmente do que caracte-
risa os outros bovidios. Vive em grupos com os seus congéneres. Evita
o calor excessivo do sol e procura alimento de madrugada, ao fim da
tarde e de noite, quando ha luar; rumina á sombra das arvores. Gosta
muito da agua, mas, ao contrario de outros bovidios, evita a vasa e os
legares pantanosos. É dócil, evita o homem e nunca o attaca. Defende-se
com notável coragem dos carniceiros, pondo em debandada o tigre e
a panthera.
CAÇA
A carne do gayal, que passa por ser excellente, constitue uma das
causas, a principal talvez, da caça pertinaz que os indígenas lhe fazem.
Não é diíficil apanhar o animal vivo. Para o conseguirem, os indígenas
n'uma certa epocha do anno permittem a juncção dos que possuem do-
mamíferos em especial
59
mesticados com os selvagens, lançando pelos caminhos umas bolas do
tamanho de cabeças humanas, compostas de uma certa terra e de sald-
os animaes selvagens misturam-se alegremente com os domésticos e for-
mando assim um bando único principiam a lamber as bolas salinas que
são para elles um verdadeiro manjar. Os indígenas todos os dias, por
espaço de um mez, continuam renovando a doze das bolas e vão-se
pouco e pouco aproximando dos ruminantes que, entretidos como andam,
não se lembram de fugir. Os domésticos deixam-se naturalmente afagar
pelos donos e os selvagens, seguindo-lhes o exemplo, manifestam ao fim
de poucos dias uma grande confiança pelo homem, permittindo que elle
os acaricie também. Obtido isto, o indígena procura trazer a casa os
animaes domésticos; atraz doestes seguem os selvagens. Eis ura processo
bem simples de apanhar um boi bravo, valente, ágil e vivo como é o
gayal.
Pela observação dos indivíduos reduzidos ao captiveiro, sabe-se que
n'esta espécie a gestação dura oito a nove mezes e que a fêmea dá á
luz em cada parto, um filho somente. O anno que segue ao da parturi-
ção é sempre de esterilidade.
O GAURO
A semelhança entre o gauro e o gayal é tão grande que as duas
espécies teem andado desde muito confundidas. No entanto a confusão
deve cessar, porque o gauro tem treze vértebras dorsaes, seis lombares,
trez sagradas e dezenove caudaes e aíTecta uma conformação craneana
muito diíTerente da que caracterisa o gayal. O tamanho do gauro é tam-
bém maior que o do gayal. Um gauro ainda não adulto pode medir trez
metros e sessenta centímetros de comprimento e mais de um metro e
oitenta centímetros de altura; os cornos d'este mesmo individuo podem
medir quarenta centímetros de extensão e terem na raiz uma circumfe-
rencia de trinta e trez ou mais.
O gauro distingue-se em geral dos outros bois pelas pernas altas e
pela elegância relativa. Os péllos são em quasi todo o corpo curtos c es-
pessos; mas os da cabeça e da cauda são alongados. A cor geral do
160 HISTORIA NATURAL
manto é um trigueiro escuro. As extremidades e a fronte são geralmente
Lrancas. Os individuos ruivos são raros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A área de dispersão geographica do gauro parece ser limitadissima.
Este ruminante com eífeito, existe confinado na montanha Myn-Pâd da
província Sergoja, na Ásia.
COSTUMES
O gauro vive nas florestas espessas e junto dos cursos d'agua da
montanha que acabamos de mencionar. É sociável e vive sempre em
grupos de cem a cento e vinte individuos. Os velhos machos, expulsos
das sociedades, passam uma vida errante e absolutamente sohtaria.
O gauro é timido; diante da nossa espécie foge invariavelmente.
Mas se é attacado, o medo cessa, e defende-se corajosamente do ho-
mem ou dos mais terríveis carniceiros.
A epocha do cio é em Agosto. Quanto tempo dura a gestação? Não
se sabe ao certo: muitos crêem que doze mezes.
CAPTIVEIRO
Tem-se tentado muitas vezes domesticar este ruminante, mas balda-
damente. Os indivíduos velhos são absolutamente indomáveis e os novos
morrem ao fim de um curto tempo de captiveiro.
mamíferos em especial
II, BOIS QUE SE TORNARAM SELVAGENS
Esta divisão pode ainda dar logar á formação de pequenos grupos
ou a uma subdivisão como a que faz Brehm nas Maravilhas da Natm^eza:
bois da Europa que se tornaram selvagens ou errantes e bois da Ame-
rica do Sul tornados também errantes ou selvagens.
O estudo de todas as espécies compreliendidas n'esta divisão tor-
nar-se-hia extraordinariamente extenso e a utilidade que d'ahi poderia
resultar para o leitor não o compensaria, decerto, do trabalho que im-
plica a leitura de trinta ou quarenta paginas. Limitar-nos-hemos por isso
á descripção de uma única espécie ha muito tornada celebre, mercê de
um certo concurso particular de circumstancias.
O TOURO HESPANHOL
O touro de Hespanha tão estimado n'este paiz para os combates,
para as decantadas corridas, descende, affirmam os naturahstas, de bois
domésticos. Vive porém uma vida perfeitamente selvagem; com quanto
dependente do homem que o vigia e que o prende quando é preciso fa-
zel-o figurar como principal actor nos combates dos circos, o touro hes-
panhol não penetra nos estábulos nem acceita, senão forçado, o jugo da
nossa espécie, lia pegureiros na Hespanha, é certo, encarregados de o
velarem; esses mesmos porém conservam-se sempre a respeitosa distan-
cia e sabem melhor do que ninguém quanto a presença do homem o
irrita. Só acompanhado de numerosos e valentes cães e munido de uma
VOL, III 11
162 HISTORIA NATURAL
funda que sabe manejar com extraordinária facilidade e admirável des-
treza, é que o pegureiro se permitte defrontar com o louro.
É principalmente na Andaluzia e nas províncias bascas que este ani-
mal se cria. Não é grande, mas em compensação é elegantíssimo, ó
vivo, é muito vigoroso c apresenta cornos compridos, ponleagúdos, re-
curvados para fora. As grandes manadas são constituídas exclusivamente
por machos; a existência n'ellas de fêmeas seria na epocha do cio uma
causa inevitável de destruição.
O touro hespanhol não é somente vigoroso e valente; é também
vingativo. Se alguém lhe bate, guarda por largo tempo a memoria da
oíTensa e mata, desde que pode fazel-o, o aggressor. O pegureiro que
vigia ou guarda as manadas conhece todos os individues um por um e
sabe dizer com precisão qual o mais apropriado para um combate.
No estio o touro hespanhol procura as montanhas, d'onde se retira
apenas quando as neves a isso o forçam; encontra-se muitas vezes a
uma altura de trez mil metros e mais acima do nivel do mar. Evita cau-
telosamente os legares povoados e se acontece de penetrar n'uma aldêa
arremette com os que passam, quando mesmo o não provoquem.
Quando é preciso conduzir um d'estes touros para qualquer cidade
onde tem um logar reservado n'uma corrida, é preciso para isso recor-
rer ao auxiho de bois domésticos. O pegureiro caminha á frente mon-
tado n'um cavallo, logo atraz seguem os bois domésticos e por ultimo o
touro selvagem.
Faz-se geralmente remontar a origem dos combates dos touros aos
tempos Romanos, considerando-se estes espectáculos brutaes como um
resto dos combates de circo com que, diz Brehm, «os vencedores do
mundo procuravam distrair os povos subjugados dos ferros com que os
sobrecarregavam». * Até ao tempo da conquista dos Mouros, os circos de
Hespanha não eram exclusivamente consagrados aos combates dos touros,
como hoje, mas a toda a ordem de animaes ferozes e de gladiadores. Os
Mouros conseguindo exterminar no solo hespanhol a máxima parte d'es-
ses combates cruéis e desmoralisadores, não conseguiram fazer desappa-
recer esse resto de primitiva barbárie : a corrida dos touros. Ha ainda
hoje na Hespanha toda uma enorme multidão de refractários aos pro-
gressos da civihsação europeia, todo um mundo de homens atrazados e
irrequietos que exigem o espectáculo do sangue, que se enthusiasmam,
que se exaltam, que berram e gritam cheios de paixão nas corridas^ esse
velho residuo de tempos bárbaros, esse triste legado de uma epocha em
1 Brelmi, Obr. ciL, vol. 2.", pg. 670.
mamíferos em especial 163
que o povo se commovia mais com a brutalidade das luctas que com a
leitura dos poemas. Os touros da Hespanha actual são apenas os repre-
sentantes dos leões da Libia e dos crocodillos do Nilo que a velha Hes-
panha comprava a pezo d'oiro para divertir nos circos ao mesmo tempo
a plebe miserável e a corte luxuosa.
Não nos deteremos aqui descrevendo, como Brehm o faz extensa-
mente, um d'esses bárbaros espectáculos que se chamam — corridas de
touros. Brehm, escrevendo na AUemanha, tem razões para se alongar na
exposição de um tal espectáculo. Para nós, que o temos presenceado,
embora suavisado um pouco, seria inútil uma semelhante exposição. Co-
nhecemos de visu o espectáculo em miniatura; ampliando o que temos
presenceado, ficamos sabendo tudo. Imagine o leitor que em vez de tou-
ros com os cornos embolados, como os que se exibem nas nossas praças,
tem diante de si animaes capazes de attacarem e de se defenderem com
as pontas agudas e perfurantes, taes como lh'as concedeu a natureza;
imagine também que o pequeno enthusiasmo da nossa plebe se incen-
deia e propaga até ás altas camadas sociaes attingindo as proporções
de um verdadeiro delirio, e terá feito idéa do que seja uma tourada,
uma corrida em Hespanha. As scenas barbaras e repugnantes de cavallos
que caem na arena deixando sair os intestinos atravez de largas feridas
abdominaes, os casos dolorosos de toureiros que morrem na praça, o
espectáculo odiento das damas que applaudem freneticamente todas es-
tas misérias, arrancando dos cabellos as suas flores para as atirar aos
cavalleiros do circo, tudo isto se imagina bem e tudo isto, porque é um
pouco abjecto, dispensa naturalmente os apparatos de uma descripção
demorada e minuciosa.
Os touros que se procuram para estes combates são os mais selva-
gens, aquelles precisamente que os pegureiros experimentados indicam
como os mais ferozes. Ainda n'este ponto ha, como o leitor percebe,
uma certa diff^erença entre as corridas de Hespanha tão cheias de com-
moções vivas e as corridas portuguezas, cómica reducção das primeiras.
164 HISTORIA NATURAL
III, BOIS DOMÉSTICOS
As espécies domesticas do vastissimo grupo dos bois são duas ape-
nas: uma, o Loi ordinário ou commum, animal cosmopolita, verdadeiro
auxiliar de todo o homem, outra, que vive apenas na Ásia e na Africa e
que alguns naturalistas consideram uma simples variedade da primeira
— o boi gebo ou o boi de giba.
Passamos a estudar estas espécies.
O BOI GEBO
Ao numero dos naturalistas que não vêem no boi gebo mais que uma
simples variedade do boi commum, pertence Cuvier. Este erudito inves-
tigador acreditando que os dois animaes não differiam nem pela forma,
nem pela estructura e não estando disposto a vêr na giba do ruminante
africano um caracter especifico, juntou-os n'uma só espécie. Investiga-
ções posteriores, demonstrando que o boi gebo tem menos uma vértebra
sagrada e duas vértebras caudaes que o boi ordinário, vieram dar a al-
guns naturalistas o direito de combater a opinião de Cuvier. Brehm é
dos que consideram o boi gebo como uma espécie independente; diz
este naturalista que, não estando para elle provado que a selecção e a
domesticidade sejam capazes de modificar a estructura de um osso, se con-
sidera no direito de encontrar no esqueleto dos animaes os seus cara-
cteres especiíicos, ou esses animaes sejam selvagens ou sejam domés-
ticos.
Mas não é só no esqueleto que o boi giboso differe do boi ordiná-
rio; diífere d'elle ainda pela presença de um bossa na região da espá-
dua e pelos cornos que são achatados e muitíssimo curtos.
Imp Ch Chíwao" n
1 O Touro 2 AVacca 3 O Novilho
Magalhães 8c Moniz , Editores .
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 1 Gi
A pátria do boi gcbo é Bengala; d'alii se espalhou na Ásia e n'uma
grande parte da Africa.
O BOI ORDINÁRIO
O Jjoi ordinário assim como o boi gebo acbam-se reduzidos á do-
mesticidade desde os tempos ante-historicos. Qual é a origem d'estes
ruminantes? Accumulam-se as hypotheses, mas não ha resposta positiva
ao problema. Buffon inclinava-se a acreditar que o bisonte europeu fosse
o ascendente das espécies domesticas; Cuvier preferia dar estas honras
ao boi fóssil, bos primigenius, cujo craneo tem sido encontrado pelas
excavações na Allemanha, na Inglaterra e na França c que parece ter
dcsapparecido somente no século xvr.
Outros naturaUstas, Brelim por exemplo, entendem que a larga dis-
persão do boi ordinário é bastante para por si só combater a hypothesc
de uma origem única e crêem mais razoável admittir uma pluralidade
de espécies ascendentes. Mas tudo isto são conjecturas e a verdade é
que nós desconhecemos a origem do boi commum, como desconhecemos
a de todas as espécies domesticas.
O boi ordinário já em tempos prehistoricos vivia sob o dominio do
homem, como o provam irrecusáveis documentos. Nos tempos históricos
faliam d'elle os mais antigos monumentos; no Egypto era objecto de um
culto. Em todos os paizes antigos que honravam a agricultura, o boi era
considerado como um objecto de veneração, havendo mesmo leis civis e
religiosas destinadas a protegel-o. Matar um boi foi nas civilisações pri-
mitivas considerado um crime. No Egypto o boi era um animal sagrado
que só em sacrifícios podia ser immolado; ao que morria depois de ter
experimentado o jugo e de ter trabalhado na agricultura, faziam-sc fu-
neraes. Na Libya não se matava o boi. Para os celtas bater n uma vacca
1GC) iTiSTORTA nati:ral
era um grande crime. Na Índia existem ainda hoje populações em que
aquelle que mala uma vacca soffre a pena capital.
Estas ligeiras informações bastam certamente para dar idéa do modo
por que o boi domestico foi considerado na antiguidade. Hoje ainda, dis-
sipadas as superstições dos períodos theologicos, o boi 6 justamente con-
siderado em toda a parte como um animal dos mais dignos da nossa
attenção.
CARACTERES
o boi ordinário apresenta dimensões muito variáveis mesmo, como
observa Brelim, em paizes limitrophes. Emquanto n'um certo logar uns
offerecem notável estatura, outros, muito perto, pouco excedem o tama-
nho de um carneiro.
Pode dizer-se de um modo geral que o corpo é volumoso, refeito e
os membros curtos e robustos. A cor do pêllo é muito variável; a pelle
é forte e elástica.
A região frontal é chata e mais comprida do que larga. Os cornos,
collocados nas extremidades da linha sahente que separa as regiões
frontal e occipital, existem nos dois sexos; são occos, redondos, hsos e
communicantes na base com os seios frx)ntaes. Variam muito na direcção
e no comprimento.
Na parte inferior do pescoço do- boi commum, como nos outros bo-
vidios, a pelle é pendente formando o que se chama papada. O esterno
apresenta anteriormente uma peça óssea de articulação móbil.
A vacca tem apparentemente apenas uma teta, munida de quatro
mamilos dispostos de modo que distando lateralmente entre si só de cin-
coenta e cinco millimetros, anteriormente distam de doze centímetros e
posteriormente de oito. A dissecção da teta revela a existência de duas
glândulas mamarias distinctas, embora ligadas por tecido cellular.
Os dentes incisivos são oito; os mollares são seis de cada lado das
maxillas e o seu vo-lume augmenta do primeiro até ao ultimo, de modo
que o espaço occupado pelos três anteriores é apenas metade do que
occupam os três posteriores.
mamíferos em especial
167
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Não existe hoje parte do mundo onde o boi ordinário se não en-
contre.
costumes
Os movimentos do nosso boi domestico são de ordinário lentos, va-
garosos, pezados; excitado porém, o que raríssimas vezes acontece, o
animal corre e salta com rapidez. Nada muito bem. O boi ordinário é o
animal mais dócil que pode imaginar-se. Goníia-se a guarda d'elle a uma
creança de oito annos que o encaminha, que o dirige para onde quer,
que lhe bate mesmo, sem que o sympathico ruminante se lembre de
reagir, sem que tente insurgir-se contra a dominação pondo em exercí-
cio as enormes forças de que dispõe. Esta docilidade a que estamos ha-
bituados, mas que nem por isso deixa de ser extraordinária se nos lem-
bramos das proporções do animal e da ferocidade que caracterisa as es-
pécies bravas, é o eífeito da castração, operação que tira ao animal os
attributos do seu sexo. Os que não soffrem esta operação, aquelles que
se reservam para executarem as funcções reproductoras, estão muito
longe de apresentar a docihdade a que acabamos de nos referir. O nome
de boi serve entre nós para designar particularmente o animal castrado
e o de touro para designar o que se destina para a reproducção. O boi
e o touro teem condições de caracter e costumes muito diíFerentes: ao
passo que o primeiro é dócil, como dissemos, e se presta a toda a or-
dem de serviços que d'ene exijamos, o segundo é hostil, desconfiado,
naturalmente aggressivo e incapaz por isso de ser submettido a um tra-
balho qualquer.
Sob o ponto de vista dos sentidos e das faculdades intellectuaes, as
diíferenças não são menos accentuadas. O touro é mais intelHgente e tem
os órgãos dos sentidos mais perfeitos que o boi.
168 HISTORIA NATURAL
Sobre os costumes do boi níio precisamos de insistir, porque o lei-
tor decerto os conhece: ó uma verdadeira machina de trabalho que o
homem dirige como quer. Acerca do touro porém, carecemos de fallar
sobre a reproducção. O touro ao íim de dous annos está apto para a co-
pula. A gestação ó de duzentos e oitenta e cinco dias; o filho é objecto
de carinhos de toda a ordem por parte da mãe, desde que nasce até
que esta entra novamente em cio. A cria chama-se bezerro ou vitello.
A idade do boi ou do touro pode perfeitamente avaliar-se ou pelo
numero de anneis que apresentam na raiz dos cornos ou pelos caracte-
res dos dentes. A contar dos trez annos o bezerro apresenta annualmente
um novo annel; assim acrescentando trez ao numero de anneis que of-
ferece n'uma epoclia qualquer, temos a idade do animal. Os dentes in-
cisivos com que o animal nasce são oito. Nos primeiros annos os dois
medianos caem e são substituídos, aos dous annos cae o par seguinte,
aos trez o terceiro e ao quarto o ultimo. Os dentes primitivos ou do leite
são muito brancos ao passo que aquelles que os substituem são amarel-
lados e caem ou partem entre os dezeseis e os dezoito annos. A vacca
cessa então de dar leite e o touro torna-se incapaz de executar as func-
ções de reproducção. Vê-se pelo que deixamos dito que dentro de cer-
tos hmites, a idade pode conhecer-se pela inspecção dos dentes. A dura-
ção média do boi é de vinte e cinco a trinta annos.
A idade em que de ordinário se submette o boi domestico ao traba-
lho é a dos trez annos.
O boi contenta-se com hervas mais grosseiras que aqucUas que se
fornecem ao cavallo e ao carneiro; é todavia necessário que essas her-
vas sejam compridas, porque a grossura dos lábios e a ausência de in-
cisivos na maxilla superior impedem o boi de cortar hervas muito cur-
tas. Assim para bem explorar um campo dlierva deve fazer-se pastar
n'elle o boi, depois o cavallo e por ultimo o carneiro que ainda ahi en-
contra alimento abundante. A agua pura e o sal são indispensáveis ao
boi domestico.
usos E PRODUCTOS
Desde a origem das sociedades humanas que o boi presta serviços
relevantes á nossa espécie como indispensável auxihar dos trabalhos
agrícolas. É possível mesmo que este ruminante contribuísse notavel-
mente para a fundação das primeiras colónias agrícolas e, por isso, para
a civilisação primitiva. Otto de Kotzebue fez notar que para as ilhas
mamíferos em especial IGÍ)
Sandwich principiou depois que alii foi introduzido o boi uma era nova,
um verdadeiro começo de civilisação. Nos povos primitivos por ventura
aconteceria a mesma coisa. O que o boi domestico é para nós sabem-o
todos e pode resumir-se n'uma phrase — um instrumento de trabalho e
uma machina de productos. Ainda pela morte nos é ulil, porque nos for-
nece a pelle e a carne e os cornos.
DOENÇAS
Poucos animaes estarão sujeitos a tantas doenças como o boi: a
gastro-interite, a corysa, a laryngite, a bronchite, a congestão pulmonar,
o tetanos, a pústula maligna, o rheumatismo, a pneumonia, a tuberculose
pulmonar, a epilepsia, a encephahte, etc, são outras tantas doenças que
aíTectam esta espécie.
O boi ordinário está dividido em um numero indefinido de raças;
todos os paizes teem as suas. Não estudaremos este assumpto de um
modo completo, porque, se o tentássemos, seriamos forçados a escrever
volumes. Não podemos todavia dispensar-nos de mencionar aqui as raças
portiiguezas mais bem caracterisadas, seguindo n'este ponto um traba-
lho do snr. Pedro Posser baseado sobre o Recenseamento geral dos ga-
dos em 1870 do professor de Zootechnia no Instituto de Agricultura, o
snr. Sylvestre Bernardo Lima.
170 IIISTOííTA VATURAL
RAÇAS BOVINAS PORTUGUEZAS
1 . Raça minlhota ou gallega
Os bois d'esta raça teem, pouco mais ou menos, a altura de um me-
tro e quarenta centímetros e as vaccas a de um metro e dezoito. A ca-
beça é comprida e os cornos, de comprimento regular, são na origem
projectados quasi horisontalmente voltando-se depois para cima e para
fora no ultimo terço. A cor geral é mais ou menos aloirada.
Esta raça, como o nome indica, tem por área geographica toda a
província do Minho. É eminentemente apropriada aos serviços de lavoura
e á conducção de carros destinados ao transporte de pedra, de ferro,
emfim de enormes cargas, que trez ou quatro cavallos a custo supporta-
riam por espaço de horas e que dois bois somente supportam dias intei-
ros pelas calçadas Íngremes das cidades e villas do Minho. Com vinte e
cinco litros de leite de uma vacca d'esta raça fabrica-se um kilogramma
de manteiga, que vale, termo médio, 700 réis, e que tem um largo con-
sumo dentro e fora da província.
2. Raça barrozã
A altura media é n'esta raça de um metro e dezoito centímetros a
a um metro e vinte e trez. A cabeça é curta, a região frontal quadrada
e o focinho negro; os cornos, com mais de cincoenta e seis centímetros
de extensão, apresentam a forma de uma lyra. Estes cornos que nascem,
muito próximos, do alto da nuca, divergem depois de modo a existir en-
tre as extremidades uma distancia de noventa e cinco centímetros. A
côr geral é um castanho ora claro, ora escuro.
Esta raça habita as montanhas de Barrozo, nos concelhos de Monta-
legre e Boticas. É apta para o trabalho; as vaccas são pouco leiteiras.
Ha indivíduos que chegam a attingir o pezo de novecentos e oitenta ki-
logrammas.
mamíferos em especial
171
3. Raça mirandeza
É uma das mais corpulentas. A vacca mede um metro e vinte e sete
centímetros de altura e o boi um metro e sessenta. A cabeça é comprida
e o focinho negro, orlado de pêllos brancos. Os cornos, de extensão re-
gular, são primeiro projectados para baixo, voltando-se depois para
diante em sentido horisontal, levantando-se as pontas e revirando-se
para fora divergentemente. A cor geral é, como na raça anterior, um
castanho claro ou escuro.
Abunda esta raça em Miranda do Douro, achando-se porém o typo
generahsado por outros pontos do paiz e dando as sub-raças : bragancez,
mirandcz beirão e mirandez estremenho ou ratinho serrano. É uma raça
vigorosíssima. As vaccas são, como as de que anteriormente falíamos,
pouco leiteiras.
4. Raça arouqueza
A altura media é para os bois de um metro e quarenta e nove cen-
tímetros e para as vaccas de um metro e dezoito a um metro e vinte e
quatro. A cabeça é de comprimento médio, os olhos são suaves, bondo-
sos e orlados de branco, o focinho é grosso e negro, e os cornos, de
extensão media, são grossos na base e hgeiramente recurvos para fora
e para cima. A cor é aloirada.
Gomo indica o nome, o solar d'esta raça é em Arouca, districto de
Aveiro. Os bois d'esta raça são vigorosos e alguns ha que attingem o
pezo de mil kilogrammas. x\s vaccas dão pouco leite, mas em condições
taes que quinze a dezoito Utros bastam para produzir um kilogramma de
manteiga. É uma das nossas raças mais formosas.
5. Raça brava do Ribatejo
A altura não excede n'esta raça um metro e onze centímetros a um
metro e dezenove. A cabeça é comprida e estreita na região frontal, os
olhos são pequenos, os cornos curtos, hgeiramente recurvos e o fo-
cinho é muito negro. A cor dominante é o preto; ha muitos indivíduos
malhados. Os exemplares castanhos ou amarellados são raros. O cara-
cter dos indivíduos d'esta raça, que vivem no campo, expostos á intcm-
172 HISTORIA NATURAL
pcrie, é bravio, desconOado, indómito. É esta raça que fornece os touros
para as nossas corridas.
A producção do leite ó nas vaccas d'esta raça tão limitada que ape-
nas chega para as crias.
O solar doesta raça ó o valle do Tejo nas lezirias contíguas ao rio
desde a Oollegã até Alcochete, desde a Charneca até Povoa de Santa Iria.
G. Raça turina
A altura media é de um metro e vinte e sele a um metro e trinta
e cinco centímetros. A cabeça é comprida e larga na região frontal e o
focinho curto e negro; os cornos são pouco extensos, delgados e negros
na ponta. Os indivíduos d'esta raça são ordinariamente malhados de
branco e preto, havendo-os também malhados de branco e ruivo e, em-
bora mais raramente, quasi todos brancos ou quasi todos negros.
Esta nossa raça deriva de uma raça hollandeza e a creação d'ella
limita-se a Lisboa e subúrbios.
A vacca é a mais leiteira que possuímos. Dá por dia dez a dezoito
litros de leite, conforme a alimentação.
7. Raça alemtejana
Um metro e vinte e nove centímetros e um metro e quarenta e
cinco são alturas medias referentes a duas variedades geralmente co-
nhecidas pelos nomes de raça pequena e raça grande. A cabeça é com-
prida, estreita na fronte, quasi plana e direita desde o alto até á ponta
do focinho. Os cornos são compridos, inclinados na origem para baixo e
para traz e depois para cima e para fora, sendo a distancia que separa
as extremidades maior na raça grande que na pequena.
Esta raça vive em toda a provinda do Alemtejo, predominando a
variedade grande no districto de Évora e a pequena no districto de Beja.
Os bois são robustos e proprissimos para os trabalhos pezados. As vac
cas dão uma quantidade de leite que apenas chega para as crias.
mamíferos em especial
173
8. Raça algarvia
A media cia altura não excede um metro e quinze centímetros a um
metro e trinta. A cabeça é regular, de comprimento proporcionado e o
focinho estreito pardo ou negro. Os cornos são de comprimento mediano.
A cor geral é um castanho claro ou aloirado.
Esta raça habita toda a província do Algarve. As vaccas dão somente
o leite preciso para as crias.
No que acaba de ser lido não se encontram certamente descriptas
todas as raças bovinas portuguezas, mas apenas, como dissemos já, as
mais bem caracterisadas. Quer tomemos a palavra raça no sentido lati-
tudinario em que o vulgo a emprega, quer na accepção mais restricta
que a sciencia lhe concede de ordinário, existe indubitavelmente em Por-
tugal um maior numero de raças bovinas que as que descrevemos. As
que mencionamos são as que mais nitidamente se differenceiam pela cor-
poratura, pelo tamanho e direcção dos cornos e ainda pela quantidade
de leite produzido.
Resumimos em seguida n'um quadro eschematico as espécies aqui
estudadas da vasta ordem dos ruminantes, seguindo a disposição que
lhes dá Figuier, o qual no seu livro Os Mamíferos catalogou todos os ru-
minantes em cinco tribus: os camelianos, os ruminantes sem comos, os
de cornos lisos e persistentes, os de cornos caducos e os de cornos occos.
Segue o quadro:
CAMELIANOS
HISTORIA NATURAL
DKOMEDABIO
] CAMELO
LHAMA
TKIBU SEM CORNOS
TRIBU DE CORNOS LI- (
SOS E persistentes!
MOSCHOS
GIKAFAS
f alpaca
vicunha
Íalmiscareiro
Moscho menor
a Girafa Africana
I os EANGiFEKos [ ^^^ Amerlca
\ da lÍMropa
TRIBU DE CORNOS CA-
DUCOS
os ALCES
JOS VEADOS
! menor
original
ordinário
I da Barbaria
I de Bengala
Americanos
os ZOBLITOS
os GAMOS
(a camurça
' as gazellas
Ias antílopes.
a saiga
a cervicabra
) a cervicabra de patas
negras
a antilope negra
a antilope lencorix
]o nylgó
TRIIÍU DE CORNOS OC-
C^OS \ A COXDOMA
lo GAGU
O BODEQUIM
AS CAUKAS
idos Alpes
\da Ilespanha
I sylvestre
Í domestica
de Angora
cachemira
da Thehaida
' anà
MAMÍFEROS EM ESPECIAL
175
TRIBU DE CORNOS OC-
COS
d^ Africa
os MUFLÕES Ida America
' da Europa
o AKGALI
Í merino
de cornos ponteagvdoí
de grandes nádegas
o BOI ALMISCARADO
os BÚFALOS
da Cafraria
arni
ordinário
BOIS SELVAGENS O gayoL
liOIS QUE SE TORNARAM SELVA-
BOIS DOMÉSTICOS
RAÇAS DE BOIS PORTUGUEZES ,
touro de Ilespanha
\ de giba
\ ordinário
Minhota
Barrozã
Mirandeza
]Arouqiieza
\Do Ribatejo
Turina
Alemtejana
Algarvia
-•-o®o»-
-oe|<<®>^|s)c-
PACHYDERMES
CONSIDERAÇÕES GERAES
Os pachydermes são os representantes de toda uma serie d'animaes
gigantescos, outr'ora abundantes e hoje em via de desapparecimento.
Muitos gigantes que foram seus contemporâneos, deixaram lia muito de
existir; elles subsistiram porém, como o vivo testemuniio d'essas creapões
extraordinárias d'epoclias geológicas anteriores á nossa. Mortos os com-
panheiros, esses typos descommunaes de grandeza e de força, cujos es-
queletos nós fitamos com assombro nos museus archeologicos, elles fica-
ram e existem, não sabemos por quanto tempo ainda, assim como isola-
dos em meio da vasta creação. Do desapparecimento dos companheiros,
resultou que as espécies hoje existentes differem muito entre si; extin-
guiram-se os termos de transição. Extinguiram-se, mas não se perderam;
e a sciencia que investiga o passado com tanto ardor como o presente,
descobrindo esses typos mortos veio mais uma vez provar o velho apho-
rismo de Linnco: a natureza não procede descontinuamente.
12
178 UISTOIUA NATUHAL
CARACTERES
Os pachydermes são os maiores mamiíeros terrestres que aclual-
mcnte existem. Distinguem-se pela estatura pezada, deselegante. Os mem-
bros são relativamente curtos e volumosos; os pés terminam por Irez a
cinco dedos. Cada um dos dedos é cercado de um casco especial. Em
quasi todos a região facial é alongada; n'alguns, o nariz é prolongado
em forma de tromba. O pescoço é curto e mal se distingue do tronco.
A cauda raras vezes attinge a articulação tibio-tarsica. A grandeza das
orelhas varia muito; os olhos são geralmente pequenos. O corpo é co-
berto por uma pelle forte, espessa, que dá á ordem o nome por que é
conhecida; esta pelle é nua em grande extensão ou coberta aqui e além
de sedas rijas e pouco numerosas. Uma familia existe apenas, que re-
corda ainda hoje os pachydermes de manto abundante anteriores á actual
epocha geológica.
Os ossos, como naturalmente se prevê, são fortes, volumosos. As
vértebras dorsaes são treze a vinte e uma, as lombares trez a oito, as
sagradas quatro a oito, ordinariamente soldadas, e as caudaes sete a
vinte e sete. As costellas são largas, de curvatura pouco pronunciada.
A clavícula não existe.
É muito variável a dentição: de ordinário existem trez espécies de
dentes; muitas vezes porém, os incisivos e os caninos faltam, ao menos
em parte. O estômago é simples e o tubo intestinal tem dez vezes o com-
primento do individuo.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A apparição dos pachydermes fez-se na epocha terciária; grande
parte d'elles haviam-se extinguido antes da epocha diluviana. Outr^ora
estes animaes povoaram toda a superfície da terra; hoje encontram-se
apenas nos paizes quentes, nas florestas virgens das regiões Iropi-
caes.
mamíferos em especial
COSTUMES
É diííicil senão impossível fallar em geral dos costumes dos pacby-
dermes, porque as diíferenças existentes n'este ponto de espécie a espé-
cie são certamente maiores que as semelhanças. Paliaremos pois d'este
ponto na especialidade.
usos E PRODUCTOS
A observação que acabamos de fazer a propósito dos costumes, re-
petimol-a aqui. Na especialidade teremos occasião de saber que utilidade
nos pode provir dos animaes d'esta ordem.
PACHYDERMES EM ESPECIAL
OS PROBOSCIDEOS OU ELEPHANTES
Mao grado as diíficuldades que hoje se encontram na classificação
dos pachydermes, todos os naturalistas estão de accordo na formação da
familia dos proboscideos de cujas espécies vamos occupar-nos.
OS MASTODONTES
Pertencem á fauna extincta. Eram contemporâneos do mammouth e
assemelhavam-se muito aos elephantes negros ainda existentes. Pelos es-
queletos que se tem encontrado na Europa, na America e na Ásia, com-
prehende-se que foi extensíssima a área de dispersão d'este proboscideo.
Pelas differenças reconhecidas entre os esqueletos encontrados tem-se
chegado á determinação de dez a doze espécies.
182 IIISTOIUy\ NATIMAL
OS ELEPHANTES PROPRIAMENTE DITOS
As espécies vivas são caracterisadas por uma tromba muito móbil e
pelas defezas, consistindo em dentes incisivos enormemente extensos.
Teem o corpo curto e volumoso, o pescoço pequeno, a cabeça re-
donda e cheia de bossas produzidas por elevações dos ossos craneanos.
As pernas são altas, fortes; os dedos são cinco, soldados em cascos.
O órgão mais importante, mais característico dos elephantes pro-
priamente ditos é a tromba que consiste n'um prolongamento do nariz,
notável pelo comprimento, pela mobilidade, pela sensibilidade e princi-
palmente pela presença de um appendice digitiforme que o termina. A
tromba é ao mesmo tempo um órgão de olfato, de tacto e de prehensão.
Segundo Cuvier, os feixes de músculos longitudinaes e circulares que a
compõem são em numero de quarenta mil; é a esta estructura que o
animal deve o poder de alongar ou encurtar e dirigir a tromba em to-
dos os sentidos. A inserção d'este órgão tão importante faz-se nos ossos
largos da face. Esta tromba que superiormente é connexa, inferiormente
é plana e vae diminuindo de volume desde a inserção até á extremidade
livre; interiormente apresenta um scepto, como o nasal, que a divide
em duas cavidades, em toda a extensão.
A dentição é notável. A maxilla superior é armada de dois incisivos
convertidos em defezas e apresenta, como a maxilla inferior, cinco ou
seis pares de mollares. Os dentes n'estes curiosos animaes renovara-se
seis vezes. Esta renovação não se realisa como na espécie humana pela
queda de um dente e lenta apparição posterior do que o substituo; nos
elephantes, quando um dente se gasta pelo uso, um outro principia desde
logo a formar-se por traz d'elle, funccionando antes mesmo da queda do
primeiro.
As defezas, esses enormes dentes incisivos, crescem constantemente;
chegam a attingir uma extensão considerável e um pezo de setenta e
cinco a noventa kilogrammas.
N'este género estão comprehendidas espécies vivas e espécies extin-
ctas. Estudaremos estas em primeiro logar.
mamíferos em especial
\h:\
O MAMMOUTH
Encontram-se as sepulturas (reste clephante no paiz dos ostiacos,
dos tongousas e dos samoíedos, nas margens do Obi, do lénisée, de
Léna, rios da Sibéria cujas aguas vão perde r-se no mar Glacial. Quando
o desgelo principia n'estas margens arenosas, descobrem-se, na phrase
de Brehm, montanhas inteiras de dentes gigantescos a que se misturam
ossos enormes. Ás vezes esses dentes encontram-se ainda solidamente
implantados nas maxillas e até cercados de carne e de péllos.
Aos naturalistas do século passado, Palias e Adams, se deve o co-
nhecimento exacto dos restos fosseis do mammouth. Sabe-se pelos estu-
dos d'estes investigadores que o elephante em questão era de uma grande
estatura, que a pelle era coberta de péllos abundantes, dos quaes os do
pescoço attingiam setenta centímetros, o que prova serem destinados a
habitar os paizes frios. Os incisivos ou defezas eram muito mais curvos
que os dos elephantes actuaes, chegando alguns a representar trez
quartos de circulo. O comprimento era enorme; Adams viu-os que tinham,
planificados, sete metros de extensão.
O DINOTIIERIO
Calcula-se que tivesse seis metros de extensão. As defezas, que eram
enormes, tinham origem na maxilla inferior e recurvavam-se para o solo.
O omoplata era análogo ao dos animaes que escavam a terra.
Contam-se ainda no numero das espécies extinctas— o clcphas an-
184 HISTORIA NATURAL
tiquus e o clephas meridionalis^ dos quacs o primeiro se sabe que cooexis-
liu com o homem.
As espécies vivas são, segundo geralmente se admitte, duas: o ele-
phanto da Ásia c o eloplianle da AíVica.
O ELEPHANTE DA ÁSIA E O ELEPHANTE DA AFRICA
Gomprehendemos n'um só artigo a descripção das duas espécies,
não porque os seus caracteres morpliologicos ou os seus costumes sejam
precisamente os mesmos, mas porque as semeltianças são muitas e as
diíTerenças fáceis de notar.
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
Os antigos conheceram muito bem as duas espécies de que vamos
occupar-nos. Os ethiopes faziam desde os mais remotos tempos um largo
commercio do marfim extraido dos dentes d'estes pachydermes. Heródoto
mencionou-os muitas vezes e Gtésias, medico de Artaxerxes Mnémon,
descreveu-os d'après nature. Foi este auctor que espalhou o erro, ainda
hoje recebido pelos ignorantes, de que os elephantes tinham pernas sem
articulações, em resultado do que não podiam deitar-se e dormiam de
pé. Dário serviu-se dos elephantes para a guerra. Aristóteles viu alguns
e legou-nos d'elles uma descripção muito exacta. A partir d'esta epocha
apparecem muitas vezes nos livros referencias a estes animaes. Figura-
ram muito, tendo um grande papel a desempenhar, nas guerras do
mundo antigo. Os romanos serviram-se d'elles nos combates dos circos
o
mamíferos em especial i85
e em exhibições publicas onde mostraram até que ponto se podia levar
a educação d'estes animaes. Estes espectáculos ainda hoje nos são pro-
porcionados pelos donos de collecções d'animaes; ainda hoje vemos com
pasmo as provas de intelhgencia e, o que mais é, da agilidade d'estes
pachydcrmes de apparencia tão pezada, tão deselegante, tão pouco pro-
mettedora.
caracteres
Das duas espécies a africana é a maior.
O elephante d'Africa tem a cabeça chata, a região frontal inclinada,
as orelhas grandes e immoveis, as defezas compridas e as laminas de
esmalte dos mollares em forma rhomboidal.
O elephante d'Asia tem a cabeça mais alta, a fronte vertical, as ore-
lhas pequenas e moveis, as defezas menores que as da espécie anterior
e as laminas de esmalte dos mollares, transversaes.
A pelle dos elephantes é ora clara, ora escura; a cor mais commum
é a de ardósia ou de terra.
Tem-se exagerado um pouco a estatura dos elephantes, que é ahás
notável. De ordinário o elephante da Ásia não mede mais de trez metros
de altura, ao nivel da espádua ou do pescoço; o elephante d'Africa é
maior e mede, ao mesmo nivel, cinco metros. O comprimento, compre-
hendida a cauda e excluída a tromba, varia entre trez e cinco metros;
d'esta extensão um metro e trinta centímetros pertencem á cauda. A
tromba tem um metro ou um metro e sessenta centímetros de comprido.
O pezo ordinário dos elephantes adultos oscilla entre quatro m\\ e qui-
nhentos e cinco mil kilogrammas. Muitas vezes porém, excedem este
pezo; Darwin viu um que pezava seis mil e quinhentos kilogrammas. O
pezo da pelle, só esse, era de mil kilogrammas. As defezas do elephante
d'Africa pezam mais de mil e quinhentos kilogrammas.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O elephante d'Africa encontra-se em todo o centro d'este continente,
desde o Oceano Indico até ao Oceano Atlântico, desde o decimo sexto
IHI; I11ST0I\1A NATI IIAL
grão de Jaliludc riorlc alé ao vií,^cssirno quinto de lalilude sul. Existiu
também no Cabo; hoje porém, desappareceu d'ahi.
O elepliante d'Asia enconlra-se nas índias, na Gonchinchina, em Sião,
em Pegu, no Induslão e na ilha de Ceylão.
O que vive em Sumatra é por alguns naturahstas considerado uma
espécie distincta, clephas sumatrensis.
COSTUMES
No que respeita aos hábitos de vida dos elepbantes, os antigos,
apesar de terem tido muitas occasioes de os observarem, legaram-nos
descripções cheias d'erros. Muitas fabulas espalhadas por elles vieram
até nós; e pode dizer-se que só ha poucos annos é que a historia dos
elepbantes nos é conhecida de um modo completo e exacto. Alguns au-
ctores antigos legaram-nos, já o dissemos, descripções muito minuciosas
e muito perfeitas d'estes pachydermes morphologicamente considerados;
quanto aos costumes porém, ou não faltaram ou disseram inexactidões,
algumas das quaes de um verdadeiro cómico.
A espécie asiática é melhor conhecida que a africana.
Os elepbantes encontram-se, senão de um modo exclusivo, pelo me-
nos de preferencia nas grandes florestas; e quanto mais ricas estas são
em agua mais elles abi abundam. Em Geylão encontram-se principalmente
nas regiões montanhosas. Vivem bem a uma altitude de dois mil e seis-
centos metros.
Contrariamente á opinião geralmente recebida, os elepbantes evitam
quanto possível os raios do sol, procurando os legares ensombrados, es-
curos. Os hábitos doestes pachydermes são mais nocturnos do que diur-
nos; com quanto procurem muitas vezes o alimento durante o dia, é
certo que elles preferem sempre para este fim a noite.
Um facto realmente singular que, no dizer de Tennent, surprehende
muito o viajante é o dos movimentos estranhos que os elepbantes exe-
cutam: assim uns agitam a cabeça circularmente, outros abaixam e le-
vantam alternativamente e de um modo perfeitamente mechanico um dos
membros anteriores, alguns agitam as orelhas de um modo continuo,
emfim outros balançam pendularmente um pé no sentido antero-poste-
rior. O mesmo observador que vimos de citar aífirma que o simples as-
pecto d'um elepbante basta para convencer-nos da falsidade completa
das narrações que fazem d'estes pachydermes animaes ferozes, mãos,
mamíferos em especial
18'
vingativos. Eiies tcem, pelo contrario, sentimentos de bondade que se
Itics traduzem fielmente no olhar; de resto, são tímidos até ao ponto de
fugirem, mesmo quando são muitos, diante de um só homem.
O que deixamos dito, applica-se egualmente ás duas espécies. O
clephante d'Africa encontra-se ás vezes, como o da Ásia, a altitudes de
dois mil e seiscentos ou mesmo de trez mil metros acima do nivel do
mar.
Nas florestas virgens, os caminhos seguidos pelos elephantes são
caracteristicos e distinguem-se perfeitamente dos que abrem outros ani-
maes, pela forma particular dos excrementos ahi depositados; só seguindo
estes caminhos é possível penetrar nas florestas. «Os elephantes repre-
sentam ahi, diz Brehm píttorescamente, toda a administração de pontes
e calçadas.)) *
A falta de agilidade dos elephantes é apparente apenas. Embora ge-
ralmente apresentem um andar vagaroso, lento, pezado, ehes podem,
desde que Sentem necessidade d'isso, correr com notável velocidade.
Além d'isso teem a faculdade de marchar sem ruído. Quando sobem ter-
renos de grande declive, apresentam-se como verdadeiros animaes tre-
padores. Dobram então prudentemente as articulações carpianas, abai-
xando assim a parte anterior do corpo e deslocando para diante o centro
de gravidade; depois como que deslisam sobre as patas assim dobradas,
estendendo as posteriores. Para descer, ajoelham-se no alto da montanha
de modo que o peito lhes toque o chão, depois estendem as patas ante-
riores, fixam-as na terra e por um esforço chamam adiante as poste-
riores; como que rastejam e conseguem assim descer perfeitamente sem
deslocar o centro de gravidade, o que fatalmente aconteceria se mar-
chassem em declive como por um plano.
Não obstante todas estas precauções, dão algumas vezes os ele-
phantes formidáveis quedas.
Já atraz fizemos notar que ha muito quem creia que os elephantes
se não podem deitar e são por isso forçados a dormir de pé. O que aca-
bamos de escrever sobre o modo por que estes pachydermes sobem e
descem as montanhas, é bastante para desmentir essa fabula espalhada
por auctores antigos, menos conscienciosos nas suas observações. Os
elephantes podem dormir e dormem muitas vezes de pé, como outros
pachydermes o fazem; no entanto está provado que eUes se deitam to-
das as vezes que querem. É mesmo para notar que, a despeito do
enorme peso que teem, os elephantes se deitam e levantam com uma
agilidade relativamente notável.
Brehm, Ohr. cif., vol. 2.», pp:. 710.
188 HISTORIA NATURAL
Os clepbanles nadam muito Lcm; fica-lhcs de fora da agua mais
corpo que aos outros quadrúpedes, vantagem que devem sem contesta-
ção, á amplitude das formas e á capacidade do peito. Levantando a
tromba, podem mergulhar por largo tempo sem receio de asphixia. As-
sim, attravessam rios de grande largura sem liesitafão, antes com ver-
dadeira voluptuosidade.
É com a tromba que os elephantes executam os mais extraordiná-
rios e variados movimentos: com este órgão elles podem egualmente
apanhar uma tira de papel sem a amarrotarem ou partir o grosso tronco
de uma arvore. Esta variedade assombrosa de movimentos da tromba,
explica-se pelo numero immenso de músculos que a formam e pelo ap-
pendice digitiforme que a termina. O appendice digitiforme dá-nos conta
da segurança e delicadeza com que estes pachydermes apanham e ta-
cteiam os mais finos objectos; os músculos da tromba explicam-nos a
força extraordinária e a multiplicidade pasmosa dos movimentos d'este
órgão.
As defezas, que, como dissemos, não são mais do que dentes inci-
sivos extraordinariamente desenvolvidos, empregam-as os elephantes
para fins muito diversos. Servem-lhes para levantarem fardos, para deslo-
carem enormes pedras, para cavarem a terra e ainda para armas ofíensivas
e defensivas. Gomtudo os elephantes poupam-as tanto quanto possível,
porque sabem bem que não é n'ellas que reside a sua grande força.
Acontece ás vezes que nas luctas de dois elephantes um parte uma de-
feza ao outro com pancadas da tromba.
Os sentidos do elephante, exceptuando a vista, são muito perfeitos.
O tacto, o gosto, o olfato e o ouvido são apuradissimos. Da perfeição dos
três primeiros encontramos as provas mesmo nos animaes captivos; o
gosto é notável, o olfato é tão apurado como o dos ruminantes e, se-
gundo alguns naturalistas, o appendice digitiforme que termina a tromba
pode comparar-se ao dedo exercidg de um cego. Da perfeição do ouvido
nos elephantes dão-nos testemunho quantos os teem observado em es-
tado natural ou selvagem.
As faculdades intellectuaes dos elephantes são altamente desenvol-
vidas e chegam a rivalisar com as do cão e do cavallo. E esta affirma-
ção produzida por todos os naturalistas não se baseia apenas sobre do-
cumentos colhidos no estado selvagem, mas ainda e sobretudo nas pro-
vas que dão no estado domestico, a que rapidamente se adaptam. A fa-
cilidade extrema com que os elephantes aprendem quanto se lhes ensina
e a concihação d'elles com a sociedade dos homens são provas de um
grande intendimento essencialmente progressivo e perfectivel. Como ani-
maes intelhgentes, os elephantes são dotados também de uma notável
sensibihdade moral.
MAMU^^EROS EM ESPECIAL 189
Figuier cita muitos exemplos comprovativos do que aífirmamos.
Transladaremos d'esses, alguns. Um certo elephante que vivia captivo
em Sumatra tinha por costume, ao attravessar as ruas da ilha em direc-
ção a um riacho em que um criado Iodas as manhãs o lavava, ir es-
tendendo a tromba até á altura das janellas para que lhe dessem alguns
fructos ou raizes. Um dia levantando a extremidade da tromba até á ja-
nella da casa de um alfaiate, este, em vez de dar ao pachyderme o que
elle naturalmente pedia, picou-o com uma agulha. O elephante simulou
supportar com paciência o bárbaro insulto e continuou o costumado ca-
minho para o riacho. Chegado ahi aspirou uma grande quantidade d'agua
que conservou na tromba e ao passar de novo pela casa do alfaiate, ati-
rou-lhe pela janella dentro tão grande e tão impetuoso jacto que o ho-
mem e todos os officiaes que o rodeavam cahiram das cadeiras e ficaram
cheios de terror. Um outro elephante procedeu de modo semelhante con-
tra um guarda que tentava impedir o publico de dar-lhe ahmentos. Buf-
fon relata um facto não menos curioso. Um certo pintor, desejando de-
senhar o elephante da ménagerie de Versailles com a tromba levantada
e a bocca aberta, encarregou um creado de manter o pachyderme n'esta
posição singular. Para isso o moço atirava á bocca do elephante alguns
fructos; mas as mais das vezes apenas fazia menção de lh'os atirar. O
elephante indignou-se com a simulação e, percebendo que o culpado era
o pintor, dirigiu-se a elle e projectou-lhe sobre o papel uma certa por-
ção d'agua que lhe inutilisou o desenho. O Dr. Franklin aífirma que os
elephantes são de uma extraordinária sollicitude pelas creanças e diz ter
elle próprio colhido presencialmente as provas. Este auctor viu na índia
um elephante guardando uma creancinha que a mãe lhe tinha confiado.
A sollicitude do enorme pachyderme era commovente; ora com a tromba
partia os ramos e aífastava todos os obstáculos que punham impedimento
á marcha da creança, ora a tomava no mesmo órgão com immenso cari-
nho, se eUa chorava ou caia. A susceptibilidade dos elephantes é conhe-
cida. O menor castigo, o mais ligeiro signal de mao humor que provo-
quem no homem é motivo para se entristecerem, para se sentirem pro-
fundamente. Apreciam muito a musica e marcam o compasso fazendo os-
cillar rythmicamente a tromba. Mesmo em estado selvagem tís elephan-
tes dão provas de um intendimento que lhes permitte aproveitar as li-
ções da experiência. É assim que, no dizer de Tennent, clles fogem em
bandos das florestas para os largos campos sem arvores, nas occasiOes
de trovoada; ahi se conservam até que cesse a fusilaria dos relâmpagos.
Os elephantes selvagens possuem, esses mesmos, uma certa doçura de
caracter que os leva a não aggredirem nunca outras espécies mas antes
a evitar toda a espécie de lucta mesmo com animaes fracos que natural-
mente venceriam. Conscientes da enorme força de que são dotados, os
190 IllSTUUIA NATURAL
elephantcs não a empregam senão quando isso é de absoluta necessi-
dade. Devem ser tidas na conta de fabulas todas essas descripções que
correm escriptas e que se ouvem da bocca dos domadores de feras, des-
cripções segundo as quaes os elephantes luctariam habitualmente com o
leão, com o tigre, com a panthera. Nem os carniceiros se attrevem a
attacar os elephantes, nem estes, essencialmente pacíficos e amigos da
ordem, dão a nenhum animal motivo para cólera ou para desejos de vin-
gança, lia mesmo animaes, aves principalmente, que vivem n'uma intima
harmonia com os elephantes. Algumas d'estas aves vivem, habitam quasi,
podemos dizel-o, sobre o dorso d'esles pachydermes entretendo-se a ex-
plorar-lhes a pelle, a catar-lhes os insectos e vermes que se insinuam nas
suas dobras como parasitas epizoarios. Um facto análogo se dá com os
búfalos, sobre cujo dorso pousam aves que os collocam ao abrigo da
vermina.
Os elephantes vivem em famílias compostas desde dez até cem ou
duzentos indivíduos; os agrupamentos que mais vezes se encontram, cons-
tam de trinta até cincoenta associados. O mais prudente é unanimemente
reconhecido como chefe do bando. Tanto pode ser um macho como uma
fêmea; as funcções que lhe competem podem todas resumir-se n'isto: ve-
lar pela segurança geral. Este cargo é penoso; em compensação aquelle
que o exerce tem o incondicional respeito de todos os subordinados. O
chefe marcha em todas as excursões na frente e a uma grande distancia
dos restantes membros da famiha, para explorar terreno e examinar as
condições de segurança. Só depois que o chefe ou arbitro dos destinos
do bando (porque o é na reahdade, tão submissamente o seguem os
companheiros) se tem assegurado da não existência de perigos, é que
os outros se precipitam, confiados, na direcção que se propunham. A
propósito transcrevemos de Skinner o trecho que segue : « Nas occasiões
de grande sécca estancam-se os riachos, os pântanos e os poços. Os
animaes da índia, soíTrendo então muito com a privação da agua, reu-
nem-se em grande numero em torno dos poços não seccos ainda. Na pro-
ximidade de um, tive eu occasião de observar a prudência surprehen-
dente dos elephantes. De um dos lados do poço havia uma espessa flo-
resta virgem; do outro estendia-se uma vasta planície descoberta. Era
por uma noite de luar explendido, tão claro como um dos nossos dias do
Norte; resolvi observar os elephantes. O logar era propicio: uma arvore
gigantesca, cujos ramos se estendiam por cima do poço, devia servir-me
de observatório; trepei a ella muito cedo e esperei.
«Os elephantes estavam apenas a uma distancia de quinhentos pas-
sos; no entanto só ao flm de duas horas logrei ver o primeiro. Um grande
elephante saiu da floresta a uns trezentos passos, pouco mais ou menos,
do poço e parou para escutar. Tinha avançado sem produzir o mais li-
31AM1FEK0S EM ESPECIAL
191
geiro ruido e conservou-se muitos minutos immovel como um rocliedo.
Avançou mais um pouco, parou de novo, e isto por trez vezes successi-
vas, conservando-se de cada uma immovel alguns minutos e erguendo
as orelhas para ouvir melhor. Chegou assim até junto da agua. Eu via-
Ihe a imagem reflectida na superfície; o pachyderme não bebeu, conser-
vou-se apenas alguns instantes em observação. Depois, voltando-se silen-
ciosa e prudentemente, tornou a entrar para a floresta pelo ponto por
que tinha saído.
«Não tardou porém a reapparecer e d'esta vez com cinco compa-
nheiros. Todos caminhavam com egual prudência, mas menos silenciosa-
mente. O guia ou chefe cohocou os cinco elephantes de sentinella, vol-
tou á floresta d'onde, passado pouco tempo, saiu seguido de todo o bando,
isto é de oitenta a cem companheiros. Caminhavam todos silenciosamente;
eu via-os bem moverem-se, mas não os ouvia. Pararam a meio do cami-
nho. O guia adiantou-se um pouco, conferenciou com as sentinellas e, con-
vencido emfim de que havia segurança, deu ordem para avançar. Então
o bando, dissipado todo o receio de perigo, precipitou-se na direcção da
agua. Todo o medo, toda a timidez tinham desappar^cido; todos confia-
vam no guia.
«Entregaram-se então ao prazer de apagar a sede e de tomar ba-
nho. Nunca vi tantos animaes juntos em tão pequeno espaço. Parecia-me
que elles iam esvaziar o poço. Observei-os com interesse até que todos
se dessem por satisfeitos. Desejando ver então que eífeito produziria um
ruido insignificante, quebrei um pequeno ramo; immediatamente o bando
deitou a correr para a floresta.»
Quando procuram o alimento, os elephantes procedem com egual
prudência. As florestas que habitam são tão ricas que ehes nunca che-
gam a sentir fome. É esta abundância de alimento que lhes tira toda a
voracidade, tão característica n'outros animaes. Os elephantes engolem
ramos da grossura de um braço. «Nos seus excrementos, diz Brehm, da
forma de morcellas, com cincoenta centímetros de comprido e quatorze
a dezeseis de espessura, encontrei pedaços de ramos de onze a qua-
torze centímetros de extensão e de quatro a seis de diâmetro.»
Todas as regiões apresentam umas certas arvores que são as pre-
feridas pelos elephantes. A Africa central, por exemplo, tem a chamada
arvore dos elephantes, vegetal espinhoso que preferem a todos; os espi-
nhos são molles e não ferem a bocca dos pachydermes. É de notar que
os elephantes preferem ás hervas os ramos e raizes d^arvores. Ás vezes
nas longas peregrinações nocturnas que emprehendem, os elephantes pe-
netram nas plantações e ahi produzem grandes estragos. Observe-se po-
rém que um simples espantalho, uma paliçada, por fraca que ella seja,
bastam, as mais das vezes, para aífaslar estes pachydermes. Na Ásia
192 IIISTOIIIA NATURAL
OS indígenas deixam pelo meio dos campos largos caminhos que ser-
vem de passagens aos elephanles que vão beber, cercando as partes
cultivadas de um muro de bambus. Uma só pancada da tromba de um
elephante seria bastante para atirar a terra esse muro; a verdade po-
rém ó que nunca os elephantes se propozeram fazel-o. Este comporta-
mento é no Sudan attribuido, não a timidez ou prudência, mas a um sen-
timento innato de justiça, que, diz Brelim, os indígenas suppoem existir
em alto grão nos elephantes.
A mudança de estações c a falta d'agua são causas frequentes de
verdadeiras emigrações d'estes pachydermes; tacs emigrações só se rea-
lisam de noite.
Os elephantes servem-se da tromba para beber. Aspiram a agua,
enchem a tromba e esvaziam-a depois dentro da cavidade da bocca.
A multiplicação d'estes enormes pachydermes é muito hmitada. A
epocha do cio reconhece-se, além d'outros caracteres, pelo facto de se-
gregarem os machos um hquido fétido por duas glândulas coUocadas
atraz das orelhas. N'esta quadra os elephantes perdem a habitual tran-
quiUidade e tornam^se perigosos para o homem. Segundo observações de
Corse, o cio tem logar em mezes diíTerentes, em Fevereiro, em Abril, em
Junho e mesmo mais tarde ás vezes, em Setembro ou Outubro. A gesta-
ção dura vinte e dois mezes e meio. A fêmea não dá á luz por cada
parto mais do que um filho, que apparece com noventa e seis centíme-
tros de altura.
Os elephantes crescem continuamente até aos vinte ou vinte e qua-
tro annos; mas aos desasseis estão já aptos para a reproducção.
Relativamente à dentição, sabe-se que a primeira muda, a dos cha-
mados dentes do leite, tem logar aos dous annos, a segunda aos seis e a
terceira aos nove.
A duração dos elephantes é assombrosa; no estado selvagem attin-
gem a edade de cento e cincoenta a duzentos annos e, segundo alguns
observadores, podem chegar á de cem ou cento e vinte em captiveiro.
CAÇA
Os elephantes pertencem ao numero dos animaes em via de com-
pleto desapparecimento. Reproduzem-se com diíficuldade, como vimos, e
são objecto de uma guerra de destruição tenacíssima que a nossa espé-
cie lhes move com o fim de adquirir o marfim precioso das defezas. E
mamíferos em especial 193
esta guerra, esta perseguição faz-se por tal modo, por processos de tal
natureza, tão cruéis e tão exageradamente destructivos que a desappa-
rição d'estes sympathicos pachydermes que, prudentemente poupados,
poderiam ser-nos utilíssimos, não deve estar distante. Quando pensamos
na perseguição cannibalesca e perfeitamente cobarde de que são victi-
mas os generosos elephantes de que podíamos fazer verdadeiros animaes
domésticos, companheiros úteis, serviçaes tanto mais preciosos quanto
mais intelligentes, e nos lembramos de que uma sórdida e estúpida am-
bição é o móbil único de toda a guerra, chegamos a sentir pela sorte
dos famosos animaes tanta piedade quanta é a repulsão que sentimos
pelos que os matam. Pois o valor do marfim que podem fornecer as de-
fezas é motivo que justifique uma guerra traiçoeira e indisciplinada em
que se matam novos e velhos, machos e fêmeas e que, mais cedo ou
mais tarde, ha de forçosamente accarretar a extincção das espécies? E
não se creia que é o sentimento que nos revolta; colloquemo-nos n'um
campo exclusivamente utiUtario e veremos quanto, mesmo sob este novo
ponto de vista, é injustificável a perseguição aos elephantes. Não é certo
que poderíamos, se ouvíssemos os conselhos da prudência e do simples
bom senso, utiUsar dos elephantes uma enorme multidão de serviços que
no estado captivo elles são capazes de nos fornecer pela inteUigencia e
pela força e ainda, depois d'elles mortos, adquirirmos o marfim ? E mesmo
matando-os para obter esse producto precioso, não valeria mais poupar
as fêmeas, estabelecer á caça um tempo defeso e proceder do modo me-
nos cruel possível? Podíamos e decerto devíamos fazel-o. A ignorância
porém é ainda na espécie humana uma triste fataUdade contra a qual
reagiremos baldadamente por muito tempo.
Os processos de caça aos elephantes variam muito; um ha porém
absolutamente revoltante : o que consiste em fazer convergir para ura
certo espaço limitado um grande numero de indivíduos sobre os quaes
se despejam balas de um logar elevado. A bondade generosa do va-
lente elephante que protege uma creancinha deve fazer-nos corar de
pejo, ao lembrar o espectáculo mesquinho do homem fraco que á trai-
ção e a sangue frio aponta sobre o que não provoca. E note-se que este
processo repugnante de caça nem sempre é empregado com o fim de
obter as defezas do elephante; fazem uso d'elle alguns caçadores euro-
peus simplesmente para poderem escrever na carteira de viagem: «No
dia... do mez... matei 20 elephantes.» Pensam cobrir-se de gloria!
Gordon Gumming conta que tendo atirado sobre um elephante e partin-
do-lhe o omoplata por forma que inutiKsou todos os movimentos do ani-
mal e o atirou por terra, desejou saber quaes os pontos mais vulnerá-
veis do pachyderme e approximando-se lhe despejou em regiões diffe-
rentes do corpo um grande numero de balas. «Lagrimas abundantes,
VOL. III 13
194 HISTORIA NATURAL
diz O mesmo viajante, correram em fio dos olhos do pachyderme; abriu
lentamente as pálpebras e fecliou-as de novo. Algumas convulsões agi-
taram-lhe o corpo; depois deixou pender a cabeça para o lado e — mor-
reu.» Como isto é revoltante e deplorável! Que se faça soífrer um ani-
mal para tirar d'esse soffrimento uma conclusão scientifica, que se lhe
retalhem em vida as carnes e se lhe mergulhe um escalpello nos órgãos,
como se faz nos gabinetes de physiologia, para esclarecer uma questão
biológica, para encontrar uma base de discussão pathologica, para ex-
plicar phenomenos ignorados ou para descobrir uma verdade, compre-
hende-se e justifica-se: é um mal relativamente pequeno e em troca de
um bem enorme. E, de resto, o vivissector, postos os olhos do intendi-
mento no fim scientifico das suas experiências, esquece-se das dores do
animal, como o operador não ouve os gritos do operado, fixa, como tem,
a attenção, no resultado humanitário da sua obra. Tudo isto, que os
ignorantes chamam crueldade, se justifica e merece um outro nome.
Mas ferir um animal sem um fim alto, sem uma utihdade qualquer, vêl-o
muribundo, perdido e incapaz de uma lucta e ir ainda n'eslas condições
perturbar-lhe e tornar-lhe mais dolorosa a lenta agonia para friamente
examinar as lagrimas abmidantes que elle chora, o abrir e fechar das
pálpebras que precede a morte e a convulsão final que lhe saccode o
corpo ao expirar, é, sem duvida, revoltante, é cruel.
O caçador de elephantes, digno d'este nome, procura os animaes
nas florestas, vae-lhes ao encontro. N'estas condições, o caçador expõe
a vida, porque nada lhe garante que todos os tiros serão empregados e
que não ha de ser victima da cólera do animal que tenha ferido sem con-
seguir matal-o. A caça é assim uma perseguição e não um assassinato.
Na Africa, segundo Ghaillu, os negros entrelaçam ramos de cipó á
maneira de nós corredios onde os elephantes são apanhados; feito isto
matam a golpes de lança os maiores e mais fortes. O processo empre-
gado n'outras regiões consiste em abrir fossos onde caem os elephantes
em perigrinações nocturnas e onde morrem de fome ou são abatidos a
golpes de lança pelos negros.
Existem ainda outros processos de caça que, todavia, não merecem
descripção especial, porque fundamentalmente se approximam dos que
acabamos de mencionar.
Attrahentes e dignos de menção especial são os processos* empre-
gados para reduzir ao captiveiro os elephantes selvagens de que o ho-
mem deseja utihsar todos os serviços de que são capazes, era troca de
boa alimentação e de bom tratamento. O fim a que visam esses proces-
sos é, como se vê, essencialmente humano e civiKsador. Civilisador, di-
zemos, na rigorosa accepção da palavra, porque um dos meios empre-
gados para se reconhecer o estado do adiantamento de um povo é o de
mamíferos em especial 195
inquirir até que ponto chegou o dominio d'esse povo sobre os elementos
da fauna indigena.
Os Índios passam justamente por mestres n'esta arte; entre elles os
caçadores de elephantes formam uma verdadeira casta. É admirável a
prudência, a astúcia e o arrojo com que procedem. Para dar idéa da ha-
bilidade d'estes homens, basta dizer que elles roubam um elephante ao
bando ou família; parece incrível que isto se faça, mas a verdade é
que o conseguem os caçadores indianos. A sagacidade d'elles é perfeita-
mente admirável. «Seguem a pista de um elephante, diz Brehm, como um
bom cão segue a de um veado. Reconhecem desde logo a força do bando,
quaes as dimensões dos maiores e quaes as dos menores elephantes que
o compõem. Signaes que escapam ao olho de um europeu são para elles
como um livro em que lêem correntemente.)) * O mesmo auctor accres-
centa: ((N'elles a coragem rivahsa com a prudência; fazem do elephante
o que querem: espantam-o ou encolerisam-o á vontade.)) ^
A única arma de que estes caçadores se munem é um laço solido
de pelle de veado ou de peUe de búfalo que elles prendem ao pé do ele-
phante que querem apanhar. É admirável e constituo para nós um ver-
dadeiro enygma o saber como é que estes homens conseguem desUsar
até junto de um animal tão limido como é o elephante. Em quanto um
dos caçadores prende o pé do elephante com o laço, outro fixa a extre-
midade livre do mesmo laço a uma arvore. O elephante, uma vez ca-
ptivo, torna-se furioso; não obstante os caçadores conseguem domal-o
em pouco tempo. Primeiro empregam os meios atterradores e depressi-
vos, acendendo fogueiras, privando o pachyderme de comida e de be-
bida, não lhe consentindo um momento de repouso, fatigando-o por to-
dos os processos imagináveis. Mais tarde mudam de plano e principiam a
usar em relação ao pachyderme do melhor tratamento possível. Pelo em-
prego alternado d'estes processos, conseguem os caçadores reduzir á
domesticidade os elephantes que os primeiros dias de captiveiro tinham
enfurecido. Os europeus não podem acompanhar os caçadores indígenas
nas excursões que acabamos de mencionar; a falta de perícia transtor-
naria todos os planos d'estes últimos. O naturaUsta é pois forçado, em
parte, a contentar-se com simples narrações.
Ha um outro género de caçadas em que se apanham ás vezes cen-
tenas àe elephantes; n'estas pode o europeu tomar uma parte activa.
Tennent descreve-as assim : «Para estas caçadas destina-se a epocha que
succede á colheita do arroz, porque então é menor o destroço nos cam-
1 Brehm, Ohr. ciL, vol. 2.o, pg. 717.
2 Ibid.
196 HISTORIA NATURAL
pos. O povo, além da diversão que naturalmente lhe proporcionam estas
caçadas, tem todo o interesse em ver diminuir o numero de elephantes,
por causa dos estragos que elles ás vezes lhes causam nas herdades e
nos campos. Pelo seu lado, os sacerdotes incitam os caçadores porque
os elephantes lhes comem as folhas de uma arvore tida em conta de sa-
grada e, além d'isso, porque desejam possuir alguns d'estes pachyder-
mes para o serviço dos templos.
«Os ricos ostentam orgulhosamente n'estas caçadas não só o grande
numero de creados que os servem, mas ainda as qualidades de elephan-
tes domésticos que emprestam sempre n'estas occasiões. A gente pobre
emprega-se durante semanas em metter estacas na terra, em abrir ca-
minhos por entre os juncaes ou em substituir os batedores.
«O logar da caçada escolhe-se sempre nas visinhanças dos caminhos
mais frequentados pelos elephantes, perto de logares em que haja agua
para que os animaes possam beber durante o cerco e tenham onde se
banhar em quanto se procede á sua domesticação. Quando n'um logar
se trata da conslrucção do corral, * poupam-se as arvores e o matto,
sobretudo do lado da entrada, pela necessidade de encobrir a paliçada
que o fecha. As estacas que se empregam teem, pouco mais ou menos,
trez metros e trinta centímetros de espessura; enterram-se a um metro
de profundidade, ficando acima do solo uma altura de quatro ou cinco
metros. De uma estaca a outra medeia o espaço preciso para poder pas-
sar um homem; as estacas entrelaçam-se depois com bambus e cipós e,
para maior soUdez, escoram-se. O recinto em que estive tinha pouco
mais ou menos, cento e cincoenta metros de comprido sobre setenta e
cinco de largo. N'uma das extremidades ficava a entrada que em poucos
momentos se podia fechar; os dois lados da paliçada que fechava o cor-
ral, continuavam-se até uma certa distancia para além da entrada, com
o fim de obrigar os elephantes, caso elles não entrassem logo e se des-
viassem, a penetrarem pela abertura que lhes dava ingresso. Em um re-
cinto cheio de arvores tinha-se construído um estrado para o governador e
seus convidados, d'onde se dominava completamente a scena e d'onde
era possível assistir a todas as peripécias da caçada, desde o momento
em que os pachydermes penetrassem no espaço que os esperava.
«É quasi inútil dizer que a paliçada, por mais forte que ella fosse
não resistiria ao elephante que de encontro a ella se precipitasse com
toda a força de que pode dispor. O caso tem-se dado algumas vezes, re-
sultando d'ahi escapar todo o bando que se conseguira fazer entrar no
1 Nome com que se designa o recinto destinado a receber os elephantes sel-
vagens, que ahi se fecham e conservam presos para domesticar.
mamíferos em especial 197
recinto; a verdade porém, é que em geral se conta mais com a timidez
dos elephantes e com a habilidade dos caçadores do que com a solidez
dos tapumes.
«Uma vez concluído o corra], poem-se em campo os batedores, que
muitas vezes teem de estabelecer um cordão de muitas léguas de com-
prido, para que o numero de elephantes seja grande. Os batedores pre-
cisam de ser prudentes e cautelosos, precisam de marchar cuidadosa-
mente para não espantar os pachydermes e não os fazer seguir direcção
differente da que se quer que elles sigam.
«Como os elephantes, essencialmente pacificos e desejosos de que
os deixem tranquillamente pastar, fogem mal se sentem perseguidos, é
preciso aproveitar esta circumstancia para pouco e pouco os conduzir na
direcção do corral. Quando se apresentam muito inquietos, muito agita-
dos, promptos a fugirem, é então necessário empregar meios mais enér-
gicos; em torno do logar que occupam accende-se de dez em dez passos
uma fogueira que se alimenta constantemente, de dia e de noite.
«O numero de batedores empregados n'estes preparativos de caçada
eleva-se de dois mil a cinco mil. Abrem caminhos atravez dos juncaes
para que a linha dos batedores seja contínua; os chefes vigiam constan-
temente que cada um se conserve no seu posto, porque uma negligen-
cia, o abandono de um ponto pode dar logar a que escape um bando
inteiro, inutilisando-se assim todo o trabalho de muitas semanas. Quando
se suspeita que os elephantes tentam forçar um ponto qualquer da linha,
concentra-se ahi um numero sufficiente d'homens para os repellir. Quando
as duas hnhas de batedores chegam ao corral e se fecham, ficam estes
esperando o signal.
«Todos estes preparativos tinham consumido dois mezes; tinham
acabado precisamente quando chegamos, indo tomar assento no estrado
d'onde podíamos ver a entrada do corral. Perto de nós, á sombra, es-
tava um grupo de elephantes domesticados, que os sacerdotes e os prín-
cipes tinham emprestado para auxiliarem a captura dos elephantes bra-
vos. Trez bandos diíTerentes, prefazendo o numero de quarenta ou cin-
coenta indivíduos, estavam cercados pelas linhas dos batedores e occul-
tos entre os juncaes visinhos do corral. Era interdicto o ruido; só se
fallava a meia voz e o silencio dos batedores era tal que se ouvia o
ruido de um elephante colhendo folhas de uma arvore.
«De repente foi dado o signal, e o silencio que até então se manti-
vera na floresta foi perturbado pelos gritos das sentinellas, pelo rufar
dos tambores e pelas detonações das armas de fogo. O estrépito come-
çou no ponto mais retirado para se obrigarem os elephantes a tomar a
direcção do corral. Os batedores que se tinham conservado silenciosos
até ao momento de passarem por diante d'elles os animaes, juntavam
198 HISTORIA NATURAL
então os seus gritos aos dos outros, por forma que o estrépito crescia
sempre; os elepliantes tentaram por mais de uma vez romper o cordão,
sendo porém constantemente repellidos pelos gritos, pelos rufos dos tam-
bores e pelas detonações das armas de fogo.
«Por fim, o estalar dos ramos e do matto advertio-nos de que se
approximava o bando, e vimos então o guia sair d'entre os juncaes e
vir até uns vinte metros da entrada do corral, seguido pelos companhei-
ros. Passados instantes, todos deveriam entrar no corral; mas de súbito
desviaram-se para a direita e voltaram para os juncaes. O chefe dos ba-
tedores veio-nos explicar o caso, como resultado da apparição inespe-
rada de um javali que passara na frente do guia do rebanho. Acrescen-
tou que em vista da excitação extraordinária dos elephantes, os caçado-
res pediam que se adiasse o trabalho para a noite, porque podiam então
ser-lhes de utihdade o escuro, as fogueiras e os archotes.
«Ao pôr do sol o espectáculo redobrou de interesse. As fogueiras
que durante o dia apenas se denunciavam pelo fumo, começaram então
a brilhar, espalhando nas trevas um clarão avermelhado que se proje-
ctava phantasticamente sobre os diíTerentes grupos. O fumo subia em
turbilhões atravez das folhas d'arvores. Ouvia-se, apenas o volitar dos
insectos. Subitamente ouvio-se rufar um tambor e logo depois um tiro:
era o signal para recomeçar a caçada. Os batedores principiaram então
a caminhar, soltando gritos. As fogueiras, alimentadas com folhas seccas,
levantavam enormes labaredas, formando um vasto cordão luminoso; só
o corral estava mergulhado na mais densa obscuridade.
«Por fim os elephantes chegaram. O guia appareceu à entrada, pa-
rou um instante, olhou em volta e por fim, com a cabeça baixa, preci-
pitou-se no recinto, seguido de todo o bando. De repente e como por en-
canto, o corral illuminou-se, porque os caçadores convergiram para elie
com archotes que acendiam nas fogueiras mais próximas.
«Os elephantes avançaram até ao fundo do corral e, encontrando
um obstáculo, recuaram e procuraram ganhar a porta; mas acharam-a
fechada e o terror attingio n'elles o maior grão. Principiaram então a
correr em torno do cerrado; mas o fogo cercava-os de todos os lados.
Procuraram derrubar a estacada; mas os caçadores, agitando os archo-
tes, obrigaram-os a recuar. Em todos os pontos de que se approxima-
vam, ouviam estrondo, detonações d'armas de fogo. Junctavam-se então
em um grupo, conservavam-se immoveis um instante, para de novo ar-
remetterem como se tivessem descoberto uma abertura. Repellidos po-
rém ainda uma vez, juntavam-se para repousar no meio do corral.
«Este espectáculo interessava não só os espectadores, mas ainda os
elephantes domésticos. Á chegada do bando selvagem, excitaram-se;
dois principalmente que estavam presos adiante, entraram n'uma tal agi-
mamíferos em especial 199
tacão que ura d'elles, partindo as correntes, se precipitou ao encontro
dos companheiros selvagens, derrubando uma arvore bastante grande
que lhe impediu a passagem.
«Por espapo de mais de uma hora percorreram os elephantes o cor-
ral e, sem que o insuccesso os desanimasse, procuraram abalar a esta-
caria. A cada tentativa frustrada, rugiam de raiva. Esforçavam-se cada
vez mais por derribar a porta; dir-se-hia estarem convencidos de que
no logar por onde tinham entrado devia haver uma saída; mas, aturdi-
dos pelo estrépito, recuavam de novo. Assim as tentativas foram-se tor-
nando cada vez mais raras e por fim apenas alguns elephantes corriam
para um ou outro lado, vindo depois junctar-se aos companheiros. Em-
fim, todo o bando, já fatigado e exhausto, se reuniu n'um único grupo,
ficando os mais novos no centro, e se conservou assim, perfeitamente
immovel, no meio do corral.
c(Tomaram-se as precauções precisas para a noite. O nuraero das
sentinellas foi tripUcado em volta do recinto em que ficavam os elephan-
tes e ahmentaram-se successivamente as fogueiras para que ardessem
até ao romper da manhã.
«Os batedores tinham levantado trez bandos de elephantes, que toda-
via se conservavam afíastados uns dos outros. Um, apenas, tinha pene-
trado no corral; e como a porta tivesse sido fechada, os outros conser-
vavam-se fora, occultos nos juncaes. Para impedir que fugissem, orde-
nou-se aos batedores que occupassem o seu posto; accenderam-se de
novo as fogueiras e, uma vez tomadas todas estas medidas de precau-
ção, retiramo-nos para a nossa pousada que ficava a uns trinta passos,
pouco mais ou menos, do corral. O primeiro somno foi-nos muitas vezes
interrompido pelo estrépito dos homens na floresta, pelos gritos com
que repelUam as tentativas dos elephantes para se escaparem. Ao rom-
per do dia tudo estava tranquillo no corral e, quando o sol appareceu
no horisonte, deixaram-se extinguir as fogueiras. As sentinellas rendidas
dormiam perto da paliçada; em torno d'esta havia uma enorme multi-
dão d'homens e de creanças, armados de chuços e de grandes varas, e
ao centro os elephantes immoveis, sem forças, exhaustos e assombrados
pelo terror. Eram nove somente os prisioneiros, sendo trez muito gran-
des e dois pequenos, de alguns mezes apenas. Dos grandes, um era um
vagabundo, que não fazia parte do bando e que não fora recebido no
grupo, conservando-se por isso a uma certa distancia.
«Tratou-se então de fazer penetrar no corral os elephantes domés-
ticos, para, com auxilio d'enes, se prenderem os selvagens. Prepara-
ram-se os laços, levantaram-se cautelosamente as traves que fechavam
a entrada, e dois elephantes domésticos penetraram silenciosamente no
recinto, cada qual montado pelo seu cornaco e por um creado e levando
200 HISTORIA NATURAL
ao pescoço uma forte colleira de que pendiam duas correias de pelle de
antílope terminadas em nó corredio. Ao mesmo tempo, occulto por traz
d'elles, entrou o chefe dos laçadores de elephantes, ancioso por apanhar
o primeiro animal. Era um homem baixo, vivo, de setenta annos apro-
ximadamente e que linha recebido já duas distincções honorificas como
recompensa de bons serviços. Era acompanhado por um filho, tão cele-
bre como elle pela coragem e pela destreza.
«N'esla capada entraram dez elephantes domésticos: dois perten-
ciam a um templo das visinhanças, tendo sido um d'estes apanhado no
anno anterior, quatro eram propriedade de principes que moravam nas
proximidades e os 'restantes pertenciam ao estado. Dois d'estes últimos
foram os que primeiro entraram no corral.
«Um d'estes elephantes domésticos era muito velho e havia mais
de um século que estivera ao serviço do governo hollandez e depois ao
dos inglezes. O outro, por nome Sinheddi, tinha pouco mais ou menos
cincoenta annos e distinguia-se pela dociUdade de caracter e pela intel-
ligencia; era uma perfeita sereia e tinha um gosto decidido por estas ca-
çadas. Adiantou-se silenciosamente no corral, cora ar de indiíTerença, em
direcção aos elephantes bravos, colhendo pelo caminho algumas folhas
ou algum pedaço de herva. Assim se approximou dos elephantes selva-
gens que lhe vieram ao encontro; o guia d'estes últimos acariciou-lhe a
cabeça com a tromba e voltou lentamente na direcção dos companheiros.
iiSiriheddi seguiu vagarosamente o guia do bando selvagem e foi
postar-se perto d'elle; o velho laçador pôde então, passando por baixo
do ventre de Sinheddi, e sem ser visto pelo elephante guia, prender a
uma perna d'este o laço que já trazia preparado. O pachyderme deu logo
pelo perigo e, sacudindo o laço voltou-se contra o caçador, que teria
pago cara a temeridade se Siribeddi o não protegesse com a tromba, re-
pellindo ao mesmo tempo o aggressor. Ainda assim, ficou ligeiramente
ferido, sendo forçado a retirar-se e vindo substituil-o o filho, por nome
Raughanie.
«Os elephantes selvagens dispozeram-se em circulo, com a cabeça
voltada para o centro; dois elephantes domésticos introduziram-se cora-
josamente no meio do grupo, indo cada um d'elles coUocar-se ao lado
do maior dos congéneres selvagens, que era um macho. Este não oppoz
resistência á visinhança dos companheiros domésticos e limitou-se a ma-
nifestar o seu descontentamento levantando alternadamente os membros.
Raughanie avançou então, levando entre as mãos o nó corredio de que
uma das extremidades se achava presa á colleira de Siribeddi. Aprovei-
tando o momento em que o elephante levantava um dos membros pos-
teriores, passou-lhe o nó, apertou-o e fugiu. Siribeddi, aíTastando-se do
grupo e puxando pela corda, conseguiu aíTastar o animal preso dos com-
mamíferos em especial 201
panheiros, ao mesmo tempo que o outro elephante domestico se mettia
de permeio entre o prisioneiro e os outros pacliydermes selvagens.
«Era preciso prender o elephante laçado a uma arvore; mas isso
não podia conseguir-se sem o arrastar a uns vinte metros de distancia,
o que se não fez sem uma enérgica resistência da parte d'elle, que ru-
gia e calcava aos pés pequenas arvores como se fossem caniços. Siri-
heddij puxando-o para si, conseguiu passar a corda em volta de uma
arvore, mantendo-a sempre tensa. Para enrolar a corda foi-lhe preciso
usar de muita prudência. N'esta operação era forçado a passar entre a
arvore e o elephante que devia conservar-se immovel; isto parecia im-
possível de obter-se, mas o segundo elephante domestico, notando a dif-
ficuldade, veio prestar-lhe auxilio. Obrigando o captivo a recuar, conser-
vou-o distante da arvore, em quanto Siribeddi enrolava a corda, sempre
tensa, ao tronco, vindo o homem depois acabar de prendel-o. Um se-
gundo laço foi ainda passado em torno do outro membro posterior e en-
rolado também á mesma arvore. Por fim as duas pernas foram hgadas
com cordas embebidas de gordura para evitar ferimentos e uma suppu-
ração ulterior.
((Os dois elephantes domésticos deram ainda occasião a que Rau-
ghanie passasse o laço em torno dos membros posteriores do mesmo pa-
chyderme e que o prendesse a uma outra arvore. Terminada a captura,
caçadores e elephantes domésticos marcharam em procura de nova vi-
ctima. Emquanto os dois elephantes domésticos se conservaram junto
d'ene, o pobre captivo conservou-se immovel, sem fazer tentativas de
resistência; logo porém que se viu só, procurou soltar-se para reunir-se
aos companheiros do bando. Tratava de, com a tromba, desfazer os nós
e ora recuava para desprender os membros anteriores, ora avançava
para desprender os de traz; os ramos da arvore tremiam, como se os
agitasse a tempestade. Rugia, e umas vezes levantava ao ar a tromba,
outras deitava ao chão a cabeça e fazia pressão com a tromba sobre o
solo como se quizesse enterral-a. Ainda por algumas horas se debateu,
erguendo a cabeça e os membros anteriores; por fim, perdida de todo
a esperança, deixou-se ficar immovel, verdadeiro symbolo da prostração
e do desespero.
((Raughanie, no entretanto, approximára-se do estrado do governa-
dor para receber o premio concedido ao que prendesse o primeiro ele-
phante; recebeu-o uma chuva de rupias, depois do que voltou á sua pe-
rigosa tarefa.
((O bando formava como que um todo compacto. Apenas de quando
em quando, algum elephante, mais impaciente, se separava dos compa-
nheiros alguns passos e olhava em torno. Os outros seguiam-o primeiro
devagar, depois mais rapidamente e por fim todo o bando tentava mais
202 HISTORIA NATURAL
uma vez transpor a paliçada. Estas tentativas tinham simultaneamente
alguma coisa de magesloso e de ridículo; apesar de toda a força empre-
gada, a marcha dos elephanles era pczada e vacillantc, e o impeto da
investida transformava-se subitamente, de cada vez, n'uma retirada tí-
mida. Arremcssavam-se com o dorso arqueado, a cauda levantada, as
orelhas reLezadas, a tromba no ar, rugindo e soprando: um passo mais,
e teriam atirado por terra a paliçada; de súbito porém estacavam diante
de umas varas brancas que lhes punham em frente e, espavoridos pelos
gritos dos caçadores, corriam em torno do corral, acabando por volta-
rem ao primitivo pouso. Os sitiantes, pela maior parte rapazes e crean-
ças, denotavam uma grande perseverança, correndo promptamente ao
ponto atacado pelos elephantes, apresentando-lhes as varas ás trombas
e obrigando-os a fugir á força de gritos.
«O segundo elephante que se separou do bando era uma fêmea e
foi apanhado como o primeiro; mas quando lhe passavam a corda por
um dos membros anteriores, apanhou-a com a tromba, levou-a á bocca
e tel-a-hia cortado se um dos elephantes domésticos lhe não tivesse
posto um pé em cima, baixando assim a laçada. Os caçadores escolhiam
sempre, para prender, o elephante que commandára os companheiros na
ultima tentativa de fuga; a captura d'elle não levava, termo médio, mais
de trez quartos d'hora.
«Um facto verdadeiramente singular é que os elephantes bravos não
procuram nunca attacar ou atirar a terra os cornacas que vão montados
nos elephantes domésticos, de sorte que embora estes se introduzam no
meio do bando selvagem, o cavalleiro nada tem a sofFrer. «Parece, diz
o capitão Skinner n'uma carta, que se pode penetrar n'um corral, fican-
do-se completamente ao abrigo de qualquer attaque por parte dos ele-
phantes bravos, desde que se vae montado n'um individuo domestico.
Eu vi uma vez no meio de um bando de elephantes selvagens o velho
príncipe xMoUegadde montado n'um elephante domestico tão pequeno que
a cabeça do príncipe mal se nivelava com o dorso dos pachydermes. Eu
tremia pela sorte do velho; nada porém lhe aconteceu.»
«O bando, uma vez perdidos os chefes, redobrou de excitação; mas,
qualquer que fosse o pezar d'estes animaes ao verem os companheiros
presos, a verdade é. que não fizeram uma única tentativa para os solta-
rem. Approximavam-se d'elles, entrelaçavam-se mutuamente as trombas,
lambiam-lhes o pescoço e os membros, davam as mais inequívocas pro-
vas de tristeza, mas não tentaram uma só vez partir os laços que os
prendiam.
«Era então que podiam vêr-se as differenças de caracter d'estes
animaes. Uns desistiam, deixavam-se ficar prostrados depois de uma
fraca resistência; outros atiravam-se ao chão com tamanha violência que
mamíferos em especial 203
qualquer outro animal teria morrido. Descarregavam sobre as arvores
próximas toda a cólera; arrancavam-as pela raiz, partiam-lhes os ramos,
destacavam-lhes as folhas e dispersavam tudo isto em volta de si. Alguns
conservavam-se perfeitamente silenciosos; outros rugiam com fúria, ex-
pelliam gritos, até que por fim exhaustos, desesperados, deixavam ouvir
apenas uns sons surdos e pungitivos. Muitos conservavam-se deitados,
immoveis, deixando perceber o intimo soíTrimento apenas pelas lagrimas
choradas. Outros, no cumulo da raiva, executavam os mais singulares
movinrentos e tomavam altitudes que a nós nos pareciam tanto mais sur-
prehendentes quanto é certo que tínhamos o elephante na conta de um
animal pezado e pouco ágil. Vi um que tinha a cabeça em terra, os mem-
bros anteriores alongados para diante e o corpo dobrado de modo tal
que os membros posteriores encontravam-se também adiante.
«Agitavam a tromba para todos os lados, mas sem nunca se ferirem,
ora batendo com ella no solo, ora alongando-a, ora recurvando-a como
uma mola. Quasi todos calcavam o chão com as patas de diante e apa-
nhavam com a tromba porções de terra com que se cobriam.
«O comportamento dos elephantes domésticos era verdadeiramente
notável; revelavam a mais perfeita intelligencia em todos os movimen-
tos, sabiam o fim que se deviam propor e os meios a pôr em pratica
para o conseguir. Esta caçada parecia divertil-os muito, não por mal-
dade, mas porque constituía para elles um passatempo. Não era me-
nos surprehendente a prudência de que usavam. Nunca o seu zelo
foi em demasia, nunca provocaram desordem, nunca se enredaram nos
laços, nunca, emfim, nas luctas que foram obrigados a sustentar feri-
ram uma só vez os elephantes captivos. Mais de uma vez, quando al-
gum d'estes estendia a tromba para agarrar o laço no momento de lh'o
passarem aos membros, Siribeddi desviava-o. Um dos elephantes que já
estava preso por uma perna, não consentia que lhe prendessem a outra,
porque no momento em que lhe iam a passar o laço pousava o pé em
terra. Então Siribeddi, aproveitando uma das occasiões em que o pachy-
derme levantou a perna, coUocou-lhe o pé por baixo e assim deu tempo
a que o caçador preparasse o nó e prendesse o insubordinado. Dir-se-hia
que os elephantes domésticos se divertiam com o terror dos companhei-
ros selvagens, mettendo a ridículo a resistência d'estes. Se os elephantes
bravos não queriam marchar para diante, os domésticos empurravam-os,
se queriam fugir, retinham-os e se algum se deitava ao chão, immedia-
tamente um dos elephantes domésticos ajoelhava sobre ehe e o subju-
gava até que houvesse tempo de prendel-o.
«De todos os elephantes domésticos, um só, o mais temido pelo
bando selvagem, possuía inteiras as defezas. Todavia nunca d'ellas se
serviu como armas oífensivas e apenas as empregava ou para separar
204 HISTORIA NATURAL
dois elephantes por cnlre os quaes não podia introduzir a cabcfa ou para
mais facilmente levantar algum que se tivesse deitado. Ás vezes, se al-
gum companheiro não conseguia dominar qualquer dos elephantes selva-
gens, approximava-se elle e isto bastava para aterrar o insubordinado e
vencer toda a resistência.
c(N'cstas caçadas a coragem e a pericia dos homens occupa um lo-
gar secundário; o primeiro, o mais proeminente pertence sem contesta-
ção aos elephantes domésticos pelas altas qualidades que os caracteri-
sam. É verdade que os caçadores precisam de ter uma vista perspicaz
para aproveitar o mais ligeiro movimento do animal e passar-lhe o laço,
manobra que requisita uma enorme destreza; não é menos verdade po-
rém que o mais hábil e o mais ousado dos caçadores não conseguiria,
sem o auxilio dos elephantes domésticos, levar a cabo a empreza.
«Estavam presos já todos os elephantes bravos, quando ao longe se
ouviu o som de uma flauta, que sobre muitos dos captivos produziu uma
singular sensação. Fitavam as orelhas na direcção do instrumento e os
accordes musicaes calmavam-lhes a agitação. Os mais novos apenas con-
tinuavam a mugir, lastimando a liberdade perdida, erguiam a tromba,
apanhavam tudo o que encontravam ao seu alcance e levantavam em
torno de si nuvens de pó.
«Ao principio os mais velhos recusaram o alimento; alguns porém
não souberam resistir á tentação que lhes apparecia sob a forma appe-
titosa de uma arvore bem copada e começaram desde logo a partir os
ramos e a mastigal-os tranquillamente.
«Se, por um lado, a prudência, o socego e a intelligencia dos ele-
phantes domésticos nos surprehenderam, por um outro, não nos admi-
rou menos o comportamento digno dos prisioneiros. Tivemos occasião de
presenciar o contrario do que nos costumam afflrmar os caçadores,
quando nos pintam estes animaes como seres traiçoeiros, indomáveis e
vingativos. De certo que, irritados e atormentados pelos inimigos, elles
fazem uso da força e da inteUigencia para escaparem ou para se defen-
derem; mas no corral manifestaram apenas innocencia e timidez. Depois
de uma lucta em que não manifestaram a menor disposição para actos
de violência e de vingança, abandonaram-se passivamente e sem espe-
rança á sua sorte. A sua attitude fazia piedade, a sua dor commovia e
os surdos gemidos que soltavam iam direitos ao coração. Ninguém teria
consentido que os atormentassem inutilmente ou que os maltratassem.
«Os outros bandos foram, como o primeiro, impellidos para o cor-
ral; e a entrada d'elles inquietou muito os captivos. O segundo bando
entrou de dia e mais rapidamente que o primeiro; era conduzido ou
guiado por uma fêmea de trez metros de altura. N'uma tentativa que
esta fez para fugir, só foi possivel detel-a, atirando-lhe á cabeça um ar-
mamíferos em especial 205
chote acceso. Os que vinham chegando não prestavam a mínima atten-
ção aos prisioneiros por cima de cujo corpo passavam.
«A fêmea que conduzia o bando foi a primeira que se prendeu a
laço. Quando lhe amarraram uma das pernas, reconheceu-se que ella pos-
suía uma força superior á de Siriheddi. Este, para poder aguentar com
a corda que a prendia, viu-se forçado a deitar-se-lhe em cima com todo
o corpo. No entretanto o elephante domestico que tinha defezas, obser-
vando isto, foi collocar-se diante do animal captivo, forçando-o a recuar
passo a passo, até que fosse possível prendel-o a uma arvore.
((Por ultimo, tratou-se de deshgar os prisioneiros e de conduzil-os
ao rio. Tendo-se-lhes lançado ao pescoço colleiras feitas de fio de coco,
cada um d'elles foi collocado entre dois elephantes domésticos, também
munidos de fortes colleiras, aos quaes se ligavam os prisioneiros. Depois
tiraram-se a estes as cordas dos pés e conduziram-se para o rio onde
se lhes deu banho; trazidos depois á floresta, foram presos ás arvores,
ficando cada um entregue a um guarda encarregado de lhe dar de comer.
<(0 elephante não é diíficil de domar. Ao fim de três dias começa a
comer com appetite, e dá-se-lhe então para companheiro um elephante
domestico. Dois homens acariciam-lhe o dorso e fallam-lhe com bondade.
A principio enfurece-se e dá com a tromba para todos os lados; mas os
homens aparam-lhe a pancada na ponta de chuços até que a tromba seja
ferida de modo que o animal renuncie a empregal-a como arma offensiva
e aprenda a reconhecer a superioridade do homem. Os elephantes do-
mésticos auxiliam-nos grandemente na tarefa de educar o recempreso.
Ao fim de trez semanas basta mostrar-lhe o chuço com que tem sido cas-
tigado para o conduzir ao banho. As dimensões do animal parece que
não influem sobre o tempo preciso para o educar; os machos resistem
mais aos processos educativos do que as fêmeas. Os que se insubordi-
nam mais ao principio são precisamente os que melhor e com mais faci-
lidade se domam e que de ordinário se conservam mais submissos e
obedientes.
<(Ao fim de dois mezes, termo médio, a presença dos elephantes
domésticos torna-se inútil e o cornaca pode sem receio montar o ani-
mal; ao fim de quatro mezes pode-se submetter o animal ao trabalho, o
que é preciso nunca fazer antes, porque mais de uma vez se tem visto
elephantes, aliás fortes, caírem mortos quando pela primeira vez se car-
regam. ((Parte-se-lhes o coração», dizem os indígenas; nós ignoramos a
causa d'este facto singular.» *
Vid. Brehm, Obr. oit., vol. 2.o, pg. 717 e segaintes.
206 mSTORIA NATURAL
CAPTIVEIRO
O elephante captivo é um animal obediente c que á ordem do ho-
mem cliega a Leber os mais horriveis medicamenlos que os alveitares
llie propinam e se submette resignadamente ás mais dolorosas ^opera-
ções cirúrgicas. A voz do conductor habitual é suíficiente para o guiar
por toda a parte.
Quando é preciso submetter conjunctamente dois elephantes a um
mesmo trabalho, o guia consegue harmonisar-lhes os movimentos por
meio de um canto particular.
Quando se utilisa o elephante como besta de carga, é preciso tra-
tal-o com muita doçura e com muito cuidado, por que a pelle doeste pa-
chyderme é extremamente sensível, fere-se com faciUdade e são terrí-
veis e muito duradouras as suppurações consecutivas.
Houve um tempo em que na Europa eram muito vulgares os ele-
phantes da Africa; hoje são raríssimos. Os que mais se encontram são
da Ásia. Isto provém de que actualmente a caça dos elephantes na Africa
se faz de ordinário com armas de fogo, não se apanhando estes animaes
vivos, ao passo que na Ásia persistem as caçadas que descrevemos, ci-
tando as palavras de testemunha presencial.
usos E PRODUGTOS
Os elephantes prestaram n'outro tempo ao homem serviços que já
hoje não prestam, porque se lhes não exigem. Estão n'este caso os ser-
viços de guerra outr'ora tão importantes e hoje nullos.
Em geral os elephantes empregam-se na caça, nas cerimonias reli-
giosas dos templos da Ásia, e ainda, as mais das vezes em trabalhos
grosseiros, pezados, como o transporte de materiaes. Desempenham sem-
pre as tarefas que lhes incumbem, com intelligencia, com cuidado, sem
ser necessário que o cornaca os excite ao trabalho. Hoje porém os ele-
phantes são pouco procurados como auxiUares do trabalho do homem;
são sobretudo perseguidos e mortos, como dissemos já, por causa do
marfim dos dentes incisivos superiores, ou defezas.
mamíferos em especial 207
Tempo houve em que os príncipes afrícanos cercavam os seus pa-
lácios com verdadeiras sebes de dentes d'elephanles; lioje porém essas
muralhas preciosas tornaram-se raras, porque o marfim é principalmente
mandado para a Europa onde tem um largo consumo.
A maior parte do marfim que existe no commercio provém da
Africa; a Sibéria fornece também, mas em menor quantidade, o marfim
fóssil, de que já falíamos. A Ásia exporta uma pequena quantidade.
OS TAPIROS
Esta familia comprehende um género único e trez espécies, cujos
indivíduos se distinguem por dimensões relativamente pequenas e um
corpo bem proporcionado. Teem a cabeça comprida e estreita, o pescoço
fino, a cauda rudimentar e os membros vigorosos e de comprimento mé-
dio. As orelhas são levantadas, curtas e muito largas e os olhos peque-
nos e obhquos; o lábio superior é um pouco prolongado em forma de
tromba. A pelle é espessa e lisa, sem escamas nem pregas profundas,
como nos outros pachydermes se encontram. Os pellos são curtos e es-
pessos.
Os tapiros teem quarenta e dois dentes: trez pares de incisivos e
um par de caninos em cada maxilla, sete pares de mollares na maxilla
superior e seis na inferior. O esqueleto é semelhante ao dos outros pa-
chydermes, diíTerindo apenas pela conformação menos pezada dos ossos.
Teem vinte vértebras dorsaes, quatro lombares, sete sagradas e doze
caudaes. A caixa thoracica é constituída por oito pares de costelias; tem
ainda mais doze falsas costelias. A região facial é mais extensa que a re-
gião craneana, que é muito reduzida. Os ossos nasaes são muito sahen-
tes, as arcadas zygomaticas fortemente recurvadas para baixo e para
diante, as orbitas muito grandes e as fossas temporacs muito profundas.
208 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIIGA
O género unico da família abrange Irez espécies, das quaes uma é
conhecida ha muito tempo e as outras ha poucos annos. Duas das espé-
cies habitam a America e a terceira a Ásia. Uma das espécies só desde
1830 é conhecida como tal; até ahi era considerada uma simples varie-
dade do tapiro americano.
O TAPIRO ASIÁTICO OU DE DORSO BRANCO
É o maior de todos os animaes da famiUa. Differe dos seus congé-
neres principalmente em ter a face mais estreita, a cabeça mais arre-
dondada, a tromba mais forte e mais comprida, os membros mais vigo-
rosos e a pelle branca n'uma parte da sua extensão. Segundo Brehm, a
estructura da tromba é também característica, porque ao passo que a do
tapiro americano procede evidentemente do nariz e é arredondada ou
tubulada, a da espécie asiática constituo uma continuação insensível da
parte superior do focinho e, como a do elephante, é arredondada supe-
riormente e plana na face inferior; além d'isso ella termina por um pro-
longamento digitiforme bem saliente, o que é mais um ponto de seme-
lhança com a tromba do elephante.
A cor do tapiro asiático é muito especial: a tinta fundamental é o
negro; no entanto o dorso é branco e alguns pontos do corpo são acin-
zentados. O negro e- o branco do manto formam um contraste que des-
perta a attenção.
Brehm que possuía uma fêmea viva, animal tão raro nas collecções,
dá-nos as seguintes dimensões, colhidas por elle no seu exemplar:
dois metros e quarenta centímetros de comprido desde a extremidade da
tromba (estando esta contraída) até á extremidade da cauda; setenta e
oito centímetros de comprimento da cabeça, medida desde a ponta da
mamíferos em especial 209
tromba até atraz das orelhas; seis centimelros de extensão para a tromba,
quando contraída e quinze, quando alongada; sete centimetros de exten-
são para a cauda; emfim, noventa e sete centimetros de altura ao nivel
da espádua e cento e dois ao nivel do sacro.
costumes
Os hábitos de vida do tapiro asiático em liberdade são inteiramente
desconhecidos e as observações dos seus costumes em captiveiro insuf-
ficientissimas. Já não acontece o mesmo em relação ao tapiro americano,
cujos costumes estão hoje minuciosamente descriptos em muitos livros.
O TAPIRO OU ANTA D'AMERICA
Esta espécie é conhecida ha muito mais tempo que qualquer das
outras do mesmo género. Pouco depois da descoberta do novo-mundo,
faltaram os viajantes d'este animal embora de um modo extremamente
incorreto. A primeira descripção exacta do tapiro americano data do sé-
culo XVIII. A essa descripção, feita por Marcgrav de Liebstadt, juntaram
naturalistas posteriores observações e minuciosidades notáveis, de sorte
que a espécie é hoje uma das mais bem conhecidas entre todas as da
ordem dos pachydermes.
U
210 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
Estabelecendo anteriormente as diíferenças capitães entre o tapiro
asiático e o da America, dissemos uma parte dos caracteres d'este ul-
timo animal. Pouco nos resta acrescentar.
O tapiro americano é coberto por um pêllo muito uniforme, prolon-
gado apenas sobre a nuca em forma de uma crina curta e áspera. A cor
geral e dominante é um pardo escuro. Os lados da cabeça, o pescoço e
o peito são um pouco mais claros; os pés, a cauda e a linha media do
dorso e da cabeça são bastante escuros e as orelhas apresentam uma
cercadura de um pardo muito claro. Encontram-se também exemplares
amarellados, completamente pardos e cobreados ou trigueiros. Nos indi-
vidues muito novos só o dorso é escuro; a face superior da cabeça é
coberta de manchas brancas, arredondadas e de cada lado do corpo en-
contram-se quatro ordens ou series não interrompidas de pontos claros
que se prolongam pelos membros. Á medida que o animal cresce, estas
manchas alongam-se primeiro e acabam ao fim de dois annos por desap-
parecer completamente. Segundo Tschudi, este tapiro pode attingir dois
metros de comprimento e um de altura. Um facto curioso: n'esta espé-
cie a fêmea é maior que o macho.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Esta espécie encontra-se n'uma grande parte da America do Sul,
desde o isthmo de Panamá até perto de Buenos-Ayres e desde o Oceano
Atlântico até ao Oceano Pacifico. É muito vulgar no Brazil.
mamíferos em especial 211
COSTUMES
o tapiro ou anta da America pertence ao numero dos animaes que
evitam cautelosamente os legares descobertos e vivem de preferencia
nas florestas.
«Abre atravez dos mattos, diz Brehm, veredas que difficilmente se
distinguem das praticadas pelos indígenas; um viajante inexperiente pode
bem ser tentado a seguil-as. Desgraçado porém, se tal fizer! Poderá ca-
minhar dias e semanas sem encontrar uma choça, uma cre atura humana
e ainda deverá considerar-se feliz se não morrer á fome e á sede pelo
caminho. Os tapiros percorrem estes caminhos em quanto se não sentem
perseguidos; mas, se presentem algum perigo, precipitam-se na parte
mais espessa da floresta, derrubando quantos obstáculos se lhes oppo-
nham á passagem.» *
Os tapiros são animaes nocturnos. Tschudi affirma ter percorrido du-
rante muitos mezes florestas virgens habitadas por milhares d'estes ani-
maes, sem nunca ter visto um único durante o dia. Parece que durante
as horas de sol se escondem nos legares mais espessos da floresta, os
mais sombrios e os que ficam perto de pântanos onde gostam de se es-
pojar. O príncipe de Wied aífirma-nos que nas florestas mais sombrias e
completamente inexploradas onde sabem que ninguém irá perturbal-os,
os tapiros americanos vagueiam mesmo durante o dia. Brehm acceita
esta aflirmação e diz que lhe parece encontrar uma confirmação d'ella no
facto de passearem os tapiros captivos durante o dia nos cerrados em
que vivem. Verdade é, acrescenta o naturahsta allemão, que elles evi-
tam os raios do sol, procurando a sombra para fugirem ao calor ou tal-
vez mais ainda aos insectos que os atormentam.
Diz o príncipe de Wied que os tapiros para evitarem as picaduras
dos insectos se espojam na vasa, cobrindo-se assim de uma forte porção
de terra que lhes adhere á pelle, constituindo uma verdadeira couraça.
Tschudi é mesmo de opinião que as variedades de cor que se notam
n'estes pachydermes não teem outra origem: são devidas á maior ou me-
nor porção de terra que lhes cobre a pelle.
Brehm, Obr. ciL, vol. 2.", pg. 730.
212 HISTORIA NATURAL
Como animaes nocturnos, os lapiros da America saem somente ao
fim da tarde em busca do alimento e vagueiam toda a noite, no que fa-
zem lembrar o javali.
Os tapiros da America não são sociáveis; não se reúnem em grandes
bandos, antes vivem, como o rhinoceronte, solitários. O macho só no
tempo do cio se junta á fêmea. É tão raro encontrar famílias de tapiros
que, se acaso deparamos com mais de trcz d'estes pachydermes junctos,
podemos estar certos de que foi uma pastagem abundantíssima que os
attrahiu simultaneamente e sem que uns soubessem dos outros. A agua
pode dar o mesmo resultado: ás vezes á beira de uma corrente encon-
tram-se muitos tapiros junctos, sem que a reunião se explique por mo-
tivos de sociabilidade, mas de precisão de satisfazer necessidades idên-
ticas.
Nos modos, nos movimentos os tapiros da America recordam os por-
cos. Teem a marcha lenta e prudente; caminham com a cabeça muito
perto do chão, agitando continuamente a tromba que fareja para a direita
e para a esquerda e mexendo sem cessar as orelhas. Ao menor indicio
de perigo param um instante agitando febrilmente as orelhas e a tromba
e depois fogem em linha recta sempre, atravez dos mattos, dos pântanos,
dos cursos d'agua. Por mais rápida que seja a marcha d'estes animaes,
um bom cão apanha-os dentro de pouco tempo.
Os tapiros americanos são bons nadadores e mergulhadores; attra-
vessam rios de uma grande largura e teem o poder de caminhar pelo
fundo d'agua como o hippopotamo. É o que se tem visto em animaes ca-
ptivos.
Relativamente aos sentidos, não pode dizer-se que os tapiros da Ame-
rica sejam mal dotados, porque, se a vista não é boa, como a pequenez
dos olhos mesmo indica, o ouvido, o olfato e o tacto são desenvolvidos.
O órgão d'este ultimo é a tromba. A sensibilidade geral é também grande,
como o prova não só o receio do sol e dos insectos, mas ainda o vivo
prazer que sentem quando se lhes coça a pelle.
A voz dos tapiros é um assobio agudo, particularíssimo que, segundo
Azara não está de modo algum em relação com as dimensões d 'estes ani-
maes. Este naturalista pensa que os tapiros só se fazem ouvir na epocha
do cio; Schomburgk, pelo seu lado, aíTirma que só os tapiros muito no-
vos assobiam. Segundo Brehm nenhuma d'estas opiniões é exacta; por-
que, diz este naturahsta, que os tapiros tanto americanos como asiáticos,
que possuiu em captiveíro, assobiavam em todas as idades e em todas
as epochas.
Todos os tapiros são animaes tímidos e socegados que só em casos
extremos fazem uso das suas armas. Fogem diante de todos os inimigos,
mesmo de um cãosito. O homem, cujo poder por experiência conhece,
mamíferos em especial 213
inspira-lhe um grande terror. Perto das plantações são mais prudentes e
mais desconfiados do que nas florestas onde os não perturbam.
Ha casos porém em que os tapiros se defendem com extraordinária
coragem e se precipitam sobre o inimigo com fúria, procurando atiral-o
a terra e servindo-se contra elle dos dentes, como faz o javali. É assim
que a fêmea defende os filhos quando os vê ameaçados pelos caçadores ;
expõe a vida então, esquece toda a prudência, perde toda a timidez.
De ordinário os tapiros da America alimentam-se de plantas, princi-
palmente de folhas d'arvores. No Brazil preferem as folhas novas e tenras
das palmeiras; quando ás vezes penetram nos campos cultivados, mani-
festam um gosto extraordinário pelas cannas de assucar, pelos melões e
outros fructos. Nas grandes florestas alimentam-se ás vezes durante mui-
tos mezes consecutivos de fructos que caem das arvores e, nos pânta-
nos, de plantas aquáticas. Gostam muito de sal e é por isso que nas re-
giões baixas do Paraguay onde o solo contem sulphato de soda ou clo-
roreto de sódio, se encontram os tapiros em grande numero; ahi vivem
lambendo a terra impregnada de saes.
O cio realisa-se antes da estação das chuvas. Quatro mezes depois
do coito a fêmea pare um filho que apresenta maculas e listras como as
dos javalis; aos quatro mezes estas manchas principiam a desapparecer
e aos seis o novo animal apresenta o mesmo manto que os pães.
CAÇA
Para obter a pelle e a carne dos tapiros faz-se-lhes uma caça per-
tinaz. Os processos empregados variam muito. Umas vezes utihsam-se
os cães que espantam os tapiros e os forçam a sair para fora da flo-
resta, dando assim logar a que se lhes atire melhor; outras vezes espe-
ram-se de embuscada n'algum dos legares por que costumam passar, fa-
zendo-se fogo sobre elles a uma pequena distancia. Também é d'uso no
Brazil surprehender estes animaes de noite ou de madrugada quando na-
dam nos grandes cursos d'aguas; os caçadores embarcam em pequenas
canoas que dirigem a remo na direcção dos nadadores; estes, sentindo-se
perseguidos, mergulham e os caçadores esperam a occasião de elles vi-
rem á superfície respirar para então fazerem fogo. Ora, como em vez de
bala se emprega o chumbo, acontece que este processo de caça é mo-
roso e que os tapiros resistem ás vezes por muito tempo ao fogo. Os in-
dígenas empregam também, em vez de espingardas, as frechas.
214 HISTORIA NATURAL
CAPTIVEIRO
Os tapiros teem uma apparencia cie grande estupidez; em realidade
porém, são mais intelligcntes do que seriamos levados a crer pelo as-
pecto exterior. Brehm aílirma que todos os que teem lidado com tapiros
captivos chegam a convencer-se de que estes animaes offerecem um des-
envolvimeuto intelleclual superior ao dos rliinocerontes e dos hippopota-
mos e que lhes permitte rapidamente distinguir as pessoas e reconhecer
entre muitas o guarda. Segundo Rengger poucos dias de- captiveiro são
precisos para que os tapiros quando novos se habituem ao homem e á
casa que elle habita, d'onde não tornarão a sair.
Os tapiros em captiveiro mudam muito os seus hábitos de vida:
principiam a dormir durante a noite e habituam-se á alimentação do ho-
mem. De resto, são animaes dóceis e que vivem n'uma inalterável har-
monia com os outros animaes, companheiros de prisão. O que lhes fica
sempre, como residuo dos tempos hvres, é uma grande preguiça e uma
necessidade imperiosa d'agua, em que se banham por largo tempo e com
verdadeira voluptuosidade todos os dias. Sendo bem cuidados e collo-
cando-os no inverno n'um logar quente, ao abrigo das intempéries, po-
dem supportar por muito tempo a perda de liberdade.
Não se tem até hoje conseguido fazer reproduzir os tapiros em ca-
ptiveiro.
usos E PRODUGTOS
A pelle do tapiro americano é muito estimada por causa da resistên-
cia e da espessura que oíTerece. Tanificada e partida em tiras serve para
chicotes e cordas de arcos de frechas.
Os orientaes com a pelle dos tapiros da Ásia fazem coberturas e col-
chões. EUes crêem geralmente que esta pelle não só preserva da humi-
dade, mas ainda dos mãos ares. Estes mesmos povos attribuem ainda ás
unhas e aos pêUos do tapiro virtudes medicamentosas. Os cascos são
aproveitados para castanhetas.
mamíferos em especial
215
O TAPIRO VELLOSO
A descoberta d'esta espécie pertence a Hernandez; no entanto, pos-
teriormente, em 1829 Roulin no seu livro Historia Natural e Recordações
de Viagem descreveu-a como nova.
caracteres
o tapiro velloso deve o nome por que é conhecido ao pêllo abun-
dante que lhe cobre o corpo. A cor geral é um trigueiro escuro; mas a
metade do lábio superior, o bordo do inferior e o mento são brancos e
as orelhas apresentam uma orla ou cercadura clara. Aos lados do sacro
existe uma pequena mancha amarella. O tronco e o pescoço são cylin-
dricos. O animal tem um metro e oitenta centímetros de comprimento e
noventa de altura.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A área de disperção geographica do tapiro velloso não está deter-
minada. Sabe-se porém que este animal não é raro no Peru a uma alti-
tude de dois mil e trezentos a dois mil e seiscentos metros. Ahi o matam
os indígenas que lhe chamam vulgarmente vaca dos montes.
216 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Nada se sabe ao cerlo dos hábitos de vida do tapiro velloso; alguns
auctores, fundados sobre as analogias que tem com o tapiro americano,
crcem que os costumes devem ser os mesmos.
OS HYRACES
«Nas montanhas desertas e pedregosas da Africa e da Ásia desco-
bre-se em certos pontos uma população animada. Mamíferos do tamanho
de coelhos aquecem-se ao sol sobre os rochedos. A apparipão do homem
espanta-os; e então, soltando um grito como o do macaco, deshsam ra-
pidamente ao longo das pedras, escondem-se em buracos e d'ahi obser-
vam curiosos e inofensivos, essa extraordinária apparição. São os hyra-
ces, também chamados teixugos ou baixotes dos moiiteSy os mais peque-
nos exemplares dos pachydermes ainda vivos.» * Assim principia Brehm
a descripção d'estes animaes tão pequenos que á primeira vista ninguém
os diria representantes de uma classe que abrange os elephantes e os
rhinocerontes.
1 Brehm, Ohr. cit, vol. 2.°, pg. 735.
mamíferos em especial
217
CARACTERES
A classificação dos liyraces foi por muito tempo um problema obs-
curo, uma questão agitada. Estes animaes, mal conhecidos ao principio
nos seus caracteres essenciaes, foram alternativamente incluídos na or-
dem dos roedores e na dos marsupiaes. Tanto basta para que nos con-
vençamos de que não havia sobre elles um estudo sério. Foi Guvier quem
detidamente os estudou, incluindo-os definitivamente na ordem dos pachy-
dermes.
As indecisões taxonomicas a propósito dos hyraces comprehendem-se
perfeitamente, justificam-se quasi. Elles são indubitavelmente pachyder-
mes. Mas quem havia de acreditar, antes de um minucioso estudo, que
á ordem que em si contem os maiores mamíferos terrestres, os gigantes
da creação, como os elephantes, os hippopotamos, os rhinocerontes, per-
tenceriam animaes da grandeza de um coelho, de pêllo molle e fino, de
lábio superior fendido e tendo por habito deshsar pelos rochedos como
ura lagarto? Para os naturahstas se convencerem de que essa incorpora-
ção dos hyraces na ordem dos pachydermes é legitima, era preciso que
elles conhecessem morphologicamente as espécies extinctas, das quaes
umas possuíam um manto abundante e outras tinham as dimensões mí-
nimas da lebre ou do coelho. Restabelecida, ao menos em parte, a serie
dos pachydermes pela descoberta dos fosseis, a opinião de Guvier foi
acceite pelos zoologistas.
O manto dos hyraces é formado por duas ordens de pôllo: um rijo,
sedoso, outro fino, molle. A columna vertebral é formada de dezenove a
vinte e uma vértebras dorsaes, nove lombares, cinco sagradas e dez cau-
daes. Nos membros anteriores os hyraces apresentam cinco dedos, sendo
o pollegar rudimentar e sem unha; nos membros posteriores os dedos
são apenas trez. Quanto á dentição os hyraces apresentam dois incisivos
triangulares, separados por uma lacuna e sete moUares augmentando de
volume de diante para traz.
218 HISTORIA NATURAL
O HYRACE DA ABYSSINIA
A família ou género dos hyraces comprehende muitas espécies que
entre si não apresentam, ao menos sob o ponto de vista dos costumes,
grandes differenpas. Por isso é quasi indiíTerente descrever uma ou outra.
Estudaremos o hyrace da Abyssinia.
CARACTERES
Este animal tem meio metro de comprimento. O péllo é molle e denso;
o dorso é pardo trigueiro e o ventre da mesma cor, mas menos accen-
tuada, mais clara. As orelhas e a cauda desapparecem quasi completa-
mente no meio do péllo. Os olhos são grandes, vivos e de uma expressão
suave. O nariz é nú, negro e conserva-se constantemente húmido. Os de-
dos são curtos, largos, envolvidos, cada um, n'um casco fino, arredon-
dado, não sahente; comtudo o dedo interno dos pés posteriores tem ape-
nas uma unha obhqua e recurva. As variações na cor são muito nume-
rosas. Muitas vezes o ventre é branco amarellado e uma listra branca
estende-se pela parte anterior das espáduas.
COSTUMES
O hyrace da Abyssinia é, como todos ôs congéneres, um habitante
das montanhas, principalmente d'aquenas em que abundam os rochedos.
mamíferos em especial 219
Ahi passa os seus dias; ahi o ve quem passa pelos valles, deitado volu-
ptuosamente ao sol. N'isto diíTere, como o leitor vê, d'outros pachyder-
mes, uns nocturnos, outros, que não o sendo, evitam comtudo cuidado-
samente o sol, a luz directa.
O hyrace da Abyssinia é timido; o mais ligeiro ruido o amedronta.
Ás vezes, todos os individues d'uma grande sociedade fogem assustados
pela presença de um europeu e desapparecem n'um momento. E dizemos
de um europeu, porque realmente elles não temem os indígenas. Na
Abyssinia, com effeito, ninguém, nem mahometanos, nem chistãos, perse-
gue o hyrace ; o animal sabe-o bem por experiência e por isso se appro-
xima das habitações humanas. Os cães e os outros animaes inspiram-lhe
em geral um grande terror; e até as pequeninas aves, uma pega ou uma
andorinha, por exemplo, são motivo suíficiente para o obrigar a fugir.
O peor inimigo da espécie é o leopardo.
O hyrace da Abyssinia não abandona os rochedos, senão forçado;
quando a herva está toda comida e é impossível já encontrar ahmento
nas rochas das montanhas, famihas inteiras de hyraces descem aos valles,
onde passam a viver por algum tempo, tendo o cuidado de deixar sen-
tinellas por todas as elevações próximas; ao menor signal de perigo to-
dos fogem precipitadamente para os rochedos.
O hyrace da Abyssinia é um excellente trepador, o que se expUca
pela conformação especial dos pés, cuja planta* é molle e rugosa; ascende
um plano fortemente inclinado ou até uma parede vertical com a mesma
segurança e agilidade com que o faz um reptil. É também um bom sal-
tador; atira-se de rochedo a rochedo, attravessando de um salto distan-
cias de cinco metros ou mais. N"uma planície porém, a marcha do hyrace
é pezada e lembra a dos grandes pachydemes.
O hyrace da Abyssinia é um animal dócil e extremamente sociável.
Assemelha-se aos seus gigantescos congéneres em comer extraordinaria-
mente. N'um certo movimento de laterahdade que dá á maxiUa inferior
quando mastiga, lembra os ruminantes. Bebe muito pouco ou mesmo, se-
gundo alguns, não bebe. Esta aíTirmação basea-se no facto de habitar ás
vezes o hyrace da Abyssinia montanhas separadas dos cursos d'agua por
vastas planícies que nunca ninguém o viu attravessar. O orvalho que
cobre as hervas é-lhe hquido bastante para occorrer á sede.
Sobre a reproducção d'este animal nada se sabe de positivo; uns af-
firmam que a fêmea pare um grande numero de filhos de cada vez, ou-
tros asseveram que pare um somente. Brehm declara não ter podido
obter a este respeito esclarecimentos dos indígenas.
220 HISTORIA NATURAL
CAÇA
A caça ao hyrace é fácil, principalmente nas regiões cm que não
está habitualmente exposto a perseguições. A caça faz-se por processos
(liíTerentes, consoante se pretende obter o individuo vivo ou morto; em-
pregam-se as armas de fogo e as armadilhas. De resto, a perseguição a
esta espécie é pouco pertinaz, está muito pouco generahsada.
GAPTIVEIRO
Tem-se visto algumas vezes na Europa hyraces captivos. São seres
inoífensivos, extremamente hmpos e que na convivência do homem con-
servam de ordinário a timidez que em liberdade as caracterisa. Dei-
xam-se, é certo, acariciar pelo dono ou por quem lhes dá o alimento,
chegam mesmo a corresponder ao chamamento d'essas pessoas; mas em
face de outras quaesquer amedrontam-se e fogem. O conde Mellin com-
para o hyrace domesticado a um urso que tivesse as dimensões de um
coelho.
usos E PRODUCTOS
A guerra que n'algumas regiões se move ao hyrace, a caça que se
lhe faz é promovida particularmente pelo gosto que teem os indígenas
d'essas regiões pela carne fresca ou secca do animal.
Os habitantes do Cabo faziam e fazem ainda hoje uma massa produ-
zida pelo conjuncto dos excrementos e da urina do hyrace, considerada
e empregada, mesmo na Europa para onde era exportada, como remé-
dio contra as doenças nervosas I
mamíferos em especial
221
OS POKCINOS
As formas exteriores doestes aaimaes são geralmente conhecidas;
não insistiremos na sua descrippão.
Estudemos o esqueleto e alguns órgãos internos de maior impor-
tância.
Na columna vertebral dos porcos ou porcinos encontra-se treze ou
quatorze vértebras dorsaes, cinco ou seis lombares, quatro a seis sagra-
das e nove ou vinte caudaes.
O diaphragma insere-se á decima primeira vértebra dorsal.
As costellas são estreitas e arredondadas. As maxillas apresentam
trez ordens de dentes, como em todos os omnívoros. Os incisivos são em
numero de dois a trez pares; caem geralmente quando o animal enve-
lhece. Os caninos apresentam ás vezes um extraordinário desenvolvi-
mento; são triangulares, fortes, recurvos para cima e os inferiores mais
vigorosos que os superiores. Constituem a mais terrível arma d'estes
animaes. Os moUares são comprimidos, multituberculados e em numero
muito variável.
As glândulas salivares são notavelmente desenvolvidas; o estômago
é arredondado e o intestino dez vezes mais comprido que o corpo.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
Vivem em todos os pontos do globo, exceptuando a Nova-Hollanda.
COSTUMES
Tendo de estudar estes pachydermes em especial, limitar-nos-hemos
aqui a indicações muito ligeiras.
Quando vivem em liberdade, preferem sempre as grandes florestas
222 riiSTOiuA natural
húmidas e as regiões panlaiiosas. Procuram sempre as visinbanças da
agua, porque o seu maior prazer, a sua irresislivel tendência, que nem
mesmo na domesticidade perdem, é espojarem-se na vasa.
São animaes sociáveis; no entanto nunca as suas aggremiações são
muito numerosas.
Teem liabitos geralmente nocturnos, de modo que nos togares em
que se encontram em liberdade, só de noite vagueiam. A corrida é mais
rápida do que naluralmenle se inferiria das formas pezadas, deselegan-
tes que aífectam. Nadam bem, com quanto, de ordinário, não possam
prolongar por muito tempo este exercício.
Dos sentidos, o ouvido e o olfato são os mais desenvolvidos; a vista,
o olfato e o gosto, são muito obtusos. São estúpidos; e a domesticidade
não implica para elles, como toda a gente sabe, um desenvolvimento no-
tável de faculdades.
São timidos; é certo porém que attacados de frente se defendem co-
rajosamente. Se lhes perseguem a fêmea e os filhos, manifestam um arrojo
enorme, usando então dos caninos com tanta destreza como valentia.
São rigorosamente omnívoros e são vorazes. Não podem passar sem
agua.
Entre os mamíferos de grandes proporções distinguem-se pela grande
fecundidade.
CAÇA
Os individues selvagens causam estragos notáveis nos campos culti-
vados e é por isso que se lhes faz uma guerra desapiedada. Da Europa
teem desapparecido quasi completamente.
Não é somente o homem que os persegue; os grandes felinos, nas
regiões do sul, são-lhes inimigos terríveis.
CAPTIVEIRO
Poucos animaes se reduzem ao estado domestico com tanta facilidade
como os porcinos; mas também poucos passam tão rapidamente, desde
que são collocados em liberdade, ao estado selvagem. Tem-se mesmo
^^
p iiu.
1. o Porco -z. O Javatí
LgaJhães & Aíoniz .Editores-
mamíferos em especial
223
observado que os que viveram captivos e readquiriram a liberdade são
mais ferozes e mais corajosos que os propriamente selvagens.
usos E PRODUCTOS
No estado selvagem os estragos que produzem são, indubitavelmente,
superiores á utilidade que d'elles podemos tirar. Em captiveiro porém,
são-nos somente úteis, pelo que se tornaram animaes estimados, quasi
indispensáveis na economia domestica.
A classe dos porcinos está dividida em dois grandes grupos: os
porcos bravos ou javalis e os porcos domésticos.
1 . Os porcos bravos ou javalis
As differentes espécies d'este grupo assemelham-se tanto na confor-
mação e nos costumes, que apenas estudaremos a que segue.
O JAVALI ORDINÁRIO OU JAVARDO
Mede dois metros de extensão, não contando a cauda que tem mais
de trinta centímetros; a altura é de um metro, ao nivel da espádua.
Estes números exprimem apenas approximações, porque o tamanho dos
224 IIISTOIIIA NATURAL
javardos varia segundo as dilTcrentcs regiões que occupam e segundo o
alimento que encontram.
O javali ordinário, considerado por muitos naturalistas o ascen-
dente do porco domestico, assemelha-se muito a este; as diíTerenças
que apresenta e que são insignificantes resumem-se todas em que pos-
sue um maior desenvolvimento e um maior vigor em todas as partes do
organismo do que o porco domestico. A cor do manto, que se compõe
de sedas rijas e de pôllos macios, varia muito: ha indivíduos completa-
menl^ pretos, o que é o caso vulgar, e ha-os também pardos, ruivos,
brancos ou maculados. Na face inferior do pescoço e no baixo-ventre as
sedas são dirigidas para diante; no resto do corpo dirigem para traz e
são mais abundantes sobre o dorso.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O javali ordinário é o único pachyderme da Europa.
Diz Brehm que, com grande alegria dos cultivadores e com grande
magua dos caçadores, o javardo está ameaçado de uma próxima desap-
parição. Outr'ora existiu muito espalhado; hoje porém existe em numero
relativamente pequeno. Na Europa existe somente em alguns pontos, na
Africa vive só ao norte; na Ásia é ainda hoje vulgar. Falta absolutamente
em todos os paizes que ficam ao norte das costas do Báltico, n'uns, por-
que foi destruído, n'outros, porque nunca existiu. Na Allemanha é raro;
é-o menos na Polónia, na Galliza, na Hungria, no sul da Rússia, na Gré-
cia e na Hespanha.
COSTUMES
O javardo procura de preferencia os locaes húmidos e pantanosos,
as florestas e as regiões em que abundam os cannaviaes. Gosta muito de
se espojar na lama e é isto precisamente o que exphca a decidida pre-
ferencia que concede aos legares húmidos, onde faz o seu covil. O ja-
vah é sociável; apenas os velhos machos teem hábitos sohtarios.
No estio penetra muitas vezes nos campos cultivados, em que faz
incalculáveis destroços e d'onde não é fácil obrigal-o a sair.
mamíferos em especial 225
O javali ordinário é omnivoro; tanto lhe servem para alimento os
vegetaes como as carnes dos cadáveres que encontra, quando mesmo
sejam dos seus congéneres. É certo porém que nunca attaca nem aves
nem mamiferos vivos para os devorar.
O javali offerece muitos pontos de contacto ou de analogia com o
porco domestico. Tem, como este, movimentos impetuosos, bruscos, em-
bora deselegantes e pezados. Marcha sempre com a cabeça baixa, com o
focinho perto do solo, farejando em todos os sentidos. Nada muito bem:
a conformação do corpo e a espessa camada subcutânea de tecidqjgor-
duroso permitte-lhe suster-se na agua com extraordinária facilidade, de
modo que um ligeiro movimento de membros é o bastante para que
possa rapidamente avançar.
O javali ordinário é prudente e vigilante, mas não é timido e sabe
bem confiar na própria força, nas armas formidáveis que possue. Ouve
bem e tem um olfato apurado, mas vê mal; se o caçador se conserva
perfeitamente tranquillo e contra o vento é fácil que um javali, não dando
pela presença d'elle, se lhe approxime até uma pequeníssima distancia.
Isto prova a deficiência da vista; os guias únicos do animal são o ouvido
e o olfato. O paladar e o tacto são sentidos obtusos no javaH ordinário.
A intelligencia é muito limitada; menos porém do que teem dito alguns
auctores, dispostos naturalmente a fazer d'este animal o typo da estu-
pidez.
O javali ordinário não é propriamente o que se pode chamar um
animal feroz; não attaca nem o homem, nem os outros animaes quando
a elle o não attacam também. Pode uma pessoa passar-lhe t-ranquilla-
mente por perto, na certeza de que não o irritando, o javali lhe não
fará mal.
Excitado porém, é um inimigo terrível, porque é corajoso e valente.
Quando um homem tem inconsideradamente irritado um javali, para evi-
tar-lhe o attaque precisa de esconder-se por traz de uma arvore ou,
quando o animal arremette, saltar para os lados, aproveitando assim a
diíficuldade com que o javah se volta ou emfim, se estes meios não po-
deram ser empregados, deitar-se ao chão; o javaH, se é um macho, não
fere com os terríveis dentes de cima para baixo, mas só de baixo para
cima.
A fêmea encolerisa-se mais difficilmente do que o macho, mas não
é menos corajosa do que elle; diante da fêmea não vale ao homem o re-
curso de atirar-se ao chão.
Os dentes do javali são armas terríveis. Apparecem aos dois annos
e aos trez os da maxilla inferior atlingem um grande desenvolvimento,
dirigindo-se para cima e recurvando-se ligeiramente; os superiores re-
curvam-se também para cima, separando-se da maxilla, mas não chegam
VOL. III 15
226 IllSTOlUA NATUllAL
a ler metade da extensão dos inferiores. Os dentes são muito brancos e
ponteagudos. Quanto mais velho é o animal, mais pronunciada é a cur-
vatura e mais fortes e compridos são os dentes. Os ferimentos produzi-
dos por estas armas são perigosíssimos.
Os javalis grandes, quando se encolerisam, chegam a attacar ani-
maes muito mais maiores do que elles, por exemplo um cavallo a que
podem rasgar o peito e o ventre.
Nos casos de risco os javalis prestam-se mutuo auxilio. A mãe de-
íení^n sempre com coragem os fdhos ameaçados por um perigo.
A voz do javali ordinário é perfeitamente semelhante á do porco
domestico. Quando caminha faz ouvir, como este, um grunhido constante.
As fêmeas e filhos, quando os ferem, soltam gritos de dor. O macho
adulto, pelo contrario, conserva-se silencioso qualquer que seja o feri-
mento de que o tenham tornado victima.
A quadra do cio começa no fim de Novembro e dura quatro, cinco
e, ás vezes, seis semanas. As fêmeas de origem selvagem não entram
em cio mais que uma vez cada anno; mas as que provêem de porcos
domésticos que se tornaram selvagens, que readquiriram a liberdade,
essas entram em cio e parem duas vezes por anno. É esta a opinião ge-
ralmente recebida. Os filhos encontram-se aptos para a reproducção ao
fim de dezoito ou dezenove mezes. Quando a epocha da excitação gené-
sica se approxima, os machos solitários reunem-se aos bandos e, repel-
lindo os machos mais fracos, assenhoream-se das fêmeas. Quando se en-
contram machos de força egual, ferem-se luctas horríveis e prolongadas.
A gestação dura de ordinário dezoito a vinte semanas. A fêmea ainda
nova pare quatro a seis filhos, a velha onze a doze. Antes do parto a
fêmea tem tido o cuidado instinctivo de preparar n'um logar solitário
uma espécie de ninho alcatifado de musgo e folhas, onde posteriormente
se conserva com a prole durante meio mez. Terminado este prazo, a fê-
mea sae, levando comsigo os filhos. Ás vezes encontram-se muitas fêmeas
com a prole; então reunem-se e guardam em commum os filhos. Brehm
affirma que se morre alguma d'ellas, as outras tomam sobre si a creação
dos orphãos.
Os javalis pequenos teem tanto de vivos e de interessantes como
os pães de pezados e de preguiçosos; passam a noite inteira brincando,
agitando-se, fazendo ruido, congregando-se ou dispersando-se alternati-
vamente e correndo atraz das mães, forçando-as a pararem para lhes
dar leite. De dia mesmo, não conservam por muito tempo a immobili-
dade.
Avalia-se em trinta annos a idade máxima que o javaH ordinário
pode attingir.
mamíferos em especial 227
INIMIGOS
O lobo, o lynce e todos os grandes felinos são inimigos irreconciliá-
veis do javali; a rapoza consegue também pela astúcia apoderar-se, uma
ou outra vez, de algum recemnascido.
O gelo que ás vezes chega a cobrir inteiramente os pastos e que
produz assim, indirectamente, a morte de um grande numero de indivi-
dues, merece ser contado entre os inimigos do javali.
CAÇA
De todos os inimigos da espécie o mais perigoso e o mais terrível é
sem duvida o homem, porque a capa do javaU foi sempre e é ainda hoje
tentada com prazer.
Os processos de perseguição ao javah ordinário teem variado con-
sideravelmente com o decorrer dos tempos. Antes da descoberta das ar-
mas de fogo, a capa não era, como hoje, um exercício em que o homem
pouco se arrisca; era sim um verdadeiro combate em que toda a agili-
dade e toda a coragem eram poucas para sair triumphante. Houve tempo
em que o homem partia para a caça do javali armado exclusivamente de
uma faca e de uma vara extensa, terminada em lamina de ferro de dois
gumes e munida de um gancho. Procurava-se o javah, provocava-se e de-
pois, sustendo a vara solidamente com uma das mãos contra o corpo e
dando-lhe direcção com a outra, fazia-se face ao animal em cólera, espe-
rava-se que elle arremettesse. Então dirigia-se a arma que acabamos de
descrever contra o javali, de modo que o ferisse acima do esterno e lhe
vazasse o corapão. Também se empregava muitas vezes uma faca ape-
nas. O capador diante do javali collocava em terra o joelho esquerdo c
firmava sobre o direito o punho da faca que mantinha sohdamente na
mão; o javah precipitava-se contra o capador e encontrava a morte no
fio cortante da arma branca. Gomprehende-se bem quanta coragem,
quanta presenpa de espirito e quanta agihdade eram precisas para obter
a victoria n'estas luctas face a face, em que o menor dcsíaUccimento, o
mais hgeiro descuido podiam decidir da vida do capador.
228 HISTORIA NATURAL
Os beduínos do Saliara caçam o javali a cavallo e armados de lan-
ças. Ás vezes ferem apenas o animal que se precipita sobre elles; esca-
pam á vindicta do pachyderme, graças ao galope do cavallo, e logo de-
pois voltam ao attaque até que tenham conseguido matar o javali.
Actualmente a arma de fogo representa o principal papel na caça
do javali, como de resto na da maior parte dos animaes. Os perigos di-
minuem por este processo até ao ponto de quasi desapparecerem. Como
L. Figuier observa, n'este género de caça os cães prestam grandes ser-
viços, não só porque descobrem os javalis e pelos latidos annunciam
a sua presença ao caçador, mas ainda porque seguem os que fogem
feridos denunciando o logar em que foram expirar.
GAPTIVEIRO
AíTirma Figuier que o javali, apanhado quando novo, é susceptível
de uma certa domesticação; chega a reconhecer o dono e a seguil-o.
usos E PRODUGTOS
A carne do javali é muito estimada; a dos recemnascidos, sobre-
tudo, é excellente. Os mahometanos, que teem a carne d'este animal na
conta de impura, não a comem, mas vendem-a por altos preços.
A pelle e as sedas do javah teem também applicações á industria.
É de observar todavia que a utiUdade do javah está muito longe de
compensar os estragos que produz.
mamíferos em especial 229
O JAVALI DO JAPÃO
Differe do javali ordinário apenas nas dimensões e na cor. Tem o
tronco curto, a cabeça alongada e as orelhas pequenas e muito cobertas
de pôllo. O corpo é em geral de um trigueiro escuro; o ventre é branco.
Dos ângulos da bocca parte ao longo das faces uma estria clara.
O JAVALI DA índia
Esta espécie é mais pequena que o nosso porco domestico. O tronco
é coberto de sedas pouco abundantes, muito disseminadas; o ventre e
um grande espaço que fica por traz das orelhas são mis. Os pêllos da
parte posterior das faces constituem uma espécie de barba e os da fronte
e da nuca simulam uma crina. Os péllos são em geral negros com a
ponta de um trigueiro amarellado, o que dá ao manto do animal a cor
trigueira amarellada com manchas negras. Os pés e o focinho são tri-
gueiros claros; o ventre é de um branco pardacento.
O JAVALI DO PA PUS
É esta a espécie mais elegante de todas. Tem um metro de compri-
mento e meio de altura. A face e o ventre são quasi nUs. Os péllos são
230 HISTORIA NATURAL
finos e pouco abundantes. O focinho é negro e o dorso negro e ruivo;
os membros são de um trigueiro accentuado, as faces, a região inferior
do pescoço e o ventre brancos. Os olhos oíTerecem uma cercadura negra.
O macho não apresenta os dentes desenvolvidos que n'outras espé-
cies constituem verdadeiras defezas.
As trez ultimas espécies que acabamos de enumerar vivem na Ásia
tanto em estado perfeitamente selvagem como em captiveiro.
O JAVALI DE ORELHAS EM FORMA DE PINCEL
Como o nome indica, o que ha de característico n'esta espécie é a
forma especial das orelhas que são compridas, aguçadas para a parte
superior e terminadas por pêllos compridos e rijos como de pincel. Este
animal é mais pequeno que o javali ordinário. O dorso é coberto de pál-
ios finos e eguaes; os do ventre e das partes lateraes do corpo são com-
pridos e um pouco crespos. Os membros são quasi mis. O dorso é ruivo
e amarello; o focinho, os membros e a cauda são pardos escuros. Os
péllos terminaes das orelhas são brancos e os olhos apresentam um cir-
culo amarellado.
mamíferos em especial 231
O JAVALI DOS BOSQUES
As dimensões cVesta espécie são as da anterior. Os péllos que co-
brem o corpo d'este animal são muito eguaes em geral; os das faces
constituem uma barba forte e os da nuca uma verdadeira crina. A cor
geral é um pardo trigueiro cora reflexos ruivos; a barba e a crina são
de um pardo esbranquiçado e as orelhas e patas de um trigueiro escuro.
Os olhos são orlados de negro.
As duas ultimas espécies de que falíamos e que são ainda hoje pouco
conhecidas, habitam o sul da Africa.
2. Porcos domésticos
Os porcos domésticos consideram-se como derivados das espécies
selvagens que acabamos de enumerar. De uma só ou de todas? Do ja-
vali ordinário apenas, ou das espécies asiáticas e africanas? Eis o que
se não sabe precisamente.
Actualmente os porcos domésticos existem espalhados por uma enorme
superfície da terra. Ao Norte estendera-se tão longe como a agricultura;
ao Sul vivem de ordinário em pleno campo. Dão-se bem nos togares pan-
tanosos. Degeneram um pouco nas montanhas, tornando-se-lhes o corpo
mais refeito, a cabeça mais curta e menos ponteaguda, a região frontal
mais larga, o pescoço menos extenso e mais espesso, a parte posterior
do dorso mais arredondada e as patas mais fortes; a producção da gor-
dura e a fecundidade diminuem, tornando-se porém a carne mais tenra
e mais delicada.
O clima, a natureza do solo e os cruzamentos influem na cor. Assim
232 ilISTOIlIA NATURAL
é que em Portugal e Ilcspanha são vulgarissimos os porcos negros, ao
passo que nos paizes do Norte são muito raros.
São communs n'estes pachydermes os vicios de conformarão, prin-
cipalmente em relação aos cascos, existindo alguns individues que apre-
sentam um único e outros que chegam a apresentar cinco.
GREAÇAO
Griam-se e engordam-se os porcos ou ministrando-lhes alimento nos
curraes ou deixando-os em liberdade procurar aquillo de que preci-
sam. Estes dois processos dão resultados um pouco differentes: pelo pri-
meiro, os animaes engordam mais rapidamente e tornam-se maiores; pelo
segundo, engordam menos, mas tornam-se em compensação mais vigo-
rosos e menos sujeitos a doenças do que os primeiros. O primeiro pro-
cesso é, entre nós seguido em toda a província do Minho; o segundo é
seguido no Alemtejo. Ha ainda um processo mixto que consiste em deixar
livres e errantes os porcos durante o estio e prendel-os nos curraes du-
rante o inverno; entre nós este processo não é seguido.
Acredita-se geralmente que a immundicie é indispensável á prospe-
ridade do gado suino. Brehm insurge-se contra esta idéa a que chama
um preconceito. Affirma o eminente naturalista que experiências recentes
demonstraram que o porco mantido em limpeza prospera muito mais que
aquelle que se conserva na immundicie repugnante dos curraes. Diz mais
o naturalista allemão que os creadores inteUigentes substituiram já os to-
gares infectos, as pocilgas destinadas até aqui para o gado suino por
porqueiros vastos, arejados e fáceis de lavar, obtendo assim exemplares
mais fortes e mais sadios.
Os porcos domésticos assemelham-se notavelmente nas qualidades
moraes ás espécies selvagens de que descendem. São glutões, desobe-
dientes e não manifestam pelo homem uma grande dedicação.
Esta é a regra geral; ha porém excepções. Brehm cita o caso de um
pequeno porco de raça chineza que seguia o dono á maneira dos cães,
que dava pelo nome, correndo ao chamamento e que dentro de casa se
comportava convenientemente. Este porco estava adestrado n'alguns exer-
cícios; tinham-o encarregado de buscar tortulhos na floresta e desempe-
nhava-se da tarefa com cuidado. Mantinha-se em pé durante alguns mo-
mentos e curvava-se quando se lhe dizia: vem cá, que vaes morrer.
Brehm para provar a intelUgencia de alguns porcos cita ainda ou-
mamíferos em especial 233
Iros casos curiosos. Conta o naturalista que estando doente Luiz xi e
porfiando os vassallos em dissipar-ltie a tristeza, sem o conseguirem, al-
guém se lembrou de um meio que deu o appetecido resultado. Esse al-
guém ensinou alguns bácoros a dançarem ao som de musica, vesliu-os
de moços fidalgos ou coisa parecida, adestrou-os no exercício de fazerem
cumprimentos e exhibiu-os deante do rei. Em face das habilidades cómi-
cas dos pequenos pachydermes, a magestade teve uns accessos hilarian-
tes que encheram de jubilo, naturalmente, os fieis cortezãos.
Tem-se ensinado porcos a puxarem a carros; um aldeão das cerca-
nias de Saint-Alban apparecia muitas vezes nos mercados dentro de ura
carro tirado por quatro porcos. Também se conhecem exemplos de por-
cos que se deixam montar e conduzir pelo cavalleiro. Brehm cita o caso
de um outro aldeão que apostara percorrer no espaço de uma hora
quatro milhas, montado no seu porco e que ganhou a aposta.
Wood conta que na Inglaterra existiu um porco adestrado na caça e
que prestava tantos serviços como o melhor dos cães. Passámos em claro
outros casos que nos não parecem authenticos e segundo os quaes o
porco seria capaz por exemplo, de, tendo collocadas no chão as lettras
do alphabeto e sendo pronunciada uma palavra, procurar as lettras con-
venientes e dispol-as por ordem de maneira a formar o vocábulo que se
proferiu.
Um facto muito curioso e que geralmente se aponta é o do horror
dos porcos pelos cães. «Selvagens ou domésticos, diz Brehm, os porcos
não fazem escrúpulo algum de comer as carnes dos cadáveres; comtudo
nenhum se atreve a tocar na carne de um cão morto.» * Lenz escreve
também: «No porqueiro de Gobourg lançam-se muitas vezes aos animaes
cavallos mortos que eUes devoram com avidez; mas se se lhes atira um
cão, nenhum lhe toca.» ^
Os porcos domésticos são animaes omnívoros; tanto lhes convém a
aUmentação animal ou vegetal, como a mixta. Tudo o que o homem
come podem elles comel-o com aproveitamento.
Aos porcos que se destinam á matança e que é preciso engordar
convém impedir-lhes os movimentos ou pelo menos restringil-os, cir-
cumscrevendo estes animaes em curtos espaços; aos que se utihsam na
reproducção é preciso, pelo contrario, dar espaço largo, é indispensável
conceder-lhes que se exercitem.
O coito reahsa-se duas vezes por anno: em Abril e em Setembro.
A gestação dura dezeseis a dezoito semanas ou cento e quinze a cento e
1 Brohm, Obr. dt., vol. 2.", pg. 780.
2 Citado por Brcliin, ibid.
2M HISTORIA NATURAL
dezoito dias; o parto produz um numero muito variável de filhos, lia
fêmeas que chegam excepcionalmente a parir vinte ou vinte e quatro fi-
lhos; os casos mais vulgares são de quatro a seis. Não são communs,
mas não pode dizer-se também que sejam extremamente raros os partos
que produzem doze a quinze indivíduos. De ordinário, as primiparas dão
menos fdlios que as multíparas, o que também se realisa nas espécies
selvagens. Muitas vezes, quando a progenitura é extremamente nume-
rosa, a fêmea mata alguns filhos, esmaga-os e devora-os. Fêmeas ha que
é preciso vigiar cuidadosamente e privar de alimentos animaes antes do
parto. Os filhos deixam-se mamar por espaço de quatro semanas, depois
do que se afTastam da mãe; principia-se a dar-lhes então uma alimenta-
ção solida, pouco abundante. Crescem rapidamente; aos oito mezes estão
aptos para se reproduzirem.
O nome de porco dá-se indifíerentemente, de ordinário, ao indivi-
duo castrado ou não castrado; este ultimo tem comtudo para os crea-
dores os nomes especiaes de marrão ou varrasco.
usos E PRODUGTOS
o porco é um animal mais útil depois de morto do que em vida;
sabem todos que famosa carne elle nos fornece, conhecem todos as múl-
tiplas apphcações da gordura que lhe extraímos. É certo porém, que
mesmo em vida o porco tem uma certa utilidade : penetrando nas terras
de pousio, revolve-as e cata-as completamente de todos os pequenos roe-
dores, de todos os vermes, collocando-as assim nas melhores condições
de cultura.
OS PHACOCHEROS
Na Africa existem uns representantes monstruosos da família dos
porcinos ou suidios: são os phacocheros.
mamíferos em especial 235
CARACTERES
Estes pachydermes são muito mais altos que os porcos domésticos e
os javalis; as pernas são relativamente compridas. A cabeça é horrivel.
Os olhos e as orelíias são pequenos. O focinho é largo e a face coberta
de verrugas cutâneas espessas. Os dentes caninos da maxilla superiores
são muito grandes, voltados para cima e recurvos para dentro e para
diante; os da maxilla inferior são muito mais curtos mas teem precisa-
mente a mesma direcção que os outros.
Gonhecem-se duas espécies d'este género.
O PHACOCHERO OU JAVALI ENGALLA DE ANGOLA
É indubitavelmente o mais feio representante dos suidios. Tem o
pescoço curto, grosso, o dorso largo, as patas fortes, a cabeça pezada, o
focinho largo, achatado, de extremidade volumosa, as narinas muito se-
paradas, o lábio superior espesso, saliente, os olhos pequenos, coUocados
muito superior e posteriormente e as orelhas curtas e muito cobertas de
pêllo. A pelle é espessa, rugosa e de sedas raras; comtudo desde o alto
da nuca até ao meio da columna vertebral existem sedas em numero e
comprimento bastante para formarem uma espécie de crina. A côr geral
é o trigueiro; as orelhas são brancas.
Este pachyderme não possue dentes incisivos.
236 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Descrevendo a espécie seguinte, diremos o que se sabe sobre este
assumpto; sob o ponto de vista de regimen e hábitos de vida as duas
espécies não diíTerem uma da outra.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Encontra-se o javali engalla de Angola desde o Cabo até ao golpho
de Guiné.
O PHACOCHERO OU JAVALI DE ELIANO
Este animal é também conhecido na historia natural pelo nome de
phacochero de incisivos. Esta denominação indica desde logo um dos ca-
racteres que o diíFerenceiam da espécie anteriormente descripta. Um outro
caracter differencial é a pequenez relativa dos caninos. Os incisivos são
dois. Aparte estas pequenas differenças, esta espécie assemelha-se inteira-
mente á congénere.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O phacochero de EKano encontra-se provavelmente em toda a Africa
central.
mamíferos em especial 237
COSTUMES
Da vida e costumes d'esta espécie, bem como da precedente, sa-
be-se muito pouco. Resumiremos o que ha de averiguado.
Os phacocheros são animaes sociáveis; encontram-se sempre aos
bandos de dez a quinze individuos nas florestas e brenhas, logares a que
dão preferencia. Nas florestas que cobrem as montanhas da Abyssinia
são communs estes bandos. Segundo Riippel, os phacocheros alimen-
tam-se exclusivamente de raizes, o que, diz Brehm, explicaria as fortes
e extensas defezas que possuem. Quando marcham, fazem-o rastejando,
de modo que deixam sulcos profundos no solo; d'ahi vêem as callosida-
des que apresentam na face anterior do corpo. É realmente singular este
modo de progressão!
Na Abyssinia tanto os christãos como os mahometanos consideram
impura a carne d'estes animaes e por isso não lhes dão caça.
Segundo a opinião de Smith, estes animaes são tão temerários como
mãos. Raras vezes fogem; acceitam de ordinário o combate de quem
quer que os persiga.
CAPTIVEIRO
Em 1775 appareceu na Europa o primeiro phacochero vivo, prove-
niente do Cabo. Viveu muito tempo no jardim zoológico de La Haye, onde
era considerado como um animal muito dócil. Um dia porém a malvadez
ingénita manifestou-se; o phacochero atirou-se sobre o guarda e feriu-o
mortalmente com uma dentada. Rasgou também o ventre a uma porca
domestica que lhe haviam juntado na esperança de um coito. O alimento
d'este pachyderme captivo era análogo ao de todos os porcos.
Brehm diz ter visto um par d'estes animaes em Anvers, verificando
então o que Riippel afíirma relativamente á marcha que os caracterisa.
238 HISTORIA NATURAL
OS TAJAÇUS
Como observam os naturalistas, a America não é rica em suidios;
as espécies que possue são poucas e, além d'isso, muito mais pequenas
que as do antigo continente. Essas espécies constituem o género dos ta-
jai'us, animaes que se caracterisam pela presença de trez dedos apenas
nos pés posteriores, por uma cauda rudimentar, pela existência sobre o
dorso de uma glândula especial secretora de um liquido fétido e emíim
pelo numero de dentes que é de trinta e oito: dois pares de incisivos
na maxilla superior e trez na inferior, um par de caninos e seis de mol-
lares em cada maxilla.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
São próprios das regiões quentes da America.
O TAJAÇU DE COLLEIRA
É um animal pequeno de metro e meio de comprido sobre trinta e
trez a quarenta centímetros de altura. Aos caracteres genéricos, descri-
ptos já, é preciso juntar que este animal possue a cabeça alta, o focinho
obtuso e as sedas compridas e espessas, de um trigueiro accentuado na
raiz e na ponta e anneladas de fulvo e negro no meio. Entre as orelhas
e ao longo do dorso, as sedas alongam-se um pouco. A cor geral d'este
pachyderme é um trigueiro escuro, passando a amarello dos lados e
apresentando ahi cambiantes de branco. O ventre é trigueiro e o peito
mamíferos em especial 239
branco; d'esta região parte uma facha amarella que ascende até acima
das espáduas, constituindo uma como coUeira. D'aqui o nome da espécie.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O tajaçu de colleira é commum em todas as florestas da America do
Sul até cerca de mil metros acima do nivel do mar.
COSTUMES
O tajaçu de colleira é eminentemente sociável; percorre as flores-
tas em bandos numerosos sob a direcpão do macho mais forte. Todos os
dias varia de habitação. «Nada é capaz, diz Rengger, de os suspender
nas suas viagens, nem os campos descobertos nem os cursos d'agua. Se
chegam a um campo, attravessam-o a galope; se encontram uma cor-
rente, passam-a a nado. Assim os vi attravessar o rio do Paraguay n'um
ponto em que tinha mais de meia légua de largura. O bando avançava
compacto com os machos adiante e logo depois as fêmeas seguidas dos
filhos. Ouviam-se e reconheciam-se de longe os animaes não tanto pelos
gritos surdos e roucos que soltavam como pelo ruido que faziam atravez
das brenhas.» Ás vezes os bandos são tantos e tão numerosos que nem
o tigre se atreve com elles; quando os vé passar esconde-se por traz
de uma arvore. São estas, pelo menos, as informações colhidas por Ilum-
boldt da bocca dos indígenas.
O tajaçu procura indifferentemente de dia ou de noite o ahmento.
Come fructos e raizes que desenterra com o focinho.
Nos togares habitados penetra muitas vezes nas plantações fazendo
ahi grandes estragos. Faz uma guerra de morte ás serpentes, aos lagar-
tos e aos vermes.
Em muitos dos seus hábitos assemelha-se aos javahs; não é todavia
glutão e sujo como estes animaes. Não come senão o preciso para matar
a fome e não se suja nos charcos senão em tempos de excessivo calor.
De dia occulta-se ordinariamente nas cavidades das arvores, entre
as raizes; quando se lhe faz caça é ahi que se refugia sempre.
240 IIISTOKJA NATUllAL
Relativamente aos sentidos, sabe-se que apresentam de ordinário
pequeno desenvolvimento; a vista é má e apenas o ouvido e o olfato oíFe-
recem uma certa perfeição. A intelligencia 6 limitadissima.
A fêmea dá á luz em cada parto dois filhos que pouco depois de
nascidos seguem a mãe por toda a parte.
CACA
Tem-se dito que o tajaçu é um animal de incomparável temeridade,
tem-se mesmo afirmado que elle é para o homem e para os grandes car-
niceiros o mais sério dos adversários. Humboldt e Rengger não subscre-
vem a taes aflirmações. Dizem estes naturalistas que um homem só, a pé
e seguido de cães, não corre grande risco em se defrontar com um
bando de tajapus. Pode ser hgeiramente ferido no momento do encontro;
comtudo os pachydermes fugirão, porque de ordinário nem aos cães con-
seguem fazer frente.
Os meios empregados na caça são principalmente as armas de fogo
e a lança. Também se cavam grandes fossos de trez metros de profun-
didade ou mais, perto das plantações em que os tajaçus teem por cos-
tume penetrar; depois impellem-se a gritos n'essa direcção de modo que
ahi vão cair, em grande numero muitas vezes. Wood diz que o caçador
sabendo que um bando de tajaçus se abrigou na cavidade de uma ar-
vore, tem um processo simples de os extinguir: o caçador mata a sen-
tinella que é substituída por outra que mata também e assim successi-
vamente até ao ultimo tajaçu. Não sabemos o que ha de verdade n'esta
aíTirmação; parece-nos porém que não deveremos acceital-a sem uma
certa duvida, porque Wood mostra-se muito mal informado no que res-
peita ao conhecimento do tajaçu.
CAPTIVEIRO
Bem tratado, o tajaçu torna-se um verdadeiro animal domestico.
Humboldt diz que elle supporta o captiveiro tão bem como o porco ou o
veado; e Rengger aííirma, pelo seu lado, que elle contrae aíTeição ao ho-
mamíferos em especial 241
mem e aos companheiros de captiveiro. Brehm contesta a aífeição dos
tajapus pela nossa espécie, assegurando que os que tem visto são coléri-
cos, mãos, dispostos sempre a morder.
O tajaçu é vulgar nos jardins zoológicos da Europa, cujo clima sup-
porta perfeitamente. Tem-se reproduzido na Inglaterra. A alimentação
que se dá a este pacliyderme em captiveiro é a mesma que se distribue
aos porcos domésticos.
usos E PRODUCTOS
A pelle do tajaçu serve para a fabricação de saccos e correias. A
carne de que as classes pobres fazem alimento é de sabor agradável,
mas muito inferior á do porco domestico. Quando se quer comer a carne
de um tajaçu que acaba de matar-se depois de uma demorada persegui-
ção, é mister extrair immediatamente a glândula dorsal; se isto senão
fizer o mao cheiro do hquido segregado communicar-se-ha á carne, tor-
nando-a insupportavel.
A outra espécie do género dos tajaçus, conhecida pela designação
latina de dycotiles labeatus, não diíTere nem morphologicamente, nem sob
o ponto de vista dos costumes, da que acabamos de estudar por forma
que mereça uma descripção especial.
OS BABIROSAS
O nome de babirosas ethimologicamente considerado significa — por-
cos-veados. Este nome singular justifica-se até certo ponto pela circums-
VOL. ui 16
242 HISTORIA NATURAL
lancia de serem os caninos crestes animaes de lai modo extensos e re-
curvos que parecem cornos.
D'este género conhece-se uma espécie única, que tem a mesma de-
signação do género.
O BABIROSA
Este animal apresenta, termo médio, um metro de comprimento so-
bre oitenta centímetros de altura; a cauda mede vinte e cinco centíme-
tros.
O babirosa assemelha-se muito a todos os porcos. Tem o corpo alon-
gado, volumoso, um pouco comprimido lateralmente, o dorso ligeira-
mente arqueado, o pescoço curto e grosso, a cabeça alongada e relati-
vamente pequena, a região frontal um pouco arqueada e a extremidade
do focinho movei e obtusa como nos javalis e terminada por uma parte
córnea de bordos callosos e excedendo muito o lábio inferior. Os mem-
bros são fortes e terminados por quatro dedos. Os olhos são pequenos e
não apresentam sobrancelhas; as orelhas, de comprimento médio, são
finas, estreitas, ponteagudas e rectas.
O que, indubitavelmente, ha de mais importante e de mais caracte-
rístico n'este pachyderme, são os caninos da maxilla superior. Finos,
ponteagudos, dirigidos para cima e para traz, estes dentes tornam-se
tão compridos, diz Brehm, nos animaes velhos que ás vezes chegam a
penetrar na pehe da fronte em cuja direcção se recurvam em semi-cir-
culo. A face anterior d'estes dentes é arredondada e o bordo posterior
cortante. Os caninos da maxilla inferior são mais curtos e menos recur-
vos. Estes dentes são na fêmea muito menores que no macho.
O corpo do babirosa é coberto de pêhos muito curtos e espalhados,
mais abundantes ao longo da columna vertebral, entre as pregas cutâneas
e na extremidade da cauda, onde formam um tufo, do que em qualquer
outra região. A pelle é dura, espessa e rugosa, com pregas muito pro-
fundas no focinho, em torno das orelhas e no pescoço. O dorso e a parte
externa dos membros são cor de cinza e a face interna dos membros cor
mamíferos em especial
243
de ferrugem. As extremidades das sedas formam sobre a linha media
uma como estria clara, de um amarello trigueiro. As orelhas são negras.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPinCA
É muito commum o babirosa nas ilhas Celebes, que devem ser con-
sideradas a sua verdadeira pátria.
COSTUMES
Procura de preferencia para habitação as florestas pantanosas, as
margens dos lagos e todas as regiões onde crescem com abundância as
plantas aquáticas. É sociável; em todos os pontos que acabamos de men-
cionar vive em bandos mais ou menos numerosos. É animal nocturno;
como tal, dorme o dia todo e só depois que o sol declina procura o
alimento.
Caminha mais rapidamente que o javaU e é um bello nadador.
De ordinário, evita o homem, fugindo e escondendo-se, desde que o
presente; mas se é attacado de perto, se é surprehendido sabe fazer face
ao perigo com immensa coragem. Os dentes são-lhe poderosíssimas armas
de defeza.
Como explicar a forma especial dos caninos n'esta espécie? Tem-se
dito que o animal se prende por elles ás arvores e assim solidamente
sustentado se balança. Não sabemos até que ponto se deve crer no facto
aífirmado.
O ouvido e o olfato são de todos os sentidos os mais perfeitos. A
intelhgencia é muito limitada.
A fêmea pare em Fevereiro um a dois fdhos, de dezeseis a vinte e
dois centímetros de comprimento.
244 HISTORIA NATURAL
GAGA
Os indígenas empregam a lança oa as armadilhas na caça do ba-
birosa.
GAPTIVEIRO
Apanhado e reduzido ao captiveiro emquanto novo o babirosa altinge
um certo grão de domeslicidade, habitua-se ao dono cuja voz reconhece
e manifesta por elle uma certa dedicação. Tem apparecido na Europa al-
guns exemplares d'esta espécie, os quaes se teem reproduzido; é certo
porém que são ainda hoje muito raros nos jardins zoológicos.
OS HIPPOPOTAMOS
São os mais pesados e massudos dos mamíferos terrestres. As per-
nas são extremamente curtas em relação ao tronco; cada pata apresenta
quatro cascos. O focinho é largo, obtuso e não prolongado em forma de
tromba; a pelle é desnudada. A dentição comprehende dois a trez inci-
sivos, um canino e sete mollares.
O esqueleto é forte. O craneo é quasi quadrilátero, achatado e com-
primido; a cavidade cerebral é muito pequena. Todos os ossos são pe-
sados e volumosos. Os dentes dífferem consideravelmente dos de todos
mamíferos em especial 245
os pachydermes vivos e em nada lembram os dos porcinos. Os grandes
caninos inferiores são recurvos em semi-circulo e cliegam no maclio a at-
tingir a extensão de um metro; os superiores são egualmente recurvos,
mas menos extensos e de pontas rombas. Nem uns, nem outros fazem,
a despeito da grande extensão, saliência no exterior.
Existiram em epoclias anteriores á nossa muitas espécies d'este gé-
nero. Hoje apenas se conhece uma bem authentica, que vive na Africa.
O HIPPOPOTAMO AMPHIBIO
Esta espécie foi muito conhecida dos romanos que nos circos públi-
cos apresentaram diversas vezes muitos exemplares. Os gregos conhe-
ceram também o hippopotamo amphibio; a designação hippopotamo é
mesmo composta de dois vocábulos gregos e significa, litteralmente, ca-
vallo do rio.
Desde o terceiro século da nossa era até 1850 não appareceu na
Europa, aífirma Brehm, um único hippopotamo.
CARACTERES
A dentição e a cabeça distinguem o hippopotamo de todos os ma-
míferos existentes. Da dentição falíamos acima; não insistiremos n^estc
ponto. A cabeça é quadrangular e cararterisada por um focinho alto,
alongado, de uma largura espantosa. Como todo o animal, o focinho 6
disforme. A face superior é chata e o lábio superior, pendente, cobre de
um modo completo a bocca. As narinas são obliquas, muito separadas
uma da outra. O corpo é grosso, pezadissimo, alongado e quasi cylin-
drico.
A região do sacro é mais elevada que a das espáduas; o ventre é
pendente e raza o solo quando o animal caminha. Os membros não ex-
2 46 HISTORIA NATURAL
cedem muito sessenta e seis centímetros de altura. A cauda é curta, del-
gada, comprimida lateralmente e coberta na extremidade livre de sedas
curtas e rijas como fios de ferro; o resto do corpo é quasi desnudado.
A pelle apresenta uma espessura superior a trez centímetros e
forma algumas pregas muito profundas no pescoço e na parte anterior do
peito. Sulcos numerosos e entrecruzados formam sobre a pelle umas
como escamas, ora grandes, ora pequenas.
A côr geral da pelle é o trigueiro cobreado que no ventre se torna
claro. Manchas azuladas e outras de um trigueiro menos acentuado que
o que forma o fundo geral da pelle, espalhadas com regularidade dão ao
corpo do hippopotamo uma certa variedade. De resto, é mister observar
que a côr varia conforme o animal está húmido e sêcco. Com eífeito ao
sair da agua, o animal parece mais claro do que quando toda a humi-
dade tem desapparecido.
Sob a pelle do hippopotamo encontra-se de ordinário uma camada
de gordura de oito a dezeseis centímetros de espessura.
O hippopotamo adulto pode attingir perto de cinco metros de com-
prido, pertencendo meio metro apenas á cauda. A altura, ao nivel da
espádua, é, quando muito, de um metro e oitenta centímetros. A circum-
ferencia do tronco é de quatro metros a quatro metros e trinta centíme-
tros; o pezo do animal adulto eleva-se de vinte e cinco a trinta e cinco
quintaes.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Houve tempo em que na Africa oriental e central o hippopotamo
amphibío era muito vulgar. Já hoje não acontece o mesmo. Á medida
que o homem estende no continente africano os seus domínios, o hippo-
potamo recua e morre a tiro. O gigante pachyderme abandonou já o
Egypto e a Núbia onde, no dizer de Ruppel, era vulgar ainda no começo
d'este século. Comparando as informações dos antigos com as dos moder-
nos viajantes e naturahstas, ve-se bem quanto está hoje reduzido o nu-
mero d'esses gigantes informes e monstruosos que alguns escríptores
consideram últimos representantes dos tempos fabulosos e que segura-
mente são os restos de uma fauna destinada a desapparecer. Comtudo
ainda hoje não é raro o hippopotamo no Sudan oriental.
mamíferos em especial 24'
COSTUMES
De todos os auctores que se occupara da vida e hábitos do tiippo-
potamo, é Brehm o que dá mais amplas e minuciosas informações. Este
naturalista diz: «Tive muitas occasiões de ver o hippopotamo; posso pois,
fazer a historia dos seus costumes, guiando-me por observações pró-
prias.» *
A este auctor seguiremos pois de preferencia n'este artigo.
A tendência que todos os pachydermes teem para a agua, a incli-
nação que sentem para se banhar tornam-se no hippopotamo imperiosas
necessidades, attingem n'ene o máximo grão de elevação. Assim é que
este pachyderme vive quasi sempre na agua, saindo para terra íirme só
excepcionalmente: de noite para procurar aUmento quando as margens
do rio não abundam em plantas, de dia para se aquecer de quando em
quando ao sol. Passa pois a maior parte do seu tempo mettido na agua
dos rios em que nada e mergulha com extraordinária facilidade, como se
fosse esse o seu meio próprio.
Quando nos abeiramos de um rio em que vivem hippopotamos,
apercebemo-nos geralmente a distancia da existência d'esses pachyder-
mes pelo som particular que ouvimos de agua projectada a distancia por
um sopro violento. É que o hippopotamo, que se apraz em viver sob a
agua, sente de espaço a espaço a necessidade de respirar e fluctua en-
tão, despejando ruidosamente quando chega ao lume d'agua, o hquido
que se lhe alojara nas espaçosas narinas. O tempo que o hippopotamo
se conserva debaixo d'agua é pequeno de ordinário; e Brehm considera
um erro completo a affirmação que fazem alguns naturahstas de que o
enorme pachyderme pode permanecer mergulhado durante dez minutos.
Segundo Brehm, o hippopotamo não poderia conservar-se debaixo d'agua
nem mesmo cinco minutos.
A pista do hippopotamo é fácil de reconhecer: consiste em buracos
collocados ao longo de um sulco como contas cm fio de rosário. Os bu-
racos são formados pelos pés que se enterram no solo e o sulco é o ves-
tígio da passagem do ventre que, como dissemos acima, rasteja quando
o animal marcha.
^ Brehm, Ohr. cif,, vol. 2.», pg. 778.
^48 lilSTORÍA NAtUàAL
Nos rios em que se não faz capa ao hippopotamo aflirma Brebm que
se pode navegar em grandes barcos, porque o pachydcrmc não os at-
taca.
Como quasi todos os pacliydermes, o hippopotamo é sociável; pou-
cas vezes se encontra um só. Bretim diz nunca ter visto bandos superiores
a- seis individues; outros naturalistas porém, faliam de aggremiações
muito mais numerosas.
Só nos legares completamente desertos é que o hippopotamo se
aventura a sair da agua durante o dia para se deitar nas margens, dor-
mitando. Então estende-se commodamente na terra molle e húmida com
a mesma voluptuosidade com que os porcos se espojam e os búfalos se
banham. De tempos a tempos o macho faz ouvir um grunhido surdo ou
levanta a cabeça para ver o que se passa em volta.
No meio dos hippopotamos agitam-se muitas aves. Uma ha conhecida
na Africa pelo nome de ave das chuvas que volita constantemente em
roda d'estes pachydermes, tirando-lhes da pelle as sanguesugas e os in-
sectos que a ella adherem. Um esparavâo caminha de ordinário a passos
largos sobre o dorso d'estes collossos, desembaraçando-os também dos
vermes. Ao sul da Africa o ani substituo geralmente estas aves. Os árabes
de Sudan acreditam que a ave das chuvas (hyas aegyptiacus) adverte o
hippopotamo da approximação dos perigos; e a verdade é, refere Brehm,
que o pachyderme presta attenção aos gritos do seu pequeno e vigilante
amigo e corre para a agua desde que a ave se mostra inquieta. De resto
e exceptuando este caso, o pachyderme parece não prestar a minima
attenção ao mundo exterior; só nas locahdades em que por uma dura
experiência própria aprendeu a conhecer o homem e as armas de fogo, é
que se conserva permanentemente em guarda contra este terrível ini-
migo. Nas regiões em que o não perturbam, o hippopotamo não se in-
quieta com coisa alguma; é o verdadeiro typo da indiíferença.
Provavelmente o hippopotamo dorme também na agua, á maneira
dos búfalos; equilibra-se á superfície d'agua por meio de movimentos
regulares dos membros, de modo que as narinas, os olhos e as orelhas
emergem.
Ao fim da tarde principia a vida para o hippopotamo; é então que
os bandos se entregam na agua a toda a ordem de diversões, aos mais
diíferentes exercícios. Se no rio voga uma canoa, os bandos de hippopo-
tamos permittem*se o prazer de a seguirem de perto por largo tempo.
O enorme volume d'agua que um d'estes pachydermes desloca e, por-
tanto, o pezo que perde, explica-nos a faciUdade assombrosa com que
nada e mergulha, rivahsando em rapidez com o mais veleiro barco de
remos.
O hippopotamo quando nada tranquillamente não agita os membros;
MAMIF^EROS EM ESPECIAL 240
a agua em torno cVelle, diz Brehm, conserva-se lisa e immovel. Mas se é
ferido ou se precipita furiosamente contra um inimigo, então projecta
com violência as patas posteriores para traz, avança por movimentos
bruscos e agita a agua produzindo verdadeiras ondas.
Nos rios em que as plantas aquáticas abundam, o hippopotamo não
sae da agua nem mesmo de noite. Encontrando na agua tudo aquillo de
que precisa, o pachyderme não carece de vir a terra e por isso muito
raras vezes o faz. O loto^ planta sagrada dos antigos, irmã magestosa do
gracioso nenuphar, constitue o alimento principal do hippopotamo. Era
caso de necessidade os juncos e as cannas servem também de alimento
ao informe pachyderme.
Que horrível espectáculo o de um hippopotamo que abre a bocca
para comer! Á distancia de um kilometro pode vér-se a bocca escanca-
rada do pachyderme, e, a alguns centos de passos, contar um por ura
os movimentos de mastigação.
Nos legares que não ficam muito distantes dos campos cultivados, o
hippopotamo dirige-se de noite vagarosamente e com cuidado para as
plantações onde no espaço de horas destroe um trabalho humano de me-
zes. Com eífeito, a voracidade dos hippopotamos é extraordinária; por
fértil que seja o paiz em que vivem, constituem, se são numerosos, ura
verdadeiro flagello. De resto, elles destroem, calcam aos pés mais do
que comem; ainda depois de fartos rolam-se por sobre as plantações á
maneira dos porcos.
Não é só para os campos cultivados que o hippopotamo constitue
um perigo; o homem e os animaes devem temel-o, porque nas excursões
nocturnas, o monstro precipita-se cegamente sobre tudo que tem movi-
mento. E calcula-se bem quaes são as consequências de um tal attaque,
lembrando que um hippopotamo é capaz de matar quatro ou cinco bois
que encontre reunidos. Raro é que o hippopotamo fuja diante do homem;
irritado nunca o faz.
Os habitantes do interior d'Africa, que não possuem armas de fogo,
encontram-se quasi sem defeza contra o hippopotamo de que são todavia,
diz Brehm, os únicos adversários. Segundo este naturahsta, tudo quanto
se tem contado e escripto acerca de combates do hippopotarao com o
crocodilho, o elephante, o rhinoceronte e o leão, deve ser, sem exce-
pção, lançado á conta de fabula.
O homem procura proteger-se de modos diíTerentes contra o hippo-
potamo. No tempo das colheitas accende fogueiras ao longo do rio. Es-
sas fogueiras que se ahmentam toda a noite servem de espantalhos para
os hippopotamos. Em algumas regiões é de uso fazer durante a noite
Um estrépito enorme de rufos de tambor para assustar o gigante pa-
chyderme. Estes processos, que dão geralmente os resultados pretendi-
250 HISTORIA NATURAL
dos, são, diga-se de passagem, muito trabalhosos; obrigam a conti-
nuadas vigílias.
As observações ultimamente feitas em individues captivos ensina-
ram-nos que a fêmea do hyppopotamo 6 unipara e que dá á luz no co-
meço da estação das chuvas, precisamente quando a alimentação 6 mais
abundante e mais succolenta. A fêmea o perigosíssima quando está cm
companhia dos filhos, pequenos ainda. Inquieta pela sorte dos recemnas-
cidos, ve perigos em toda a parte e atira-se cegamente contra quem
quer que lhe pareça ser um inimigo. Se lhe matam um fdho, conserva-se
agitada e prompla a vingar-se por muito tempo. O barco que conduzia
Levingstone n'um dos rios africanos foi vigorosamente attacado por uma
fêmea a que alguns dias antes tinham matado o filho; é de notar que
ninguém da tripulação excitara o animal. Avalia-se por este facto, de que
ha muitos análogos, quanto é grande a sollicitude da mãe pelos filhos.
Brehm cré que o macho toma como a fêmea a defeza do recemnascido
em face dos perigos. O naturalista allemão baseia-se para fazer a aíTir-
mação sujeita no facto "de encontrar constantemente ao pé do pequeno
hippopotamo macho e fêmea. Esta distingue-se facilmente, porque nunca
tira os olhos de cima do fdho, cujos movimentos segue sempre com ex-
traordinária attenção. O recemnascido mama na agua, vindo de momento
a momento á superfície para respirar.
CAÇA
A caça do hippopotamo produz magníficos resultados, como adiante
veremos, para os indígenas e europeus que a fazem activamente. O eu-
ropeu não persegue o hippopotamo senão munido de uma boa arma de
fogo. O indígena no Sudan emprega exclusivamente ainda hoje o arpeo
e a lança. Ao norte da Africa empregam-se armadilhas fixas às arvores
e os negros das margens do Abiad cavam fossos onde pela noite cae de
quando em quando algum hippopotamo.
A caça pelos processos empregados no Sudan demanda uma extraor-
dinária coragem, astúcia e agilidade; feita, como a fazem os europeus,
ella exige apenas uma pontaria firme.
mamíferos em especial 25
GAPTIYEIRO
O hippopotamo quando, morta previamente a mãe, se traz ao capti-
veiro nos primeiros tempos de existência, chega a domesticar-se. Faz-se
aleitar ao principio por trez ou quatro vaccas, porque uma só não basta.
As observações feitas até hoje demonstram que o hippopotamo sup-
porta longo tempo e facilmente o captiveiro, mesmo nos chmas da Eu-
ropa. GoUocando um par, macho e fêmea, em logar conveniente onde
possam viver ora em terra, ora na agua, pode esperar-se que os mons-
truosos pachydermes se reproduzam.
A ahmentação do hippopotamo captivo é análoga á dos porcos do-
mésticos.
Brehm viu no Cairo um hippopotamo captivo que vivia nas melho-
res relações de amizade com o guarda e que o seguia e se deixava di-
rigir por ehe como um cão. Era alimentado com uma mistura de leite,
arroz e farello; mais tarde principiou a preferir as plantas frescas. Esse
individuo foi trazido á Europa, com destino a Londres. Quando chegou a
esta capital, media dois metros e trinta centímetros de comprimento;
este hippopotamo reproduziu-se ahi com um outro chegado algum tempo
depois. De resto, devemos notar que o hippopotamo, como muitos outros
animaes, readquire a primitiva selvageria á medida que avança em
idade.
A gestação dura dez mezes; é certo porém que ao fim de sete o
parto pode realisar-se, como em Amsterdam se viu, sendo o feto viável.
Tem-se notado que em captiveiro, ao contrario do que acontece em
liberdade, a mãe maltrata os filhos e lhes nega o leite, vendo-se o ho-
mem forçado a fazel-os aleitar artificialmente.
usos E PRODUGTOS
Muitas partes do hippopotamo são utilisadas. A carne e a gordura
são muito estimadas; e tempo houve em que constituíram para o colono
do Gabo o melhor dos manjares. A carne do hippopotamo novo é mesmo
para os europeus um prato excellente; a lingua passa por ser um acc-
2ÔS HISTORIA NATURAL
pipe delicioso. Os hottentotes bebem a gordura derretida como nós be-
bemos caldo. A pellc serve para fazer correias; os colonos do Cabo ap-
plicam-a para a fabricação de laganles. Os dentes são um importante ar-
tigo de commercio; servem para fazer dentaduras que conservam inalte-
ravelmente a brancura e o brilho. Todas as partes que mencionamos va-
lem muito dinheiro.
prejuízos
Entre os numerosos prejuízos que correm acerca do hippopotamo
alguns ha que não podemos deixar de mencionar, porque são curiosissi-
mos. Na Biblia diz-se que os membros do hippopotamo são duros e sóli-
dos como ferro e todos os ossos resistentes como o bronze. Os israelitas
julgavam este animal capaz de beber toda a agua do Jordão. Os indige-
nas do Sudan teem o hippopotamo na conta de um ser sobrenatural,
emissário do diabo, plenipotenciário do inferno. Não respeita a lei do
propheta e não teme os esconjuros. Debalde o cultivador, affirmam os
indígenas, o intima em nome de AUah para que retroceda quando ca-
minha de noite em direcção ás searas. Que Deus proteja os crentes da
vista d'esse maldito! . .
OS RHINOCERONTES
Pertencem a esta família seis ou, segundo alguns auctores, sete es-
pécies vivas e outras tantas fosseis.
mamíferos em especial 253
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
Os rhinocer entes foram perfeitamente conhecidos dos antigos. A Bi-
blia refere-se a elles em passagens diíferentes. Os romanos fizeram-os fi-
gurar nos jogos bárbaros dos circos. Plinio escreve: «O rhinoceronte é
o inimigo natural do elephante; aguça o corno n'uma pedra' e no com-
bate volta-o sempre para o ventre do adversário, sabendo que é este o
ponto mais fraco. Assim mata o elephante.» O primeiro auctor que des-
creveu os rhinocerontes foi Agatharchides. Posteriormente Strabon fallou
d'elles também. Marcial refere-se-lhes nos seguintes versos que encon-
tramos traduzidos por Gh. Maux-St.-Marc no Hvro de Brehm:
Cest pour vous, ó César, qu'expo3Ô dans Tarène
Ce fier rliinoceros a lutté vaillament
Et d'uii coup de sa corne a transpercé sans peine,
Comme un vil mannequin, le taureau tout tremblant.
Nas lendas árabes os rhinocerontes figuram como seres encanta-
dos. Marco Pollo no século xiii fallou dos que encontrou na sua via-
gem ás índias. Em 1513 D. Manuel recebeu em Lisboa um rhinoce-
ronte vivo proveniente da índia. Alberto Durer pubHcou d'este exemplar
uma gravura executada por um desenho muito incorrecto que lhe envia-
ram de Lisboa. Em melados do século xvii Bontius fallou dos costumes
do rhinoceronte. A datar de então todos os viajantes teem descripto mais
ou menos uma ou outra espécie; o rhinoceronte do sul da Africa é par-
ticularmente conhecido.
CARACTERES
Os rhinocerontes são animaes deselegantes, sohdamente construí-
dos, de grandes dimensões, pezados, de pescoço curto e cabeça alon-
gada, de membros baixos e grossos e de pés terminados por trez dedos
cobertos de cascos pequenos e fracos. A peUe é espessa; a das espécies
254 HISTORIA NATURAL
fosseis era coberta de um pôUo ou velo abundante. Sobre o focinho apre-
sentam um ou dois cornos de comprimento desegiial.
O esqueleto ó forte. O craneo c comprido e mais baixo que o dos
outros pachydermes. Os ossos frontaes formam a quarta ou a terça parte
do comprimento do craneo; soldam-se aos ossos nasaes, fortes e largos.
Na base do corno ou cornos, estes ossos são cobertos de rugosi-
dades tanto mais pronunciadas quanto mais extensos são aquelles ap-
pendices. O osso incisivo é visivel somente nas espécies que teem inci-
sivos persistentes; nas espécies em que esses dentes caem cedo, o osso
atrophia-se completamente. A columna vertebral é formada por vértebras
fortes, de apophyses espinhosas muito compridas; dezenove ou vinte
vértebras oíTerecem inserção ás costellas, que são largas, volumosas e
pouco recurvadas. O diaphragma insere-se á decima quarta ou decima
sétima vértebra dorsal. As vértebras sagradas que são cinco, soldam-se
muito cedo. As vértebras caudaes são vinte e duas ou vinte e trez.
Os dentes dos rhinocerontes diíferem notavelmente dos de outros
membros da mesma ordem. Os caninos faltam sempre; e muitas vezes
faltam também os quatro incisivos. Os mollares são sete em cada ma-
xilla.
A pelle do lábio superior é fina, muito vascular e muito nervosa. A
lingua é grande e sensível. O esophago tem um metro e sessenta centi-
metros de extensão e oito centímetros de diâmetro. O estômago é sim-
ples, alongado; mede um metro e trinta centímetros de diâmetro longi-
tudinal e sessenta e seis centímetros do maior diâmetro transversal. O
intestino delgado mede dezeseis a vinte e um metros de comprido e o
intestino grosso seis a oito; o recto mede um metro ou metro e meio.
Os olhos são pequeníssimos.
A pelle apresenta sobre o dorso uma espessura superior a dois cen-
tímetros; em algumas espécies é lisa, n'outras apresenta pregas profun-
das e ainda em certas outras verdadeiras escamas.
O corno ou cornos são ora redondos ora angulosos e occos. Estes
appendices que podem attingir um metro de comprido são dependências
da pelle. Quando os cornos são dois, o posterior é sempre mais curto
que o anterior.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Os rhinocerontes existem hoje exclusivamente na Ásia e na Africa.
mamíferos em especial 255
DISTRIBUIÇÃO GEOLÓGICA
Em epochas geológicas anteriores á nossa os rhinocerontes eram
muito mais numerosos do que actualmente são; os restos fosseis denun-
ciam a existência de um numero considerável de espécies. Entre essas
figura o rliinoceros tichorhinus famoso pachyderme de que se descobri-
ram não só os ossos, mas ainda a pelle e os péllos.
Hoje está perfeitamente averiguado que os rhinocerontes habitaram
na epocha diluviana o centro e o norte da Europa, sendo com o mam-
raouth os pachydermes mais communs do nosso continente. Do rhmoceros
tichorhinus tem-se ainda descoberto os ossos, por vezes em quantidade
assombrosa, na Rússia, na Polónia, na Allemanha, na França e na Ingla-
terra. Esta espécie distinguia-se de todas as outras pela presença de um
septo nasal ósseo; é sabido que este septo é cartilagineo em todos os
rhinocerontes. Outras espécies ainda habitavam a França e o sul da Alle-
manha. Uma d'ellas caracterisava-se pela existência de quatro dedos nos
membros anteriores e pela ausência de cornos. Gré-se que fosse essa a
espécie mais antiga.
As espécies actualmente existentes e que são bastantes ainda, divi-
de-as Brehm em trez grupos : unicórnios de pelle rugosa e escamosa, bi-
cornios de pelle rugosa e bicornios de pelle lisa. Figuier forma dois gru-
pos somente, descrevendo em cada um d'elles uma espécie única. Des-
creveremos também duas espécies apenas, o rhinoceronte da Ásia (uni-
córnio) e da Africa (bicornio), hmitando-nos a mencionar as outras.
256 HISTORIA NATURAL
O EHINOCERONTE D'ASIA
Este pachyderme conhecido também pelo nome de rhinoceronte uni-
córnio é uma das espécies maiores do género. Mede trez metros de com-
prido e metro e meio d'alto; a cauda é de sessenta e seis centimetros e
a circumferencia do corpo excede trez metros. Estes números exprimem
a media; mas tem-se encontrado machos de perto de quatro metros e
meio de comprido sobre dois e trinta centimetros de alto.
O corpo do rhinoceronte asiático é pezado, volumoso e alongado;
as pernas são relativamente curtas. O pescoço é curto e grosso, a ca-
beça de grandeza media, duas vezes mais comprida que alta, apresen-
tando bossas frontaes immediatamente adiante das orelhas e outras acima
dos olhos; o resto da cabeça é fortemente comprimido e achatado. As
orelhas, relativamente compridas, são finas, ponteagudas, semelhantes ás
dos porcos e extremamente moveis. Os olhos são, como os de todos os
rhinocerontes, muito pequenos e encovados; o animal raras vezes os
abre completamente. As narinas são parallelas á abertura da bocca. O
corno eleva-se sobre a parte larga da extremidade do focinho, acima das
narinas e no sulco mediano do nai;iz. É cónico e levemente recurvo para
traz; mede sessenta e seis centimetros, termo médio, de comprimento e
trinta e trez de circumferencia na base. O lábio superior largo e acha-
tado prolonga-se em tromba ponteaguda, quasi digitiforme, que pode ser
alongada ou encurtada, medindo assim ora dezeseis ora vinte centime-
tros.
Os membros, curtos, grossos, cylindricos e informes são recurvados
como os dos cães baixotes. Os dedos em numero de trez e munidos de
cascos são em quasi todo o comprimento cobertos pela pelle.
A cauda vae diminuindo de diâmetro desde a raiz até ao meio, para
se alargar novamente na ponta.
Os órgãos reproductores são muito grandes; a fêmea tem somente
um par de mamas.
A pelle que cobre o corpo do rhinoceronte asiático é forte, mais es-
pessa, mais dura e mais secca que a dos elephantes. Repousa sobre uma
camada de tecido cellular pouco consistente que lhe permitte deslocar-se
facilmente. Forma para o animal uma verdadeira couraça muito espessa,
quasi córnea e dividida por pregas numerosas e profundas, regularmente
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o
mamíferos em especial 257
disposta's. Estas pregas permittem ao animal executar todos os movimen-
tos necessários.
Nos velhos machos a pelle pode dizer-se desnudada, porque real-
mente apenas apresenta pêllos na raiz do corno, nos bordos das orelhas
e na extremidade da cauda.
A primeira prega formada pela pelle desce perpendicularmente á parte
posterior da cabeça e ao pescoço; por traz d'ella encontra-se uma outra,
obliqua para cima e para traz, muito profunda inferiormente. Doesta se-
gunda prega, na metade inferior, nasce uma terceira que sobe obliqua-
mente ao longo do pescoço. Por traz do pescoço encontra-se uma quarta
prega profunda que sobe ao longo do dorso e se recurva em arco para
continuar por traz das espáduas; passa por baixo e depois por diante
dos membros anteriores que contorna superiormente. Uma quinta prega
desce da região do sacro obhquamente para baixo e para diante ao
longo das coxas e chega aos flancos d'onde envia um ramo que desce
pelo bordo anterior dos membros posteriores, attravessa horisontalmente
a tibia e sobe de novo até ao anus, voltando depois em direcção hori-
sontal por cima das coxas em forma de sahencia. Por este modo fica a
pelle dividida em trez largas zonas : a primeira que comprehende o pes-
coço e as espáduas; a segunda que vae das espáduas á região lombar;
e a terceira emfim, que abraça a parte mais posterior do tronco.
A pelle é toda coberta de pequenas escamas irregulares, arredon-
dadas, mais ou menos lisas e córneas. No ventre e na face interna dos
membros encontram-se muitos sulcos ou rugas entrecruzadas. O focinho
apresenta também rugosidades transvertaes.
A côr é muito variável. Os individues velhos são de ordinário de
um pardo escuro uniforme, de cambiantes ruivas ou azuladas aqui e
além. Os individues novos apresentam em geral uma tinta mais clara.
De resto a poeira e a vasa, como nota Brehm, fazem muitas vezes pare-
cer os rhinocerontes mais escuros do que na reahdade são.
k
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Esta espécie habita a Ásia nas regiões mais visinhas da China. É
commum sobretudo em Sião, na Conchinchina e nas províncias mais oc-
cidentaes do Celeste Império.
VOL. III
17
258 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Reservamo-nos para tratar este ponto quando descrevermos a espé-
cie africana, visto que os costumes de todos os rhinocerontes são seme-
lhantes.
A mesma observação podemos fazer acerca dos inimigos, da caça,
do captiveiro e dos usos e productos.
O RHINOCERONTE D'AFRICA
Este pachyderme, conhecido também pelo nome de rhinoceronte bi-
cornWj não dififere da espécie acima estudada a não ser na existência de
dois cornos sobre o focinho, j^ descripção minuciosa que fizemos do
rhinoceronte asiático dispensa-nos de voltarmos sobre o assumpto.
COSTUMES
A semelhança, sob o ponto de vista dos hábitos de vida, não só en-
tre a espécie já estudada morphologicamente e a que vamos descrever
mas ainda entre todas as que adiante mencionaremos, permitte conside-
rar este artigo como apphcavel a todos os rhinocerontes.
Os gigantescos pachydermes de que nos estamos occupando são
muito mais temiveis que os elephantes. Os árabes consideram os rhino-
cerontes seres infernaes como os hippopotamos. «O elephante, dizem el-
les, é um animal justo que honra as palavras do propheta Mahomet (a
voz de Deus seja com elle!) e que respeita as cartas de protecção e os
mamíferos em especial 259
outros meios permittidos de defeza. Os hippopotamos e os rhinocerontes,
pelo contrario, não prestam a mínima attenção aos amuletos que os nos-
sos padres escrevem para protegerem os campos e mostram assim que
desprezam a voz do Todo-Poderoso. São seres malditos desde todo o
principio. Não foi o Creador que os fez, mas o Diabo, o destruidor. Por
isso não é bom que os crentes se approximem d'elles, como fazem os
pagãos e os infiéis. O verdadeiro mussulmano aíTasta-se d'elles tranquil-
lamente para não macular a alma e não ser destituído da graça do
Senhor.)) *
Os rhinocerontes escolhem para habitar os togares abundantes era
agua, os rios de largo leito, os lagos de margens arborisadas ou os pân-
tanos em cuja volta se encontram pastos abundantes. Na Africa acontece
que se aíTastam muitas vezes da agua para procurar o aUmento nas
steppes. Na Ásia sobem ás vezes ás montanhas. No entanto todos os dias
vão á agua, pelo menos uma vez, para beberem e se espojarem na vasa.
Esta ultima operação é, como se sabe, uma necessidade para todos os
pachydermes, cuja pelle tem tanto de sensível como de espessa; no
estio os insectos atormentam-os por tal modo que são forçados a defen-
der-se pelo único meio possível : fazer adherir á pelle uma forte camada
de terra que lhes sirva de couraça contra os importunos inimigos. Antes
de se porem a caminho em busca de alimento, correm á beira de um
lago ou de um curso d'agua, cavam ahi com os cornos grandes buracos
e espojam-se até se cobrirem inteiramente de lama; ao mesmo tempo
fazem ouvir grunhidos de contentamento. A couraça de lama com que se
cobrem dura pouco tempo; á medida que o animal caminha, vae ella
caindo, nas coxas primeiro, no tronco e na cabeça depois. Desde que isto
acontece, os rhinocerontes ou se espojam de novo na lama ou, se isto
lhes não é possível por estarem longe da agua, coçam-se contra as ar-
vores para se alliviarem do prurido que lhes produzem os insectos.
Os hábitos de vida dos rhinocerontes são mais nocturnos do que
diurnos. O muito calor é-lhes insupportavel; por isso, ás horas em que
elle é mais intenso, dormem nos togares ensombrados, deitando-se sobre
o ventre ou de lado e estendendo a cabeça. O somno dos rhinocerontes
é, no dizer unanime dos naturahstas, muito profundo. É então que se
torna possível ao homem avisinhar-se dos terriveis pachydermes sem
grandes precauções. Refere Gordon Gumming que nem mesmo os melho-
res amigos dos rhinocerontes, pequenas aves que os seguem sempre,
conseguiam despertal-os quando o naturahsta apontava sobre elles para
os matar.
1 Vid. Brehm, Obr. cU., vol. 2.°, pg. 766,
260 HISTORIA NATURAL
Quando dormem, os rhínocerontes roncam de ordinário tão alto que
é impossivel deixar de ouvil-os a distancia. Mas também acontece dormi-
rem silenciosamente e é fácil então ao homem encontrar-se de repente
ao pé de um d'estes gigantes, sem o pensar.
Ao cair da tarde os rhínocerontes espojam-se na lama e partem de-
pois em busca de alimento, que encontram em toda a parte, nas flores-
tas ou nos campos descobertos, nas montanhas ou nos valles. Abrem
com facilidade caminho, ainda nas brenhas mais impraticáveis. Nos lega-
res em que vivem elephantes, seguem, para poupar trabalho, os cami-
nhos habituaes d'estes pachydermes. As passagens abertas nas brenhas
pelos rhinocerontes distinguem-se facilmente das abertas pelos elephan-
tes, porque estes quando encontram arvores que lhes fazem obstáculo
arrancam-as e despojam-as das folhas, ahmento favorito, ao passo que
aquelles partem-lhes os troncos e os ramos.
Relativamente á alimentação, diz Brehm que os rhinocerontes estão
para os elephantes como o jumento para o cavallo. Comem de preferen-
cia plantas duras, cardos, giestas, caniços, etc. Na Africa alimentam-se
principalmente de mimosas de espinhos. Durante a estação das chuvas
abandonam as florestas e penetram nas plantações onde fazem estragos
que facilmente calcula quem pensar na quantidade de ahmento precisa
para encher estômagos de um metro e trinta centímetros de comprimento
e oitenta centímetros de diâmetro. Os rhinocerontes captivos não se
satisfazem com menos de vinte e cinco kilogrammas de forragem por
dia; calcule-se o que será em liberdade onde o exercido deve originar
naturalmente maiores necessidades alimentícias.
Gomo o esophago dos rhinocerontes é extremamente largo é-lhes
fácil enguhr grandes porções de alimento sem muito trabalho de tritura-
ção. Assim é que chegam a fazer a deglutição de pedaços de ramos de
trez a seis centímetros de diâmetro.
Um facto digno de menção é que certas plantas que para umas es-
pécies de rhinocerontes são venenosas para outras são absolutamente
innocentes. O euphorbio, por exemplo, que para o rhlnoceronte d' Africa
é um veneno, pode ser comido sem inconveniente pelo rhlnoceronte
branco.
Fazendo excepção aos costumes dos pachydermes, os rhinocerontes
não são sociáveis. Vivem de ordinário isolados ou, quando muito e pou-
cas vezes, em pequeníssimos grupos. Cada um vive por si e para si.
A existência dos rhinocerontes é perfeitamente monótona; comem e
dormem. O mundo ambiente é para elles como se não existisse.
Os movimentos dos rhinocerontes, com quanto pezados, são-o toda-
via menos do que geralmente se pensa. É certo que se não voltam com
agihdade e que nas montanhas não saltam como outros animaes que ahi
mamíferos em especial 261
habitam; todavia correm nas planicies com grande velocidade. Cami-
nhando, projectam para diante as pernas anterior e posterior oppostas.
Correndo, inclinam a cabeça para o chão. Encolerisados, erguem a cauda,
de ordinário pendente, e saltam em todas as direcções com grande agi-
lidade. Sustentam o trote por muito tempo, chegando a tornar-se peri-
gosos mesmo para um cavalleiro, especialmente nos logares arborisados
em que a cavalgadura encontra a cada momento obstáculos á marcha.
Nadam admiravelmente, mas não mergulham senão em caso de necessi-
dade; n'isto se distinguem dos hippopotamos.
A vista dos rhinocerontes é má; de todos os outros sentidos o ou-
vido é o mais perfeito. Depois d'este, vem o olfato e em ultimo logar o
tacto. Assim, na perseguição de um inimigo, os rhinocerontes guiam-se
pelo ouvido e pelo olfato.
Os rhinocerontes excitam-se com facihdade e, uma vez em cólera,
não medem nem a força, nem o numero dos inimigos. O vermelho
irrita-os, como aos toiros. Mal do que passar vestido de cores vistosas
por perto de um d'estes monstros!
Por felicidade, não é muito diíTicil escapar aos rhinocerontes enfu-
recidos. Á distancia mesmo de dez passos o homem perseguido por um
rhinoceronte pode escapar-lhe, dando um salto para o lado; o animal fu-
rioso perde-lhe a pista e continua arremettendo, sempre em linha recta.
Os rhinocerontes escuros d'Africa são os mais temíveis; os brancos
são menos ágeis e mais socegados. Estes últimos, segundo opinião geral,
raras vezes attacam o homem, mesmo quando feridos.
Relativamente á reproducção dos rhinocerontes, sabe-se que para
as espécies asiáticas o coito se reahsa em Novembro e Dezembro e o
parto em Abril ou Maio, durando pois a gestação dezesete a dezoito me-
zes. Antes do coito ha um periodo de cio em que os machos se dão
combates violentos. A fêmea é unipara. O recemnascido é geralmente
das proporções de um cão grande. Nasce com os olhos abertos e sem
pregas cutâneas; o crescimento é ao principio muito rápido. Nos primei-
ros mezes de vida a pelle é de um ruivo accentuado; mais tarde prin-
cipia a apresentar maculas cada vez mais escuras que se alastram por
todo o corpo. Até aos quatorze mezes os rhinocerontes não apresentara
indícios de pregas cutâneas; mas a partir d'esta idade, as pregas for-
mam-se tão rapidamente que ao fim de alguns mezes não é possível en-
contrar diíTerenças entre os indivíduos velhos e os novos. Ao fim de oito
annos os rhinocerontes tem attingido as proporções medias da espécie a
que pertencem.
As fêmeas teem pelos filhos uma grande sollicitude; defendem-os
corajosamente dos inimigos. A amamentação dura dois annos. Ignora-se
até que idade os filhos se conservam na companhia das mães.
262 HISTORIA NATURAL
AMIGOS E INIMIGOS
Dizia-se na anliguidadc que os rhinocerontes combatiam com os ele-
phantes saindo sempre vencedores da lucta. Plínio reproduziu nos seus
livros esta versão que 6 hoje tida na conta de fabulosa.
Entre os amigos dos rhinocerontes figura em primeira linha uma
ave, o ani (buphaga) que todo o dia os acompanha e lhes serve como
de sentinella. «Esta ave, diz Gordon Gomming, é a companheira insepa-
rável do hippopotamo e de quatro espécies de rhinocerontes. Alimenta-se
dos vermes que pululam sobre a pelle d'estes animaes; por isso está
sempre perto d'elles ou mesmo sobre o seu dorso.
«Esta ave, sempre vigilante, fez-me muitas vezes perder a esperança
de chegar perto de um pachyderme, e inutiUsou-me todas as tentativas
emprehendidas n'este sentido. O ani é o melhor amigo do rhinoceronte ;
é elle que em casos de necessidade o desperta do somno profundo. O
pachyderme comprehende o aviso, ergue-se, olha em todas as direcções
e foge.» * Quando um rhinoceronte é morto, o ani manifesta um vivo
pezar soltando gritos dilacerantes em torno do cadáver.
Se exceptuarmos o homem e os insectos, pode dizer-se que os rhi-
nocerontes não teem inimigos. O elephante, como dissemos acima, não
os attaca. O leão, o tigre e em geral os grandes carniceiros não se atre-
vem a dar-lhes combate, porque sabem bem que as. garras não seriam
sufficientes para rasgar-lhes a pelle duríssima.
CAÇA
Onde quer que o homem encontre os rhinocerontes, persegue-os
tenazmente. Disse-se e escreveu-se n'outro tempo que a pelle d'estes
pachydermes se não deixava penetrar pelas balas. Esta opinião é in-
fundada.
A caça d'estes animaes é perigosíssima, porque se acontece de se-
1 Vid, Brehm, Ohr. ciL, vol. 2.o, pg. 770.
mamíferos em especial 263
rem feridos e o golpe não é mortal excitam-se, acceitam a lucta com o
homem e são adversários que a força torna temiveis. Os indígenas pro-
curam surprehendel-os durante o somno; matam-os ás lançadas ou a tiros
descarregados a pequena distancia.
Na Ásia é habitual montarem os caçadores em elephantes para per-
seguirem os rhinocerontes. Esse processo offerece grandes inconvenien-
tes, porque não é raro que os elephantes sejam gravemente feridos pelos
rhinocerontes em fúria. Cremos bem que não vale a penna para matar
um rhinoceronte expor a perigos um elephante domestico.
Muitos caçadores teem tido a desventura de se encontrarem com
rhinocerontes a distancia de lhes não poderem fugir. Quando isto acon-
tece o único expediente a tomar consiste em tirar partido da diíficuldade
com que o animal se volta para lhe evitar o embate dando successivos
saltos lateraes, ora para a .direita, ora para a esquerda até que o animal
se fatigue ou alguém venha em soccorro. Se ha próximo uma arvore de
grosso tronco capaz de resistir ao animal o espaço de tempo bastante
para carregar uma arma e fazer pontaria certeira, o caçador deve tre-
par sem perda de tempo; é uma circumstancia favorável que importa
aproveitar.
O naturahsta e viajante Andreson narra nos seguintes termos um
encontro que teve com um rhinoceronte : «Na volta de uma caçada aos
elephantes, vi a uma pequena distancia de mim um grande rhinoceronte
branco. Ia eu montado n'um famoso cavallo de caça, o melhor que em
minha vida possui. Eu tinha por costume não caçar o rhinoceronte a ca-
vallo, porque sabia ser mais fácil abeirar-me do animal indo a pé; d'essa
vez porém, a sorte dicidira de outro modo. Voltando-me para os meus
companheiros, gritei-lhes: «Magnifico unicórnio! vou dar cabo d'elle.)>
Immediatamente dei de esporas ao cavallo, approximei-me do animal e
metti-lhe uma baha no corpo; mas não o feri mortalmente. Em vez de
fugir, como de ordinário faz, o rhinoceronte ficou immovel, com grande
espanto meu; depois voltou-se bruscamente e, fixando-me um instante,
avançou de vagar em direcção a mim. Sem pensar em fugir, procurei
comtudo affastar prudentemente o cavallo. Este porém, de ordinário tão
dócil que obedecia ao mais leve movimento de rédeas, negou-se-me e
quando se moveu era já tarde : o rhinoceronte estava perto e um encon-
tro tornára-se inevitável. Com efíeito, o monstro baixou a cabeça, para a
erguer depois bruscamente, enterrando o corno nas costehas do pobre
cavallo com violência tal que lhe varou o corpo e com elle o' selim, che-
gando-me com a ponta aguda á coxa. O embate foi de ordem tal que o
cavallo deu uma verdadeira volta no ar indo cair a distancia sobre o
dorso. Eu fui cuspido violentamente e mal me encontrei por terra des-
cobri logo o animal ao pé de mim. Por felicidade calmára-se-lhe o furor
264 HISTORIA NATURAL
com O prazer da vingança exercida sobre o cavallo; abandonou pois a
pequeno galope o tiíeatro das suas façanhas. Entretanto os meus compa-
nheiros haviam chegado ao pé de mim. Dirigindo-me a um d'elles, pedi-
Ihe o cavallo que montava, saltei para o sehm e, mesmo sem chapéu,
com o rosto em sangue, corri sobre o rhinoceronte. Poucos momentos
depois, linha o prazer de vél-o estendido aos meus pés.» A passagem
que acabamos de transcrever desmente a opinião, recebida por muitos
naturalistas, de que o rhinoceronte branco é um animal socegado. Gor-
don Cumming refere também um caso desfavorável á opinião que refe-
rimos.
A titulo de fabula e para mostrar quanto a phantasia tem entrado
nas descripções de caçadas, Brehm extracta de um periódico inglez, Jour-
nal of the Indian Archipel^ a narrativa de um processo de matar o rhi-
noceronte, processo segundo o qual os habitantes de Sumatra (é ahi que
se passa o caso) se approximariam lentamente do animal quando elle se
espoja na vasa, lançando-lhe por cima do corpo matérias combustíveis a
que pegariam fogo. Este meio simples, diz o periódico inglez, teria a
dupla vantagem de matar o animal por asphixia e de assal-o ao mesmo
tempo! Como pôde uma idéa d'estas penetrar no espirito de alguém? O
leitor sabe bem que é precisamente a impossibilidade em que se encontra
o homem de chegar perto dos rhinocerontes o que torna difficultosa e
perigosíssima a caça d'estes pachydermes.
CAPTIVEIRO
Os rhinocerontes não são tão difficeis de domar como poderá acre-
ditar-se pensando na irascibihdade que os caracterisa. Se são apanhados
em pequenos, o que se não consegue, seja dito de passagem, sem matar
os pães, chegam a famiharisar-se com o homem até ao ponto de rece-
berem com manifestações de agrado as caricias que este lhes faz. Al-
guns individues que teem vivido na Europa revelam uma grande dispo-
sição para obedecer ás ordens d'aquelles que lhes distribuem os alimentos.
Em Anvers existiu um rhinoceronte asiático, já adulto, que constituía o
encanto de quantos o viam. Era de uma pasmosa docilidade; deixava-se
afagar por todos e, porque estava habituado a que lhe dessem de comer,
estendia o focinho a quantos chegavam perto d'elle, mendigando por este
meio o obulo costumado. O desenhador, que fez a copia d'este animal
para o livro de Brehm, entrou na jaula para o observar de todos os lados
e em posições diversas; o rhinoceronte não protestou.
mamíferos em especial 265
Desde que penetram n'um navio, os rhinocerontes tranquilisam-se,
por indómitos que pareçam. De resto, o mesmo acontece com todos os
animaes, ainda os mais ferozes. Parece que em face da vastidão do mar
adquirem o conhecimento de uma impotência temporária e por isso não
procuram reagir contra o homem, soberano aUi.
usos E PRODUCTOS
Todas as partes do corpo dos rhinocerontes teem uma certa utilidade.
Os cornos servem para a fabricação de vasos. Em certos pontos do globo,
na Turquia, por exemplo, ha a convicção de que esses vasos entram em
eífervescencia desde que se lhes introduz um hquido venenoso; compre-
hende-se em que apreço serão tidos ahi estes singulares utensihos. Quando
um turco visita um outro de quem tem motivos de desconfiança, acontece
que o primeiro faz encher de caíTé o vaso de corno do rhinoceronte, e o
oíTerece ao segundo como signal de amisade. Este procedimento tem uma
significação que pode exprimir-se assim: do mesmo modo que eu te não
atraiçoo, espero que tu também me não atraiçoarás a mim.
Dos cornos de rhinocerontes fazem-se ainda cabos de sabres.
Da pelle fazem-se couraças, vasos e muitos outros utensihos.
A carne come-se e a gordura é muito estimada pelos indígenas. Ao
paladar europeu porém, nem uma nem outra são gratas.
Advirta-se que a utilidade que pode tirar-se dos rhinocerontes está
muito longe de compensar os inconvenientes, os estragos enormes que
produzem nos togares cultivados.
OS SOLIPEDES
Estes animaes que na classificação clássica de Cuvier, que adoptamos
por nos parecer a mais apropriada á Índole do nosso trabalho, pertencem
266 HISTORIA NATURAL
á ordem dos pachydermes, fazem parte, n'outras classificações, de uma
ordem diíTerente — Os ungulados.
CARACTERES
o que principalmente distingue esses animaes é a existência de um
casco inteiro ou de um só casco. É mesmo d'esta circumstancia que de-
riva o nome por que são conhecidos. Existem entre todos os solipedes
relações tão grandes de forma, de estructura, que se reuniram todos
n'uma familia única: os equídeos ou cavallos.
OS equídeos
Os representantes d'este género teem os membros fortes, a cabeça
magra e alongada, os olhos grandes e vivos, as orelhas de tamanho mé-
dio, moveis, terminadas em ponta e as narinas largamente abertas. O
pescoço é forte, musculoso e o tronco arredondado, de pêllos macios,
curtos, densos, compridos sobre o pescoço e na cauda.
O esqueleto denuncia uma constituição delicada e ao mesmo tempo
vigorosa. A columna vertebral comprehende dezeseis vértebras dorsaes,
oito lombares, cinco sagradas e vinte ou vinte e uma caudaes. Na cabeça
um terço apenas pertence ao craneo; os dois terços anteriores constituem
a face. Os dentes são : seis incisivos, seis mollares, rugosos na super-
fície de mastigação, e dois caninos, pequenos e cónicos. Entre os caninos
e os mollares existe um espaço, de um lado e outro, desguarnecido de
dentes: é n'esse espaço que se introduz o freio.
Os membros são terminados por um só dedo apparente e portanto
por um casco único para cada pata. Estyletes ósseos collocados posterior-
mente por cima dos cascos representam dois dedos lateraes rudimen-
tares.
mamíferos em especial 267
O systema muscular dos equídeos 6 muito desenvolvido, de ordi-
nário.
O esophago é estreito e munido de uma válvula na extremidade
que communica com o estômago. Este, ligeiramente bilobado e constituído
por dois saccos distinctos, é pequeno, simples e alongado. Os intestinos
são muito compridos; apresentam, segundo as espécies, desde vinte e
trez até quarenta metros. O cecum tem uma capacidade que varia tam-
bém entre trinta e trez e sessenta e oito litros.
Um facto muito para notar é o de terem acreditado os antigos e
acreditar ainda hoje muita gente que os equídeos não teem fel. Esta idéa
apresentada por Aristóteles passou a ser authomaticamente repetida pe-
los naturalistas antigos e chegou até nós. A observação anatómica des-
mente uma tal idéa. Nos equídeos existe vesícula biliar, como em todos
os mamíferos; somente ella é pouco desenvolvida e pouco apparente.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Os equídeos appareceram na epocha terciária, simultaneamente no
antigo e novo mundo. Na America, onde não existem hoje senão equí-
deos proveniente da Europa, encontram-se em certos terrenos restos fos-
seis de equídeos, especificamente distinctos dos que lá vivem; o que pa-
rece provar que a existência de taes solipedes foi anterior ahi ao esta-
belecimento do homem.
«Na Europa, diz P. Gervais, existiam entre os equídeos fosseis mui-
tas espécies e, na que mais se approxímava do cavallo actual, differen-
tes raças caracterisadas por diíTerenças de estatura, comparáveis ás que
hoje observamos entre os cavallos domésticos; os esqueletos d'esses an-
tigos anímaes apresentam-nos as formas pezadas dos cavallos alsacianos,
o que parece approxímal-os muito dos cavallos que empregavam os guer-
reiros da idade media e que elles designavam sob o nome de palafrens.
Outros teem o esqueleto delicado dos cavallos árabes, cuja raça princi-
piou a espalhar-se na Europa depois das cruzadas; outros finalmente são
muito pequenos (equus minutus) e lembram as raças mínimas da Córsega.
Gomo é impossível demonstrar os laços de parentesco que ligam os ca-
vallos actuaes áquelles que deixaram os esqueletos nas camadas diluvia-
nas, nas cavernas, etc, ninguém está auctorísado a assegurar que a Eu-
ropa não fosse durante um certo tempo privada de anímaes d'este ge-
2G8 HISTORIA NATURAL
nero, depois de os ter alimentado em maior numero ainda do que actual-
mente.» *
Considerando os cavallos c os jumentos como raças de duas únicas
espécies, o numero actual d'estas é oito.
Tem-se considerado a Europa central e septentrional, a Ásia central
e a Africa como constituindo a área de dispersão primitiva dos equídeos.
Hoje pode dizer-se que, exceptuando as regiões polares, os solipedes co-
brem seguramente toda a superfície do globo.
COSTUMES
Nos descampados da Ásia e da Africa os equídeos vivem em bandos
que percorrem extensões vastíssimas de terreno em busca de alimento.
Gomem hervas. Em captiveiro porém, habituaram-se a um outro género
de alimentação: comem principalmente grãos. Ao norte da Europa teem
um regime simultaneamente animal e vegetal.
Os equideos são animaes vivos, ágeis e prudentes. Em liberdade fo-
gem do homem e dos grandes carniceiros; mas em caso de perigo de-
fendem-se corajosamente, servindo-lhes d'armas os dentes e os cascos.
Correm com rapidez notável; a marcha mais vulgar dos equideos em li-
berdade é o trote.
A fecundidade é nos solipedes muito limitada. A gestação é longa e
o parto produz ordinariamente um filho único; entre duas gestações me-
deia geralmente um grande intervallo. Todas as espécies de equideos se
fecundam mutuamente, dando mestiços.
DOMESTICIDADE
Ha duas espécies de equideos, o cavallo e o jumento submettidos
desde tempos immemoriaes ao domínio do homem. Actualmente tem-se
1 P. Gervais, Histoire naturelle des mammifhres, tom. 2.°, pg. 143,
mamíferos em especial 269
feito reiteradas tentativas para tornar domesticas algumas espécies sel-
vagens. Essas tentativas não foram até hoje coroadas de êxito.
O CAVALLO
Os caracteres d'este género são em grande parte os que atraz ex-
pozemos, faltando da familia dos equídeos. Não repetiremos aqui o que
dissemos já. Importa porém que estabelepamos os caracteres que distin-
guem o cavallo propriamente dito d'outras espécies que com elle formam
o grande grupo dos equídeos.
O cavallo distingue-se do jumento e da zebra primeiramente pela cor
uniforme, ou quasi, do manto e depois pela existência de saliências cór-
neas ou callos na face interna de todos os quatro membros. São ainda ca-
racteres differenciaes a existência de uma crina espessa, comprida, flu-
ctuante e uma cauda geralmente coberta desde a raiz de pêllos abundan-
tes e extensos, que fazem parecer este órgão maior do que é em reali-
dade.
considerações históricas
Uma pergunta que se tem feito muitas vezes e que persiste ainda
hoje sem resposta, é esta : A que epocha remonta a domesticidade do ca-
vallo e qual foi o povo que primeiro a tentou? Em resposta a esta in-
terrogação, como a tantas outras análogas que se fazem a propósito do
cão, do boi, de todos os animaes domésticos, existem conjecturas, hypo-
theses, mas não factos averiguados e definitivos. Apoiados na pliilologia
e reconhecendo que todos os nomes dados ao cavallo nas diíferentes lín-
guas derivam do sanscrito, teem aíTirmado alguns auctores que é aos
povos da Ásia central que nós devemos ç beneficio da domestição com-
pleta do cavallo. Esta afflrmapão não está isempta de objecções. Da ori-
gem sanscrita das palavras que designam o cavallo a única coisa que ri-
270 HISTORIA NATURAL
gorosamente se pode concluir é que os povos da Ásia central conheceram
esse solipede e que foram os primeiros a conhecel-o. D'ahi a concluir-se
que o domesticaram vae uma distancia grande — distancia que augmenta
se se pretende do principio posto deduzir que fossem esses povos os pri-
meiros domesticadores do animal.
O que está perfeitamente averiguado é que não existiu uma única
civilisapão histórica que desconhecesse o cavallo domestico; provam-o
documentos irrefutáveis. Não quer isto dizer que todos os povos conhe-
cessem o cavallo domestico desde a origem das suas respectivas civihsa-
ções, mas sim que nenhum deixou, n'uma phase qualquer da sua exis-
tência, de conhecer e utiUsar este solipede. Os Hebreus por exemplo,
não tiveram sempre cavallos; Abrahão, Isac e Jacob ennumerando as suas
riquezas, faltaram de jumentos, mas não de cavallos. Mas no tempo de
David e de Salomão já os possuíam.
Fosse qual fosse a epocha da domesticidade primitiva do cavallo, o
que é certo é que nos faliam d'elle, como animal subordinado ao homem,
os mais antigos monumentos que conhecemos.
COSTUMES EM DOMESTICIDADE
«A mais nobre conquista, diz Bufifon, que deve attribuir-se ao homem
é, certamente, a d'este bravo e fogoso animal que comnosco partilha das
fadigas da guerra e da gloria depois do combate. Intrépido como o dono,
conhece o perigo e sabe afrontal-o, habitua-se ao ruido das armas, gosta
de ouvil-o, busca-o e se o ouve cresce em ímpetos de guerra. Partilha
também dos prazeres da caça; e nos torneios ou na carreira, brilhante e
cheio de coragem, mas submisso e dócil, sabe reprimir os movimentos e
não somente obedece á mão que o guia, mas parece ainda consultar a
vontade do cavalleiro. Obediente ás ordens que recebe, estaca no meio do
mais impetuoso galope. Parece que abdicou da própria espontaneidade
para viver do commando do homem, que sabe executar com precisação
incomparável de movimentos. O cavallo colloca ao serviço da nossa es-
pécie todas as forças e prefere muitas vezes a morte a um acto de des-
obediência *.))
BuíFon, Oeuvres completes, tom. ii, art. Le clieval.
mamíferos em especial 271
Linneu caracterisou o cavallo n'estes termos concisos:
Animal hervivorum, rarissime carnivorum ; generosum, superbum, fortissimiim
in currendo, portando, trahendo; aptissimum equitando; curso farens*, sylvis dele-
ctatur ; hinnitu sociam vocat ; calcitrando pugnat.
Ao passo que os cavallos selvagens ou errantes apresentam por toda
a parte o mesmo typo e os mesmos hábitos, os cavallos domésticos, pro-
ductos complexos da educação, do regime, das necessidades da civilisa-
ção, são verdadeiras creações do homem e diversificam muito uns dos
outros. Não só ha raças, que se distinguem tanto nas aptidões como na
espécie humana se distingue um negro de um branco, mas ainda, dentro
da mesma raça, innumeras variedades. Aos agentes modificadores natu-
raes, como são o regime alimentar e o solo, vêem juntar-se para a dif-
ferenciação dos typos a selecção artificial empregada pelos creadores de
gado, a educação particular a que são submettidos e ainda o emprego
que se lhes dá. E isto que dizemos em relação aos costumes e que me-
lhor ficará estudado no artigo Intelligencia e Aptidões ^ pode egualmente
affirmar-se, mesmo fora da consideração das raças, em relação ás con-
dições morphologicas.
CARACTERES DISTINGTIVOS
Falíamos de caracteres sufficientes para distinguir variedades, mas
incapazes de servirem de base a divisão de raças. A natureza do péllo e
a sua cor são os principaes.
As cores fundamentaes são quatro, correspondentes na velha te-
chnologia veterinária a quatro humores ou temperamentos: sanguíneo,
fleugmatico, colérico e melancoHco.
Os sanguíneos são os castanhos. N'este grupo distinguem os enten-
dedores: o castanho claro, o castanho escuro, o castanho pezenho, o
castanho rosilho e o castanho malhado.
Os fleugmaticos são os russos. N'este grupo ha: o russo claro, o
russo queimado, o russo rodado, o russo cardão, o russo tordilho, o
russo abatardado, o russo pezenho, o russo rosilho, o russo manchado e
o russo sabino.
Os coléricos são os lazões. N'este grupo comprehendem-se : o lazão
272 HISTORIA NATURAL
escuro, o lazão alaranjado, o lazão tostado, o lazão melado, o lazão dou-
rado e o rabicão.
Os melancólicos são os murzellos. Este grupo abrange: o murzello
andrino, o murzello rodado, o murzello amelroado, murzello acastanhado
e murzello manchado ou mosqueado, de branco e de castanho.
O péllo n'uns indivíduos é fino e lustroso, de modo tal que fazendo
os cavaUos um certo exercício apparecem bem visíveis na cutís as rami-
ficações venosas; n'outros o péllo é grosso e arrepiado.
Um signal branco que alguns cavallos teem no meio da região fron-
tal e que se chama estreita é também um caracter distínctivo. São egual-
mente caracteres diíTerenciaes e de ura certo vahmento entre os enten-
dedores, os signaes conhecidos pelos nomes de silva e frente aberta. O
primeiro d'estes signaes consiste n'um laivo branco que principia acima
dos olhos, no meio da fronte, e acaba nas ventas; o segundo é uma fa-
cha branca, larga e rectilínea que nasce egualmente no meio da fronte e
se estende, sem tocar nos olhos, até ás ventas.
Os cavallos mudam de péllo; estas mudas teemlogar principalmente
na primavera. O novo péllo que vem substituir o que cae, alonga-se con-
sideravelmente em Setembro ou Outubro. Este novo péllo forma um re-
vestimento que em domesticidade é excessivo, mais quente que o pre-
ciso e que tem o inconveniente de se impregnar facilmente de suor e de
conservar-se longo tempo humedecido. É para obstar a estes effeitos que
se faz a tosquia. A muda não se estende aos péllos da crina e da cauda;
estes são persistentes.
REGIME
A alimentação dos cavallos domésticos varia nas differentes locali-
dades; a base porém, é constituída sempre por plantas e grãos. Herbí-
voros como os bois, os cavallos exigem todavia ahmentos mais nutriti-
vos, porque não teem o estômago complexo d'estes ruminantes, e mais
abundantes em princípios albumínosos e fibrínosos. Os grãos, a aveia e
a cevada satisfazem inteiramente. Os pastos seccos conveem melhor aos
cavallos que os de legares pantanosos.
mamíferos em especial 273
ANDADURAS
As naturaes e communs, portanto, aos cavaUos domésticos e selva-
gens, são: o passo, o trote e o galope.
O passo é um movimento em quatro tempos. Se o animal levanta
primeiro, para romper a marcha, a mão direita, por exemplo, ergue em
seguida o pé esquerdo, depois a mão esquerda e em seguida o pé di-
reito; e assim successivamente.
O trote executa-se em dois tempos: o animal levanta simultanea-
mente dois membros, anterior e posterior, oppostos, que caem no solo
também simultaneamente; os dois outros fazem o mesmo. A progressão
é n'este caso duas vezes mais rápida que o passo.
O galope realisa-se em dois ou trez tempos: o animal salta, erguendo
ao mesmo tempo as mãos ambas e seguidamente os dois pés, ao mesmo
tempo também. Quando o galope é rápido ha um momento em que todos
os quatro membros estão no ar.
A estas andaduras, que chamamos naturaes por serem, como disse-
mos, communs a todos os cavallos, ha a acrescentar as artificiaes, que
são productos da educação. D'estas, as principaes são: o passo travado,
o furta passo e o entrepasso ou traquinado.
O passo travado executa-se como o passo ordinário em quatro tem-
pos: á mão direita segue o pé esquerdo e á mão esquerda o pé direito;
no entanto os movimentos são muito mais rápidos, mais desembaraça-
dos e os membros conservam-se sempre muito debaixo do corpo.
O furta passo é um processo de locomução em que os movimentos
são mais rasteiros e rápidos que no passo ordinário. Reahsa-se em dois
tempos : o animal levanta simultaneamente a mão e o pé do mesmo lado,
assim como também os descança ao mesmo tempo; depois faz o mesmo
com os outros membros. Esta andadura é commoda para o cavalleiro e
propriissima para longos percursos em caminho plano; muitas vezes os
cavallos adquirem esta andadura por motivo de doença ou cansaço.
O entrepasso ou traquinado é uma andadura em que os membros
anteriores se movem como em furta passo e os posteriores como em trote
ou galope; esta andadura é commum nos cavallos gastos e fracos dos
rins.
A velocidade do cavallo varia, diz Brehm, entre um e dois metros c
sessenta cenlimetros por segundo.
VOL, UI 18
274 IIISTOHIA NATUHAL
SENTIDOS
Os órgãos sensoriaes do cavallo são todos desenvolvidos e apresen-
tam uma notável perfeição.
A conformação dos olhos permitte-lhe estender a vista, na direcção
horisonta], a enormes distancias; e comquanto não seja um animal no-
cturno, é certo que vê de noite muito melhor que o homem. A choroidea
tem com eíTeito no cavallo o mesmo Lrilho que nos fejinos, diz Brehm.
O ouvido é fino e apurado; a grandeza e mobilidade extrema das
orelhas permitte-lhe receber e condensar ainda os sons mais fracos e
distantes.
O olfato é também no cavallo muito delicado; a amplitude das fos-
sas nasaes e a mobilidade das ventas são condições que tornam o órgão
de olfação d'este solipede propriissimo para receber as impressões odo-
ríferas. O cavallo, com eíTeito, presente o homem à distancia de meia
légua e descobre de muito longe os togares em que ha agua. «É sabido,
diz Brehm, que as caravanas dos árabes, dos tártaros e dos mongoes,
assim como os pastores bespanhoes na ilha de Caraça aproveitam, nos
calores do estio, o fino olfato dos cavallos para descobrirem depósitos
d'agua ignorados. Durante os quarenta annos que viveram no deserto,
os hebreus recorrem para o mesmo fim ao instincto d'estes solipedes.
Os cavallos africanos escarvam o solo para descobrirem as nascentes cuja
presença o instincto lhes denuncia.» *
O gosto é também no cavallo apuradissimo. Menault escreve: «A de-
licadeza do cavallo na escolha dos alimentos excede a de todos os herbí-
voros. O paladar é desenvolvido e o lábio superior dotado de uma grande
facilidade de movimentos, o que permitte ao animal palpar e juntar os
alimentos.» ^
A sensibilidade geral ou táctil é grande n'este solipede. Mao grado
o péllo denso que a cobre, a pelle é delicada na apreciação das impres-
sões; a prova é o incommodo que ao cavallo produzem as picadas dos
insectos.
1 Brehm, Ohr. cit., vol. 2.", pg. 331.
2 Menault, LHnteUigence des animaux, pg. 2il.
mamíferos em especial 275
VOZES
A voz do cavallo, que tem o nome de rincho ou relincho, consiste,
como se sabe, n'uma serie de sons entrecortados, muito agudos ao prin-
cipio, mais graves, claros e sonoros depois. Esta voz modula-se de cinco
maneiras differentes para exprimir sentimentos distinctos e dá origem
assim a outras tantas vozes.
Na voz ou relincho que exprime contentamento, os sons crescem
progressivamente em intensidade; adquirem n'este caso o tom mais forte
e o mais agudo.
Na voz que exprime um desejo, os sons prolongam-se, tornando-se
cada vez mais graves.
No relincho que denuncia cólera, os sons são curtos, agudos, muito
entrecortados.
Na voz produzida pelo medo, os sons são curtos, graves e roucos.
O relincho que a dor produz é um gemido, espécie de tosse suffo-
cada, de som grave e surdo que acompanha os movimentos respiratórios.
INTELLIGENGIA E APTIDÕES
«O cavallo, diz Scheitlin, tem as noções do tempo, do espaço, da
luz, das cores, da forma, da famiha, dos visinhos, dos amigos e inimi-
gos, dos companheiros, do homem e das coisas. Tem memoria, intendi-
mento, imaginação e sensibihdade. É susceptível de paixões: de amor e
ódio. O intendimento d'este animal aperfeiçoa-se pela educação.» A me-
moria do cavallo é grande, sobretudo a memoria dos legares. Reconhece
melhor do que o homem que o dirige um caminho que uma vez percor-
reu. Seguro de si, resiste teimosamente ao dono que o conduz por cami-
nho errado. Por estradas em que tenha passado, pode bem o cavalleiro
ou o cocheiro adormecer, que o animal caminhará até ao termo da jor-
nada, sem tergiversar. Ao fim de muitos annos, reconhece o alpendre
em que uma vez se recolheu e pára-lhe espontaneamente á porta.
A memoria das pessoas é também excellente no cavallo; reconhece,
passados annos, o antigo dono e, desde que o ve, procura manifestar o
276 HISTORIA NATUIIAL
contentamento por todos os modos, relinchando, estendendo para elle o fo-
cinho, saltando-lhe em torno. Se o monta alguém que não seja o cavalleiro
habitual, o solipede reconhece isto desde logo e para certificar-se volta a
cabeça para traz. Conhece a voz e comprehende as palavras do dono e
dos creados que o tratam. Abandonado no meio de um caminho, procura
a casa do dono e entra só na cavallaripa. «Em 1809, refere Huzard, pro-
fessor da escola de Alfort, os tyrolezes, por occasião de uma das suas
insurreições, aprisionaram quinze cavallos bavaros de que principiaram
a fazer uso, montando-os; mais tarde, tendo um encontro com um esqua-
drão do regimento bavaro, os cavallos ao avistarem o uniforme dos seus
antigos cavalleiros, metteram a toda a brida, levando sobre si os novos
possuidores, a despeito de todos os esforços em contrario por parte d'es-
tes, para as fileiras dos bavaros, que fizeram prisioneiros todos os tyro-
lezes.»
As quahdades intellectuaes do cavallo tornam-o apto a aprender
tudo quanto podem saber o elephante e o cão. Todos temos visto do que
este animal é capaz nos circos em que o exhibem adestrado. Á voz do
educador ergue-se sobre os membros posteriores, mantendo alguns ins-
tantes uma posição quasi erecta; obedecendo á mesma voz ou ao sim-
ples estahdo de um chicote, ajoelha, faz corcovos, executa todos os pas-
sos, ainda os mais difficeis, galopa e trota com uma velocidade maior ou
menor segundo as ordens que recebe, deriva repentinamente de um
passo a outro passo, de um galope a um trote, do trote ao passo, estaca
em meio da corrida mais violenta, finalmente dança em passos differen-
tes e adequados ao som da musica. Um cavallo bem adestrado é para
nós um verdadeiro motivo de admiração. Em taes condições elle com-
prehende todos os movimentos das mãos e dos pés do dono, intrepreta
todas as manobras do chicote e a palavra; elle tem dentro de si, como
diz Scheithn, um pequeno diccionario. É tal e tão progressivo o intendi-
mento do cavallo que, diz o naturalista citado, nós não devemos pergun-
tar o que elle pode aprender, mas sim que haverá que elle não possa
aprender. A sensibihdade moral é também no cavallo um facto incontes-
tável; além dos sentimentos, vulgares em outras espécies, de aff^eição e
ódio, manifestam muitos outros. A emulação é um d'elles. Os cavallos de
corridas possuem em alto grão esta emoção. WiUiam Youatt, citado por
Figuier, conta o caso de um cavallo corredor, habituado a sair victorioso
de quasi todos os torneios, mas que um dia, tendo a infelicidade de con-
correr com um adversário sério, e vendo que este lhe ganhava a dianteira
deu para elle um salto desesperado e o agarrou a dentes pela maxilla
inferior, obrigando-o assim a parar. Foi diíRcil, acrescenta o escriptor
inglez, separar os dois animaes. Um caso análogo, narrado pelo mesmo
escriptor, é o de um cavallo de corridas que vendo o adversário adian-
mamíferos em especial 277
tar-se lhe deitou os dentes a uma perna cora violência tal que para o
obrigar a deixar a presa foi preciso que os jockeys se desmontassem. O
sentimento da emulação é tal no cavallo de corridas que elle só deve
bastar para estimulo dos contendores.
EDADES
No primeiro anno de existência o cavallo apresenta um pêllo lanoso
e as crinas e a cauda curtas, hirtas e crespas; no segundo anno o pêllo
principia a tornar-se lusidio e as crinas e a cauda crescem e tornam-se
lisas.
A edade do cavallo reconhece-se pelos dentes incisivos ; este conhe-
cimento é importante, porque só por si decide muitas vezes do valor do
animal.
Os cavallos teem quarenta dentes e as éguas trinta e seis. Os den-
tes dividem-se em doze incisivos^ quatro presas ou colmilhos e vinte e
quatro mollares. Os dentes incisivos são seis em cada maxilla, seguidos
de dois colmilhos, um direito, outro esquerdo e seis queixaes por lado.
As presas, sobretudo as da maxilla inferior, faltam muitas vezes nas
éguas. Entre os colmilhos e os mollares existem, de cada lado, espaços
desguarnecidos, que se chamam barras e que servem, como dissemos,
para a coUocação do freio; estes espaços correspondem aos ângulos da
bocca. Os incisivos teem denominações particulares: chamam-se pinças
os dois mais anteriores de cada maxilla, médios os dois immediatos, um
de cada lado e cantos ou dentes angulares os últimos. De ordinário o
potro nasce sem dentes; mas se alguns apresenta, são dois mollares,
nunca incisivos. Ao fim de oito dias as pinças apparecem c durante todo
o primeiro mez rompe um terceiro mollar; os médios nascem dos trinta
aos quarenta dias e entre os seis mezes e meio e os dez saem os cantos
e o quarto mollar. Termina assim a primeira dentição ou dentição do leite
que se distingue da segunda, porque os dentes são n'aquella mais pe-
quenos, mais brancos e mais estreitos na base do que n'esta.
A segunda dentição principia entre os dois annos e meio e os trez.
Os primeiros dentes de leite que caem e se substituem são as pinças.
Dos trez annos e meio aos quatro são substituidos os médios e principiam
a apparecer também as presas inferiores. Dos quatro annos e meio até
278 HISTORIA NATURAL
aos cinco os cantos são subslituidos, rompem as presas superiores e ap-
parece o quinto mollar. Assim o cavallo de trez annos deve apresentar
quatro incisivos de segunda dentição; o de quatro annos, oito; e o de
cinco, deve possuil-os todos.
Na superfície da coroa dos incisivos ha uma cavidade que vae len-
tamente desapparecendo, á medida que o uso ou o attrito gastam estes
dentes; este phenomcno é o que se chama razamento. Por elle podemos
estabelecer ainda caracteres que sirvam para conhecer a edade do ca-
vallo. Com effeito, nas pinças inferiores da primeira dentição a cavidade
desapparece aos dez mezes, nos médios ao fim de um anno e nos cantos
ao fim de dois. Nos dentes da segunda dentição o desapparecimento da
cavidade ou completo razamento dá-se para as pinças aos seis annos,
para os médios aos sete e aos oito para os cantos. Dizem então os en-
tendedores que o cavallo está cerrado. Dos oito annos em diante não ha
signaes certos para reconhecer a edade do cavallo; pode apenas julgar-se
d'ella, approximativamente, pelo comprimento, pela cor e configuração
dos dentes.
Não é possível dizer com exactidão o limite da vida do cavallo do-
mestico, porque elle varia segundo um grande numero de condições entre
as quaes figuram em primeira linha o clima, a alimentação e o género
de trabalho. Ha exemplos de longevidade em que o termo da vida foi
aos cincoenta ou sessenta annos; são raros taes casos. Entre nós o ca-
vallo de vinte annos está de ordinário estropeado, incapaz de qualquer
serviço.
Na Rússia e na Inglaterra existem hospitaes destinados aos cavallos
invahdos que na edade do vigor e da força se nobilitaram por serviços
extraordinários.
DOENÇAS
O cavallo está exposto a um grande numero de doenças medicas e
cirúrgicas. As principaes são: o esparavão, temor com ankilose ou im-
possibilidade de movimentos na articulação tibio-tarsica; a dilatação in-
flamatória das glândulas submaxillares; a sarna, erupção secca ou hú-
mida que faz cair o pêllo; o mormo, inflamação pustulosa, mortal e de
grande contagiosidade, mesmo para o homem; a doidice, inflamação do
cérebro ou membranas envolventes e correspondente, portanto, na nossa
mamíferos em especial 279
espécie á encephalite e meningite; a catarata e finalmente as doenças
produzidas pela presença de entozoarios e epizoarios.
DESTINOS
Desde o cavallo de Luciíis Vérus, que vestia purpuras e que teve
um tumulo de mármore, e o cavallo de Calígula que foi pontífice e que
esteve para ser cônsul até aos míseros cavallos de praça, um dia inteiro
atrelados a um carro, que differenças de sortes, que variedades de des-
tinos !
Já o fizemos notar nas considerações geraes acerca dos mamíferos :
poucos animaes são tão infelizes como o cavallo. Não que elle seja mais
mal tratado ou forçado a trabalhar mais que o jumento ou o boi, por
exemplo; mas porque, sendo estimado na edade do vigor e da elegância,
é abandonado precisamente quando mais carecia de um tratamento bom.
Também não é raro, como fizemos notar n'outro ponto, que o cavallo
bem alimentado e cuidado com esmero na edade do aprumo por um pro-
prietário rico, venha a passar, desde que não serve para as exhíbíções
elegantes, ás mãos de algum rude carreteiro que o explora e maltrata.
Esta transição do luxo á miséria, da vida elegante á servidão abjecta,
deve ser horrível para um animal intellígente e susceptível como o ca-
vallo. O jumento e o boi trabalham muito, trabalham toda a vida e são
muitas vezes mal ahmentados; mas também como nunca conheceram vida
melhor, não teem a fina sensibilidade, os resentimentos, a consciência
de uma situação desgraçada. Vivem mal, mas viveram sempre assim e
não aspiram (perdoem-me o termo os psycologistas) a viver melhor. Não
é este muitas vezes o caso do cavallo; por isso o consideramos mais in-
feliz.
usos E PRODUCTOS
o cavallo, como o boi, é um companheiro e um collaborador do ho-
mem. Brehm considera-o, não sem motivo, um dos mais poderosos ins-
trumentos da civíhsação. E com eífeito, ou seja no campo de batalha, ou
280 HISTORIA NATURAL
seja nas aldeãs carregando c tomando parte nos trabalhos de lavoira, ou
ainda nas cidades puxando a carros ou servindo na equitação, o cavallo
presta ao homem serviços consideráveis e em parte mesmo insubstituí-
veis.
Mas além d'estes serviços prestados pelo animal durante a vida, de-
vemos considerar ainda que teem valor as substancias que nos lega,
morrendo. Com effeito, Parent-Duchâtelet calcula nos Annaes de hygiene
publica que um cavallo, morto por doença ou abatido por qualquer mo-
tivo, pode ainda produzir ao proprietário, que saiba exploral-o bem, uma
quantia que oscilla entre sessenta e dois e cento e quatorze francos. Pa-
rent-Duchâtelet faz o calculo minuciosamente, estabelecendo parcella a
parcella, os preços da carne, da pelle, dos ossos, dos tendões, dos cas-
cos, das crinas, do sangue, da gordura e das vísceras, porque de todas
estas partes tira proveito a industria e o commercio. Em Portugal ura
cavallo morto é uma coisa inútil, um pasto de cães vadios.
A carne do cavallo é, no dizer de Larrey e de Amédée Latour,
excellente ao paladar e muito saudável. Larrey, o cirurgião celebre, pres-
crevia-a aos seus doentes com os melhores resultados. Renault, director
da escola de veterinária de Alfort, deu em Agosto de 1855 um jantar em
que todos os pratos eram de carne de cavallo ou de boi; os convivas
acharam mais delicados os primeiros. A repugnância que geralmente se
sente pela carne do cavallo, ou antes pela idéa de a comer, porque pou-
cos chegam a proval-a, é um dos muitos preconceitos da educação aca-
nhada que recebemos. Como os celtas sacrificavam aos seus deuses os
cavallos cuja carne comiam depois, o clero catholico, inimigo enragé da
idolatria, considerou essa carne immunda. O papa Gregório iii escrevia
a S. Bonifácio, bispo da Germânia, que prohibisse o emprego da carne
do cavallo sob pena de severas penitencias. Vem d'ahi talvez, como pre-
tende Keyssler, o desprezo geral por um alimento que quantos o teem
provado declaram excellente. Mas seja esta ou outra a origem da nossa
repugnância pela carne cavallar, a verdade é que ninguém saberá justi-
ficar esse sentimento, ninguém .saberá dizer porque come a carne do boi
e não come a do cavallo. Ora quando pensamos que se abandonam pelos
montes centenas de cavallos velhos que a morte inutihsa e nos lembra
ao mesmo tempo a alimentação miserável da nossa gente do campo e
ainda da maioria dos operários das cidades que raras vezes comem carne,
não podemos deixar de sentir o preconceito geral. Devemos convir em
que, se é verdade existir muita miséria real e inevitável, é verdade
também que ha muita outra que só os prejuízos e as falsas educações
sustentam. O lavrador pobre que não come carne uma única vez no anuo
é o mesmo que atira á margem um cavallo cujo musculo Larrey e La-
tour chamam «salutar, nutritivo, aromático e magnifico ao paladar.» É a
^Sj^ií
mamíferos em especial 281
prodigalidade do mendigo! Latour diz: «Ao povo não falta carne; não
perca elle milhões de kilogrammas que pode utilisar como alimento.
RAÇAS CAVALLARES
Os cavallos constituem uma espécie única, dividida porém n'um
grande numero de raças. Não as estudaremos todas, mas as mais notá-
veis e mais estimadas.
1. Raças árabes
Entre todas as raças cavallares do Oriente merecem o primeiro logar
as raças árabes. Estas raças são para os indígenas, apreciadores e en-
tendedores sem rival, muito numerosas. Em geral, tcndo-se pouco em
conta pequenas diíferenças morphologicas que á grande maioria passam
desapercebidas e que só um apreciador sabe ver, falla-se no singular do
cavallo amhey como se existisse em realidade um só typo, uma espécie
nnica. E os próprios naturalistas, pondo de parte pequenas diflerenças
que não conhecem, descrevem um único typo, um pouco ideal, cer-
tamente, porque é preciso que todas as raças árabes ahi se achem conti-
das. Brehm, por exemplo diz com inteira franqueza: «É-me impossível
referir todas as minuciosidades que os árabes tomam em consideração
para exaltar a bondade do cavallo; nós, homens do norte, não as sabe-
mos e os nossos maiores entendedores são forçados a confessar, para
vergonha nossa, que não conhecem o cavallo árabe.» *
Brehm, Ohr. ciL, vol. 2.o, pg. 361.
282 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
O cavallo árabe é de todos os do mundo o mais bello e o mais ele-
gante. É bem construido, de formas sêccas, mas arredondadas e agradá-
veis e de pellè fmissima. Não 6 grande; raras vezes excede metro e meio
de comprimento. Tem a cabeça larga, a região frontal quasi quadrada,
as ventas largas e. muito abertas, a bocca pequena, as orelhas curtas,
direitas e muito moveis, o peito largo, os membros seccos e nervosos e
os cascos rijps. Sob a pelle lisa de péllo curto e macio desenham-se ni-
tidamente as veias que lhe percorrem o corpo em todas as direcções. O
pêllo é de ordinário russo e torna-se branco com a edade; ha porém in-
dividues pretos, baios e alazões. O pello fino e sedoso, de reflexos dou-
rados ou prateados, tem o brilho do setim. A musculatura é poderosa.
Os olhos são vivos e salientes. A crina não é muito abundante; os seus
pellos são finíssimos. A cauda é pouco coberta na origem; em compen-
sação os pellos extensos que a formam são muito abundantes na parte
inferior.
Nenhum cavallo possue como este a belleza, a força e a agilidade
ao mesmo tempo. É sóbrio; e no entanto pôde percorrer habitualmente
oitenta kilometros por dia.
O árabe não estima o cavallo somente pela belleza de formas, mas
ainda e principalmente pelas qualidades. Tanto assim é que os que es-
colhe para a propagação da raça nem sempre são os mais bem feitos;
muitas vezes os mestiços são muito mais bellos que os cavallos de sangue
puro. O famoso Godolphin, cavallo árabe que mais contribuiu para a
creação da actual raça cavallar ingleza, era feio e ligára-se-lhe tão pouca
importância que andava atrelado a uma carroça de aguadeiro em Paris.
ViziVj um outro cavallo celebre de cobrição, era também feio; e Turck-
mainati, o ascendente da raça tão estimada de Trakenen, na Prússia,
puxava á malla do correio entre Damas e Alep. Ahi o descobriu um apre-
ciador que o comprou e trouxe para a Europa.
«Os árabes, diz Brehm, estão firmemente convencidos de que, atra-
vez dos séculos, os seus cavallos se teem conservado puros; e na reali-
dade é extremo o cuidado com que vigiam a reproducção para que não
haja mistura de sangue estranho. O acto sexual e o parto nunca se rea-
Usam senão diante de testemunhas. O proprietário de um bom cavallo
mamíferos em especial , 283
de cobrição deve emprestal-o para copular égua de raça; sendo esses
cavallos muito estimados, os donos de boas éguas fazem muitas vezes
viagens de centos de léguas para as levarem á cobriçao. Em troca do
favor prestado, o dono do cavallo recebe uma certa porção de cevada,
um carneiro ou um odre de leite que o possuidor da égua lhe leva.
Nunca acceita dinheiro; se tal fizesse ficaria sujeito a que o injuriassem
dizendo-lhe que traficou com o amor do cavallo. Tal phrase é deshonrosa
para um árabe. Só quando ao possuidor de um bom cavallo de cobriçao se
pede que o empreste para copular uma fêmea de raça inferior é que elle
tem o direito de recusar. Entre os árabes, famosos conhecedores de ra-
ças, tal caso raríssimas vezes se dá.» * A geneologia dos cavallos, entre
estes povos, é tão authentica como a das famílias mais distinctas da no-
bresa; é o que perfeitamente se exphca pela presença de testemunhas
nos actos do coito e da parturição. A égua é tratada durante a prenhez
com todos os desvellos. O potro vive, desde os primeiros dias, na tenda
do árabe, como se fizesse parte integrante da familia; é por isso que os
cavallos árabes são verdadeiros animaes domésticos, como o cão. Po-
dem-se com segurança deixar ao pé das creancinhas, com que muitas
vezes brincam, á maneira dos grandes cães.
O potro recebe além do leite materno o da fêmea do camello. A ce-
vada é-lhe fornecida, desde que os dentes podem tritural-a; depois de
desmamado principia a dar-se-lhe a melhor herva, continuando porém a
cevada a formar a base de alimentação.
A educação do cavaho árabe principia aos dezoito mezes e prolon-
ga-se até á edade adulta. Ao principio é sempre uma creança que o
monta, que o leva a beber ou ao pasto, que o limpa, emfim que d'elle
cuida. Assim aprendem simultaneamente o cavallo e a creança: um a ser
um dócil animal de sella, o outro um destro cavalleiro.
Aos dois annos pôe-se pela primeira vez o selim e o freio ao cavallo.
Procede-se com precaução: o selim é sempre muito leve e o freio guar-
necido de lã e muitas vezes humedecido em agua e sal para que o so-
lipede se lhe habitue facilmente. Aos trez annos principia a exigir-sc-lhe
trabalho, obrigando-o ao exercício das forças que possue e não se lhe
negando quanto ahmento quizer. A educação do cavallo só se considera
completa aos sete annos.
O cavallo é para o árabe um verdadeiro thesouro; a morte do ani-
mal impóe lucto de mezes ao dono. «O cavallo, dizem os árabes, é a
mais bella creatura depois do homem: o mais nobre mister é educal-o;
o maior gozo montal-o; a melhor das occupaçôes domesticas, tratal-o.»
Brehm, Ohr. ciL, vol. 2.o, pg. 3G3.
284 HISTORIA NATURAL
É diíRcil obter do árabe um bom cavallo de cobrição; mas mais diífi-
cil 6 obter uma égua. A fcmca com eíTeito, é tida em maior valor; não
ha dinheiro que a pague a um árabe.
Na dedicação extrema do árabe pelo cavallo deve ter exercido uma
grande influencia o principio de Mahomet: — ganharás tantos dias de in-
dulgência quantos os grãos de cevada que deres cada dia ao teu cavallo.
2. Raça persa
Os cavallos persas tornaram-se celebres, séculos antes dos árabes.
Eram tidos na conta dos melhores para a guerra e formavam a mais se-
lecta cavallaria do Oriente. Os parthas quando queriam propiciar os deu-
ses por um sacrifício solemne e extraordinário, immolavam-lhes um ca-
vallo persa. As raças conservam-se ainda puras.
CARACTERES
Os cavallos persas teem grandes aíTmidades com os árabes. São po-
rém superiores a estes em belleza de formas. Teem a cabeça mais es-
treita e a garupa mais bem feita.
APTIDÕES E EMPREGO
Satisfazem a todos os fins em que se utilisam os cavallos árabes.
São mais velozes dO que estes na carreira, mas não a sustentam por
tanto tempo. Assim n'uma corrida de confronto entre um cavallo árabe e
um cavallo persa, vé-se sempre que este ganha ao principio uma grande
dianteira que mais tarde perde invariavelmente, porque se fatiga sempre
mais depressa que o adversário.
mamíferos em especial 285
3. Raças turcas
O cavallo turco é um mestiço que resulta do cruzamento dos cavai-
los persa e árabe.
caracteres
Assemelha-se notavelmente ao cavallo árabe, principalmente na ca-
beça. Para o distinguir d'este é mister ser-se um consumado entende-
dor; a única diíferença apreciável consiste em que é mais alto.
aptidões e emprego
Assim como pelas formas physicas se approxima mais do cavallo
árabe, pelas qualidades e aptidões assemelha-se mais ao cavallo persa.
É de notar que na Turquia os cavallos inutilisam-se muito rapidamente,
porque são, em geral, mal alimentados e porque os forçam a exercícios
violentos depois de os terem conservado na immobilidade durante muito
tempo. Um costume irracional que existe na Turquia e que deve também
concorrer muito para estragar os cavallos, é o de os manterem nas ca-
vallariças prezos pelos quatro membros. Depois d'este repouso forçado
durante o qual os cavallos engordam excessivamente, vêem as marchas
demoradas em que se lhes exige uma velocidade com que não podem^
não só pelo enfraquecimento dos músculos, como pelo pezo.
4. Raça barba ou numida
O cavallo numida que muitos conhecem mais pelo nome de cavallo
argelino goza sob o ponto de vista das suas aptidões para a guerra, de
uma reputação extraordinária que lhe vem do tempo dos romanos. O
clima, a natureza da vegetação, as condições do solo e a educação espe-
286 HISTORIA NATURAL
ciai que recebe desde tempos remotissiraos, fizeram d'este cavallo o me-
lhor para a guerra. As luctas quasi constantes das tribus umas com as
outras, implicando o emprego frequente d'este cavallo, suggeriu também
a idea de, por meio de uma reproducção sempre vigiada e de uma ali-
mentação e educação próprias, conservar inalteráveis as suas famosas
disposições.
CARACTERES
o cavallo numida approxima-se muito do cavallo árabe. Tem a mesma
seccura de carnes, a mesma força, o mesmo porte altivo. As formas são
bellas; a volta do pescoço é graciosíssima.
APTIDÕES E EMPREGO
O cavallo numida ou argelino é, como foi dito, particularmente apro-
priado aos exercícios da guerra. Mas, além d'isto, a rijeza da muscula-
tura e o vigor dos pulmões, tornam-o propriissimo para a corrida. É ro-
bustíssimo. Na guerra da Crimeia, ao passo que os cavallos francezes e
inglezes eram dizimados, o cavallo argelino resistia.
5. Raças inglezas
Dos cavallos inglezes o mais importante a considerar é o cavallo
das corridas, o thorough hrecly o jpuro sangue. Á opinião muito vulgar
que faz derivar este cavallo do cruzamento das raças árabes com as ra-
ças do norte da Europa, oppõe-se Brehm vigorosamente. Segundo este
auclorisado naturalista, o cavallo corredor inglez é o cavallo árabe de
puro sangue que as condições do clima insular e uma educação especia-
líssima trouxeram ao typo actual. É pois perfeitamente justa, segundo o
escriptor citado, a denominação ingleza de thorough brecL Brehm adduz
provas históricas em abono da sua affirmativa; além disso faz notar que
os cavallos do Oriente cruzados entre si, educados com soUicitude espe-
mamíferos em especial 287
ciai e creados com alimentação succúlenta adquirem maior velocidade
que a normal e dão filhos de mais elevada estatura que a d'elles.
caracteres
O cavallo de corridas é o melhor de quantos a Inglaterra possue.
Aos caracteres peculiares da raça árabe vêem juntar-se caracteres se-
cundários que os distinguem do typo oriental. O cavallo corredor é mais
alto que o cavallo árabe e tem o corpo mais alongado e menos arredon-
dado que elle. A gymnastica do galope tornou-lhe os membros mais al-
tos, mais delgados e a garupa mais elevada.
APTIDÕES E EMPREGO
O cavallo corredor inglez não possue nem a graça, nem a flexibili-
dade dos cavallos orientaes. A dureza do seu trote é tal que é preciso
montal-o de um modo particular: d ingleza. É pouco dócil ao manejo e
absolutamente impróprio para as manobras da equitação. A verdadeira
aptidão do cavallo inglez é a corrida; o seu destino é também esse quasi
exclusivamente.
O cavallo corredor é hoje na Inglaterra tratado com os mesmos cui-
dados com que entre os árabes é o seu congénere oriental. A educação,
embora differente, porquô visa a um fim distincto, é tão desvelada como
a do cavallo árabe e o tratamento e creação egualmente sollicitos. lia
também na Inglaterra, como entre os árabes, as arvores genealógicas
que authentificam a pureza dos cavallos de corridas. Essas arvores ge-
nealógicas, stud-book^ foram estabelecidas ha sessenta annos e não ce-
dem na exactidão com que estão feitas ás correspondentes dos árabes.
Os inglezes apontam também com meticuloso cuidado os nomes de
todos os cavallos que se tornam celebres nas corridas, fazendo minu-
cioso archivo dos prémios obtidos em tal ou tal data, em tal ou tal hyp-
podromo.
As corridas de cavallos remontam seguramente ao século xii; a sua
instituição regular porém, data do reinado de Carlos r. A mais celebre
288 mSTORIA NATURAL
das corridas inglezas é uma aniíual, a Derby-Stakes, que se realisa em
Epsom. Concorrem a ella todas as celebridades do sport e os melhores
cavallos corredores. O premio grande d'essa corrida eleva-se a perto de
cento e oitenta mil francos, ou mais de trinta e dois contos de reis.
William Youatt lastima que nas corridas se tenha introduzido o bár-
baro costume prejudicial de esporear os cavallos. Os jockeys represen-
tam hoje nas corridas um papel que devia pertencer exclusivamente aos
cavallos. Segundo este auctor, o cavallo inglez possuiu já um sentimento
de emulação e de obediência maior que hoje possue; e este declinar de
qualidades boas deve attribuir-se ás artificiaes e cruéis excitações dos
cavalleiros. Em outro tempo, o cavallo, quando a corrida principiava,
sabia bem o que lhe cumpria fazer até ao fim; e então, o chicote e a es-
pora em uso hoje, eram objectos inúteis.
Além do cavallo de corridas possuem os inglezes outras raças des-
tinadas a fins differentes; entre ellas merece menção especial o hunter^
o cavallo de caça, de construcção mais dehcada, mas ao mesmo tempo
mais forte, mais vigoroso ainda que o cavallo de corridas.
6. Raças francezas
Os cavallos francezes gozavam na antiguidade de uma grande fama;
os romanos tiveram na mais alta estima os cavallos gaulezes. Na edade
media tinham universal reputação os cavallos normandos, fortes e ágeis
e os limosinos, excellentes cavallos de parada.
A extincção do feudahsmo e o desapparecimento das coudelarias dos
ricos senhores marcam na historia o começo da degradação das raças
francezas. Nos últimos quarenta annos, imitando a Inglaterra, a França
tem procurado restabelecer as famosas e antigas raças nacionaes pelo
cruzamento com os cavallos árabes e barbos. A instituição de corridas
periódicas tem contribuído também para o melhoramento das raças fran-
cezas.
7. Raças allernãs
Os cavallos allemães são mestiços : provêem do cruzamento de éguas
indígenas com cavallos de cobrição árabes, inglezes, barbos e hespanhoes.
Ha raças differentes d'esses cavallos; mas cm geral pode dizcr-se que
são de elevada estatura, sólidos, hgeiros e bem feitos.
mamíferos em especial 289
APTIDÕES E EMPREGO
Das raças allemãs, umas são exclusivamente empregadas para tirar
carros, outras para a cavallaria. Ha-as que se empregam, como o cavallo
hanovriano, indifferentemente para os dois serviços.
8. Raça hespanhola
O typo mais notável de cavallos hespanhoes é o andaluz.
CARACTERES
É menos delgado e comprido que o cavallo inglez, mas tem o peito
mais largo e o pescoço mais forte e mais levantado. Tem a região fron-
tal curta e a cabeça volumosa. No restante, é o cavallo andaluz um dos
que mais se approximam do typo árabe.
APTIDÕES E EMPREGO
É flexível, elegante e dotado de extrema coragem. Os romanos tive-
ram este animal em alta consideração; e por muito tempo foi conside-
rado o primeiro cavallo da Europa. Nos fins do século xvi era conside-
rado o cavallo de sella por excellencia, porque reunia no mais alto
grão a flexibilidade e o equilíbrio, duas condições exigidas pela alta es-
cola de equitação. Era a este equideo que em toda a parte se recorria
para a multiplicação dos cavallos de guerra. Ainda hoje o principal des-
tino do cavallo andaluz é o manejo de cavallaria.
VOL, III 19
290 HISTORIA NATURAL
9. Raças portuguezas
N'este ponto, como n'aquelle em que tratamos das raças bovinas do
nosso paiz, reportamo-nos a um trabalho do snr. Pedro Posser inserto
nas Maravilhas da Creação e feito sobre o Recenseamento geral dos ga-
dos em 1870 do snr. Silvestre Bernardo Lima, publicação que não pude-
mos ler. N'esse trabalho os typos portuguezes são reduzidos a dois: o
galliziano e o betico-lusitano.
Typo galliziano
Distinguem este typo os caracteres seguintes: «Cabeça grossa, pelo
geral mais curta do que comprida, amartellada, ganachuda, de orelhas
pequenas e direitas; costado ligeiramente arredondado, dorso e rins
curtos e largos: garupa um tanto horisontal e mais vezes larga que es-
treita, de ancas grossas, sensivelmente pontudas; cauda de sabugo grosso,
bem crinada de grossas crinas; membros pelo geral menos mal apruma-
dos, grossos de osso e pelle, de espáduas um tanto direitas e de ordi-
nário machinhudos; estatura pelo mais commum abaixo de um metro e
trinta e dois centímetros.»
Os gallizianos são, segundo o trabalho citado, de rija tempera, muito
ciosos e rufões por índole.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O solar d'este typo é ao norte do paiz, principalmente na província
do Minho; este solar estende-se, raias a fora, pela Galliza, províncias
vascongadas e Navarra.
Typo betico-lusitano
Afíirma-se este typo pelos seguintes caracteres: «Cabeça delgada ou
secca, direita ou um tanto acarneirada, de regular comprimento (pec-
mamíferos em especial 291
cando mais vezes por comprida que por curta), de orelhas regulares,
bem coUocadas e delgadas; pescoço mais ou menos grosso, direito e um
tanto rodado, e de boa volta e bem crinado; costado ligeiramente arre-
dondado tirante a chato, dorso um pouco ensellado; garupa regular, não
pontuda de ancas e um tanto descaída; cauda de baixa inserção bem cri-
nada e de crinas finas; ventre um pouco volumoso; membros um tanto
acurvilhados, os de traz, espáduas não mui obliquas, ante-braços um
pouco curtos, canellas um tanto compridas, e assim também por vezes
as quartellas; estatura variável entre um metro e trinta e oito centíme-
tros e um metro e cincoenta centímetros.»
Os cavallos d'este typo são de boa Índole, mas não teem a rija
tempera dos gallizianos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O solar da producção d'este typo abrange toda a extensão da Betica
e Lusitânia dos romanos, a província de Andaluzia e Extremadura hespa-
nhola e todo o Portugal d'hoje, nomeadamente as províncias do sul.
No typo betíco-lusítano, que é o mais geral do nosso paiz, ha ainda
a estabelecer uma distíncção entre as castas finas e as communs.
Nas castas finas comprehendem-se os indivíduos saldos de bons re-
productores e creados com esmero. Nas castas communs comprehendem-se
principalmente os exemplares em que as influencias naturaes se fazem
sentir mais vivamente que a acção do homem.
Como exemplo das castas finas cita-se o cavallo de Alter. A marca é
de cincoenta e cinco a cincoenta e oito pollegadas; os que não attingem
estas dimensões chamam-se facas.
Entre as castas communs, menos esveltas nas formas, os melhores
typos são os cavallos alemtejanos. Os beirões distínguem-se dos typos
das províncias do sul, principalmente pelo maior comprimento do corpo
e da cabeça que é estreita e de olhos pequenos e pouco aflorados.
292 HISTORIA NATURAL
OS JUMENTOS
Zoologistas ha que incluem os jumentos no grupo genérico dos ca-
vallos propriamente ditos; á maneira porém de Brehm e de Figuier, fa-
remos d'estes solipedes um género á parte, estabelecendo, como esses
auctores, os fundamentos da divisão.
CARACTERES
Os cavalios apresentam, como dissemos, um manto uniforme ou
quasi uniforme; pelo contrario, os jumentos apresentam sempre ao longo
da columna vertebral uma facha mais escura que a cor geral, facha que
muitas vezes é crucialmente cortada por uma outra ao nivel da espá-
dua. Muitos individues apresentam mesmo nos membros, acima ou abaixo
dos joelhos, uma certa porção de pêllo muito mais carregado na cor. As
orelhas dos jumentos são extremamente mais compridas que as dos ca-
valios e a cauda crinada apenas na extremidade livre por pêllos curtos
e rectillineos. Os cascos dos jumentos são mais ovaes que os dos cavalios,
a espádua é menos elevada e o numero de callos é de dois somente, um
em cada membro anterior.
DISTRIRUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Com quanto largamente espalhados hoje por toda a parte, os ju-
mentos provêem exclusivamente da Ásia e da Africa, sua verdadeira pá-
tria.
mamíferos em especial 293
O ONAGRO
É uma das espécies selvagens do género. Sabe-se pelos escriptores
antigos que o onagro habitou toda a Ásia Menor, a Syria, a Pérsia e a
Arábia. Xenoptionte affirma ter visto numerosos bandos nas margens do
Euphrates. A Biblia faz menpão d'este animal; Strabão e Plinio faliam
d'elle como tendo-o observado de perto.
Depois da queda do império romano houve um largo período de sé-
culos em que ninguém se occupou d'este sohpede; Palias veio quebrar
o silencio chamando sobre elle a attenção dos naturaUstas, no século
passado.
caracteres
O onagro é um pouco mais pequeno que o hemione, outra espécie
selvagem de que adiante nos occuparemos, mas maior e mais delgado
das pernas que o jumento domestico. A cabeça é maior que a do he-
mione; os lábios espessos apresentam bigodes rijos e abundantes. As
orelhas são compridas, mas menos que as do jumento domestico.
A cor dominante do pêllo nas partes inferiores e internas é o branco
argênteo; as partes superiores e externas são izabel ou cor de camurça,
um pouco mais escura na cabeça, aos lados do pescoço, nos flancos que
em qualquer outra parte do corpo. Sobre os flancos corre uma hstra
branca da largura de uma mão travessa; uma outra cor de café cora
leite estende-se ao longo do dorso.
O pêllo de inverno pode comparar-se á lã do camello, o de verão
é fino e Uso, mais macio ainda e mais sedoso que o dos cavallos. Os
péllos terminaes da cauda são lanosos e teem de comprido oito a dez
centímetros.
294 fflSTOBIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Parece habitar ainda hoje as regiões visinhas das emboccaduras do
Indo, estendendo-se até á Pérsia e á antiga Mesopotâmia.
COSTUMES
O onagro é sociável; vive sempre em bandos capitaneados por um
macho forte. N'esta espécie os machos são menos ciumentos que em ou-
tras, porque se juntam muitas vezes nas suas excursões; isto não quer
dizer que na epocha do cio se não dêem violentos combates.
O onagro é velocíssimo na carreira. Xenophonte dizia já que elle ex-
cede os mais céleres cavallos e os auctores antigos partilhavam todos
a mesma opinião. Porter confirma o dizer dos antigos, affirmando que,
montado n'um excellente cavallo árabe, não pudera alcançar um onagro
atraz do qual corria, persuadido de que se tratava de um antílope.
Os sentidos do onagro são muito perfeitos; o ouvido, a vista e o
olfato, sobre tudo, são de uma dehcadeza inexcedivel. É por isso difficil
approximar-se d'elle alguém.
Este solipede é dotado de uma extrema sobriedade; não bebe agua
mais que uma vez de dois em dois dias. Prefere para ahmento as plantas
salgadas e depois as de sueco amargo. Não come as plantas aromáticas,
as dos pântanos, as espinhosas ou os cardos de que tanto gostam os ju-
mentos domésticos. Prefere a agua salgada á agua pura; mas para beber
uma ou outra exige que tenha uma perfeita hmpidez.
CAÇA
Na Ásia central é muito vulgar a caça ao onagro. Os processos em-
pregados são differentes: uns fazem-lhe fogo, outros limitam-se a abrir
mamíferos em especial 295
fossos ligeiramente cobertos por uma ténue camada d'herva, nos legares
em que o animal costuma transitar. O solipede, que não descobre a ar-
madilha, cae muitas vezes. Os onagros até aos trez annos que assim se
captivam, vendem-se por bons preços para as coudelarias dos grandes
senhores.
domestigidade
O onagro trazido á domesticidade é empregado com magníficos re-
sultados. A rapidez da corrida é uma das qualidades que o tornam esti-
mável e superior ao camelo e ao dromedário; a sobriedade permitte-lhe
concorrer com estes ruminantes. Com uma alimentação verdadeiramente
insignificante, o onagro corre dias inteiros com uma velocidade verda-
deiramente espantosa, muito superior á do dromedário.
A domesticidade d'este solipede attinge um alto grão. Teem vivido na
Europa alguns indivíduos que seguem o dono por toda a parte como o
cão. Um dos ahmentos favoritos do onagro captivo é o pão; com um pe-
daço d'esta substancia o homem conduz o solipede para onde quizer.
usos E PRODUCTOS
Para o habitante das steppes d'Asia, o onagro é um animal utillis-
simo. A carne d'elle passa por ser excellente; os persas e mesmo os
árabes, muito exigentes na questão de alimentos, affirmam isto. Os ro-
manos davam também um grande apreço á carne do onagro, segundo
refere Plinio. «A carne dos onagros ainda novos, diz este auctor, cons-
tituo um aceppipe delicado.»
A bile d'este solipede é pelos persas empregada contra doenças
d'olhos e a pelle serve, entre outros povos, para o fabrico de calçado.
296 mSTORIA NATURAL
O JUMENTO D'AFRICA
O jumento das steppes d'Africa é 'alto, elegante, de um pardo acin-
zentado ou camurça, com o ventre mais claro, a cruz dorsal fortemente
pronunciada, a face externa dos membros coberta de listras negras trans-
versaes, mais ou menos nitidas. A crina é muito curta e muito fraca; o
tufo caudal é forte e comprido. Os membros raiados d'este solipede cons-
tituem um caracter importante que nos permitte ver n'elle um typo in-
termediário ao grupo dos jumentos e das zebras.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
É muito vulgar nas margens do Atbara, confluente do Nilo, e nos
descampados de Barka. A área de dispersão d'este solipede estende-se
até ás costas do mar Vermelho.
COSTUMES
Vive como o onagro em grupos. Cada bando, composto ordinaria-
mente de dez a quinze fêmeas, é capitaneado e defendido por um macho
único.
O jumento d'Africa é prudente e desconfiado; por isso é difficillima
a sua caça. Corre com notável rapidez como o onagro.
mamíferos em especial 297
DOMESTICIDADE
Reduzido ao captiveiro nos primeiros tempos de existência, o ju-
mento africano attinge um alto grão de domesticidade. Torna-se dócil e
submette-se facilmente ao trabalho. Emfim, parece prestar aos indígenas
os mesmos serviços que a nós presta o jumento domestico.
O HEMIONE
A primeira descripção completa d'este solipede foi feita no século
passado por Palias.
CARACTERES
Mede mais de metro e meio desde o vértice da cabeça até a ori-
gem da cauda. O comprimento da cabeça é de cincoenta e cinco centi-
metros; o da cauda, sem péllos, é de quarenta e quatro. Assim o com-
primento total d'este solipede é de dois metros e sessenta centimetros a
dois metros e oitenta; a altura é de um metro e trinta centimetros ao
nivel da espádua.
A cabeça é maior que a do cavallo e mais comprimida lateralmente.
O pescoço é arredondado, elegantemente curvo; os membros são altos e
finos. A cauda assemelha-se á das vaccas; é fina e coberta apenas na
extremidade de pêllos sedosos e escuros que formam um tufo de vinte
e cinco centimetros de comprimento. As orelhas são compridas; menos
298 HISTORIA NATURAL
porém que as do jumento domestico. As ventas são abertas, dilatadas
como as dos cavallos. Do vértice da cabeça até á espádua estende-se
uma crina de péllos macios, escuros, de sessenta centimetros de compri-
mento, termo médio.
O manto varia com as estações. No inverno os pêllos são crespos,
de um pardo camurça e de seis centimetros de extensão; no estio, não
excedem um centimetro. O focinho e os membros são geralmente mais
claros que o resto do corpo. Da extremidade da crina parte uma facha
negra que se prolonga ao longo do dorso e da cauda.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O hemione vive nas planicies e nos platós seccos e descobertos da
parte oriental da Ásia e da Mongólia. Junto do lago Tarei é hoje muito
vulgar. A caça tem affastado este solipede de algumas regiões, em que
foi commum e onde actualmente se não encontra senão excepcionalmente.
COSTUMES
O hemione vive, como o onagro e como o jumento africano, aos ban-
dos. Os velhos machos capitaneiam ás vezes grupos de vinte fêmeas e
pequenos machos ainda não aptos cara a reproducção; o caso mais geral
porém é o de pequenos grupos de cinco a dez individues. Na epocha do
cio ha grandes combates entre os chefes dos bandos e os que se propõem
a substituil-os no commando.
No outomno reahsa o hemione verdadeiras emigrações. É com eífeito
então que os machos novos, distanciando-se dos bandos, percorrem as
vastas planicies em procura de companheiros que se lhes associem para
constituírem bandos de que serão os chefes. O hemione é então verdadei-
ramente indomável. Corre por toda a parte como furioso, com as ventas
dilatadas, a cauda erguida, as orelhas inclinadas para diante, em busca
de um rival. Se descobre um bando, precipita-se sobre o chefe e trava-se
entre elles uma lucta violenta em que é vulgar perderem, um e outro,
alguns pedaços de pelle.
mamíferos em especial 299
Os sentidos do hemione são muito desenvolvidos; presente o homem
a enormes distancias. E é precisamente por isso que se torna diíTicillimo
observar este solipede em liberdade.
O hemione rivahsa em rapidez com o onagro.
A epocha da parturição é na primavera; a fêmea dá á luz um filho
único que ao fim de trez annos está adulto.
CAÇA
A caça do hemione proseguida com verdadeira paixão pelos indíge-
nas é, como dissemos, diíficil. O que importa n'esta caça é matar o chefe
do bando que se persegue; conseguido isto, não é raro que se apanhem
ou matem também os outros membros do grupo que, perdido o director,
correm espantados e sem destino em todas as direcções, não calculando
os perigos que podem correr.
O processo da embuscada dá algumas vezes bons resultados. O ho-
mem, armado de uma boa espingarda, espera o bando ou bandos, es-
condido por traz de uma arvore e coUocado contra o vento, perto de
uma corrente d'agua. Quando um grupo se approxima para beber, o ca-
çador faz pontaria sobre o chefe.
O cavallo é muitas vezes utiUsado com grande vantagem n'esta caça.
O caçador parte de manhã muito cedo para o alto de uma montanha
d'onde possa facilmente descobrir os bandos dos hemiones. Vae montado
n'um cavallo a que tem o cuidado de ligar as crinas para que não flu-
ctuem ao vento. Chegado ao topo da montanha, apeia-se e deixa o ca-
vallo a pastar, affastando-se uns cem passos pouco mais ou menos da ca-
valgadura e deitando-se no chão em decúbito ventral. O bando dos he-
miones, mal descobre o cavallo, torna-se inquieto; e o chefe julgando
vêr n'elle um jumento da sua espécie corre-lhe rapidamente ao encontro.
Quando chega a uma pequena distancia do cavallo descobre o seu erro
e estaca a observar espantado. É então que o caçador faz fogo. É este
talvez o melhor de todos os processos de caça.
300 HISTORIA NATURAL
CAPTIVEIRO
«Quando Palias, diz Brehm, descreveu o hemione não se sabia se
este solipede era ou não susceptivel de domesticação. Palias ignorava
pois que em certas regiões da Ásia, a espécie se encontra desde muito
submettida ao dominio do homem.» * Se, como notou F. Cuvier, os mon-
goes se não applicarara nunca á domesticação do hemione, porque o ca-
vallo e o camello bastam perfeitamente ás suas necessidades, outros po-
vos ha, de commercio e industrias numerosas, para que a sujeição do
hemione constituía uma necessidade que procuraram desde muito satis-
fazer. Esses povos empregam principalmente o hemione como besta de
carga.
O hemione trazido á Europa por differentes vezes, tem manifestado
ao fim de algum tempo de captiveiro docilidade bastante para submet-
ter-se a variadíssimos trabalhos.
As uniões sexuaes do hemione com a jumenta domestica são fecun-
das. O producto é um jumento vigoroso, rápido, de formas muito elegan-
tes e de uma mais fácil domesticação que o hemione.
usos E PRODUGTOS
A caça do hemione é multo productlva. Os tongusas apreciam multo
a carne d'este solipede e os mongoes pagam por alto preço a pelle. Se-
gundo a crença popular, a cauda com os péllos termlnaes gosa de ma-
ravilhosas virtudes therapeutlcas na cura de outros anlmaes.
1 Brehm, Obr. ciL, vol. 2.», pg. 717.
mamíferos em especial 301
os MUARES
Designam-se por este nome os productos hybridos, infecundos ou de
fecundidade muito limitada, que resultam do cruzamento das espécies
cavallar e asinina. O muar, filho de égua e de jumento, é o mulo pro-
priamente dito ou macho, ou ainda eguariço; o filho de cavallo e de ju-
menta é o asneiro. O primeiro é muito mais vulgar.
CARACTERES DO MULO
Tem dimensões quasi eguaes ás da égua. Varia no comprimento en-
tre metro e meio e um metro e sessenta e cinco centímetros. Tem as
formas geraes da mãe e herda do pae o comprimento das orelhas, a
cauda pouco provida de péllos, as pernas seccas e vigorosas, os cascos
estreitos e a saúde robustíssima.
A fêmea ou mula é mais estimada para todos os serviços e paga-se
por preços mais elevados que o macho.
A côr do pêllo é de ordinário a do pae.
CARACTERES DO ASNEIRO
É mais pequeno que o macho e não tem as formas tão elegantes.
Tem a cabeça mais comprida, as orelhas mais curtas, as pernas mais
grossas e a cauda mais coberta que o macho ou o jumento. Relincha
como o cavallo.
302 HISTORIA NATURAL
CONSIDERAÇÕES GERAES
Os muares em geral parecem-se nas formas mais com a mãe que
com o pae; nos costumes porém é a estes principalmente que se asse-
melham.
O cruzamento das espécies cavallares e asininas não se faz nunca
espontaneamente; é necessária a intervenpão do homem e o emprego de
uns certos artifícios. Os jumentos e cavallos que vivem no estado livre
teem uns pelos outros um ódio que vae até ao ponto de se darem en-
carniçados combates. São pois necessárias precauções especiaes para
obter o cruzamento.
O jumento de cobrição não manifesta grande repugnância em copu-
lar a égua; esta porém não o recebe facilmente. Pelo contrario a jumenta
recebe com facilidade o cavallo; este porém não copula a jumenta espon-
taneamente. De ordinário tapam-se os olhos á égua que tem de ser co-
berta por um jumento depois de se lhe ter mostrado um cavallo de for-
mas elegantes. Procede-se semelhantemente em relação ao cavallo que
tem de cobrir uma jumenta; tapam-se-lhe os olhos depois de elle estar
excitado pela vista de uma égua. É mais fácil obter o cruzamento entre
animaes que se conhecem desde muito tempo e em que o habito tem na-
turalmente obhterado em parte a antipathia nativa. Os romanos sabiam
isto, juntavam e faziam viver nas mesmas cavallariças os cavallos e ju-
mentos de que pretendiam obter hyb ridos. Os hespanhoes e os america-
nos do sul procedem de egual forma.
Os muares reúnem quasi sempre as qualidades dos pães: teem a
sobriedade e a paciência do jumento unidas á força e á coragem do ca-
vallo.
DESTINOS
Os muares são utilíssimos como bestas de carga, de lavoura, de tiro
e mesmo de sella, muito principalmente nos togares montanhosos e em
caminhos ásperos e em declive. O cavalleiro pode bem confiar na soUdez
dos membros do solipede e na sua rara prudência.
mamíferos em especial
303
O JUMENTO DOMESTICO
Quem o não conhece? É o typo da paciência, do soffrimento obscuro,
do trabalho sem tréguas. Alvo das zombarias e dos maus tratos de todos,
elle cumpre o seu dever, como se a mão de um destino o impellisse á
desventura e ao trabalho simultaneamente.
ORIGEM
Tem-se considerado geralmente o onagro como o único ascendente
do jumento domestico. Desde porém que se sabe que outras espécies sel-
vagens se podem reproduzir entre si dando origem a productos fecundos,
passou-se a duvidar, e com razão, de que o jumento domestico descen-
desse exclusivamente do onagro. E com effeito, é extremamente provável
que o hemione e o jumento d'Africa devam, com tantos tilulos como o
onagro, ser considerados ascendentes do jumento domestico. Comtudo
nada ha de positivamente averiguado sobre este ponto; repete-se aqui a
mesma duvida que a propósito das outras espécies submettidas desde
longo tempo á domes ticidade.
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
Heródoto falia minuciosamente do jumento domestico. Os habitantes
do Egypto principiaram por odial-o, por ser objecto de adoração para os
judeus, mas acabaram por estimal-o, reconhecendo os serviços que o
pobre animal lhes prestava. A biblia occupa-se muito d'este solipede que
foi a cavalgadura preferida pela Virgem na fugida para o Egypto.
Do Egypto e da Judea o jumento domestico passou para a Grécia,
depois para a Itália, para a França e consecutivamente para toda a
Europa.
304 HISTORIA NATURAL
O famoso animal, Ião desprezado pelos ignorantes e pelos rudes,
teem merecido era todos os tempos a attenção benévola e cheia de sym-
pathia de lodos os naturalistas e ainda de alguns pliilosophos e perso-
nagens celebres. Motte-Le-Vayer escreveu um livro intitulado Dialogo so-
bre os jvmentos do meu tempo e Heinsius em 1629 um outro intitulado o
Elogio do jumento.
Citam-se como celebridades históricas da espécie: o jumento de Tha-
les, o do imperador Commodo, o de Hehogabalo e o de Buridan do qual
se conta que morreu de fome e de sede preplexo entre um feixe de feno
e uma vasilha d'agua.
Menault escreve acerca do jumento : «Por ter sobre o dorso uma
cruz, emblema de soffrimenlo, foi primeiro venerado. Por parecer que
gosta dos cardos e dos espinhos foi corííparado ao philosopho que sup-
porta com tranquillidade todas as amarguras da existência ou ao justo
que renuncia ás pompas e ás obras de Satanaz. Por ser prudente e não
attravessar senão com repugnância os togares perigosos em que uma
vez caiu, comparou-se ao sábio que teme ser apanhado nas difficuldades
de que saiu uma vez. Emfim por ter pouca confiança nas aguas desco-
nhecidas e custar-lhe a beber nas fontes que vé pela primeira vez, foi
considerado um modelo de prudência e fidehdade á Igreja, um bello
ideal do crente que receia a heresia, as idéas novas e repelle o direito
de exame.» *
CARACTERES
Não descreveremos aqui as formas exteriores do jumento domestico,
porque todos as conhecem. Paliaremos apenas dos sentidos. Todos os
órgãos sensoriaes do jumento são desenvolvidos. O primeiro de todos é
o ouvido; percebe sons distantes e os mais fracos. Parece mesmo que
não é insensível ao rhytmo musical, o que talvez podesse ser aprovei-
tado com intelligencia para obrigar este animal á execução de certos
passos apropriados a trabalhos especiaes. J. Frankhn conta o seguinte:
«Um jumento de Chartres tinha o costume de ir ao castello de Guerville
onde habitualmente se tocava. A proprietária do castello era uma dama
que tinha uma voz excellente. Em ella principiando a cantar, o jumento
1 Menault, LHntelligenoe des animaux, pg. 263.
mamíferos em especial 305
não deixava de approximar-se até junto das janellas : d'ahi escutava com
religiosa attenção.» *
Depois do ouvido, é a vista o melhor dos sentidos. Depois vem o
olfato. O tacto é muito limitado e o mesmo acontece ao paladar, o que
explica a nenhuma exigência do animal em questões de ahmentação.
INTELLIGENCIA
Reputa-se de ordinário o jumento o typo da estupidez. Esta opinião
não se justifica. É verdade que a grande maioria dos jumentos domésti-
cos, mal tratados, constantemente sob o regimen brutal da pancada,
apresentam uma grande obhteração de faculdades. Tomem-se porém os
indivíduos bem tratados, os raros exemplares que teem a boa sorte de
cairem nas mãos de um dono razoável que d'elles cuida com sympathia
e os educa, e vêr-se-ha quanto ha de falso na opinião vulgar. «Podemos
salvar a honra do jumento, diz Scheithn, dizendo que elle é susceptível
de aprender muitas coisas que ordinariamente se ensinam ao cavallo:
por exemplo, attravessar arcos, dar tiros, saltar sem se espantar. En-
sina-se ainda o jumento a marchar ao som da musica, a dançar, a abrir
portas, servindo-se da bocca como de uma mão, a subir e descer esca-
das, a designar tal ou tal pessoa, a reconhecer as horas, a indicar, ba-
tendo com a pata no chão, o numero de pontos de uma carta ou de um
dado, a responder sim ou não ás perguntas do dono, sacudindo a ca-
beça.» O mesmo auctor diz confrontando o intendimento do cavallo e o
do jumento : «Ha creanças que aprendem mais difficilmente, mas melhor
e de um modo mais perdurável; assim é o jumento.)) Pythagoras já se
insurgia contra a opinião que não concede inteUigencia ao jumento.
O jumento tem uma grande memoria, sobretudo dos togares; cami-
nho que uma vez tenha percorrido, nunca mais o esquece. Sabem todos
que um jumento, ao qual uma vez se deu de comer á porta de uma hos-
pedaria d'aldéa, nunca mais ahi passa sem que pare até que lhe dêem
ahmento; resiste ao chicote e á espora. O único meio de o fazer cami-
nhar é dar-lhe de comer. Parece também que é desenvolvida no jumento
a memoria das pessoas. Somente os mãos tratos que geralmente soífre
por parte do homem, fazem com que ao reconhecer, passados annos, o
* J. Franklin, La vie des animaux, t. ir,
voL. III 20
306 HISTORIA NATURAL
antigo dono, elle não manifeste o mesmo prazer que manifesta o cavallo,
de ordinário tratado com doçura, e por isso mesmo naturalmente agra-
decido.
Nas regiões infestadas por animaes ferozes, o jumento revela uma
grande prespicacia c uma prudência demonstrativas de um intendimento
superior ao que vulgarmente se lhe attribue. Vista, ouvido e olfato, t.udo
põe em exercido, tudo attentamente emprega para descobrir os togares
em que possa esçonder-se um inimigo. Se os sentidos lhe revelam a exis-
tência próxima de um perigo, não ha cavalleiro capaz de fazel-o sair do
logar em que se reputa mais seguro.
De resto, é notável que o jumento não caminha nunca sem o auxi-
lio dos sentidos; se lhe tapam as orelhas ou bandam os olhos, estaca,
não dá um passo. Restando-lhe o olfato, caminhará ainda n'um caso
único : se adiante d'elle caminhar uma fêmea,. É este o único meio a que
não saberá resistir.
REGIME E TRATAMENTO
O jumento é, como dissemos anteriormente, muito sóbrio. Satisfaz-se
inteiramente com uma alimentação exigua e má. A herva e o feno que
uma vacca ou um cavallo engeitam, constituem ainda para o jumento
uma refeição apreciável. Os cardos e as plantas espinhosas que todos
os herbívoros, excepto o camello e dormedario, recusam são para elle
uma alimentação que lhe basta. N'uma só coisa é exigente o jumento :
na agua. Bebel-a-ha salgada ou amarga, mas nunca suja ou turva. Seja
qual fôr a sede que tenha, nunca mergulhará o focinho senão em agua
pura, transparente. É por isso que nos desertos o jumento causa muitas
vezes embaraços sérios ás caravanas.
Á exiguidade da alimentação correspondem de ordinário os mãos
tratos. «O homem, diz Buffon, despreza até os animaes que melhor e com
menos dispêndio o servem.» * A vida domestica do jumento confirma ple-
namente a afíirmação do naturahsta francez. Por um preço relativamente
insignificante, quantos serviços se não obteem do jumento? E comtudo
que tratamento lhe dá o homem em compensação? O peior de todos: a
pancada por tudo e a propósito de tudo. Dir-se-ha que o jumento é tei-
moso, é cheio de manhas e que é preciso por isso castigal-o com uma
1 Buffon, Oeuvres ComplHes, tom. 2.», art. Ane.
mamíferos em especial 307
severidade que o cavallo, por exemplo, dispensa. De certo, os dois ani-
maes não soíTrem o confronto, decerto, o tratamento d' um não pode ser
o do outro; mas não se esqueça que uma boa parte da teimosia e das
manhas, que se pretendem debellar com os mãos tratos, são precisa-
mente a consequência d'elles. Para nos convencermos d'isto, confronte-
mos o jumento de um camponio estúpido, que descarrega sobre o pobre
animal todo o seu mao humor, com um d'esses jumentos que se exhi-
bem adestrados nos circos. Que enorme differença, não é verdade? Ve-
ja-se o tratamento d'um e do outro. Ao passo que o primeiro é a victima
innocente dos máximos e desapiedados castigos, dos mais terríveis tra-
balhos, o segundo, fartamente alimentado, cuidado com doçura, trabalha
apenas algumas horas por dia e os exercícios que faz são os menos fa-
tigantes. Por isso um é estúpido, manhoso, insupportavel e o outro intel-
ligente, dócil, submisso á primeira ordem que recebe.
Como queremos que não tenha defeitos um animal que só nos me-
rece desprezo e escarneo? O rústico faz do pobre jumento o que vulgar-
mente se chama um folie de pancadas. Se tem uma desavença com a
mulher, bate no jumento; se não tem pão para dar aos filhos descarrega
na misera besta todo o pezo dos seus infortúnios; se os negócios lhe não
correm bem é ainda o pacienticissimo animal que o paga. Até as alegrias
do camponio são funestas ao jumento. Se o rústico acerta de fazer bons
lucros na cidade, ao voltar para casa tem pressa; e quem o paga é o
jumento que á força de paulada ha de transformar as pernas em azas.
Misero destino! Eu tenho sincera penna do jumento e digo-o sem receio
de que me chamem os feios nomes de sentimentalista ou paradoxal. Não
sou nem uma coisa, nem outra; mas ao vêr o olhar triste do jumento,
obscuro coUaborador das nossas obras, lembra-me a enorme legião dos
homens opprimidos, dos explorados, dos que trabalham sem alegria e
sem futuro. Que final de vida espera o laborioso solipede? Sabem-o to-
dos: a margem j as longas campinas de que falia Tolentino. Que final de
vida espera o miserável da industria humana? A margem tambern: o
asylo e o hospital. Eu encontro paridade n'estes destinos e contristo-me.
O leitor contrista-se também e eu passo adiante; não vêem para aqui
reflexões pungitivas.
REPRODUCÇAO
A quadra dos amores é para o jumento do norte da Europa em fins
da primavera ou começos do outomno; para o do meio dia prolonga-se
308 HISTORIA NATURA.L
por todo o anno. Até nas declarações do amor asinino ha uma grande
tristeza, uma terrivel monotonia: é um ornear entrecortado, seguido de
suspiros.
Onze mezes depois do acto sexual a jumenta dá á luz um filho, ra-
ras vezes dois. A ternura da mãe pelo filho é immensaj na hora do pe-
rigo, nem agua, nem fogo, nem a prespectiva de morte certa farão di-
minuir a coragem com que a jumenta defende o filhinho.
O jumento está adulto aos dois annos; mas só aos trez se encontra
na plenitude das forças. Até ahi tem uma vida alegre, elle, o filho da
tristeza; depois as amarguras principiam. O duro trabalho faz na Europa
succumbir o jumento aos doze ou quinze annos, de ordinário; está pro-
vado porém que elle pode attingir os cincoenta ou cincoenta e seis. Es-
tes exemplos de longevidade são raríssimos, excepcionaes mesmo.
ERROS E prejuízos
Na antiguidade acreditava-se que o encontro com uma jumenta de-
nunciava felicidade. Não nos admira que haja ainda essa crença, se a ha,
porque entre o nosso povo tem a mesma significação o encontro com um
preto.
Conta-se que a vista de um jumento annunciou a Alexandre a con-
quista da Ásia e a Augusto o império do mundo. Ainda segundo os anti-
gos, a cabeça ou a pelle de um jumento preservariam os campos em que
estivessem depostos das saraivadas do inverno.
usos E produgtos
O jumento fornece-nos depois de morto dois productos estimáveis:
a pelle, de que se fazem coberturas para tambores e a carne, que dizem
ser boa e que, segundo Varron, era o prato favorito de Mecenas. Durante
a vida fornece-nos o leite, tão substancial e tão grato ao paladar. Se-
gundo Gerbe, o emprego d'este leite com intuitos therapeuticos foi intro-
duzido em França no tempo de Francisco i p&r um judeu. Foi o caso que
achando-se o rei alquebrado e doente e constando-lhe que um certo is-
-=^ ' '■"^ ^-^-^^^ ^ ' '"'^'<^' niiii!#^^f ^""is^í-f
Imp I a/ytúuyeucç a Pc
1. O Hemione 2. A 7a\
BR A.
Maôalháes & Moniz . edi
310 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Habitam tanto as montanhas como as planícies; mas cada espécie
parece ter os seus domínios próprios e exclusivos.
São sóbrias, ágeis, corajosas e amantes da liberdade; a domesticação
d'ellas é difficil. Os sentidos d'estes solipedes são muito desenvolvidos.
São sociáveis; vivem sempre em grandes bandos.
Gonhecem-se trez espécies bem authenticas.
A COAGGA
É das espécies conhecidas aquella cujo manto é menos raiado. As-
semelha-se no porte, mais ao cavallo do que ao jumento. É bem cons-
truída: a cabeça é de tamanho regular, elegante, as orelhas são curtas
e os membros vigorosos. O pescoço, bem contornado, apresenta uma
crina curta e levantada; a cauda é coberta de pêllo em toda a extensão.
O péllo é por todo o corpo curto e liso. No pescoço contam-se dez listras
transversaes que se prolongam na crina; quatro outras correm ao longo
das espáduas e algumas, mais curtas, mais desmaiadas e mais distancia-
das umas das outras sobre o dorso e flancos. A todo o comprimento do
dorso até á cauda estende-se uma facha de um trigueiro carregado.
A fêmea não diff*ere do macho senão em ser mais pequena e ter a
cauda mais curta. O macho adulto mede dois metros e oitenta centíme-
tros de extensão, comprehendida a cauda; a altura é, ao nível da espá-
dua, de um metro e trinta centímetros, approxímadamente.
mamíferos em ESPEGLA.L 311
O DAUW
Esta espécie pode considerar-se como o typo de transição entre a
coagga e a zebra propriamente dita de que adiante nos occupamos. Tem
com effeito caracteres de uma e outra das espécies : parece-se tanto com
a zebra propriamente dita que muitos naturalistas o teem confundido com
ella; e da coagga diífere quasi só em ser mais pequeno. A côr geral
d'este solipede é a de camurça. Para o distinguir da zebra propriamente
dita, ha a notar que a cauda apresenta-se coberta de péllo em toda a
extensão, o que n'esta espécie se não realisa. Para o distinguir da coagga,
observe-se que ao passo que a listra dorsal d'esta espécie é trigueira, a
do dauw é negra. A extensão do dauw é ainda uns vinte e tantos centí-
metros menor que a da coagga.
A ZEBRA PROPRIAMENTE DITA
Diífere das espécies anteriores principalmente no manto que é muito
mais listrado. Para dar uma idéa approximada do porte da zebra pro-
priamente dita devemos comparal-a não ao cavallo ou ao jumento, mas
ao hemione. É com este animal, com effeito, que ella se parece mais.
O corpo da zebra é musculoso e vigorosíssimo, a cabeça curta e o
focinho volumoso; as pernas são delgadas e elegantes. A cauda, de com-
primento médio, é uma verdadeira cauda de jumento; só na extremidade
offerece pellos extensos, em tufo. A crina é espessa, mas muito curta.
A côr fundamental do manto é o branco ou o amarello muito claro.
312 HISTOBIA NATURAL
Por todo o corpo, desde o focinho até aos cascos, correm listras trans-
versaes de um negro brilhante ou de um ruivo trigueiro; só a parte
posterior do ventre e a face interna dos membros anteriores são despro-
vidos d'estas listras. Sobre o dorso, ao longo da columna vertebral e no
ventre, pela região media, correm fachas longitudinaes de um trigueiro
accentuado.
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
A zebra parece ser a espécie que os europeus primeiro conheceram.
Tem-se supposto que o celebre cavallo tigre apresentado por Caracala
no circo romano fosse, como dissemos, uma zebra. Philostorgius, que
escreveu em 425, falia de um grande jwmento selvagem^ raiado; embora
a descripção feita seja um pouco vaga ha logar pára crer como prová-
vel que se tratasse de uma zebra. As primeiras noções exactas acerca
das zebras são-nos devidas a nós, portuguezes, e datam do nosso esta-
belecimento na costa oriental da Africa. Segundo Brehm, em 1666, um
embaixador ethiope foi o primeiro a levar uma zebra, de presente, ao
sultão do Cairo. Depois d'essa epocha, grande numero de naturaKstas
conheceram e descreveram simultaneamente em paizes diíTerentes este
animal.
Os artigos que seguem sobre distribuição geographica, costumes ^
caça e captiveiro teem applicação a todas as trez espécies descriptas já
nos seus caracteres morphologicos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Apezar de extremamente semelhantes, é certo que as trez espécies
de zebras teem, como já fizemos notar, domínios geographicos distin-
ctos. Habitam todas a Africa; porém o dauw muito mais ao norte que a
coagga, e ambos nas planícies, ao passo que a zebra propriamente dita,
só vive nas montanhas do sul e este do continente, desde o Gabo até á
Abyssinia.
mamíferos em especial 313
COSTUMES
Todas as trez espécies mencionadas, a coagga, o dauw e a zebra
propriamente dita, são extremamente sociáveis e vivem em bandos que
hoje são de dez a trinta individues, mas que já foram, a dar credito aos
naturalistas antigos, de oitenta a cem. É de notar que as espécies nunca
se confundem, embora se encontrem próximas umas das outras: cada
bando é exclusivamente formado por individues de uma mesma espécie.
Parece que se temem uns aos outros; e este facto é tanto mais para no-
tar quanto é certo que todas estas espécies são corajosas e afifectam um
grande desdém pelos outros animaes, ainda os mais fortes. Tem-se
mesmo observado a mistura das coaggas com gazellas, antílopes e abes-
truzes; mas nunca se viu a mistura de coaggas, dauws e zebras propria-
mente ditas.
Dizem os viajantes que a coagga aproveita consideravelmente com
a visinhança ou proximidade do abestruz, porque tira um grande par-
tido da vigilância constante d'esta ave que lhe serve de sentinella, que
lhe denuncia os perigos. Nós já vimos a propósito do búfalo, do hippo-
potamo e do rhinoceronte, alguma coisa de semelhante; dissemos todo o
beneficio que estes grandes mamíferos tiram da presença do ani e ou-
tras pequenas aves que vivem perto d'elles ou mesmo sobre o seu dorso.
Todas as espécies de zebras são animaes velocíssimos; passam, diz
Brehra, com a rapidez do vento atravez das planícies e das montanhas.
Todas são desconfiadas e vigilantes; se um perigo se approxima, tomam
o galope e em alguns minutos encontram-se em logar seguro. Um bom
cavallo de caça em terreno plano e solido consegue attingil-as, mas só ao
fim de muito tempo.
O cavallo é bem recebido nos bandos de coaggas; as mesmas boas
relações existem entre o dauw ou a zebra propriamente dita e os soh-
pedes domésticos.
As zebras não são exigentes relativamente á alimentação; com tudo
não podem ainda assim, sob este ponto de vista, comparar-se ao jumento.
Quando á mingua d'agua seccam as hervas de uma região habitada
pelas zebras, estas emprehendem verdadeiras emigrações e chegam
mesmo, ás vezes, até aos campos cultivados onde produzem incalculáveis
estragos.
A voz das zebras assemelha-se ao mesmo tempo ao rehnchar do ca-
vallo e ao ornear do jumento. G. Cuvier diz que a voz da coagga con-
314 HISTORIA NATURAL
siste na repetição, vinte vezes seguida, de um grito, o mesmo sempre:
coa^ coal
Sob o ponto de vista dos sentidos, todas as zebras podem conside-
rar-se como perfeitamente dotadas. A vista, o ouvido e o olfato são ór-
gãos muito apurados em todas as trez espécies. São também astutas e
corajosas. Defendem-se valentemente, á dentada e ao coice, dos grandes
carniceiros. A hyena e o leopardo nem mesmo se atrevem a acercar-se
de um bando; quando muito, apanham algum individuo desgarrado, per-
dido do seu grupo.
CAÇA
De todos os inimigos da zebra, como se infere naturalmente do que
deixamos dito, o mais temivel é o homem. A diíTiculdade da caça e a bel-
leza do manto, diz Brehm, excitam o europeu. Os colonos do Cabo per-
seguem com ardor a coagga e o dauw; os abyssinios, o dauw e a zebra
propriamente dita.
Os indígenas empregam como processos de caça, a frecha e os fos-
sos; os europeus, as armas de fogo.
CAPTIVEIRO
De todas as espécies a que se doma com mais facilidade é a coagga.
O dauw vem immediatamente depois; a zebra propriamente dita é tão
selvagem que durante muitos annos passou por verdadeiramente indo-
mável.
A coagga, se é apanhada em nova, tratada e visitada por muitas
pessoas, chega a habituar-se ao homem e a obedecer-lhe até ao ponto
de ser utiUsada, á maneira do cão, como guarda dos outros solipe-
des domésticos quando vão aos pastos; também não é raro ver um par
d'estes animaes puxando a um carro. O dauw, captivo também n'uma
tenra idade, domestica-se até um certo ponto e chega a prestar-nos al-
guns bons serviços, como A. Geoífroy Saint-Hillaire provou. Mas com a
zebra propriamente dita não acontece o mesmo. Umas certas tentativas
feitas no sentido de a utilisar na conducção de carros ou em cavallaria,
mamíferos em especial 315
foram ao principio seguidas de um insuccesso tremendo e ruidoso; d'ahia
idéa por muito tempo acceite de que a zebra é indomável. D'essas pri-
meiras tentativas mencionaremos duas, uma das quaes, contada por
Sparmann e a outra narrada por Fitzinger. A primeira d'estas tentativas
refere-se a um rico colono do Cabo que tendo algumas pequenas zebras
muito domesticas, ao que lhe parecia, se lembrou um dia de as atrellar
a um carro. O resultado foi o peior possível; as zebras partiram o carro,
deitando a correr com elle aos pedaços para casa. A segunda tentativa
foi a de um cavalleiro atrevido que se lembrou de cavalgar uma zebra
que em tempo fora muito dócil, mas que por falta de cuidados e de tra-
tamento regressara á selvageria primitiva. O cavalleiro chegou a mon-
tar; mas apenas se sentou no selim, a zebra atirou-se violentamente ao
chão; depois erguendo-se de salto arrojou-se, de um logar escarpado, á
agua. O cavalleiro prendeu-se vivamente ás rédeas; a zebra porém, vol-
tando para a margem, mal chegou a terra e quando o cavalleiro atur-
dido do embate procurava segurar-se ao selim, arrancou-lhe uma orelha
com uma dentada. Estas e outras tentativas analogamente desanimadoras
deram curso á idéa de que a zebra é indomável. Tal opinião porém, não
deve acceitar-se de um modo absoluto. Guvier cita o caso de uma zebra
fêmea do Jardim das Plantas^ tão domestica que qualquer a podia montar
sem receio. Rarey, domador celebre de cavallos, conseguiu também mon-
tar e dirigir algumas zebras.
Todas as espécies se dão bem e chegam a reproduzir-se na Europa.
Segundo Weiland, o dauw tem-se reproduzido nos nossos climas dez ve-
zes e a zebra duas desde 1813. Os cruzamentos são fecundos com outros
solipedes; isto que no século passado era tido por BuíFon como sim-
plesmente provável, está provado hoje. Nos cruzamentos, tem-se sempre
notado que os mestiços se assemelham mais ao pae que á mãe.
De todos os ensaios de cruzamentos até hoje feitos, e que infehz-
mente são ainda pouco numerosos, resulta, diz Brehm, que todos os so-
lipedes se copulam e que os productos são fecundos. «Este facto, conti-
nua o naturahsta allemão, é uma acquisição importante para a sciencia;
destroe a theoria da unidade da geração que tantos debates causou en-
tre naturahstas e orthodoxos. Este aphorismo, «só os animaes de uma
mesma espécie podem produzir filhos fecundos», não é verdadeiro em
absoluto. E o naturahsta não deve contentar-se com uma opinião des-
mentida pelos factos.» *
1 Brehm, Ohr, cit., vol. 2.°, pg. 430.
316 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODUCTOS
A belleza do manto é um dos maiores attractivos, como vimos, da
caça das zebras. A pelle entra como matéria de muitas industrias. Os co-
lonos do Cabo ornam os pescoços dos seus cavallos com colleiras feitas
da pelle ou da crina das zebras. Não encontramos, a propósito de usos
e productos, outra menção especial. Ha porém logar para crer que a
carne das zebras seja pelo menos tão boa como a dos cavallos e dos ju-
mentos. Os cascos e os tendões podem também servir para os mesmos
effeitos em que se empregam os dos cavallos.
Damos em seguida, semelhantemente ao que temos feito para outras
ordens, o quadro eschematico dos pachydermes, adoptando a disposição
de Figuier:
mamíferos em especial
317
ELEPH antes,
pachydermes ordinários.
PACHYDERMES
SOLIPEDES.
o MASTODONTE
|0 MAMMOUTH
O DINOTHEBIO
O ELEPHANTE dVbiA
O ELEPHANTE d'aFEICA
O TAPIRO ASIÁTICO
O TAPIRO d'aMERICA
O TAPIEO VELLOSO
O HYRACE DA ABYSSINIA
O JAVALI ORDINÁRIO
O JAVALI DO JAPÃO
O JAVALI DA ÍNDIA
O JAVALI DOS PAPÚS
O JAVALI EM PINCEL
O JAVALI DOS BOSQUES
OS PORCOS DOMÉSTICOS
O PHACOCHERO
O JAVALI ELIANO
O TAJAÇU DE COLLEIBA
O BABIROSA
O HIPPOPOTAMO AMPHIBIO
O RHINOCERONTE d'aSIA
O RHINOCERONTE d'aPRICA
O CAVALLO
RAÇAS CAVALLARES
OS JUMENTOS
|0 ONAGRO
|0 JUMENTO d' AFRICA
<0 HEMIONE
los MUARES
'o JUMENTO DOMESTICO
A COAGGA
o DAUW
A ZEBRA PROPRIAMENTE DITA
►-oso»-
-0<^«^f)>>^-
AMPHIBI08
CONSIDERAÇÕES GERAES
Rigorosamente considerado, o nome de amphibios não deveria ap-
plicar-se, como nota Figuier, senão aos animaes cuja existência pode
passar-se alternativamente no ar ou na agua; assim elle não compretien-
deria verdadeiramente mais que os Batrachios, que respiram branchial-
mente na agua e pulmonarmente no ar. O termo porém foi desviado da
verdadeira e rigorosa accepção, de sorte que hoje designam-se pela pa-
lavra amphibios especialmente os mamíferos organisados para a vida
aquática e que só com muita difficuldade podem mover-se em terra.
CARACTERES
Os caracteres dos animaes que constituem esta ordem estão, como
pode prevêr-se, em relação intima com as condições especialíssimas da
sua vida.
O corpo é em todos alongado, cylindrico e pisciforme. Os membros
muito encurtados, não são bem visíveis no exterior do corpo senão pe-
las extremidades, convertidas em verdadeiros remos por uma larga mem-
brana natatoria que reúne os dedos. As extremidades anteriores esten-
320 HISTORIA NATURAL
dera-se ao longo do corpo e manobram agitando-se de diante para traz,
como em quasi todos os. mamíferos aquáticos; as posteriores, pelo con-
trario, estendidas horisontalmente e parallelamente, encontram-se dis-
postas de maneira a cortarem a agua obliquamente.
O manto é constituído por uma camada lanosa, cuja espessura au-
gmenta com o rigor dos climas, e que encobre pêllos rijos, cercados de
um enducto gorduroso que tem por fim impedir a chegada da agua até
á pelle e proteger o corpo contra os frios extremos.
Todos os amphibios teem a cabeça arredondada, os olhos grandes,
a concha auditiva rudimentar ou nulla e o iabio superior coberto de
grossos pêllos compridos.
A dentição é semelhante á dos carniceiros, motivo por que muitos
naturahstas teem pretendido collocar os amphibios logo depois d'esta
ordem.
As vértebras cervicaes são claramente separadas umas das outras
e munidas de apophyses fortes; as dorsaes são quatorze ou quinze; as
lombares cinco ou seis; as sagradas quatro ou cinco, geralmente solda-
das; e as caudaes nove ou quinze. As cartilagens costaes encontram-se
completamente ossificadas.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Encontram-se espalhados por todos os mares do mundo em numero
que vae crescendo á proporção que nos avisinhamos dos poios.
COSTUMES
Vivem em bandos, alimentando-se de peixes, de molluscos, de crus-
táceos, etc, a que juntam algumas substancias vegetaes. Mergulham com
facilidade e podem conservar-se longo tempo debaixo d'agua, embora
precisem de emergir para respirar. A disposição especial do apparelho
circulatório explica-nos a demora d'estes animaes sob a agua. Este appa-
relho é munido de vastos reservatórios ou seios venosos em que o san-
gue se acumula durante todo o tempo em que os pulmões não funccio-
mamíferos em especial 321
nam. Quando os ampliibios mergulhara, a circulação pulmonar, graças ao
sangue dos seios^ não se suspende e os animaes não podem por lanto
suffocar-se, porque a aspbixia é um phenomeno produzido pela suspen-
são da respiração, consecutiva á da circulação.
Como os seus membros são impróprios para a locomoção terrestre,
os amphibios não saem da agua senão para dormir, realisar um parto ou
aleitar os filhos.
usos E PRODUGTOS
Obrigados, pela organisação dos membros, a rastejarem pezada-
mente na terra, se algumas vezes são apanhados fora d'agua, ficam in-
teiramente â mercê dos inimigos. Assim é que o homem mata todos os
annos um numero prodigioso d'estes mamíferos de que aproveita prin-
cipalmente a pelle, a gordura e o marfim dos dentes.
A ordem comprehende duas famílias : as phocas e os trichecos.
91
VOL. III **
mamíferos em especial 323
AMPHIBIOS EM ESPECIAL
AS PHOCAS
Teem incisivos em ambas as maxillas; os caninos não se alongam
em defezas. O pavilhão auricular falta completamente.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
A maior parte das phocas habitam os mares do Norte; as mais sin-
gulares vivem nos do Sul. Existem mesmo em alguns lagos interiores da
Ásia. Ha apenas uma espécie que deve considerar-se verdadeiramente
cosmopolita.
costumes
As phocas habitam principalmente os mares; no entanto lambem so-
bem os rios e fazem pequenas excursões por terra para chegarem ás
aguas interiores. Ha espécies que buscam de preferencia o mar largo;
algumas porém vivem principalmente nas costas. As phocas não saem a
terra senão em condições muito especiaes; a agua é o seu verdadeiro
elemento. Em terra são pezadas, retardatárias e como que estrangeiras;
na agua, pelo contrario, movem-se com prodigiosa rapidez, com immensa
facilidade. Mergulham e nadam com extrema habilidade, sobre o dorso
324 IlKSTUaiA NATIJHAL
como sobre o ventre, para diante como para traz. Em terra, o único
meio de progredirem é o rastejamento; na agua avançam, recuam, vol-
tam-se com velocidade admirável. Ás vezes, estendem-se sobre pedaços
de gelo fluctuante, aquecendo-se ao sol; ao menor indicio de perigo po-
rém, procuram na agua um refugio.
As phocas são extremamente sociáveis; vivem constantemente em
bandos, tanto mais numerosos quanto mais deserto é o logar que habi-
tam. Nas regiões em que o homem as persegue, affastam-se timida-
mente para o mar alto, não sendo por isso possível observal-as senão
de longe.
As phocas nem sempre vivem n'uma mesma região; muitas espé-
cies ha que emprehendem dilatadas viagens, nadando dia e noite, quasi
sem um intervallo de repouso.
Os hábitos das phocas são mais nocturnos do que diurnos. É de dia,
com effeito, que ellas dormem, se aquecem ao sol ou se movem com
verdadeira preguiça. De noite, pelo contrario, agitam-se com velocidade,
com rapidez incomparavelmente maior.
Nas primeiras edades, as phocas são seres vivos, alegres, dispostos
sempre aos divertimentos; depois de velhas, tornam-se preguiçosas.
De todos os sentidos das phocas o mais perfeito é o ouvido, ao con-
trario do que poderia esperar-se de animaes que não apresentam pavi-
lhão auricular. A vista e o olfato são menos perfeitos. A voz é rouca e
recorda ora o uivo do cão, ora o bahdo do carneiro, ora o mugido
do boi.
Os agrupamentos das phocas fazem-se por famílias. Em cada uma
d'estas, um só macho subordina trinta ou quarenta fêmeas. Na epocha
do cio, ha entre os machos grandes luctas que não vão até á morte d'al-
gum dos contendores, pelo simples facto de que a pelle e a camada sub-
jacente de gordura são um escudo poderoso contra os ferimentos que
podem receber.
Decorridos sobre o acto sexual oito ou dez mezes, a fêmea dá á luz
um filho, raras vezes dois. A mãe defende corajosamente o fdho, que
aos dois mezes se desmama. O crescimento é nas phocas muito rápido;
ao fim de um anno teem metade das dimensões definitivas e entre os
dois e os seis encontram-se adultas. A duração total oscilla entre vinte
e cinco e quarenta annos.
O regime das phocas é animal; alimentam-se de peixes, de crustá-
ceos, de molluscos e zoophytos.
MAMÍFEROS EM ESPECíAE 325
CACA
O mais cruel inimigo das pliocas, superior mesmo ao urso branco,
é o homem. A caça ou antes, como diz Figuier, a guerra desapiedada
que a nossa espécie move ás phocas é de tal natureza que estes animaes
teem diminuído consideravelmente de anno para anno. Se esta guerra
continua a extincção d'estes famosos mamíferos não se fará esperar
muito. «Dos bandos numerosos, escreve Brehm, que ainda no século pas-
sado se viam nas ilhas solitárias, não vemos hoje mais que os últimos
representantes.» *
CAPTIVEIRO
As phocas submettidas ao captiveiro e tratadas com cuidado chegam
a tornar-se verdadeiros animaes domésticos. Aprendem a seguir o ho-
mem, a reconhecer-lhe a voz; e uma vez chegada a educação a este
ponto, as phocas podem deixar-se em liberdade, podem ir ao mar que
voltarão a casa do dono e trarão até alguma pesca.
usos E PRODUCTOS
O óleo, a gordura, a pelle e os dentes das phocas são artigos va-
hosos para a industria e commercio. É mesmo esta consideração que nos
exphca o ardor com que se lhes faz a caça.
Brchm, Ohr. cif., vol. 2.», pg. 788.
326 HISTORIA NATURAL
Damos seguidamente uma summaria noticia das principaes espécies
do género.
A PHOCA COMMUM OU BOI MARINHO
É a espécie mais conhecida, sobretudo nos costumes. Mede metro e
meio a um metro e oitenta centímetros de comprimento. As cores do
manto são o branco, o negro e o pardo trigueiro. Nos animaes d'esta
espécie o lábio superior é ornado de pêllos curtos e brancos com malhas
trigueiras.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Esta espécie habita os mares da Europa.
A PHOCA DA GROELANDIA
O corpo n'esta espécie é branco ou branco amarellado com grandes
manchas escuras e alongadas; a cabeça e a cauda porém são negras.
mamíferos em especial 327
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Vive esta espécie no Oceano Glacial Árctico e nos mares e estreitos
visinhos. Encontra-se na Islândia e é frequente nas ilhas fluctuantes de
gelo.
A PHOCA DE TROMBA
É também conhecida pelo nome de elephante mannho. O caracter
distinctivo dos animaes d'esta espécie é a existência de um prolongamento
do nariz em forma de tromba com a extensão approximada de trinta
centímetros. As dimensões do animal adulto são: oito a dez metros de
comprido e cinco a sete de circumferencia.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Encontra-se no extremo meridional da America, nas ilhas de San-
dwich, Vaii-Siemen, em Nova-Zelandia e nas ilhas do Pacifico.
328 ITISTOniA NATURAL
A PHOCA DE CAPUZ
Os animaes d'esta espécie não excedem dois metros e meio de com-
primento. Distingue-os e dá-lhes o nome a faculdade que teem de inchar
a pelle da cabeça, formando uma como empolla ou vesicula de ar.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Esta espécie encontra-se na Groelandia, na Terra Nova e nas costas
septentrionaes da Noruega.
A PHOCA URSINA
É conhecida esta espécie também pelo nome de m^so marinho, que
lhe provém de uma certa analogia que tem a sua cabeça com a dos ur-
sos. Mede dois metros a dois metros e meio de comprimento. O péllo é
comprido e grosseiro, negro ou pardo escuro e mais claro no ventre.
^;^j,,-^,-.;.a>.jy>t*K
^•^-m^
mamíferos em especial
:r?9
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Encontra-se frequentemente esta espécie nas costas de Karaschatk e
em todo o norte do oceano Pacifico.
A PHOCA CRINADA
É também conhecida esta espécie pelo nome de leão maiinho. Este
nome justifica-se pela existência de um péllo comprido amarello arruivado
que se estende pelas costas e ao longo do pescoço, á maneira de crina
ou de juba. Quatro metros é o comprimento approximado dos animaes
d'esta espécie.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Esta espécie encontra-se desde o estreito de Behring até às costas
do Japão e da Califórnia.
')30 HISTORIA NATURAL
OS TRICHECOS
É esta a outra família da ordem dos ampliibios, que apenas com-
prehende as duas.
Os trichecos teem a configuração geral das phocas; não obstante
ofrereccm caracteres distinclivos que justificam plenamente a sua sepa-
ração em família especial. A face dos trichecos é mais curta que a das
pliocas; o focinho é mais largo; os mollares teem uma conformação
muito differente; os incisivos inferiores faltam nos adultos; finalmente,
os caninos superiores, fortíssimos, alongam-se e saem da bocca como
duas fortes defezas.
A família comprehende um só género e este uma só espécie que
vamos descrever.
O TRICHECO OU CAVALLO MARINHO
Documentos históricos antiquíssimos se referem a este animal: por
exemplo: as descripções de Alberto o Grande e de Olaiis Magnus. Advir-
ta-se porém que n'estas descripções ha muito de fabuloso.
CARACTERES
o tricheco adulto tem seis a sete metros de comprimento e trez e
meio a quatro de circumferencia ao nível das espáduas. O pezo chega a
mil e quinhentos kilogrammas nos indivíduos maiores. Os exemplares
mais abundantes hoje não excedem de ordinário quatro metros de ex-
tensão e oitocentos kilogrammas de pezo.
mamíferos em espegtal i^^^F 331
A pelle apresenta uma espessura não inferior a trez centimelros; no
pescoço é ainda mais considerável. Os individues ainda novos são com-
pletamente cobertos de pêllos sedosos, mais curtos, mais rijos e mais
grosseiros no dorso que no ventre; estes péllos caem com os progressos
da edade. O tricheco nos primeiros tempos de existência é negro; á pro-
porção que envelhece torna-se trigueiro ou ruivo, amarellado ou parda-
cento, ou ainda branco.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O tricheco ou cavallo marinho habita ainda hoje uma grande parte
do Oceano Glacial Árctico. A área de dispersão d'este amphibio compre-
hende uma parte oriental e outra occidental. A este encontra-se princi-
palmente no mar de Behring e ao longo das costas da America, até ao
chamado banco dos cavallos marinhos; nas costas asiáticas, abaixo do
sexuagessimo grão de latitude norte. O limite da distribuição occidental
e á embocadura do lénisei. Encontra-se vulgarmente na Nova-Zembla e
nos gelos que ficam situados entre a ilha Spitzberg e a Groelandia, bem
como ao longo da costa oriental da parte mais septentrional da America.
COSTUMES
O tricheco ou cavallo marinho procura de preferencia os logares em
que a agua se conserva a uma temperatura muito baixa.
Os antigos navegadores faliam de enormes bandos de cavallos ma-
rinhos que já hoje se não encontram. Ainda no século xvii os marinhei-
ros de um só navio podiam no mar Glacial da Europa matar no espaço
de nove horas oitocentos ou novecentos trichecos. Actualmente taes fa-
ctos não se reproduzem; os bandos teem decrescido consideravelmente
em numero de membros.
O género de vida do tricheco é muito semelhante ao das phocas.
É, como estas, muito sociável e passa a maior parte da sua existência
na agua. Na epocha do cio porém, e na da parturição, acontece que este
animal se demora, por vezes, muitos dias seguidos em terra.
332 IIISTOniA NATURAL
Como todos os ampliibios, o Lriclieco ou cavallo marinho nada com
rapidez e facilidade notáveis e o em terra pczado, moroso.
Os crustáceos e os molluscos constituem o grosso da alimentação
doeste amphibio. Com as fortes defezas destaca dos rochedos as conchas
que ahi adherem e come-as.
Nos logares em que a experiência lhe não ensinou a conhecer o ho-
mem, o tricheco passa indifferente ao lado das embarcações. Já assim
não acontece nas regiões em que o homem se lhe denunciou sob a forma
de um terrível perseguidor. Ahi teem sempre todos os bandos algumas
sentinellas que previnem os companheiros da approximação do homem
por uma successão de gritos entrecortados que fazem lembrar o relincho
do cavallo. Se algum dos membros de um bando é ferido, a excitação e
a raiva, rapidamente communicadas de uns a outros, tornam verdadeira-
mente terríveis os trichecos. «Se se attaca um, diz Scoresby, os outros
correm a defendel-o. Cercam o barco, abrem-lhe os flancos com os cani-
nos, erguem-se-lhe até ás bordas, ameaçam submergil-o. O melhor meio
de defeza para o homem é atirar-lhes areia aos olhos; por este modo
consegue-se seguramente aífastal-os, ao passo que pelas armas de fogo
raras vezes se obtém resultado n'estas condições. Meu pae matou um
dia com uma lançada um tricheco a que antes fizera fogo sobre a cabeça.
Viu-se depois que a bala se achatara contra os ossos do craneo.»
O acto sexual realisa-se em Junho ou Julho. N'esta epocha os ma-
chos dão-se combates violentos em que os dentes caninos representam
um grande papel. Raro é, por isso, encontrar um macho cujo corpo se
não ache coberto de cicatrizes. Em quanto dura o cio, os machos fazem
ouvir constantemente a voz.
Nove mezes depois do acto sexual, em Abril ou Maio, a famea pare
um filho único, que trata e defende corajosamente como as phocas.
CAÇA
A caça ao tricheco é perigosíssima no mar e facillima em terra.
Nas praias mata-se o tricheco como se matam as phocas. A difficuldade
que o animal tem de se mover explica porque no espaço de algumas
horas se matam em terra dezenas de cavallos marinhos. Emprega-se o
machado ou a lança. No mar são grandes os perigos d'esta caça, em
que se emprega o arpeo ou a arma de fogo. Os perigos resultam não
tanto da valentia do animal, que é ahás enorme, como do facto de que
mamíferos em especial 333
os cavallos marinhos, já o notamos, se auxiliam uns aos outros no atta-
que, como na defeza.
CAPTIVEIRO
Não se sabe ao certo se o cavallo marinho é susceptível da alta
domesticação que pode attingir a phoca. Segundo Brehm, á Europa
nunca veio senão um tricheco vivo em 1853. Vivem nove semanas ape-
nas em captiveiro.
usos E PRODUGTOS
Os dentes do cavallo marinho fornecem marfim mais branco e mais
rijo que o dos elephantes. A pelle serve para a fabricação de corréas e
cordas de uma enorme resistência. Os tendões servem de fios para os
groelandezes. A gordura é empregada na preparação de alimentos ou
d'ella se extrae um óleo superior ao da balea. A carne, ao que dizem os
que a teem provado, não é má.
-•■oso-*
CETÁCEOS
CONSIDERAÇÕES GERAES
Os cetáceos são mamíferos essencialmente aquáticos, em extremo
semelhantes aos peixes.
Quem se limitasse a uma observação ligeira e superficial das formas
exteriores d'estes animaes, seria com effeito levado a crer que são pei-
xes, tal é a analogia apparente que manteem com esta classe de verte-
brados. É pois necessário insistir nos distinctivos da viviparidade, do
aleitamento dos filhos, da respiração pulmonar, da existência de um co-
ração munido de dois ventrículos e de duas aurículas, para que fique
bem assente e sem sombras de duvida a collocação dos cetáceos na classe
dos mamíferos.
«Os cetáceos, diz Figuier, em vez de serem organisados para a vida
terrestre, são, pelo contrario, admiravelmente adaptados ás condições
do meio aquático; adquirem dimensões muitas vezes enormes e são os
gigantes do reino animal.)) *■ Brehm diz também: «Os cetáceos são entre
os mamiferos o que os peixes são entre os vertebrados, isto é seres con-
formados para uma vida exclusivamente aquática. As phocas passam um
terço, pouco mais ou menos, da sua existência em terra; ahi nascem,
ahi dormem, ahi se aquecem aos raios do sol. Os cetáceos, esses não po-
deriam viver fora da agua. As dimensões gigantescas d'estes animaes
L. Figuier, Obr. cif., pg. 29.
33 G HISTORIA NATURAL
indicam já que só no meio (]'esle elemento lhes é possível movercm-sc;
além cFisso, só o mar com as suas riquezas infinitas lhes pode fornecer
alimentação em quantidade suíficicnte.)) * Abstracção feita dos pontos
essenciaes de organisação que determinam a entrada na classe dos ma-
míferos aos cetáceos, em tudo o mais assemelliam-se elles aos peixes.
É o que vamos ver.
Os cetáceos lêem um corpo pezado e volumosíssimo. A cabeça
enorme e monstruosa não se separa claramente do resto do corpo. Este
vae adelgaçando de diante para traz e termina por uma barbatana cau-
dal, larga e horisontal. Os membros posteriores faltam completamente e
os anteriores transformaram-se em verdadeiras barbatanas em que só
com o auxilio do escalpelo é possível descobrir dedos, reconhecer mãos.
Uma barbatana dorsal, formada de tecido adiposo, augmenta, quando
existe, o que nem sempre acontece, a semelhança entre os cetáceos e
os peixes. A bocca é largamente fendida, desprovida de lábios e contem
um numero considerável de dentes. As mamas acham-se collocadas junto
dos órgãos genitaes.
A estructura interna oíTerece também particularidades dignas de
menção.
Os ossos são formados de ccllulas espongiosas, cheias de uma gor-
dura liquida que o impregna de tal modo que elles parecem ainda gordos
ao fim mesmo de muitos dias de exposição ao ar: não teem canal me-
dullar. O craneo é enorme e raras vezes proporcionado ao resto do
corpo. Os ossos estão ligados de um modo especialíssimo : são embrica-
dos e unidos apenas pelas partes molles. Uns são rudimentares, outros
extremamente desenvolvidos.
Na columna vertebral a porção correspondente ao pescoço é princi-
palmente notável. As vértebras são ahi em numero de sete, mas reduzidas
a finos anneis achatados, muito pouco moveis e, muitas vezes soldados
entre si de modo tal que apenas se lhes pode contar o numero pelos bu-
racos de conjugação, que dão passagem aos nervos. As vértebras dor-
saes são geralmente onze a dezenove, as lombares dez a vinte e quatro
e as caudaes vinte e duas a vinte e quatro. O numero de verdadeiras
costellas é muito restricto: varia entre um e seis pares. As falsas costel-
las são muito mais numerosas.
Os membros anteriores são notáveis pela forma curta e achatada
dos seus ossos e ainda pelo numero de phalanges que pode ser seis,
nove ou mesmo doze.
Os dentes em grande numero, são sempre eguaes em cada maxilla.
Brehm, Ohr, cit,, vol. 2.o, pg. 823.
mamíferos em especial 337
Os músculos são vigorosíssimos e proporcionados ás dimensões d'es-
tes animaes.
A massa nervosa é relativamente pequena; n'uma baleia, por exem-
plo, que meça seis metros de comprido e tenha cinco mil e quinhentos
kilogrammas, o cérebro não excede dois kilogrammas.
Os órgãos sensoriaes teem um pequeno desenvolvimento. Os olhos
são pequenos e as orelhas apenas indicadas. O nariz não exerce func-
ções olfativas, é um simples canal aerio; não se tem, com eífeito, en-
contrado n'esta ordem nervos de olfação. O tacto é um sentido embo-
tado, fraco, nos cetáceos.
Os órgãos respiratórios offerecem nos animaes d'esta ordem modi-
ficações importantes, em relação e em harmonia com as condições de
meio em que elles vivem. A larynge não é n'esta ordem propriamente
um órgão de phonação, mas sim uma cavidade destinada a deixar pas-
sar uma enorme quantidade d'ar a cada inspiração. Os canaes aerios são
muito grandes; os pulmões teem um volume considerável; e os bron-
chios são anastomosados entre si. Além d'isto, as artérias aorta e pul-
monar apresentam diverticulos muito espaçosos em que pode accumu-
lar-se o sangue oxigenado ou viciado.
Os cetáceos não teem glândulas salivares. A lingua é grande, o es-
tômago dividido, o flgado pequeno e os intestinos de dimensões muito
variáveis de espécie a espécie.
A pelle é quasi desnudada, hsa, macia ao tacto e pouco espessa;
sob ella encontra-se uma forte camada de gordura.
Toda esta disposição e natureza morphologica é eminentemente
apropriada á vida aquática. A pelle lisa faciUta aos cetáceos os movimen-
tos; a camada de gordura diminue-lhes o pezo. protege-os contra o frio
e permitte-lhes resistirem á enorme pressão que supportam quando des-
cem ao fundo do mar; os vastos pulmões podem reter consideráveis vo-
lumes d'ar, o que lhes permitte immersões demoradas; finalmente as arté-
rias enormemente dilatadas que hgam os pulmões e o coração podem
conter e conservar sangue arteriahsado por largo tempo, sem que ao
animal seja preciso fazer muito repetidas inspirações.
Os maiores mamíferos conhecidos são pequeníssimos ao lado dos
cetáceos.
voL. m 22
338 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Os cetáceos vivem em todos os mares do globo. Uns teem uma arca
de dispersão muito extensa, outros vivem confinados nas regiões mais
frias, muitos emfim, são verdadeiramente cosmopolitas.
COSTUMES
Todos os cetáceos evitam a visintiança das costas. Á excepção de
uma familia que entra pelos rios, não passando, ainda assim, para além
do ponto em que a maré se faz sentir, os cetáceos não abandonam a
agua salgada. Fora da agua nenhum se pode mover; se acontece que
uma tempestade os atire para terra, estão irremediavelmente perdidos.
Em certas estações os cetáceos emigram e percorrem o mar segundo
um trajecto determinado. Nadam todos com grande facilidade, sem es-
forço, e muitos mesmo com inacreditável rapidez. De ordinário vivem á
superfície d'agua, com quanto possam descer a grandes profundidades.
Quando depois de um prolongado mergulho, um cetáceo volta á su-
perfície do mar dá-se um facto curioso : o animal expelle ruidosamente o
liquido que lhe entrou {Jfelas narinas, e fal-o com violência tal que uma
columna d'agua pulverisada se eleva até cinco ou seis metros. Parece
que um jacto de vapor sáe atravez de um tubo estreito. São portanto
falsos os desenhos que representam a agua saindo das narinas do ani-
mal como de uma fonte. Á expiração que descrevemos succede uma ins-
piração ruidosa e muito rápida. A esta succede uma expiração que, não
havendo agua a expeUir, é rapidamente seguida de uma outra inspira-
ção; e assim sempre, successivamente. As narinas acham-se dispostas de
modo que são sempre a primeira parte a sair da agua quando o cetáceo
immerge.
Para se fazer idéa dos prolongados mergulhos dos cetáceos, basta
lembrar que n'um caso de ferimento elles podem, segundo Scoresby que
os observou de perto, conservar-se debaixo d'agua por espaço de vinte
minutos !
Um facto curioso e que não está bem explicado é o da morte rápida
mamíferos em especial 339
dos cetáceos em terra. Respirando pulmonarmente, não se pode explicar
a morte por aspliixia como nos peixes. Explicar-se-ha pela fome? Talvez;
no entanto custa a crer que a causa seja esta, porque a morte é exces-
sivamente rápida.
Os cetáceos são carnívoros; só casualmente comem vegetaes, que
todavia lhes não servem provavelmente de alimento. Os animaes mari-
nhos, grandes e pequenos, seja qual for a classe a que pertençam, cons-
tituem a verdadeira alimentação dos cetáceos. Devemos notar este facto
muito singular: os cetáceos de maiores dimensões são, de ordinário, os
que se alimentam de mais pequenos animaes e inversamente.
Entre os cetáceos ha espécies que se alimentam apenas de peque-
nos animaes, peixes, crustáceos, molluscos, annelados, etc; outras po-
rém attacam os grandes animaes, não poupam mesmo, se as aperta a
fome, os seus congéneres mais fracos. Este ultimo é o caso dos golphi-
nhos.
Os cetáceos são animaes extremamente sociáveis. Nas regiões em
que o homem os não attaca, vivem em bandos numerosíssimos; e geral-
mente manifestam uns pelos outros uma grande dedicação. O macho e a
fêmea dão n'esta ordem altos exemplos de affeição. Claro está que á afíir-
mação anterior fazemos uma restricção : a que já ficou mencionada rela-
tivamente ás espécies cujos membros se attacam nas occasiões de fome.
Esta restricção, de resto, somos obrigados a fazel-a mesmo para a nossa
espécie. Nas fomes do alto mar, a anthropophagia é uma perfeita reali-
dade.
Não existem dados precisos sobre a epocha do cio. É provável que
o acto sexual se reahse durante todo o anno, mas com mais ardor nos
fins do estio. É então com effeito, que os bandos se dividem em pares
e que os machos agitam violentamente em torno de si as aguas batendo
com força e em todas as direcções com as barbatanas. Também se não
conhece com precisão o tempo que dura uma gestação, embora geral-
mente se creia que seja de nove ou dez mezes. Brehm julga que nas
pequenas espécies a gestação poderá durar com efí*eito esse tempo ape-
nas, mas que nas grandes espécies deverá prolongar-se por vinte ou
vinte e dois mezes. É de Fevereiro a Abril que as fêmeas apparecem
com os filhos. Estes, mesmo depois de muito crescidos, reclamam ainda
os cuidados maternos. As baleias, por exemplo, só ao fim de um anno
estão habihtadas a procurarem por si mesmas o ahmento. Parece que as
grandes espécies só aos vinte annos estão aptas para a reproducção.
Em caso de perigo, os cetáceos auxiliam-se mutuamente; as mães,
sobretudo, combatem corajosamente pelos filhos.
340 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODUCTOS
Além da baleia de que se fazem varas para coUetes, para guarda-
chuvas, ele, obtem-se do cetáceo um producto valioso de muitas ap-
plicações industriaes, a gordura.
Pode considerar-se a ordem dividida em quatro géneros: os nar-
vaes ou v/nicornes, os golphinhos, os cachalotes, e as baleias.
-•-CSO-*
mamíferos em especial 341
CETÁCEOS EM ESPECIAL
OS UNICORNES
Teem a cabeça espherica, curta e o corpo espesso; não possuem
barbatana dorsal. O que principalmente caracterisa e distingue os ani-
maes d'este género é a existência na maxilla superior de um dente in-
cisivo, recto, de superfície canelada em espira, perpendicular á cabeça
e em continuação do corpo, dente que nos machos chega a attingir me-
tade do comprimento do tronco. Nas fêmeas este dente é rudimentar.
Este género comprehende uma espécie única.
O UNICÓRNIO OU LICORNE
A cabeça d'este cetáceo 6 relativamente pequena, o pescoço curto
e muito grosso e a barbatana caudal extensa e apresentando ao meio
uma chanfradura profunda. No logar da barbatana dorsal, que falta,
existe uma simples prega cutânea. A pelle é hsa, desnudada, mollc, lu-
zidia e relativamente fina. A epiderme não tem mais espessura que uma
folha de papel, o corpo mucoso apresenta apenas dois centimetros de
espessura e a derme é fina, embora resistente.
A cor geral doeste cetáceo varia com a edade e o sexo. O macho
342 HISTORIA NATURAL
é de ordinário branco ou branco-amarellado com manchas trigueiras,
numerosas, alongadas o irregulares. Estas manchas, mais abundantes no
dorso que no ventre tornam-sc muitas vezes confluentes na cabeça.
O comprimento do licorne varia entre quatro e seis metros e meio.
O dente incisivo ou defeza offerece uma extensão de dois metros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O licorne habita os mares do Norte. É muito commum no mar Gla-
cial, entre a Groelandia e a Islândia, em Nova-Zembla e nas costas
septentrionaes da Sibéria. Este cetáceo appareceu quatro vezes nas cos-
tas da Inglaterra e duas nas costas da Allemanha, em 1736.
COSTUMES
Acerca do licorne correm nos livros antigos as mais espantosas fa-
bulas. Á falta de dados precisos e observações rigorosas, a phantasia
apoderou-se do assumpto e deixou n'elle os vestígios da sua passagem.
Alberto o Grande, chama a este cetáceo um peixe e diz-nos que com um
corno que tem implantado na cabeça^ elle pode attravessar de lado a
lado um navio, embora seja fácil evitar-lhe o embate porque o animal
é muito moroso em todos os seus movimentos. Strabao e Fabricius, con-
sideram também o dente d'este cetáceo como um corno que lhe serve
não tanto para attacar as diíTerentes espécies aquáticas, como para par-
tir o gelo.
Nós devemos dizer com lealdade que, embora os nossos estudos
modernos nos tenham dado o incontestável direito de julgar verdadeiras
phantasias muitas aífirmações dos antigos, é todavia certo que não pode-
mos hsongear-nos de conhecer tão bem e tão minuciosamente quanto se-
ria para desejar os costumes e hábitos de vida do licorne. Com effeito a
nossa ignorância é sobre alguns doestes pontos quasi absoluta. Procura-
remos dizer quanto ha de averiguado.
O licorne, como muitos outros cetáceos, evita cautelosamente as
costas, refugiando-se no mar largo. É sociável. Raras vezes se encontra
mamíferos em especial
343
um d'estes animaes só. Os bandos são geralmente constituídos, ao que
dizem os navegadores, de quinze a vinte individues.
Os licornes são animaes pacificos, inoíFensivos, que se não provo-
cam uns aos outros, nem ás espécies visinhas. Nadam encostados uns
aos outros, apoiando cada um d'elles o enorme dente incisivo sobre o
dorso do que o precede.
Relativamente ao vagar de movimentos que lhes attribuiam os anti-
gos naturalistas, podemos hoje aíTirmar que a verdade é o contrario do
que se disse. Os navegadores que teem lido occasião de observar muito
de perto estes cetáceos, são todos unanimes em attribuir-lhes uma enorme
rapidez de movimentos. Com um só movimento da barbatana caudal, vol-
tam-se habilmente para a direita ou para a esquerda.
O licorne quando, depois de ter mergulhado, chega á superfície do
mar, expulsa pelo nariz a agua de um modo violento e ruidoso. Quando
muitos d'estes animaes fazem isto ao mesmo tempo, ouve-se de longe
um forte som de gargolejo produzido pela expulsão simultânea de ar e
de agua.
A base da alimentação do licorne é constituída por molluscos e
peixes.
Nada se sabe relativamente á reproducção d'este cetáceo: nem a
epocha do cio, nem a do parto, nem o tempo que dura cada gestação.
O que pode affirmar-se é que, matando-se e abrindo-se uma fêmea no
mez de Julho, se lhe encontrou um feto quasi completamente desenvol-
vido.
PESCA
O processo empregado na perseguição do licorne é o do arpeu.
Esta pesca não é porém, tentada em alta escala; deve considerar-se, tal-
vez, mais uma diversão accidental do que um trabalho regular. De resto,
ella é difficil, porque o licorne não costuma, como muitos outros cetá-
ceos, reapparecer á superfície d'agua no ponto em que mergulhou.
Immerge em um dado logar e, nadando rapidamente sob a agua, vae
reapparecer á superfície n'um outro muito distante, ora adiante, ora
atraz, ora ao lado direito ou esquerdo d'aquelle em que desappareceu;
desorienta assim os perseguidores. O homem não é pois o mais teme-
roso inimigo do licorne. Superiores n'este ponto á nossa espécie estão
alguns cetáceos. Mas mais funestas ainda do que Iodas as influencias ani-
madas são, para os licornes, as tempestades. Muitas vezes o mar ar-
344 HISTORIA NATURAL
roja para as praias do Norte dezenas de cadáveres d'estes cetáceos, em
que se não encontra um ferimento único.
usos E PRODUCTOS
Os groelandezes comem a carne dos licornes depois de cosida e
comem cruas a pelle e a gordura. Com os tendões fazem flos, com o
esophago e os intestinos fazem bexigas que empregam na pesca e com
o óleo que extraem da gordura alimentam as lâmpadas que os alumiam.
Para os pescadores o producto mais valioso, mais estimado são as
defezas. Houve tempo em que a ellas se attribuiam virtudes therapeuti-
cas e então valiam sommas consideráveis. Hoje já ninguém se lembra
de procurar nas defezas do licorne um poder medico qualquer; mas to-
dos vêem ainda n'ellas uma substancia superior ao marfim.
OS GOLPHINHOS
Estes cetáceos teem um focinho estreito e alongado, um corpo de re-
gulares proporções; apresentam barbatana dorsal, a maior parte das es-
pécies.
.CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
A este propósito escreve Brelim: «Eis-nos chegados ao género que
deu o seu nome á familia inteira, aos golphinhos propriamente ditos,
animaes que as fabulas e as lendas teem successivamente celebrado. Foi
um golphinho ou delpbim que, maravilhado pelos cantos divinos de
mamíferos em especial
345
Arion, recebeu sobre o dorso o poeta e o subtraiu ao furor dos mari-
nheiros, transportando-o ao cabo Tenare.
«Quem não leu em Plinio a historia d'aquelle golphinho que, reco-
nhecido a um certo rapaz que todos os dias lhe dava pão, o transpor-
tava no dorso atravez do lago Lucrin até á escola e depois até casa!
((Quando o rapaz morreu, diz o author latino, o cetáceo voltou ainda
por muito tempo, dias seguidos, ao logar costumado até que morreu de
saudade pelo amigo para sempre perdido.» Os golphinhos, segundo o
dizer dos antigos, propeliam os rodovalhos para as redes dos pescado-
res, ao que estes, reconhecidos, correspondiam dando-lhes pão humede-
cido em vinho. Um certo rei tendo mandado prender um golphinho, um
grande numero de companheiros vieram por meio de signaes impetrar do
monarcha a soltura do captivo; o rei não pôde negar o que lhe pediram.
Phnio conta ainda, com toda a seriedade, que os golphinhos novos são
sempre acompanhados por um companheiro velho que lhes serve de men-
tor. Diz-se também que os golphinhos subtraem os cadáveres dos com-
panheiros á voracidade de outros habitantes do mar.
((Desgraçadamente, a todas estas famosas narrativas falta apenas
uma coisa: a verdade.» *
O GOLPHINHO COMMUM OU DELPHIM
Este cetáceo mede de ordinário dois metros a dois e sessenta cen-
tímetros. Apresenta barbatanas peitoraes alongadas, finas e ponteagudas;
a barbatana caudal é semi-circular. O numero de dentes varia muito; de
ordinário porém encontram-se desde trinta e dois até quarenta e sete
em cada maxilla. Estes dentes são implantados a distancias eguaes de
uns a outros e separados por curtos intervàllos de modo a ingrenarem-se
mutuamente. São alongados, cónicos, terminados em ponta aguda, ligei-
ramente recurvos de fora para dentro; diminuem de comprimento de
diante para traz. O dorso é geralmente escuro com reflexos esverdea-
dos que pouco e pouco se confundem com a cor clara do ventre.
Brehm, Obr. cU., vol. 2.», pg. 219.
346 IIISTOniA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habita todos os mares do hemispherio septentrional.
COSTUMES
Com quanto extremamente parecido com os cetáceos já estudados,
sob o ponto de vista dos seus hábitos e costumes, o golphinho commum
ou delphim apresenta alguns factos particulares dignos de menção. Assim
é, por exemplo, que elle não vive nem exclusivamente no mar alto, nem
perto das costas, mas indifferentemente n'um ou n'outro ponto e até
mesmo nos rios cuja corrente sobe até grandes distancias da foz. É so-
ciável; mas os seus grupos não conteem geralmente mais de seis a dez
indivíduos.
O aspecto da dentição é bastante para indicar que o golphinho com-
mum é um dos mais terríveis carnívoros. Alimenta-se exclusivamente de
peixes, de crustáceos, de cephalopedes e outros animaes aquáticos. Per-
segue principalmente os arenques, as sardinhas e os peixes voadores que
obriga a saltarem fora da agua e atraz dos quaes elle mesmo salta tam-
bém e corre com extrema rapidez. Algumas aves da beira-mar vêem em
auxilio do golphinho n'esta caça, porque perseguem no ar esses peixes
ás bicadas e forçam-os assim a mergulhar na agua onde o carnívoro os
espera.
O acto sexual reaUsa-se no outomno; dez mezes depois a fêmea pare
um, raras vezes dois filhos de cincoenta a sessenta e seis centímetros de
comprimento. A mãe trata com soUicitude o filho durante longo tempo.
Só aos dez annos é que o golphinho commum se pode considerar adulto.
Um antigo auctor grego affirmava que esta espécie attingia a edade de
cento e trinta annos; os modernos navegadores não lhe attribuem mais
que vinte e cinco a trinta annos de existência.
mamíferos em especial
347
pesca
o homem poucas vezes persegue o golphinho commum; e quando o
faz, não emprega de ordinário as armas de fogo nem os arpeus. Limita-se
a fazer um cerco de barcos ao cetáceo forçando-o a fugir para as costas;
desde que o golphinho, empehdo por uma vaga pousa o corpo sobre
a terra, está definitivamente morto. Durante a agonia este animal faz
ouvir suspiros profundos.
usos E PRODUCTOS
Comia-se em outro tempo a carne e a gordura d'este animal. Hoje
este uso acha-se quasi completamente extincto. No tempo dos romanos o
fígado do golphinho passava por excehente remédio contra as intermit-
tentes, o óleo por magnifico tópico para as ulceras e a gordura por for-
migações proficuas contra affecções do baixo-ventre. Também se quei-
mava o animal e juntava-se a cinza com mel para fazer unguentos. To-
das essas praticas desappareceram e com ellas o alto valor do cetáceo.
A ORCA
É conhecida esta espécie desde tempos muito remotos. Os antigos
attribuiam-lhe uma grande maldade e todos os observadores modernos
estão ainda hoje do accordo sobre este ponto.
348 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
A orca 6 um golphinho vigoroso. Tem a cabeça pequena, o dorso
eTevado, as barbatanas lateraes compridas e a caudal forte, larga e ter-
minando por uma curva cm forma de s. Apresenta onze a treze dentes.
O dorso é negro brilhante e o ventre branco com reflexos amarellados.
Por cima e por traz dos olhos encontra-se uma comprida macula branca.
O negro do dorso é separado do branco do ventre por uma linha nitida,
mas irregularmente traçada. Do contorno do anus parte uma larga facha
branca que se dirige para diante, enviando duas outras egualraente bran-
cas e largas para a parte posterior do tronco, continuando-se depois até
á barbatana peitoral, subindo e recurvando-se para o angulo da bocca e
terminando por um fino traço branco em torno da maxilla superior. A
partir da base ou parte posterior da barbatana dorsal estende-se para
diante e para baixo uma outra facha azul escuro ou purpura.
Esta espécie apresenta dimensões muito variáveis desde cinco até
dez metros de extensão. A barbatana peitoral mede sessenta e seis cen-
timetros e a dorsal sessenta e trez; a largura doestas membranas é de
metro e meio, termo médio.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A área de dispersão doeste cetáceo foi já muito maior do que é hoje.
Os naturalistas romanos conheciam esta espécie e assignavam-lhe como
pátria o Mediterrâneo. Nas costas da Córsega e da Sardenha abundavam
as orcas. Actualmente este cetáceo não se encontra no Mediterrâneo; ha-
bita o norte do Atlântico, o mar Glacial e o norte do oceano Pacifico
d'onde desce até ás costas da França por um lado e do Japão, por outro.
MAMK^EROS EM ESPECIAL
349
COSTUMES
Segundo Tilésius véem-se as orcas nos mares do norle em grupos
de cinco indivíduos com a cabeça e a cauda recurvados para baixo e a
barbatana dorsal erecta e fora d'agua, parecendo soldados de sabre em
punho, desembainhado. Passam com assombrosa rapidez; e, porque teem
uma vista penetrante, vêem a grandes distancias em todas as direcções.
A orca é de todos os carnivoros marítimos o maior e o mais terrí-
vel; não se Hmita a attacar os pequenos peixes, mas acomette mesmo os
cetáceos gigantescos. É respeitada e evitada por todos os golphinhos.
Phnio disse: «A falsa baleia (assim appelidavam os antigos a orca)
comporta-se como um bandido: ora se occulta á sombra de um navio
ancorado e apanha um marinheiro que teve a phantasia de banhar-se no
mar, ora ergue a cabeça fora d'agua e se atira de encontro ás barcas
dos pescadores, voltando-as.)) Os observadores modernos confirmam as
palavras do naturalista antigo. Rondelet affirma que as orcas perseguem
as baleias e as mordem; assim estes cetáceos são por aquelles forçados
a abandonarem as profundezas do mar e a refugiarem-se perto das cos-
tas onde se torna fácil matal-os pelo emprego das frechas ou do arpeu.
Anderson refere que em Nova-Inglaterra se chama á orca o assassino das
baleias. Quando tratam de perseguir uma baleia, as orcas juntam-se cm
grande numero, mordendo-a, arrancando-lhe pedaços de pelle; quando
a baleia fatigada abre a bocca e projecta fora a lingua, as orcas preci-
pitam-se sobre ella e ar rançam -Ih' a. Eis porque de tempos a tempos se
encontram nas costas cadáveres de baleias a que falta a Hngua. Pontop-
pidan e Steller confirmam o que acabamos de dizer acerca das hostili-
dades da orca e da baleia e bem assim as affirmações de Plinio sobre a
maldade do cetáceo em questão. Steller diz: «Todos os pescadores teem
um enorme medo da orca, porque quando se lhe approximam muito ou
a ferem, ella volta os barcos.»
Nada se sabe, absolutamente nada, sobre a reproducção doeste ce-
táceo.
350 HISTORIA NATURAL
CAÇA
Não se faz uma caça regular á orca. Apanha-se uma vez ou oulra
nos rios, e com grande diííiculdade. Gravemente ferida, a orca nada ainda
assim com uma velocidade de oito milhas por hora, arrastando comsigo
um barco.
usos E PRODUCTOS
A gordura da orca pode produzir cem ou duzentos francos, segundo
Gerbe. O esqueleto vende-se por altos preços aos museus zoológicos.
AS TONINHAS
Estes cetáceos são caracterisados por um focinho curto, curvilíneo,
uma fronte hgeiramente inclinada, uma barbatana dorsal pouco elevada,
dentes numerosos e irregularmente dispostos em cada maxilla. Vamos
occupar-nos da especie-typo.
I
mamíferos em especial 351
A TONINHA
Mede approximadamente um metro e trinta centímetros. Embora se-
jam raros, encontram-se todavia individues de mais de dois metros e
meio. N'um exemplar de metro e meio de comprido, as barbatanas pei-
toraes teem, termo médio, dezenove centimetros de extensão, a caudal
quatorze centimetros de largo e a dorsal dez de altura.
O corpo é fusiforme, ligeiramente comprimido posteriormente; a
maior espessura é na parte media. As barbatanas peitoraes são obtusas
nas pontas; a dorsal é sensivelmente triangular.
A pelle é luzidia. O dorso é trigueiro muito escuro, com reflexos
violáceos ou esverdeados e o ventre branco.
Cada maxilla apresenta vinte e trez a vinte e cinco dentes por lado
o que prefaz a somma total de noventa e seis a cem. Encontram-se com-
tudo muitos individues com vinte ou vinte e dois dentes, o que Brehm
explica, acceitando como provável a dentição incompleta ainda de taes
individues. Os dentes são separados uns dos outros de modo a que se
ingrenem os de uma e outra maxilla.
DISTRIBUIÇÃO CxEOGRAPHlCA
É esta a espécie mais conhecida de toda a familia dos golphinhos.
Vive no Pacifico e no Mediterrâneo; no entanto a sua verdadeira pátria é
o Oceano Atlântico : perto de suas costas encontra-se um numero espan-
toso. Penetra nos rios até uma grande distancia da foz; e é ahi que prin-
cipalmente se lhe dá pesca. No Tamisa, no Senna e no Tejo não é raro
encontrar esta espécie.
costumes
É proverbial a voracidade da toninha; a rapidez com que digere
explica a quantidade considerável de alimento que ingere.
352 HISTORIA NATURAL
Os pescadores sentem um verdadeiro ódio por esta espécie que lhes
rompe as redes e lhes devora o peixe apanhado. As vezes também acon-
tece que sendo muito duros e resistentes os fios da rede, o cetáceo ahi
fica preso; é uma alegria para os pescadores quando isto se dá.
A toninha é muito sociável; como todos os representantes da famí-
lia, vive em bandos. Quando nada, o que faz com perfeição e rapidez,
abaixa e levanta alternativamente a cabeça e a cauda e recurva o dorso
em arco de convexidade ora superior, ora posterior. Brincando na agua,
a toninha salta ao ar e mergulha alternativamente com rapidez assom-
brosa. Quando está imminente uma tempestade salta fora da agua a uma
altura muito maior que a do costume; já os naturalistas antigos tinham
observado este facto. Antes da introducpão dos barcos a vapor, a toninha
era muito mais fácil de observar do que é hoje; ella segue, é certo, es-
tes barcos, mas não tão de perto, nem com tanta confiança como fazia no
tempo da navegação em barcos de vella, de carreira mais vagarosa. Perto
das costas as toninhas seguem ás vezes uma embarcação durante uma
légua e mais, ora nadando por baixo d'agua, ora saindo á superfície,
como para observar melhor o barco e os tripulantes.
Na epocha da apparição dos arenques, a toninha vive quasi exclu-
sivamente da carne d'estes animaes; persegue também o salmão nos
rios, difficultando muito as pescas.
O cio começa com o verão e dura pelo menos dois mezes, de Junho
a Agosto. A excitação é grande n'este periodo de tempo. Os machos per-
correm o mar com extrema velocidade perseguindo as fêmeas; também
se dão combates violentos n'esta epocha. Emquanto a excitação genésica
dura, os machos não conhecem perigos; muitas vezes vêem cair na areia
ou batem com a cabeça de encontro ás embarcações, morrendo por ef-
feito da pancada.
Em Maio realisa-se o parto que produz um a dois fílhos de pouco
mais de meio metro de extensão e de cinco kilogrammas de pezo, termo
médio. O comportamento da mãe em relação á prole é o de todas as es-
pécies de cetáceos.
PESCA
A perseguição activa de que é victima a toninha, exphca-se em parte
pelo valor da carne e da gordura d'este cetáceo, em parte pelos prejuí-
zos enormes que causa á pesca. Embora se empregue contra a toninha
o tiro de bala, é certo que os meios mais usuaes são as redes fortes que
mamíferos em especial 353
n'alguraas partes se collocam nos rios na epocha do cio, e n'outras se
dispõem na occasião em que apparecêm os arenques. As redes são de
fios resistentes e malhas largas que se deixem facilmente attravessar
pelo peixe meudo. A epocha do cio é boa para armar estas redes, porque
o cetáceo vive então n'um estado de excitação tal que se vae cegamente
prender. A epocha da apparição dos arenques é talvez melhor ainda; o
cetáceo persegue estes animaes que attravessam as malhas das redes, ao
passo que elle, infinitamente maior, excitado pelo ardor da perseguição,
fica retido sem poder escapar-se, nem mesmo mordendo a rede, porque
os fios são fortíssimos.
GAPTIVEIRO
A toninha é o único cetáceo que até hoje se tem reduzido ao capti-
veiro. Conta Brehm que um certo americano teve a felicidade de possuir
uma toninha captiva durante largo tempo. Infelizmente para a sciencia,
esse homem nada escreveu sobre os costumes d'esse animal nas condi-
ções de captiveiro.
Affirma ainda Brehm que no Jardim Zoológico de Londres se teem
feito muitas tentativas para crear a toninha e outros golphinhos, mas sem
resultado satisfactorio. O naturahsta citado possuiu também uma toninha,
mas não pôde fazer observações algumas dignas de menção, porque o
animal durou apenas um dia. Diz Brehm que não estando o animal ferido
e não lhe faltando de comer, porque no vasto tanque em que foi lançado
havia muitos peixes, a morte d'elle subsiste um verdadeiro enigma. O
naturalista não crê que a agua doce possa ser tão rapidamente mortal
para um vertebrado aquático; assim esta mesma expHcação que se po-
deria invocar, é insufficiente. Pela minha parte, eu creio que, a despeito
da opinião de Brehm, é á ausência da agua salgada que deve exclusiva-
mente attribuir-se a morte d'este e de todos os cetáceos que vêem ás
praias ou aos tanques e ahi morrem. Esperemos de mais minuciosas ob-
servações a exphcação do facto.
23
354 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODUGTOS
Os romanos estimavam muito a carne da toninha; muito posterior-
mente já á meza dos reis e dos grandes na Inglaterra servia-se como um
mimo esse prato. Ainda hoje para os habitantes das costas e para os ma-
rinheiros privados por largo tempo de carne fresca, o musculo da toni-
nha é um magnifico ahmento.
O óleo que se extráe da gordura é semelhante ao da baleia, mas
ainda mais fino e mais estimado. Os groelandezes bebem este óleo com
o mesmo prazer com que nós bebemos um bom copo de vinho.
A pelle dá um couro magnifico.
OS CACHALOTES
Está comprehendida n'este género uma espécie de cetáceos de gran-
deza collossal e tendo uma cabeça enorme, equivalente a um terço do
comprimento total do corpo. Os dentes são muito desenvolvidos na ma-
xilla inferior e muito extensos; na maxilla superior são nullos ou rudi-
mentares.
O género abrange uma espécie única de que vamos occupar-nos.
mamíferos em espegul 355
O CACHALOTE MACROCEPHALO
Este cetáceo apenas cede á baleia em tamanho: o macho adulto
pode attingir um comprimento de vinte a vinte e trez metros e uma cir-
cumferencia de nove. A fêmea não tem mais que metade d'estas dimen-
sões. As barbatanas peitoraes são relativamente muito pequenas: medem
apenas um metro de comprido sobre sessenta e seis de largo n'um ma-
cho de vinte metros. A barbatana caudal mede perto de seis metros e
meio de largura. Os dois sexos assemelham-se muito; alguns observado-
res porém, pretendem achar uma diíferença na forma do focinho que se-
ria recto e truncado na fêmea e arredondado no macho.
A cabeça do cachalote macrocephalo é muito comprida, muito larga,
quasi quadrangular; é tão alta e tão larga como o corpo de que se não
separa claramente. O corpo é quasi cylindrico nos dois terços anteriores;
rio terço posterior adelga-se de diante para traz. A barbatana dorsal, pe-
quena e formada de tecido gorduroso, parece truncada atraz e confun-
de-se insensivelmente com o resto do corpo. As barbatanas peitoraes são
curtas, largas, espessas e collocadas immediatamente atraz dos olhos;
estas barbatanas apresentam na face superior cinco sulcos alongados, cor-
respondentes aos dedos. A barbatana caudal é profundamente fendida e
bilobada. A fêmea apresenta duas mamas apenas junto á região umbi-
lical.
A face anterior da cabeça é vertical. No logar que o nariz occupa
em outros mamíferos, apresenta o cachalote um respiradoiro ou fenda
recurvada em s e da extensão de vinte e dois a vinte e sete centíme-
tros. Os olhos são pequenos e coUocados muito posteriormente.
As pálpebras são desprovidas de pestanas; e as orelhas collocadas
um pouco abaixo dos olhos, apresentam como abertura uma pequena
fenda longitudinal. A bocca é muito grande, fendida quasi até ao nivel
dos olhos; a maxilla inferior é mais estreita e mais curta que a maxilla
superior que a cobre quando a bocca se fecha. As duas maxillas são or-
nadas de dentes cónicos e sem raizes; os da maxilla inferior são os maio-
res e chegam a attingir um comprimento de trinta e trez centímetros. O
numero de dentes varia entre trinta e nove e cincoenta. Nos individues
novos são muito agudos, mas gastam-se com o attrito, de forma que nos
velhos não são mais do que cones occos de marfim.
O craneo é notável pela grandeza desproporcionada; a elle deve a
espécie o nome por que é conhecida.
356 HISTORIA NATURAL
Por baixo de uma espessa camada de gordura estende-se uma larga
aponevrose que cerca um espaço cheio de matéria transparente, oleosa,
o spermaceti, que lambem se encontra n'um canal prolongado da cabeça
á cauda e ainda em pequenas bolsas dessiminadas no meio da gordura
e dos músculos.
As vértebras cervicaes são sete, das quaes uma, o atlas, é livre e
as outras seis soldadas. As vértebras dorsaes são quatorze, as lombares
vinte e dezenove as caudaes. O omoplata é relativamente delgado, o hu-
mero curto e grosso, soldado aos ossos do antebraço que são mais cur-
tos ainda.
Sobre os músculos que são duros e de fibras espessas, estende-se
uma camada gordurosa de muitos centímetros de espessura. A pelle é
lisa, luzidia, negra em geral, mas apresentando placas claras no ventre,
na cauda e na maxilla inferior.
A lingua adhere por toda a sua face inferior á base do maxillar. O
estômago é dividido em quatro compartimentos e o intestino tem quinze
vezes o comprimento do corpo.
Na bexiga d'este cetáceo encontra-se muitas vezes pequenos corpos,
provavelmente concreções pathologicas, verdadeiros cálculos urinários,
constituindo o famoso oAnbar pardo.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O cachalote macrocephalo é um animal cosmopolita : encontra-se em
todos os mares do globo. No entanto é nos mares do hemispherio sul
que elle é mais frequente. É ahi que se lhe faz uma perseguição regu-
lar; é d'ahi que geralmente se admitte que elle se espalhou por todas
as regiões onde actualmente vive.
COSTUMES
Percorre os mares em grandes bandos, como o golphinho commum.
Procura os legares mais profundos ou a visinhança das costas escarpa-
das. Dizem os baleeiros que cada um dos bandos tem á sua frente um
mamíferos em especial 357
macho vigoroso que defende as fêmeas e os indivíduos novos dos atta-
ques d'outros animaes. Os velhos machos vivem em pequenos bandos
uns com os outros, isolados das fêmeas e dos individues novos. Ha occa-
siões em que muitos bandos se reúnem em um só, composto então de
algumas centenas de indivíduos.
Nos movimentos o cachalote assemelha-se mais aos golphinhos com-
muns do que ás baleias. Nadando tranquillamente, percorre trez a qua-
tro milhas inglezas por hora; quando se apressa fende o mar com assom-
brosa rapidez, produzindo em torno de si grandes vagas que se esten-
dem até muito longe. Rivalisa então em rapidez com todos os navios.
De ordinário os membros de um mesmo bando nadam uns atraz dos
outros n'uma longa fila, repetindo cada um os movimentos do que mar-
cha na frente; assim mergulham e immergem quasi simultaneamente. Só
quando dormem se conservam immoveis, deitados ao longo do mar.
O cachalote pode conservar-se vinte minutos debaixo d'agua. De or-
dinário este cetáceo faz trinta a sessenta inspirações em dez ou quinze
segundos; após isto encontra-se habilitado para mergulhar de novo e por
longo tempo.
O tacto é talvez o sentido mais perfeito do cachalote; a pelle é com
effeito abundante em papillas nervosas dehcadissimas, capazes de rece-
berem as impressões mais ligeiras. A vista é boa; o ouvido, pelo contra-
rio, é rude.
O cachalote é muito timido e evita cuidadosamente a proximidade
do homem; mas se o ferem, se o attacam a timidez nativa substitue-se
rapidamente por uma coragem, visinha da temeridade.
A ahmentação d'este cetáceo compõe-se principalmente de cephalo-
podes de differentes espécies. Segundo as narrações dos antigos, o ca-
chalote perseguiria os outros golphinhos e as baleias; os observadores
modernos contestam isto, affirmando mesmo que o cachalote teme e
evita os outros cetáceos.
Cada parto produz de ordinário um filho único, da extensão de qua-
tro a cinco metros. Para aleital-o, a mãe volta-se um pouco de lado; o
filho apanha o mamilo, não com a parte anterior da bocca, mas com o
angulo das maxillas.
pesca
O cachalote sò principiou a tornar-se objecto de uma pesca regular
desde os fins do século xvii. Os americanos foram os primeiros a arma-
358 HISTORIA NATURAL
rem navios para esta pesca, em 1G77; os inglezes só um século mais
larde lhes seguiram o exemplo. O mar do Sul tornou-se desde o princi-
pio do nosso século o verdadeiro Iheatro d'estes trabalhos; inglezes e
americanos do Norte são os principaes actores. É verdadeiramente es-
pantosa a quantidade de spermaceti recolhida n'estas pescas, tão peri-
gosas, tão cheias de aventuras.
Ao contrario da baleia que raríssimas vezes sustenta lucta com a
nossa espécie, o cachalote, uma vez ferido, sabe oppôr ao homem uma
resistência vigorosa e terrivel, em que lhe são armas os dentes e a
cauda.
Os processos empregados n'esta pesca são os mesmos que na das
baleias. Adiante tocaremos n'este ponto.
usos E PRODUGTOS
^. A gordura do cachalote fornece um óleo precioso; o spermaceti e o
âmbar são productos muito estimados e que se pagam por bons preços.
O spermaceti, além do emprego medico, é utilisado na fabricação de
vellas muito estimadas. O âmbar, cuja origem apontamos anteriormente,
é também um producto vahoso que a industria faz entrar na composição
de certos óleos caros e dos sabonetes perfumados. Os gregos emprega-
vam este producto como antispasmodico; os romanos e os árabes conhe-
ceram-o também. No século passado ainda todas as pharmacias o pos-
suíam. Os dentes do cachalote são fortes, duros, pezados e fáceis de tra-
balhar. A industria emprega-os em muitos dos usos em que serve o
marfim.
mamíferos em especial
359
AS BALEIAS
Esta família comprehende dois géneros : os rorquaes e as baleias pro-
priamente ditas.
OS RORQUAES
Estes cetáceos, conhecidos também pelo nome de balénopteros, são
animaes compridos, relativamente bem feitos, tendo uma barbatana dor-
sal situada no terço posterior, uma barbatana caudal pequena, barbata-
nas peitoraes finas, um focinho quasi recto e na parte inferior do corpo
sulcos numerosos e profundos que se estendem* desde a maxilla inferior
até ao umbigo.
A columna vertebral d'estes cetáceos comprehende sete vértebras
cervicaes, soldadas umas ás outras geralmente, quinze dorsaes, quatorze
lombares e vinte e quatro caudaes.
AS BALEIAS PROPRIAMENTE DITAS
DiílTerem dos rorquaes em terem um corpo muito mais pezado, in-
forme e de ordinário maior, porque uma baleia adulta raras vezes me-
dirá menos de vinte metros de comprido. Diíferem ainda as baleias dos
rorquaes pela ausência de sulcos ventraes e de barbatana dorsal. As ba-
360 HISTORIA NATURAL
leias propriamente ditas, como os rorquaes, não teem dentes, mas no
logar d'elles o que se chama barbas de baleia^ varas ou laminas córneas,
triangulares, muito elásticas.
No grupo dag baleias propriamente ditas estão comprehendidas duas
espécies: a baleia boreal ou commum e a baleia austral. Tendo estas
duas espécies os mesmos costumes e diíTerindo pouco nos caracteres
morpliologicos, faremos apenas a descripção da primeira. A historia de
uma é a historia da outra.
A BALEIA COMMUM
Muitos navegadores e escriptores antigos se occuparam d'este cetá-
ceo; pouco ha porém a aproveitar do que disseram. O conhecimento exa-
cto e completo d'este cetáceo é devido ás informações de Scoresby. Os
antigos, dando curso á phantasia irrequieta e disposta sempre a exage-
rar aquillo mesmo que em realidade é extraordinário, informam-nos de
um modo inexacto e por vezes absolutamente falso. Assim faliam de ba-
leias de cincoenta e sessenta metros, quando nós sabemos que ellas em
geral não excedem vinte ou trinta e dois. Scoresby em trezentas e vinte
e duas baleias que apanhou apenas encontrou uma que excedesse deze-
nove metros.
CARACTERES
A baleia commum é um cetáceo informe, mal proporcionado. A ca-
beça representa um terço do comprimento total do corpo, isto é, pouco
mais ou menos, seis metros de extensão. A bocca tem trez a quatro me-
tros de largura e cinco a seis de comprido; cabe-lhe dentro sem diíEcul-
dade uma canoa de pesca com a respectiva tripulação. O corpo é cylin-
drico e não se separa distinctamente da cabeça. As barbatanas peitoraes
teem dois a trez metros de comprimento e um e trinta centímetros a um
mamíferos em especial
361
e sessenta de largura; são alongadas, ovaes, muito flexíveis e muito mo-
veis. A barbatana caudal é enorme; tem um metro e sessenta centime-
tros a dois metros de comprido e seis a oito de largo. É um verdadeiro
remo e um leme de alguns metros quadrados. No animal adulto os res-
piros ficam na parte mais elevada da cabeça, a trez metros da extremi-
dade do focinho e consistem em duas fendas em forma de S, de cin-
coenta centímetros de comprimento. Os olhos, que teem pouco mais ou
menos o tamanho dos de boi, abrem-se sobre as faces lateraes da ca-
beça, acima e atraz dos ângulos da bocca. O canal auditivo é tão estreito
que a custo se lhe pode introduzir um dedo minimo; o animal pode fe-
chal-o á vontade, tornando-o assim impenetrável á agua.
O numero de barbas oscilla entre trezentos e dezeseis e trezentos e
cincoenta por lado. As mais compridas são as do centro que podem attin-
gir, embora poucas vezes, cinco metros de extensão. A lingua, immovel
e adherente á maxilla por toda a face inferior, é grande, molle, exclu-
sivamente formada de tecido cellular impregnado d'oleo.
A pelle é relativamente fina e cobre uma camada de gordura de
vinte a cincoenta centímetros de espessura que cerca todo o corpo.
O dorso, os flancos, as barbatanas peitoraes e caudal são ordinaria-
mente negros; os lábios, a maxilla inferior e a maior parte do ventre
são brancos com reflexos amarellados. Ha indivíduos completamente bran-
cos e outros maculados. Os lábios apresentam na parte anterior algumas
sedas; o resto do corpo é completamente desnudado.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A baleia commum habita exclusivamente os mares mais septentrio-
naes. Encontra-se até ao polo; para o sul, desce até ao sexuagessimo
grão de latitude norte. Viaja ao longo das costas septentrionaes da Eu-
ropa, da Ásia, da America. Abunda muito nas aguas ricas em pequenos
animaes marinhos e que, por isso, se denominam paragens da balda.
3 152 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Nos logares cm que o alimento abunda, encontram-se as baleias
communs em bandos numerosos; não se pode porém aífirmar, dizem
quasi todos os naturalistas, que a espécie seja sociável.
A despeito do volume e dimensões consideráveis que a caracleri-
sam, a baleia é um animal vivo e ágil; a força predomina evidentemente
sobre o pezo. As barbatanas peitoraes servem-lhe apenas para se manter
em equilíbrio; a barbatana caudal é-lhe, pelo contrario, um órgão in-
dispensável á locomoção. Quando o animal morre na agua, é que se
vê perfeitamente a funcção desempenhada pelas barbatanas peitoraes;
ellas deixam de mover-se e desde então o animal volta-se, repousando
sobre o dorso ou sobre os flancos. Quanto á força da barbatana caudal,
pode fazer-se uma idéa lembrando que ella tem a superfície de uma he-
lyce de navio regular.
Segundo Scoresby, a rapidez e precisão de movimentos da baleia
contrastam singularmente com o pezo e a corpuratura informe d'este ce-
táceo. «Ás vezes, diz este navegador, projecta-se com violência tal que
salta fora da agua.»
Nadando tranquillamente á superfície d'agua, a baleia percorre n'uma
hora o espaço de nove milhas inglezas; se a ferem, percorre doze a de-
zeseis no mesmo espaço de tempo, não havendo então vapor que possa
seguil-a. Diz Paeppig: «Se as baleias tivessem tanto de intelligentes como
teem de grandes e fortes, não haveria canoa ou navio capaz de resistir-
Ihes; seriam os verdadeiros soberanos do Oceano.» Mas as baleias,
affirma Brehm, são animaes estúpidos e cobardes. K vista e o tacto são
os únicos sentidos que n'este cetáceo parecem attingir um certo grão de
desenvolvimento. O ouvido é muito mau.
A baleia prevê com uma grande antecipação as mudanças de tempo;
quando uma tempestade se approxima, manifesta-se inquieta, agita for-
temente a agua.
Gomo revellações da intelUgencia da baleia nós não conhecemos
mais que a dedicação da mãe pelos filhos.
A baleia commum aUmenta-se de molluscos, de crustáceos e princi-
palmente de alforrecas, que nos mares do polo são abundantíssimas.
Também come annelados errantes e, casualmente, peixes, quando de pe-
quenas dimensões, porque a estreiteza do esophago não lhes permite a
deglutição de grandes animaes.
mamíferos em especial
363
Seguindo o doutor Thiercelin, que escreveu o Diário de um haleeirOy
Figuier escreve: «A baleia passa uma parte do seu tempo á superQcie
da agua e outra parte a uma profundidade de duzentas ou trezentas
braças. Quando se prepara para subir, a próxima immersão é annun-
ciada á superfície da agua por um largo remoinho. Primeiro ve-se im-
mergir um ponto negro: é a extremidade do focinho. Logo depois appa-
recem os respiros e após uma porção mais ou menos extensa do dorso;
a cauda é a ultima a patentear-se.
«Na occasião em que os respiros chegam á superfície da agua, ele-
va-se ao ar a muitos metros de altura uma dupla columna de vapor
branco, mais ou menos espessa, em forma de V. Depois d'esta expulsão
os respiros immergem de novo e durante trinta ou quarenta segundos o
cetáceo deshsa á flor d'agua de modo que o espectador lhe vê, atravez
da camada de liquido que o cobre, a tinta azulada do corpo. Um minuto
depois o ponto negro apparece, depois os respiros e uma nova expulsão
de liquido tem logar.
«Este jogo alternado de respiração e progressão á superfície d'agua
dura oito a dez minutos; durante este tempo reahsam-se sete a oito pro-
jecções ou jactos de hquido. O primeiro é mais espesso que os seguin-
tes; o ultimo, tão espesso e tão prolongado como o primeiro, annuncia
que a baleia vae mergulhar. Debaixo d'agua conserva-se trinta ou qua-
renta minutos e algumas vezes mais para voltar depois á flor d'agua e
reproduzir os seus jactos irregulares e periódicos.
«É assim, diz Thiercelin, que as baleias passam a vida ora sobre a
agua, ora debaixo d'ella, de dia e de noite, no bom e no mau tempo,
em todas as estações.
«Quando a baleia respira, o ruido que faz ouve-se a alguns centos
de metros apenas, se ella está tranquilla; mas quando a agita o medo
ou a cólera, o ruido respiratório estende-se então a muitos kilometros
de distancia. Thiercelin compara o ruido respiratório de uma baleia ao
de uma forte columna d'ar projectada por um largo folie de forja n'um
tubo também largo de cobre : é uma nota muito grave e muito intensa
sustentada durante oito ou dez segundos.
«Segundo o mesmo observador, o jacto não seria formado por agua
no estado hquido : compor-se-hia ao mesmo tempo de ar quente saído do
peito, de uma certa quantidade de vapor d'agua, misturado com este ar,
e de partículas oleaginosas. Assim quando a temperatura é elevada, o
mar calmo e o sol perto do zenith, o jacto torna-se invisível. Quando o
vapor d'este jacto se dessimina pelo ar, dissolve-se e tudo desapparece;
no mar caem apenas algumas gottasinhas de gordura. Estas pequenas
gottas espalhadas na agua c juntas ás exalações dajíelle deixam sobre
a superfície do mar extensos rastos de manchas oleosas que indicam a
364 ^ inSTORIA NATURAL
passagem do cetáceo. Em lodos os casos ha sempre uma certa quanti-
dade d'agua que penetrou no canal aéreo terminado pelo respiradoiro;
esta agua (um a dois litros pouco mais ou menos) mistura-se, em estado
de poeira, ao ar aspirado e dessimina-se na atmosphera como a humi-
dade pulmonar.
«O alimento da baleia compõe-se exclusivamente de seres peque-
níssimos. Segundo Lacépède, o cetáceo nutre-se especialmente de mol-
luscos e de carangueijos do mar. O numero d'estes animaes que engole
compensa a pouca substancia que fornecem.
«Segundo Thicrcelin, nos togares de pesca, na primavera e sobre-
tudo no estio, o mar apresenta aqui e além uma coloração trigueira de-
vida á presença de pequenos crustáceos da forma da lagosta, mas cujo
diâmetro não excede dois millimetros. Estes crustáceos formam verda-
deiros bancos de matéria animal de dez, quinze ou vinte léguas de ex-
tensão sobre algumas léguas de largura e trez ou quatro metros de es-
pessura. É um banquete sem duvida bem servido, senão pela variedade
ao menos pela quantidade. A baleia exulta n'estes togares e como que
pasta n'estas immensas pradarias animaes.
«Thiercelin dá ainda informações minuciosas sobre o modo por que
a baleia apanha os alimentos. O cetáceo abaixa a maxilla inferior, estende
bem a lingua sobre o pavimento inferior da cavidade boccal e avança
lentamente pelo meio dos infinitamente pequenos que se propõe enguhr.
A bocca apresenta então uma abertura anterior, irregularmente triangu-
lar, oíTerecendo seis a sete metros de lado a lado. Á medida que a ba-
leia avança, a agua que attravessa e que lhe entra pela bocca, escapa-se
lateralmente pelos intervallos que separam as barbas emquanto que os
animalculos se prendem às ramificações d'essas barbas e adherem á abo-
bada palatina do cetáceo. Quanto a baleia tem assim percorrido um es-
paço de quarenta a cincoenta metros, diminue a velocidade, levanta a
maxilla inferior, applica os lábios sobre as barbas e dilata a lingua de
maneira a encher-lhe toda a capacidade da bocca fechada. A agua escapa
pelos interstícios das barbas; a ponta da hngua junta, por um movi-
mento de rotação, todos os animalculos presos ás barbas interiores, reu-
ne-os n'um bolo alimentar e leva-os á entrada da pharynge, onde se exe-
cuta a deglutição que o faz passar ao esophago e d'ahi ao estômago.
Feito isto a baleia abaixa de novo a maxilla e recomeça a pesca em ver-
dade bem fácil.» *■
Scoresby declara nunca ter ouvido a voz da baleia; este viajante
crê que o cetáceo é incapaz de produzil-a.
1 L. Figuier, Oh)\ clL, pg. 3G e 37»
mamíferos em especial
365
Nos mares do norte a copula tem logar em Junho e Julho. N'este
momento as baleias apresentam uma grande excitação.
O parto produz um filho único, muito raras vezes dois. Que tempo
dura a gestação? Eis o que os naturahstas nos não dizem precisamente;
uns faliam em dez mezes, outros em vinte e dois, alguns mesmo em dois
annos. O recemnascido tem ordinariamente de extensão seis metros e de
circumferencia cinco. O amor materno é um sentimento muito desenvol-
vido na baleia; este cetáceo habitualmente tão timido, torna-se durante
os primeiros mezes de maternidade corajoso, terrivel para quantos lhe
fazem a pesca. Scoresby e Fitzinger relatam alguns casos de observação
própria, eminentemente demonstrativos da coragem ou antes da temeri-
dade da baleia quando lhe perseguem o filho no periodo de aleitamento.
N'esta occasião não evita, como de costume, nem as canoas dos pesca-
dores, nem mesmo os navios de alto lote; arremetem destemidamente
contra tudo e contra todos.
INIMIGOS
Além do homem, tem a baleia outros inimigos ainda. O tubarão nos
mares do Norte persegue-a e chega a arrancar-lhe grandes pedaços de
pelle. Os parasytas animaes e vegetaes fixam-se-lhe no dorso em numero
assombroso. «Véem-se baleias, diz Brehm, que trazem sobre o dorso
todo um mundo de vegetaes e de animaes.» *■
PESCA
A pesca regular ás baleias data dos séculos xiv e xv. Os perigos
que ella offerece são por vezes consideráveis; e no entanto os baleeiros
teem uma verdadeira paixão por este género de perseguições. Os pro-
ductos da baleia tornaram-se artigos importantes de commercio e ha
hoje paizes que os exploram em alta escala. Em 1841 os americanos tra-
1 Brehm, Obr. eit., vol. 2.«, pg. 859.
366 HISTORIA NATURAL
ziam nos mares do Sul seiscentos Larcos de vela e treze mil e quinhen-
tos homens empregados na pesca da baleia.
A pesca doeste cetáceo faz-se empregando principalmente o arpeu.
A timidez da baleia, especialmente nos togares em que está habituada a
ser perseguida, torna esta pesca difficil. A baleia foge das embarcações
com grande velocidade; é pois necessário fazer-lhe um verdadeiro cerco
em que se empregam muitos homens. A baleia ferida não costuma op-
por, como os golphinhos, uma resistência qualquer ao homem; de ordi-
nário foge, mergulha, procura escapar-se. Mas no tempo do cio, os ma-
chos, e no periodo de aleitamento, as .fêmeas sabem resistir, sabem
combater, possuem-se de uma grande excitação, de uma notável cora-
gem e então a pesca torna-se verdadeiramente perigosa. É o que facil-
mente percebe o leitor, recordando as dimensões da baleia e a enorme
força de que dispõe.
O arpeu, instrumento quasi exclusivamente empregado na pesca
d'este cetáceo, é um ferro reclihneo terminado por um lado em ponta
fmissima, penetrante e munido do outro lado de um gancho ou argola a
que se prende uma corda muito comprida e muito flexível, enrolada
n'um sarilho collocado na proa do barco da pesca. Depois que se lança o
arpeu á baleia é necessário manter uma grande presença de espirito: o
cetáceo ferido mergulha e nada com assombrosa rapidez, arrastando
comsigo o barco que ora sobe a espantosas alturas ora desce a grandes
profundidades, tantas e tão grandes são as vagas que o animal agita em
torno do corpo até uma grande distancia.
A baleia morta entra rapidamente em putrefação. Poucos dias são
precisos para que todo o seu corpo se reduza a uma vasta massa espon-
giosa; os gazes que se desenvolvem dilatam por tal forma o corpo que
a pelle estala com detonação e um cheiro pestilencial se espalha rapida-
mente a grande distancia. É preciso pois que os pescadores façam muito
rapidamente o trabalho que consiste em despojar o cetáceo de quanto
pode ser-lhes útil.
usos E PRODUGTOS
De todos os mamíferos marinhos, affirma Brehm, é a baleia aqueUe
cuja pesca é mais productiva. Uma baleia de vinte metros de comprido
pode produzir mais de trinta e trez mil kilogrammas de gordura e perto
de dois mil kilogrammas de barbas. A gordura produz approximada-
mente vinte e sete mil kilogrammas de óleo. Mil cento e vinte kilogram-
mamíferos em especial 367
mas d'oleo valem, termo médio, cem francos e a mesma porção de bar-
bas paga-se por quatro mil e quinhentos francos. Por estes dados faz-se
uma idéa clara do que pode produzir a pesca das baleias em grande es-
cala e tal como os americanos a organisam.
Na Europa apenas teem emprego a gordura e as barbas. As povoa-
ções do Norte fazem uso da carne, comem a gordura e bebem o óleo
com tanto prazer como um alcoólico bebe um copo de bom vinho. Os es-
quimós comem mesmo a pelle crua. O esqueleto tem grande valor ao
Norte, porque é ahi empregado na construcção de barcos e de cabanas.
AS SIRENIDAS
Este grupo de mamíferos é por alguns naturalistas, por Brehm por
exemplo, constituído em ordem á parte, por outros, por Figuier por
exemplo, incluido na ordem dos cetáceos. Não achando motivos bastan-
tes para fazer da^ sirenidas uma. ordem, damol-as como fazendo parte
do grande grupo dos cetáceos e constituindo o ramo dos cetáceos herbí-
voros. Assim a divisão que atraz fizemos dos cetáceos em unicornes,
golphinhos, cachalotes e baleias, corresponde aos cetáceos propriamente
ditos ou ordinários. Os géneros que vamos agora estudar — dugongos e
manatins — pertencem ás sirenidas ou cetáceos herbívoros.
O nome de- sirenidas,ipYO\em do vocábulo latino sirenia que nós tra-
duzimos por sereias e com que os antigos designavam seres phantasti-
cos, metade peixes e metade mulheres, cujo canto suavíssimo fazia pa-
rar os navios e encantava os marinheiros para os perder. Os naturahs-
tas que fazem das sirenidas uma ordem distincta, consideram estes ma-
míferos como estabelecendo a transição entre as pliocas e as baleias.
Nas sirenidas existem membros anteriores com dedos desenvolvidos
e ligados pela pelle, mas perfeitamente immoveis e constituindo verda-
deiros remos; a cauda representa os membros posteriores e é uma bar-
batana horisontal. A cabeça é pequena, o focinho grosso e cylindrico, o
péllo é raro, curto e grosso. Teem dentes incisivos e mollares. Apresen-
tam duas mamas peitoraes; e é d'ahi que deriva a comparação feita en-
tre estes cetáceos e as sereias da fabula, mulheres-peixes.
368 HISTORIA NATURAL
São dois OS géneros compreliendidos n'este grupo ou família: os
dugongos e os manatins.
OS DUGONGOS
Teem um focinho curto, achatado, guarnecido de um grande numero
de sedas curtas e ásperas; o craneo é notável pelo grande desenvolvi-
mento dos intermaxillares. Teem trinta a trinta e dois dentes, sendo
quatro incisivos superiores, seis ou oito inferiores e cinco mollares por
lado nas duas maxillas; nenhum d'estes dentes tem raizes. As barbatanas
peitoraes, representantes dos membros anteriores, não teem unhas; a
barbatana caudal é semelhante á dos golphinhos e das baleias. A pelle é
muito espessa e desnudada.
O DUGONGO COMMUM OU CAMELLO DO MAR
Foi este animal o que deu origem á fabula das sereias; é também
o mais característico da familia natural das sirenidas. Os chinezes e os
árabes conhecem este cetáceo ha muitos séculos; na Europa porém, só
no começo do século passado se souberam algumas informações a seu
respeito. Publicou-as em 1702 Dampier. Advirtamos porém que a des-
cripção exacta do dugongo commum foi feita pela primeira vez n'este
século pelos naturahstas francezes Diard e Duvaucel. Mais tarde Riippel
observou-o no mar Vermelho e fez-nos conhecer o seu género de vida.
Hoje possuímos -a historia quasi completa d'este singular cetáceo.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 369
CARACTERES
A barbatana caudal do dugongo é horisontal e apresenta uma chan-
fradura semi-circular ; este caracter importante serve para distinguir á
simples inspecção o dugongo dos manatins.
A cabeça do dugongo recorda a do hippopotamo; no resto do corpo
o cetáceo assemelha-se muito a um peixe. Tem Irez a cinco metros de
comprimento; o dorso é cor de chumbo, azulado ou pardo claro e o
ventre branco. O pescoço é curto e grosso, mas inteiramente separado da
cabeça e insensivelmente continuado com o tronco que é arredondado e
vae estreitecendo até á cauda. As barbatanas peitoraes inserera-se pouco
atraz da cabeça, no terço inferior da altura do corpo; são largas, arre-
dondadas no bordo anterior e cortantes posteriormente. Os dedos não
são visiveis, mas apenas se reconhecem ao toque.
O lábio superior é muito grande, arredondado, movei e talhado an-
teriormente em forma de coração; o lábio inferior separa-se do pescoço
por uma prega cutânea profunda. As narinas encontram-se na parte su-
perior do focinho; são muito approximadas e simulam duas fendas semi-
circulares. Os olhos são pequenos, ovaes, salientes, muito convexos e
apresentando no bordo superior uma fileira de pestanas; o animal fe-
cha-os, contraindo a pelle. As orelhas são representadas apenas por pe-
quenas aberturas arredondadas. A pelle apresenta algumas sedas curtas,
e rijas que na maxilla superior são quasi espinhosas. As barbatanas são
inteiramente desnudadas.
Os dentes incisivos são curtos e ponteagudos na fêmea; no macho
são mais compridos, triangulares e talhados em viez. Os mollares vão
augmentando de diante para traz. Estes dentes não teem raiz, como dis-
semos, e caem quando o animal envelhece. No macho ha dois incisivos
que attingem o comprimento de vinte a trinta e trez centimetros e uma
espessura de trez; representam verdadeiras defezas, cobertas em parle
pela maxiUa e pelas gengivas.
2i
370 HISTOHIA NATURAL
DISTRIBUIHAO GEOGRAPIIíGA
Habita, segundo informações dos navegantes, todo o oceano Indico.
Para o lado do norte, ascende até ao meio do mar Vermelho, onde é
muito conhecido.
COSTUMES
O dugongo commum habita quasi exclusivamente o mar; nunca en-
tra nos rios e raras vezes se encontra mesmo nas suas emboccaduras.
No mar procura a visinhança das costas e poucas vezes se aífasta muito
para o largo. Habita de preferencia as bahias pouco profundas e tran-
quillas cujas aguas facilmente se aquecem pelo sol e em que os vegetaes
marinhos podem tomar um grande desenvolvimento. De ordinário, o du-
gongo vive debaixo d'agua; realmente elle não se conserva á superfície
senão o tempo indispensável para respirar.
Este cetáceo é sociável: no oceano Indico vive em grandes bandos;
perto das costas da Arábia vive aos pares ou em pequenas famihas.
Os movimentos do dugongo commum são muito lentos e muito pe-
zados. Nunca abandona uma certa região em quanto n'ella encontra ali-
mento.
As tempestades violentas que em determinadas estações reinam no
mar das Índias, teem uma influencia decisiva nas emigrações do dugongo.
A agitação das vagas faz com que elle procure as bahias, os estreitos
onde lhe não será perturbada a natural preguiça. O que tem levado os
naturahstas a crerem na influencia das tempestades sobre emigrações do
dugongo é facto de apparecer este cetáceo periodicamente em togares
onde nunca se encontra fora d'essa epocha anormal.
A inteUigencia do dugongo está de harmonia com o pezo e desele-
gancia da sua massa. Os órgãos sensoriaes são pouco desenvolvidos.
A voz consiste em gemidos surdos.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 371
Só na epocha do cio é que o dugongo apresenta alguma vivacidade.
Os machos combatem então entre si pela conquista das fêmeas. N'esla
epocha a excitação genésica cega-os, torna-os imprudentes e é então que
os pescadores conseguem apoderar-se d'elles facilmente. No mar Verme-
lho a fêmea pare um filho único em Novembro ou Dezembro; não se
sabe se a parturição nos outros mares tem logar n'esta mesma epocha.
CACA
A perseguição ao dugongo realisa-se na quadra do cio e principal-
mente de noite, quando tudo está tranquillo e é fácil ouvir de longe os
suspiros que denunciam a presença d'este cetáceo. A arma empregada é
o arpeu. Diz Raílles que deve procurar-se sempre ferir o animal na bar-
batana da cauda, porque d'este modo se lhe paralysam os movimentos.
Gonta-se que os dugongos se prestam mutuo auxilio nas occasiões de
perigo; o que é perfeitamente certo é que o macho defende a fêmea e
esta o filho. •
usos E PRODUGTOS
Os productos mais estimados do dugongo commum são a carne, a
gordura e os dentes. Os árabes e abyssinios comem a carne d'este cetá-
ceo. O dugongo adulto pode fornecer para cima de vinte e cinco kilo-
grammas de gordura. Diz Riippel que na Abyssinia se emprega a pelle
d'este cetáceo na fabricação de sandálias; não se tanifica para este fim,
mas apenas se deixa seccar, expondo-a ao ar. Esta pelle não pode cm-
pregar-se senão em regiões seccas, porque a humidade torna-a molle c
espongiosa. Os dentes que hoje valem pouco, pagaram-se n^outro tempo
por altos preços, porque uma superstição muito vulgar nas Índias attri-
buia-lhes o poder de facilitarem o parto ás mulheres que os trouxessem
ao pescoço.
372 HISTORIA NATURAL
OS MANATIN8
Os manalins teem a barbatana caudal arredondada, vertical e sem
chanfradura; pelos demais caracteres assernelham-se aos dugongos. O
corpo pisciforme é coberto de pêllos raros, excepto no focinho onde se
encontram sedas espessas. O lábio superior é truncado e gosa de grande
mobilidade; as barbatanas peitoraes são arredondadas e por vezes mu-
nidas de unhas achatadas, o que constituo um caracter differencial entre
este género e o precedente. As vértebras cervicaes são seis, quinze a
dezesete as dorsaes e vinte e trez as caudaes. Os individues muito no-
vos apresentam incisivos que nos adultos não existem, porque caem
muito cedo. A muda dos dentes mollares faz-se como nos elephantes.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Os manatins habitam o Oceano Atlântico entre o decimo quinto grão
de latitude sul e o vigessimo quinto de latitude norte.
O MANATIM AMERICANO OU PEIXE-BOI
De todas as espécies comprehendidas no género, é esta a mais bem
conhecida. O manatim americano tem trez metros a trez e vinte centi-
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 373
metros de comprimento, sessenta a oitenta centimetros de largura, meio
metro de altura e duzentos e cincoenta a quatrocentos kilogrammas de
pezo. Estas são as dimensões medias; lia indivíduos maiores, de cinco a
sete metros de extensão, por exemplo. A pelle é pouco menos do que
desnudada; a cor geral é um pardo azulado um pouco mais escuro no
dorso e flancos do que no ventre. As raras sedas que cobrem o corpo
são amarelladas.
Os pulmões teem um metro de comprido; são formados de grandes
cellulas e podem reter uma notável quantidade d'ar. O intestino tem
trinta metros de comprimento.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A America do Sul e a America central são a verdadeira pátria d'este
animal, que é hoje muito mais raro do que o foi em outro tempo. Ha-
bita principalmente as costas do Oceano Atlântico e nomeadamente as
bailias nas visinhanças de Cayenna e das Antilhas.
COSTUMES
líumboldt observou que os manatins procuram no mar de preferen-
cia os togares em que existem fontes d'agua doce, por exemplo a al-
guma distancia da ilha de Cuba, ao sul do golpho de Jagua, n'um ponto
em que as fontes d'agua doce são tão abundantes que os marinheiros
alii fazem as suas provisões, enchendo pipas. Muitas vezes também so-
bem pelos rios e nas epochas de inundações chegam até aos lagos e aos
pântanos.
No Amazonas, e confluentes ainda hoje são vulgares estes cetáceos.
Os costumes do manantim americano são sensivelmente semelhantes
aos dos dugongos.
A alimentação é vegetal. Os viajantes antigos disseram que o ma-
natim americano vinha algumas vezes a terra pastar; 6 um erro com-
pleto que já no século xviii era desmentido pelos naturalistas. O cetáceo
aUmenta-se de plantas que vegetam na agua. Gome até encher comple-
374 IIISTOBIA NATURAL
lamente o estômago c os inlcslinos, depois do que se deixa ficar immo-
vel iVum logar pouco profundo com a cabeça íora d'agua para se não
incommodar em emersões consecutivas reclamadas pelas necessidades
respiratórias.
Não se conhece precisamente a quadra do cio, assim como se não
sabe o numero de filhos produzidos por cada parlo.
CACA
A caça ao manatim americano é muito simples. Approxima-se o barco
do logar em que se vé o cetáceo e quando elle emerge dardeja-se-lhe
uma frecha a que está presa uma corda e um pedaço de madeira, que
serve para indicar pela fliuctuação precisamente o ponto em que o animal
se encontra. Também se emprega o arpeu.
A epocha mais própria para esta perseguição é a que succede ira-
mediatamente ás inundações, quando o manatim se encontra nos lagos
e nos pântanos e quando a agua se escoa.
CAPTIVEIRO
O manatim americano reduz-se ao captiveiro c chega a domesti-
car-se até um alto grão. A acreditar nas informações de alguns natura-
listas antigos, o manatim americano ou peixe-boi reconheceria a voz do
dono, obedecer-lhe-hia e viria do mar ou dos lagos a terra, a horas de-
terminadas, buscar alimento. Já anteriormente vimos que o mesmo se dá
com alguns amphibios.
usos E PRODUCTOS
A carne do manatim ou peixe-boi assemelha-se no gosto, segundo
Humboldt, mais á do porco que á de vacca. Ha paizes em que ella se
mamíferos em especial 375
come na quaresma e nos dias de jejum como se fura carne de peixe. A
gordura serviu n'outros tempos para alimentar as lâmpadas das igrejas.
A pelle serve para a fabricação de corréas.
O MANATIM OU PEIXE-MULHER DE ANGOLA
É muito pouco conhecida nos caracteres morphologicos assim como
nos costumes, esta espécie.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPIIICA
Encontra-se na foz do Senegal e em toda a costa occidental da
Africa até á Guiné meridional.
USOS E PRODUGTOS
A carne que dizem parecer-se no gosto á do porco é muito esti-
mada pelos negros.
No quadro junto apresentamos sob a forma schematica as divisões
da ordem dos cetáceos:
376
HISTORIA NATURAL
, ORDINÁRIOS
CETÁCEOS
o UNICÓRNIO
o OOLPIIINUO ORDINÁRIO OU DK-LPIIIM
|a OJtCA
jA TONINHA
o CACHALOTE
A HALEIA ORDINÁRIA
herbívoros.
O DUGONOO
o MANATIM AMERICANO
O MANATIM d'aNGOLA
•oso-«
--X^«^®^>>|S)0-
DIDELPHOS OU MARSUPIAES
CONSIDERAÇÕES GERAES
O caracter mais saliente e mais importante dos didelpbos ou marsu-
piaes é o da existência na parle anterior da bacia de dois ossos compri-
dos, estreitos, articulados e moveis que nas fêmeas servem para susten-
tar, ao menos na maior parte das espécies, uma bolsa situada abaixo do
abdómen e chamada bolsa marswpial. Estes ossos denominados marsu-
piaes não são propriedade exclusiva das fêmeas; pertencem lambem aos
machos. Esta conformação do esqueleto subordina-se inteiramente ao
modo especial de geração que caracterisa os animaes d'esta ordem.
Nos didelphos ou marsupiaes os fdhos não saem do útero materno
completamente formados, como acontece com lodos os outros mamífe-
ros; são expulsos antes de terminada a sua evolução morphologica e
acabam de desenvolver-se na bolsa abdominal. D^aqui, segundo a expres-
são consagrada, duas phases de gestação: a uterina e a marsupial. A
primeira é relativamente curta; a segunda muito demorada. Nos marsu-
piaes ha pois a distinguir dois nascimentos, se assim é licito exprimir-
mo-nos: um que coincide com a apparição do novo ser na bolsa marsu-
pial, outro que coincide com a saída d'elle d>ste berço natural para o
contacto do mundo externo. O tempo que dura a gestação total varia de
espécie a espécie. No kanguru o feto é depositado na bolsa trinta e oito
dias depois da fecundação e ahi se conserva durante oito mczes.
«Não é, diz Figuier, por uma força interior, por uma acção muscu-
lar mais ou menos enérgica, que se eííectua o transporte dos recemnas-
378 HISTORIA NATURAL
eidos para a bolsa marsupial. Segundo as observações de Owen, anató-
mico inglez, a própria mãe para ahi os transporta, apanhando-os com os
lábios. Eis o modo por que cila procede: Applicando com força os dois
membros anteriores aos bordos da bolsa, repuxa-os em opposição um ao
outro para os distender e tornar maior a abertura, como nós fazemos
quando abrimos uma sacca. Depois introduz na bolsa o focinho e, sen-
tando-se em terra para tomar uma posição mais favorável, extráe ella
própria o feto que já passou a primeira phase de evolução. Depois, sem
nunca se servir dos membros, leva o filho a uma das mamas que elle
por esforço próprio seria incapaz de attingir, e ahi o conserva até que
elle tenha apanhado com os lábios um mamillo. D'ahi por diante o re-
cemnascido dispensa o soccorro materno; adhere tão fortemente á mama
que só d'ella poderia ser separado por uma grande violência. Todavia
como não é ainda capaz de sustentar-se pelas próprias forças, isto é de
aspirar o leite necessário á nutrição, a mãe determina por meio das
contracções alternadas de um musculo especial verdadeiras injecções de
leite na bocca do filho.
«Pelo que acaba de ser lido, vê-se que os marsupiaes differem essen-
cialmente dos outros mamíferos no facto de que os filhos exigem a ali-
mentação mamaria em epocha muito menos avançada do seu desenvol-
vimento do que nas outras ordens. Os ossos marsupiaes e a bolsa que
elles manteem não são senão disposições que correspondem a essa ne-
cessidade.
«Durante o que podemos chamar o segundo periodo de gestação, a
organisação dos marsupiaes completa-se: o novo individuo vae pouco e
pouco approximando-se da forma e constituição definitivas. No kanguru,
por exemplo, os pêllos principiam a apparecer ao sexto mez; ao oitavo
começa o filho a deitar a cabeça fora da bolsa marsupial e já preludia a
existência exterior apanhando aqui e além alguma herva tenra. Por fim,
algum tempo depois faz a sua entrada no mundo e aventura alguns sal-
tos timidos a traz da mãe. Principia a viver sob responsabilidade própria;
comtudo por algum tempo ainda recolhe-se muitas vezes ao primitivo
asylo quer para evitar algum perigo, quer para supprir pelo leite ma-
terno á insufficiencia da alimentação que as forças lhe não permittiram
procurar em quantidade bastante. É por isso precisamente que se vêem
mamar ao mesmo tempo indivíduos já grandes, quasi emancipados e ou-
tros pequenissimos ainda, de partos mais recentes. É também por isso
que as fêmeas possuem um numero de mamas superior ao dos filhos
que produz cada parto.» *
i L. Figuier, Obr. cit., pg. 15 o seguintea.
mamíferos em especial
379
CARACTERES
É difficil, observa justamente Brehm, dar uma idéa geral da forma
dos marsupiaes. As difFerenças entre os membros d'esta ordem são com
eíTeito profundas. «A dentição, escreve o naturalista alludido, ora é a de
um roedor, ora a de um carnívoro; a disposição do resto do apparelho
digestivo e a estructura dos membros correspondem inteiramente a estes
caracteres tirados dos dentes. Encontramos n'esta ordem verdadeiros
carnívoros e verdadeiros herbívoros; encontramos mesmo animaes que
nos fazem lembrar os ruminantes. O que pode dizer-se n'um ponto de
vista geral é que os marsupiaes são mamíferos de pequenas ou medianas
proporções, de corpo refeito e de membros fracos ou delgados. A cabeça
é de ordinário alongada e ponteaguda; as orelhas são grandes e levan-
tadas. A cauda é muita comprida; o pêllo é macio e acamado. Os outros
caracteres variam immensamente; é pois necessário estudal-os em cada
famiHa separadamente. Apenas um caracter commum os relaciona: a exis-
tência da bolsa marsupial.» *
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Em epochas geológicas anteriores á nossa existiram representantes
d'esta ordem em pontos diíTerentes da Europa, nomeadamente na França
e na Inglaterra. Hoje existem apenas na America e em Nova IloUanda;
a Austrália é a verdadeira pátria d'estes animaes. Até mesmo a máxima
parte dos mamíferos doeste continente pertencem á ordem de que nos
estamos occupaodo.
* Brehm, Obr. cit., vol. 2.o, pg. 2.
380 HISTORIA NATUnAL
COSTUMES
Acerca dos costumes dos marsupiaes podemos repelir o que disse-
mos fallando dos caracteres: são tão distinctos de espécie a espécie
quanto possível. Dos marsupiaes, com effeito, uns teem os costumes dos
carnivoros, outros dos roedores; uns são terrestres, outros aquáticos ou
habitantes das arvores, alguns diurnos, muitos nocturnos. Nutrem-se de
folhas, de raizes, de fructos, de insectos ou de vertebrados; alguns che-
gam a attacar animaes domésticos taes como o carneiro. Uns, em maior
numero, habitam as florestas e as brenhas, outros preferem os logares
descobertos, os descampados.
Dos sentidos, a vista, o olfato e o ouvido parecem sér os mais per-
feitos. O caracter diversifica e está de harmonia com o género de vida
de cada espécie: uns, os carnivoros, são mãos, astutos, outros, os her-
bívoros, bons, dóceis.
O numero de filhos é variável entre os hmites extremos de um e
quatorze. Nascem sempre, qualquer que seja a espécie a que pertençam,
nus, cegos, surdos, com o anus imperfurado e os membros perfeitamente
rudimentares.
usos E PRODUGTOS
Entre os marsupiaes ha uns que são muito prejudiciaes ao homem,
outros que lhe são. úteis. A carne de muitas espécies é aproveitada como
alimento e a pelle serve para a fabricação de vestidos.
mamíferos em especial
381
CLASSIFICAÇÃO
Variam muito as classificações adoptadas pelos naturalistas para a
regular e methodica exposição dos didelplios em especial. Uns formam
dois grandes grupos, tomando para fundamento o regime alimentar —
carnívoros e herbívoros; outros, como Figuier, admittem quatro famí-
lias; finalmente alguns dividem c subdividem a ordem segundo a distri-
buição geographica das espécies. Cremos que a primeira classificação é
a mais natural e aquella que se baseia n'um caracter mais importante;
por isso a adoptaremos.
-•-cso*-
mamíferos em especial
383
DIDELPHOS OU MARSUPIAES EM ESPECIAL
MARSUPIAES carnívoros
Este grande grupo comprehende as famílias que passamos a es-
tudar.
OS DASYURIDOS
Os caracteres d'este grupo são, tanto interna como externamente
considerados, os mesmos dos carniceiros. Os dasyuridos teem com eíTeito
uma dentição completa: teem caninos superiores e inferiores fortes e
compridos; os mollares superiores são ponteagudos e os inferiores cor-
tantes.
384 IIISTOIUA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Actualmcnle existem apenas na Austrália. São os raamiferos que pri-
meiro appareceram no globo; na Europa encontram-se os seus restos em
estado fóssil.
COSTUMES
Habitam as florestas, os logares pedregosos ou as visinhanças do
mar e refugiam-se em cavernas, entre raizes, nas fendas dos rochedos
ou nos troncos occos das arvores. •
Uns vivem somente á superfície do solo, outros trepam maravilho-
samente, alguns mesmo vivem só nas arvores. São plantigrados, isto é,
na marcha apoiam em terra toda a planta dos pés; no entanto teem mo-
vimentos rápidos e ágeis como todos os carniceiros. São quasi todos no-
cturnos; dormem o dia inteiro nos seus escondrijos d'onde só saem ao
crepúsculo para procurarem o alimento. Vagueiam de ordinário ao longo
das costas, devorando animaes frescos ou em decomposição que o mar
expulsa. Os que habitam nas arvores alimentam-se de ovos, de insectos
e d'outros pequenos animaes. As grandes espécies chegam a penetrar
nas habitações humanas para attacarem os animaes domésticos. Muitos
dos indivíduos que entram n'este grupo levam á bocca os alimentos com
as patas anteriores.
Os individues de grandes proporções são selvagens, mãos, indomá-
veis; quando são attacados, defendem-se vigorosamente com os dentes.
Os de pequenas dimensões, pelo contrario, são dóceis, domesticam-se fa-
cilmente e revelam uma grande dedicação pelo homem.
A parturição tem logar na primavera; a fêmea dá então á luz qua-
tro a cinco filhos.
A utihdade que d'estes animaes podemos tirar é excedida enorme-
mente pelos estragos que produzem.
mamíferos em especial 385
Os dasyuridos comprehendem os géneros que seguidamente passa-
mos em revista.
OS THYLACINOS
As formas geraes d'estes didelphos recordam as dos cães. Teem qua-
renta e seis dentes: quatorze incisivos, oito na maxilla superior e seis
na inferior, quatro caninos e vinte e oito moUares. Os ossos marsupiaes
são nos thylacinos rudimentares e cartilagineos. Estes didelphos são todos
plantigrados.
O único representante vivo do género é o thylacino cynocephalo
que passamos a estudar.
O THYLACINO CYNOCEPHALO
É este de todos os marsupiaes carnivoros o mais notável. Tem-lhe
sido dados os nomes de cào ou lobo de bolsa e de lobo zebrado. Estas
designações são muito apropriadas, porque realmente elle tem caracte-
res do cão, do lobo e a cor listrada da zebra. Tem o corpo alongado, a
cabeça como a do cão, o focinho obtuso, as orelhas e a cauda levanta-
das; as pernas são mais curtas que as dos caninos e a dentição um
pouco diíTerente da que caracterisa este grupo de carniceiros.
De todos os marsupiaes carnivoros o thylacino cynocephalo 6 o
maior; tem approximadamente as dimensões do chacal. Mede de compri-
mento um metro e de altura oitenta centímetros; a cauda tem meio me-
tro de extensão. O pêllo é curto, brando, pardo trigueiro e apresentando
no dorso doze a quatorze hstras transversaes. Os péllos d'esla região do
dorso são trigueiros escuros na raiz e trigueiros amarellados na ponta;
voL. III • 25
386 HISTORIA NATURAL
OS do ventre são trigueiros claros na raiz e quasi brancos na cxtrenrii-
datle. A cabeça é mais clara que o dorso e os olhos abrancaçados, apre-
sentando no angulo anterior uma pequena mancha escura e superior-
mente uma outra semelhante em sentido transversal. Os pellos da região
posterior do corpo são mais compridos que os outros. Os olhos do
thylacino cynocephalo são maiores que os do cão e a bocca é mais fen-
dida.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Habita somente a Tasmania ou Terra de Van-Diemen; no continente
australiano encontram-se apenas os ossos fosseis dos seus congéneres.
Abundava no tempo do estabelecimento dos colonos europeus, com
grande prejuízo dos emigrantes, porque lhes destruía os rebanhos. Foi
pouco e pouco repellido para o interior da ilha, para as montanhas prin-
cipalmente, onde se encontra ainda hoje em grande numero a uma alti-
tude de mil metros acima do nivel do mar.
COSTUMES
Os hábitos de vida d'este marsupial são essencialmente nocturnos.
Durante o dia occulta-se nas fendas dos rochedos, nas cavernas, nos to-
gares sombrios e inaccessiveis ao homem. A contracção permanente da
pupilla n'este animal denuncia uma extraordinária sensibilidade para a
luz. É por isso precisamente que, se o obrigam a caminhar durante o
dia, a sua marcha é vacillante, os seus movimentos pouco precisos,
quasi descoordenados. De noite, ao contrario, é vivo, ágil, perigoso pela
rapidez de movimentos que denunciam um verdadeiro carnivoro; não re-
cua diante dos cães, antes acceita a lucta com estes encarniçados inimi-
gos, saindo muitas vezes victorioso. INãb é o mais feroz dos marsupiaes
carnívoros, mas é indubitavelmente o mais forte e o mais corajoso. É
um verdadeiro lobo do continente australiano; e, com quanto menor do
que este carniceiro, elle produz ahi, proporcionalmente ás suas dimen-
sões, tantos estragos como o lobo entre nós.
O thylacino cynocephalo alimenta-se de pequenos animaes de todas
mamíferos em especial 387
as espécies: vertebrados, insectos, molluscos e annellados. Vagueia de
ordinário pelas costas em busca de animaes que o mar tenha expellido;
muitas vezes porém, persegue os kangurus nos descampados e nas flo-
restas e os ornithorhyncos nas margens dos rios e nos pântanos. Quando
tem fome, não vacilla mesmo em attacar os cchidneos, mao grado os
péllos acerados, ponteagudos, verdadeiros picos de que estes animaes
teem o corpo coberto. Estes picos encontram-se muitas vezes no estô-
mago do thylacino cynocephalo.
GAGA
Empregam-se para apanhar o thylacino cynocephalo armadilhas e
também se lhe faz a capa com cães. O marsupial sabe bem defender-se
d'estes; faz face a uma matilha inteira.
GAPTIVEIRO
Pouco se sabe da vida do thylacino cynocephalo em captiveiro. Al-
guns teem aífirmado que elle é timido, estúpido, indomável, diflicil de
sustentar. Segundo Brehm, factos recentes infirmariam tal asserção. A
Sociedade Zoológica de Londres possuia, ao tempo cm que este natura-
lista pubhcava os seus livros sobre os mamíferos, trez thylacinos, os
primeiros e únicos que se teem visto na Europa. N'esses exemplares
não se observou o caracter indomável, nem a estupidez a que nos refe-
rimos acima.
388 HISTORIA NATURAL
OS SARCOPHILOS
Os sarcophilos que, pelo caracter feroz e indomável, mereceram de
alguns naturalistas a designação significativa de diabos j teem o corpo re-
feito, vigoroso como o dos ursos, a cabeça curta e larga, as pernas de
comprimento médio, a planta dos pés e os dedos desnudados, as unhas
compridas e recurvas, a cauda grossa e tendo o comprimento de metade
do corpo, os olhos pequenos, revelando continuadamente impulsões de
furor, as orelhas curtas e largas e péllos fortes no lábio superior. Os den-
tes seguem uns aos outros sem interrupção; os caninos são fortíssimos.
O craneo torna-se notável pelo seu pouco comprimento e o focinho pela
largura.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A área de dispersão geographica d'este marsupial é sensivelmente
a mesma que a dos thylacinos.
O género comprehende uma espécie única de que passamos a occu-
par-nos.
O SARCOPHILO URSINO
É um animal curiosíssimo cujas formas parecem estabelecer uma
transição entre o grupo dos ursinos e dos musteleanos. A cauda tem o
comprimento de trinta centímetros e o resto do corpo de sessenta. O
péllo é grosseiro; o ventre, a cabeça e a cauda são de um trigueiro
mamíferos em especial 389
muito escuro; maculas brancas, variáveis na forma e nas dimensões, or-
nam-lhe o peito, as patas anteriores, a região do sacro e as coxas.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A pátria d'esta espécie é a Tasmania.
COSTUMES
São unanimes os observadores em aífirmarem que não existe animal
mais mao, nem mais furioso; a cólera e o mao humor são n'elle habi-
tuaes. Tudo o irrita, tudo o faz entrar em accessos desordenados de
fúria.
Os hábitos de vida d'esta espécie são nocturnos; o sarcophilo ursino
tem tanto receio da luz como o thylacino cynocephalo. Tem-se sem-
pre observado que os indivíduos captivos se escondem de dia com uma
grande anciedade no canto mais escuro da jaula em que vivem. Como
no thylacino, a pupilla n'este animal existe em estado permanente de
contracção durante o dia. Emquanto ha sol o sarcophilo esconde-sc nos
togares mais sombrios, nas fendas dos rochedos, entre as raizes das ar-
vores e dorme um longo somno profundíssimo de que o não desperta
mesmo o estrépito da capa. Depois que é noite abandona o seu cscon-
drijo e vagueia, procurando o ahmento. Revela-se então agillissimo em
todos os movimentos. É plantigrado como o urso; repousa como o cão
sobre os membros posteriores e leva os alimentos á bocca com as patas
de diante.
Precipita-se com furor indescriptivel sobre todos os animaes que
pode encontrar, sejam elles invertebrados ou vertebrados. Tudo lhe
serve, porque a sua voracidade não tem limites.
O numero de filhos produzidos em cada parto é n'esta espécie de
trez a cinco. Gré-so que a fêmea conserva longo tempo na bolsa marsu-
pial os fiUios; nada se sabe porém de positivo e bem averiguado a este
respeito.
300 HISTORIA NATURAL
CAÇA
A voracidade do sarcophilo é uma condição que torna fácil a sua
caça. Cáe facilmente em qualquer armadilha, porque todo o engodo o
sollicita, o attráe, ou seja um pedaço de carne, ou um peixe ou ainda
um mollusco. Empregam-se lambem os cães n'esta caça; porém este pro-
cesso não é dos melhores, porque o sarcophilo, graças á selvageria in-
domável e á força extraordinária que o caracterisa é um inimigo temí-
vel dos cães a que sabe oppor uma tenacíssima resistência e de que não
poucas vezes triumpha. Não ha cão de caça que isolado se atreva a lu-
ctar com o sarcophilo.
Nos primeiros tempos do seu estabelecimento, os colonos da terra
de Van-Diémen soffreram muito com a visinhança do sarcophilo ursino,
porque, como a marta, elle penetrava nas capoeiras e matava quanto
encontrasse. Assim, os colonos principiaram a consideral-o um inimigo
terrível e a perseguil-o sem tréguas. Graças a uma caça activa, conse-
guiram afugentar o marsupial para as florestas mais espessas e mais im-
penetráveis das montanhas. Hoje existem muitos legares d'onde desap-
pareceu inteiramente; e mesmo nas regiões em que é ainda abundante,
raras vezes apparece e se defronta com o homem.
CAPTIVEIRO
O sarcophilo ursino parece não modificar o seu caracter em capti-
veiro. Depois de muitos annos de prisão é ainda tão furioso, tão colérico,
como no dia em que caiu no poder do homem. Precipita-se sem motivo
contra as grades da jaula e dá em todas as direcções violentas panca-
das com as patas como se tentasse despedaçar alguma coisa que o in-
commodasse. Ninguém saberá muitas vezes explicar os accessos de có-
lera que o accommettem repentinamente. Nunca revela affeição por
aquelle que lhe fornece os ahmentos; attaca-o com tanto furor como a
um estranho. Ao mesmo tempo é preguiçoso e estúpido. Depois que os
accessos de raiva passam, dorme por muito tempo no canto mais escuro
mamíferos em especial 391
da jaula. Alimcnta-se esle animal com muita facilidade, dando-se-lhe os-
sos que elle parte com os dentes e que se entretém a triturar.
usos E PRODUGTOS
A carne d'este didelpho passa entre os colonos por ser delicadís-
sima, superior mesmo á do veado.
AS DASYURAS
São ainda marsupiaes carnívoros; pelo manto parecem intermediá-
rios ás rapozas e ás martas, sem especificamente se assemelharem a
qualquer d'estes dois grupos. O corpo é alongado, elegante, o pescoço
comprido e o focinho ponteagudo; as pernas são baixas, de uma espes-
sura media. As posteriores são um pouco mais compridas. As patas teera
quatro dedos separados, munidos de unhas fortes, recurvadas, pontea-
gudas e um pollegar rudimentar. A cauda é comprida e bem provida de
pêllo. As maxillas são armadas de quarenta e dois dentes, entre os quacs
somente vinte e quatro mollares, doze superiores e doze inferiores.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
Estes marsupiaes pertencem exclusivamente á Austrália.
Conhecem-se quatro espécies d'este género.
392 fflSTORIA NATURAL
A DASYURA MALHADA
É talvez a espécie mais conhecida do género. A cor geral d'este di-
delplio é o trigueiro mais ou menos claro; o ventre é, de ordinário,
branco e sobre o dorso e cabeça existem malhas brancas irregulares. As
orelhas terminadas em ponta e de grandeza media, são cobertas de pêl-
los curtos e negros. A ponta do focinho é côr de carne. A dasyura ma-
lhada tem quinze centímetros de altura sobre quarenta de comprimento;
a cauda tem trinta centímetros de extensão.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
É muito commum esta espécie em Nova-Hollanda.
COSTUMES
Vive nas florestas e á beira-mar. De dia esconde-se entre raizes,
entre pedras, ou nos troncos occos das arvores, d'onde sáe apenas ao
crepúsculo para procurar alimentos. Ahmenta-se de animaes mortos que
o mar atira ás praias, de pequenos mamíferos, de aves que fazem o
ninho em terra e até de insectos. Nos logares habitados visita os galli-
nheiros onde perfeitamente se calcula os estragos que fará. A dasyura
malhada é plantigrada e, marchando, parece que se arrasta. Não trepa
bem; porém os seus outros movimentos são vivos e rápidos.
O numero de filhos dados á luz em cada parto varia n'esta espécie
entre quatro e seis. Nascem imperfeitíssimos e, por isso, demoram-se
muito na bolsa marsupial materna.
mamíferos em especial
393
CAÇA
A (lasyura malhada, como todos os didelphos carnívoros, é victima
de uma perseguição tenacíssima. O processo mais empregado n'esta caça
é o das armadilhas de ferro a que serve de engodo um animal qualquer.
CAPTIVEIRO
Em captíveiro a dasyura malhada é um ser perfeitamente aborre-
cido; não tem vivacidade, não tem encantos de qualidade alguma, não
tem finalmente a dedicação pelo homem que poderia tornal-a sympa-
thica. Quando alguém se approxíma da jaula em que vive, foge para um
canto, abrindo a bocca ameaçadoramente. No entanto não se pense, jul-
gando apenas pelas apparencias, que se trata de um inimigo perigoso.
Com quanto mostre os dentes e bufe hostilmente á maneira dos gatos, é
certo que qualquer pode sem risco lançar-lhe a mão; não oppOe resis-
tência, Hmita-se a protestar.
Como animal nocturno que é, a dasyura malhada, evita cuidadosa-
mente a luz.
Parece insensível á influencia das estações.
Accomodando-se a todos os ahmentos, é fácil mantel-a; note-se po-
rém que prefere a tudo a carne ou crua ou cosida. Não é tão voraz como
qualquer das espécies de que até aqui nos temos occupado. Depois de
comer senta-se, lava-se e alisa o péllo, como os gatos.
304 HISTORIA NATURAL
OS TAPUÁS
São didelphos carnívoros que recordam mais ou menos os musara-
nhos. Teem o corpo refeito, os membros curtos, cinco dedos de que o
poliegar é desprovido de unhas e os outros armados de garras agudas e
recurvas, a cabeça larga, vindo a terminar em focinho agudo, as orelhas
e os olhos grandes e a cauda quasi tão comprida como todo o resto do
corpo e guarnecida na metade posterior de pêhos extensos. Os incisivos
superiores são muito grandes, os caninos alongados, os falsos moUares
em forma de turberculos ponteagudos, análogos aos dos insectivoros.
Teem oito mamas dispostas circularmente.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Todos os tapuás habitam a Austraha.
COSTUMES
Vivem sobre as arvores e alimentam-se de insectos. O pouco que se
sabe dos hábitos de vida d'estes didelphos estudal-o-hemos a propósito
da espécie única que representa o género.
mamíferos em especial
395
O TAPUA-TAFA
Tem pouco mais ou menos as dimensões do esquilo: mede approxi-
madamente meio metro de extensão, sendo vinte e dois centimetros per-
tencentes á cauda. O pêllo é comprido, molle, lanoso, pardo no dorso,
branco ou pardo muito claro no ventre. Os olhos offerecem um circulo
negro e são encimados por uma pequena malha branca. Na cabeça pre-
domina o negro. Os dedos são brancos. A cauda é coberta no seu pri-
meiro quinto de extensão por um péllo liso, análogo ao que reveste o
resto do corpo; os quatro outros quintos são cobertos de péllos compri-
dos, muito escuros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Este didelpho é muito vulgar na Austrália. Ahi se encontra indlffe-
rentemente nas planícies ou nas montanhas. N'isto differe dos outros ma-
míferos australianos que habitam sempre uma determinada altitude.
COSTUMES
O tapuá-tafa tem a apparencia de um pequeno ser elegante, inno-
cente, incapaz de prejudicar quem quer que seja. Observa Brehm porém
que nenhum animal desmente tanto como este as apparencias. A despeito
de um exterior agradável que á primeira vista seduz, este didelpho é um
carnívoro selvagem, feroz, audacioso, que se embriaga com o sangue,
que se torna emfim um verdadeiro flagello para o homem, porque, pe-
netrando nas habitações, produz grandes estragos, destruindo animacs
domésticos.
As suas pequenas dimensões e a cabeça fina e estreita permiltem-lhe
facilmente passar pelas aberturas mais insignificantes. Não ha paredes
396 HISTORIA NATURAL
OU estacadas que bastem a impcdir-lhc a passagem: introduz-se pelas
fendas mais estreitas e trepa com agilidade os muros e estacadas, pene-
trando assim em toda a parte. Se este didelpho tivesse dentes de roe-
dor, desempenharia perfeitamente bem o papel de um rato; felizmente
não acontece assim, e contra uma porta sem fendas, bem adaptada, o
animal é impotente.
O tapuá-tafa só de noite principia a vida activa, embora uma vez
OLi outra vez se encontre de dia. É muito ágil sobretudo nas arvores,
onde vive mais tempo do que em terra; salta de ramo a ramo como um
esquilo. A longa cauda serve-llie não só de órgão de prehensão para se
balançar c segurar aos ramos, mas ainda de leme para se dirigir nos sal-
tos. Os troncos occos das arvores servem de escondrijo a este animal.
A voracidade que caracterisa este didelpho explica sufficientemente
a perseguição de que é victima por parte do homem.
OS ANTECHINOS
Distingue-se este género do anterior pelas dimensões que são as de
um pequeno rato. A cauda é menos extensa que o corpo e coberta de
péllos curtos. Os dentes incisivos médios são alongados. Apparentemente
é muito diíTicil distinguir estes animaes dos ratos.
DISTRIBUIÇÃO CtEOGRAPHICA
Os antechinos habitam principalmente o sul da Nova-Hollanda, onde
são muito communs.
mamíferos em especial
397
COSTUMES
Estes animaes representam na ordem dos didelphos os musaranhos
a que se assemelham nos costumes e género de vida. Passam o tempo
nas arvores, trepam maravilhosamente e correm não só na face supe-
rior mas ainda na inferior dos ramos. Descem os troncos com a cabeça
voltada para baixo e saltam de ramo a ramo com agilidade notável e ás
vezes a grandes distancias.
O ANTECHINO DE PATAS AMARELLAS
Tem pouco mais ou menos vinte centímetros de comprimento, dos
quaes oito pertencera á cauda. O péllo é molle e abundante; a côr geral
é um pardo escuro. As partes superiores do corpo são quasi negras com
maculas amarellas, os lados ruivos amarellados ou amarellos claros, a
maxiJla superior e o peito muito claros, quasi brancos e a cauda clara,
apresentando aqui e além manchas escuras. As patas são amarellas.
OS MYRMECOBIOS
Os animaes que pertencem a este género são caracterisados por
um corpo alongado, um focinho ponteagudo, uma cauda de comprimento
398 HISTORIA NATURAL
médio, não prehensil, cinco dedos nos pés, separados e armados de
unlias forles. A língua é extensível. A fêmea não apresenta bolsa marsu-
pial, mas oito mamas dispostas em circulo e constituindo um verdadeiro
refugio para os filhos. Os dentes são cincoenta e dois; os caninos são
alongados.
O género comprehende uma espécie única.
O MYRMECOBIO LISTRADO
É uma das mais notáveis espécies dos marsupiaes. Este animal tem
pouco mais ou menos as dimensões do esquilo. Tem tanto de altura como
de comprimento, isto é vinte e sete centímetros para cada uma das di-
mensões; a cauda mede vinte centímetros, isto é quasi tanto como a ex-
tensão de todo o resto do corpo. A cabeça é curta. O manto é formado
por duas ordens distinctas de péllo: um sedoso, comprido, muito grosso,
outro curto, fino, abundante. Immediatamente abaixo dos olhos e no lá-
bio superior apresenta o animal pôllos compridos e rijos. A coloração do
manto recorda a do thylacino. A região anterior do corpo é amarella
clara; a posterior é negra, apresentando nove listras transversaes bran-
cas ou pardas. D'estas listras, as duas primeiras, que correspondem sen-
sivelmente á parte media do tronco, são pouco visíveis, porque quasi se
confundem com a cor fundamental; as outras são muito mais nitidamente
delimitadas. A parte inferior do corpo é de um branco amarellado. O fo-
cinho é de um amarello mais claro dos lados do que na frente e a ca-
beça de um trigueiro accentuado. Os péllos da cauda são negros, bran-
cos e amarellos. Os membros são amarellos exteriormente e brancos
pela face interna; o focinho, os lábios e as unhas são negros.
mamíferos em especial
399
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Este marsupial, conhecido lia vinte annos somente, foi encontrado
á Leira de um pequeno rio, o rio dos Gysnes, na Austrália oriental.
COSTUMES
A impressão agradável que se recebe ao ver pela primeira vez este
animal e que é produzida pela diversidade das cores perfeitamente dis-
postas, não se dissipa, antes augmenta quando o observamos de perlo.
É, affirmam todos os naturalislas, um animal ágil que corre dando
pequenos saltos. A velocidade de que dispõe não é grande, mas esta
imperfeição compensa-a elle pela astúcia e pela vivacidade. Nas flores-
tas virgens em que de preferencia gasta o seu tempo, encontra a cada
passo uma cavidade, um tronco d'arvore carcomido, uma fenda de ro-
chedo que podem servir-lhe não só de logar de repouso, mas ainda de
refugio quando o perseguem. Sabe perfeitamente introduzir-se n'estes
escondrijos e ahi se conserva persistentemente em quanto algum perigo
o ameaça.
O nome de mymercobio é dado a este animal para exprimir que a
alimentação principal de que faz uso se compõe de formigas. Os logares
que prefere são sempre aquelles em que os formigueiros abundam. As
unhas aguçadas e a hngua muito comprida que possue, são instrumen-
tos em harmonia com este género de alimentação. Como os tamanduás,
elle estende a lingua e retira-a rapidamente para a bocca quando um
numero sufficiente de formigas se fixou a ella. AUmenta-se ainda de ou-
tros insectos e, quando a fome o aperta, até de vegetaes, embora a sua
natureza não seja a de um herbívoro.
Ao contrario dos outros marsupiaes carnívoros, este é um animal
inoíTensivo, Innocente. Quando se lhe delta a mão, não tenta morder nem
arranhar; apenas emitte um som fraco de queixume e, se vc que lhe é
impossível fugir, delxa-se prender sem resistência.
400 HISTORIA NATURAL
CAPTIVEIRO
Pouco tempo se pode conservar este marsupial preso, porque é im-
possível fornecer-lhe em quantidade suíTiciente o alimento que mais lhe
convém, as formigas. Diz Brehm: «o captiveiro é para elle a morte.»
OS DIDELPHOS PROPRIAMENTE DITOS
Os differentes géneros comprehendidos n'esta vasta familia com-
poem-se de marsupiaes de pequenas e medias proporções, que quando
muito egualam as do gato e muitas vezes não excedem a de um rato
pequeno.
N'estes marsupiaes o corpo é refeito e a cabeça terminada por um
focinho mais ou menos ponteagudo. Teem de ordinário os olhos e as
orelhas grandes, a cauda de comprimento variável, mas geralmente pre-
hensora e desnudada na extremidade, os membros posteriores mais com-
primidos que os anteriores e cinco dedos em cada pata sendo o pollegar
até certo ponto opponente. Em um dos géneros os dedos são reunidos
por uma membrana palmar. A bolsa marsupial falta era algumas espé-
cies; o numero de mamas, variável de género a género, é sempre ele-
vado.
A dentição dos didelphos propriamente ditos é a de todos os carní-
voros. Os caninos são muito desenvolvidos e os mollares mais ou menos
ponteagudos e cortantes; os falsos mollares teem duas raízes e os mol-
lares superiores trez. A columna vertebral comprehende sete vértebras
cervicaes, treze dorsaes, cinco a seis lombares e dezoito a trinta e uma
caudaes.
mamíferos em especial 401
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Todos os didelphos propriamente ditos hoje vivos são próprios da
America. Na Europa encontram-se apenas restos fosseis que attestam a
existência d'esses marsupiaes n'esta parte do mundo em epochas geoló-
gicas anteriores á nossa.
COSTUMES
Os marsupiaes d'esta familia vivem nas florestas e nas brenhas es-
pessas e estabelecem as suas moradas nos buracos das arvores, nas ca-
vernas, nas hervas altas e nos mattos. Ha uma espécie que habita as
margens dos ribeiros, que nada admiravelmente e que se refugia em
tocas. Todos estes marsupiaes são nocturnos e vivem uma vida errante;
só em tempo do cio se encontram aos pares. Caminham muito lentamente
e são plantigrados; quasi todos trepam e alguns que possuem cauda pre-
hensora, servem-se d'ella para se suspenderem aos ramos das arvores e
conservarem-se horas inteiras n'esta posição. Fogem dando pequenos
saltos.
De todos os sentidos, o olfato parece ser o mais perfeito. Não teem
muita intelhgencia; comtudo é impossível negar-se-lhes a astúcia, porque
sabem perfeitamente evitar as armadilhas.
No regime alimentar d'estes marsupiaes figuram pequenos mamífe-
ros, aves, ovos, pequenos reptis, insectos, larvas e vermes; em casos
de necessidade extrema comem fructos. Os que frequentam a agua ali-
mentam-se de peixes. As grandes espécies nos logares habitados são pre-
judiciahssimas, porque matam os animaes domésticos.
Só quando são perseguidos é que os didelphos propriamente ditos
fazem ouvir a voz. Attacados, não se defendem e, quando reconhecem
a impossibilidade de fugir, simulam-se mortos. Sob a influencia do ter-
ror espalham um cheiro forte e detestável.
São fecundíssimos; o numero de filhos dados á luz de um só parto
pode ser de dezeseis. Os novos seres apparecem n'um estado de imper-
feição extrema; as fêmeas que teem bolsas marsupiaes completas intro-
duzem-os alii e as outras coUocam-os sobre o dorso a que elles solida-
voL. III 26
402 HISTORIA NATURAL
mente se manteem, agarrando-se-lhe ao péllo ou crirolanclo a própria
cauda á cauda materna.
CACA
As grandes como as pequenas espécies são perseguidas encarniça-
damente pelo liomem: as primeiras pelos estragos que produzem, as se-
gundas pela fealdade repugnante que as caracterisa. Burmeister aíTirma
que se apanham no Brazil os didelphos propriamente ditos collocando-
Ihes á disposição e em logar apropriado agua-ardente em quantidade:
bebem com avidez este liquido, embriagam-se e deixam-se depois pren-
der sem resistência.
GAPTIVEIRO
A maior parte d'estes marsupiaes habituam-se rapidamente ao ca-
ptiveiro; são porém animaes desagradáveis que passam exclusivamente
o seu tempo a comer e a dormir.
usos E PRODUGTOS
Os negros comem a carne d'estes marsupiaes. Algumas espécies
fornecem um pêllo que se fia.
mamíferos em especial
403
AS SARIGUEIAS
De todos os géneros da família é este o mais bem estudado, o mais
minuciosamente conhecido.
As sarigueias são caracterisadas por uma cauda comprida, esca-
mosa e prehensora. É n'este género que se encontram os didelphos pro-
priamente ditos de maiores dimensões.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Estes marsupiaes pertencem exclusivamente á America intertropical.
COSTUMES
As sarigueias são animaes nocturnos que vivem nas arvores onde
apanham fructos, perseguem os insectos, comem ovos, moUuscos e ainda
outros pequenos animaes.
Segundo Rengger, que fez observações interessantíssimas acerca da
reproducção dos didelphos selvagens do Paraguay, é no meio do inverno,
isto é em Agosto, que principia o cio para estes animaes; é pelo menos
n'esla epoclia que os sexos se encontram reunidos e é no mez seguinte
que as fêmeas apparecem gravidas. «Não parem, diz o alludido escri-
ptor, senão uma vez por anno. O numero de filhos varia segundo as es-
pécies e até segundo os indivíduos. Vi fêmeas de uma mesma espécie
terem quatorze, oito, quatro ou mesmo um só filho. A gestação dura
trez semanas. No começo de Outubro realisa-se o parlo, passaudo imme-
dialamcnte os filhos á bolsa marsupial e prendendo-se ás mamas por es-
paço de cincoenta dias. Decorrido este tempo, os filhos abandonam a
404 HISTORIA NATURAL
bolsa, mas não abandonam por isso a mãe; Irepam-lhe ao dorso, ahi se
engancham, segurando-se ao pêllo c assim vivem ainda por um certo
tempo.» *
O mesmo observador continua: «Os filhos não nascem todos ao
mesmo tempo; decorrem muitas vezes trez ou quatro dias entre o nas-
cimento do primeiro e o do ultimo.
«Os recemnascidos são e conservam-se ainda um certo tempo ver-
dadeiros embryões. Teem quando muito um centímetro e meio de com-
prido; o corpo é mi, a cabeça proporcionada ao resto do corpo, os olhos
fechados, as narinas e a bocca já abertas, as orelhas com pregas ou do-
bras longitudinaes e transversaes. Os membros anteriores cruzam-se so-
bre o peito, os posteriores sobre o ventre e a cauda enrola-se sobre si
mesma.» Estes animaes, quatro semanas depois de terem entrado na
bolsa marsupial, apresentam o tamanho de um ratinho e ao fim de sete
o de uma ratazana, abrindo então os olhos. Só vinte e quatro dias de-
pois da sua saída do útero é que os pequenos didelphos principiam a
excretar matérias fecaes; a mãe abre de quando em quando a bolsa
marsupial para expulsar as dijecçôes.
CAGA
As sarigueias são animaes prejudicialissimos, perigosos inimigos das
capoeiras, mesmo quando captivos. Por isso em toda a parte se lhes faz
uma guerra de extermínio. Apanham-se em armadilhas ou esperam-se
de noite e, no momento em que ellas se approximam dos gahinheiros,
apresenta-se-lhes uma luz; fascinadas pelo brilho da chamma não pen-
sam em fugir e é então muito fácil matal-as á pancada.
CAPTIVEIRO
Todas as sarigueias se domam e reduzem a tal ou qual grão de do-
mesticidade; é possivel tocal-as sem que ellas mordam. No entanto não
* Citado por Brehm, Obr. cit, pg. 13.
mamíferos em especial 405
manifestam intelligencia e são desagradáveis não só pela extrema feal-
dade, mas ainda pelo cheiro repugnante que espalham em torno de si.
A SARIGUEIA DA VIRGÍNIA
É a espécie mais conhecida e também uma das maiores do género.
O manto nada oíferece de notável; é formado de um pêllo grosseiro de
um branco amarellado por todo o corpo, excepto nas patas que são tri-
gueiras. As dimensões da sarigueia da Virgínia são approximadamente
as do gato domestico: mede meio metro de comprimento sobre vinte e
dois centímetros de altura; a cauda tem trinta centímetros de extensão.
O corpo é pezado, o pescoço curto e grosso, a cabeça comprida, a re-
gião frontal achatada, o focinho comprido e ponteagudo, as pernas cur-
tas, os dedos eguaes uns aos outros em extensão e o pollegar opponente
nas patas posteriores. A cauda, muito grossa, principalmente na base,
arredondada e terminada em ponta, só é coberta de péllos na raiz; em
todo o resto da extensão cobrem-a escamas por entre as quaes apparece
um ou outro péllo curto. Esta cauda é prehensora e a sarigueia serve-se
d'ella para trepar ás arvores. A fêmea tem uma bolsa marsupial com-
pleta.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A America do Norte é a pátria d'este marsupial; encontramol-o
desde o México até ás regiões frias dos Estados-Unidos, á Pensylvania e
aos grandes lagos. Abunda na parte media d'este vasto espaço.
406 HISTORIA NATURAL
COSTUMES
Audubon, que observou detidamente a sarigueia da Virgínia em li-
berdade, escreve : «Os movimentos doeste didelpho são de ordinário va-
garosos; caminha a passo com a cauda quasi a arrastar pelo chão e com
as orelhas levantadas, fitas. Á medida que vae marchando applica a ex-
tremidade do focinho a todos os objectos que encontra pelo caminho
para reconhecer que qualidade de animal por ahi passou. Parece-me es-
tar vendo d'aqui uma sarigueia a saltar brandamente pela neve que se
derrete, á beira de um lago pouco frequentado, farejando tudo quanto
encontra em volta de si, para encontrar a pista de alguma presa prefe-
rida. Acaba de descobrir os vestígios da passagem recente de uma per-
diz ou de uma lebre: ergue o focinho, aspira o ar fino e cheio de ema-
nações até que descobre a direcção a seguir; corre emfim com a velo-
cidade de um homem em marcha apressada. Mas, pouco tempo depois
estaca, como se tivesse seguido um caminho errado ou se estivesse em
duvida sobre a direcção a proseguir. Decerto a presa fez-lhe perder a
pista, dando um grande salto ou retrocedendo sem que a sarigueia
desse por tal. Então levanta-se sobre os membros posteriores, observa
por um momento o espaço que a cerca, fareja em todos os sentidos
e prosegue depois. Agora não a perca de vista o leitor. Parou ao pé
d'aquella arvore magestosa, girou em torno do tronco velhíssimo, farejou
entre as raizes cobertas de neve e acabou por encontrar uma abertura
por onde se insinuou. Passados minutos, eil-a que reapparece, arrastando
agora comsigo um esquilo já sem vida; tral-o entre os dentes e principia
a trepar com elle vagarosamente a uma arvore. Não lhe agradando a
primeira bifurcação da arvore, receiando ser ahi vista, a serigueia con-
tinua a trepar até que encontra um berço frondoso, constituído á custa
de ramos entrelaçados com cepas bravas; ahi senta-se commodamente,
enrola a longa cauda a algum ramo novo e principia o repasto, segurando
entre as unhas dianteiras o esquilo e rasgando-o com os dentes agudi-
cissimos.
«Quando os bellos dias de primavera voltam e as arvores princi-
piam a cobrir-se de rebentos vigorosos, a sarigueia apresenta-se ainda
quasi nua e parece depauperada por um longo jejum. Visita então as
bordas dos pequenos lagos e ahi se regala a vêr as rãs novas cujo crés-
mamíferos em especial 407
cimento espera em ante-gostos de gastronomia. Entretanto principiam a
apparecer os renovos tenros e succulentos da phitolacca e das ortigas
que lhe serão valiosissimo soccorro. O grito natural do peru bravo aca-
ricia-lhe deliciosamente os ouvidos, porque, astuciosa como é, bem sabe
a sarigueia que a fêmea responderá pouco depois e que então poderá
seguil-a até ao ninho e ahi sugar-lhe os ovos, manjar predilecto. Cami-
nhando atravez dos bosques ou por terra ou pelas arvores, de ramo em
ramo, ouve também o canto do galío; e então palpita de prazer lem-
brando-se do famoso banquete que no verão passado fizera n'uma her-
dade visinha. De vagar, com os olhos fitos e deslisando sem ruido con-
segue introduzir-se na capoeira.
«A fêmea pode citar-se como um modelo de ternura maternal. Olhando
para o fundo da sua bolsa singular, vér-se-hão os filhos todos agacha-
dos, seguro cada um a uma teta. Excellente mãe, a sarigueia não só os
alimenta com cuidado, mas protege-os contra os inimigos, ora arreba-
tando-os comsigo, como faz a phoca, ora indo collocal-os á sombra de
um tulipeiro, occultos entre a folhagem. Ao fim de dois mezes os filhos
podem já prover ás próprias necessidades e então cada um d'elles re-
cebe da mãe lipões especiaes sobre o modo futuro de proceder.
(cimagine agora o leitor que o dono de uma herdade surprehende a
sarigueia em flagrante delicto de lhe estrangular alguma das melhores
gallinhas. Exasperado, furioso, o homem atira- se contra o marsupial que,
reconhecendo a própria fraqueza, se enrola n'uma bola e recebe sem
se mexer as pancadas. Quanto mais o homem se exaspera tanto menos
o animal manifesta a intenção de se vingar; conserva-se aos pés do
aggressor sem dar signaes de vida, com a bocca aberta, a lingua pen-
dente e os olhos fechados até que o verdugo se resolve a deixal-o, pen-
sando comsigo — está morto. Mas não está, leitor; fingia-se morto, mas
desde que o homem lhe volta as costas, ergue-se lentamente e depois
deita a correr na direcção da floresta.» *
De todos os sentidos da sarigueia da Virgínia o mais perfeito é o
olfato; immediatamente depois está a vista. Os outros sentidos parecem
imperfeitíssimos. Nas florestas espessas que lhe offerecem uma obscuri-
dade conveniente, a sarigueia da Virgínia vagueia de noite e de dia.
Nos Togares onde tem algum perigo a receiar, dorme o dia inteiro es-
condida n'uma toca ou occulta nos troncos carcomidos das arvores e ape-
nas sáe á noite.
Só no tempo do cio é que se encontram juntos, macho e fêmea; no
• Audubon, Schies de la nature dans les Ètata-Unia et le Nort de VAmériquCf
tom. II. Citado por Brehm, Loc. cit,, p. 13 e 14.
408 HISTORIA NATURAL
resto do anno vivem separados, solitários. A sarigueia da Virginia não
tem escondrijo certo; refugia-se no primeiro logar conveniente que en-
contra ao erguer do sol. Se depara com uma toca onde algum fraco roe-
dor tenha estabelecido morada, apropria-se d'ella e devora o proprie-
tário.
Quando a alimentação animal falia completamente a sarigueia con-
tenta-se com raizes succolentas. Prefere o sangue a tudo; e é esta a ra-
zão porque mata quanto pode. Entrando n'uma capoeira, matará, se a
não surprehenderem, todas as aves que encontrar, somente para lhes
beber o sangue; não tocará na carne de nenhuma d'ellas. Embriaga-se
com o sangue e muitas vezes é encontrada de manhã a dormir entre os
corpos das victimas.
Prudente de ordinário, a sarigueia lorna-se porém surda e cega
desde que vê a possibilidade de satisfazer a sede de sangue. Não co-
nhece então perigos de qualidade nenhuma; podem os cães matal-a, sem
que se defenda, pode o homem bater-lhe, sem que deixe a presa para
fugir.
A sarigueia é plantigrada. A corrida, que é pouco rápida, consiste
n'uma serie de pequenos saltos. A trepar porém, é de uma extrema agi-
lidade. O pollegar opponente das patas posteriores e a cauda prehensora
prestam-lhe grandes serviços n'este exercício. Nas sarigueias captivas
tem-se observado o modo de reproducção da espécie. A gestação dura
vinte e quatro dias; o parto dá de quatro a dezeseis filhos completa-
mente informes tendo mais a apparencia de uma pequena massa gelati-
nosa que de animaes. Pezam apenas vinte e cinco centigrammas e não
teem mais espessura que a de um cabello. Não possuem ainda nem olhos,
nem orelhas e a fenda boccal acha-se apenas indicada. A bocca desen-
volve-se antes do resto do corpo; os olhos e as orelhas principiam a de-
senhar-se muito posteriormente. Ao fim de quinze dias a bolsa, cujos
bordos a mãe pode á vontade contrair ou dilatar, abre-se. Só ao fim de
cincoenta dias se podem os filhos considerar formados completamente;
apresentam então as dimensões de um pequeno rato, são cobertos de
péllo e teem os olhos rasgadamente abertos. Ao fim de sessenta dias de
aleitamento, o pezo primitivo d'estes animaes tem centuplicado. Uma vez
attingidas as dimensões de um rato grande, os filhos abandonam a
bolsa marsupial, embora fiquem ainda subordinados por algum tempo aos
cuidados maternos.
mamíferos em especial 409
CAÇA
Os estragos que a sarigueia produz principalmente nas aves de que
é um terrivel inimigo, fazem com que por toda a parte onde existe, o ho-
mem lhe mova uma guerra de extermínio.
GAPTIVEIRO
A sarigueia em captiveiro é, segundo Brehm, um animal aborrecido,
preguiçoso e estúpido que se conserva indifferente a tudo, deitado o dia
inteiro, enrolado, erguendo a cabeça apenas quando o excitam. Quando
este ultimo caso se dá, a sarigueia abre a bocca em quanto alguém per-
manece junto da jaula.
Como se vê, a sarigueia em captiveiro desmente as qualidades de
astúcia, actividade e intelligencia que lhe são attribuidas em hberdade
por Audubon e outros naturalistas.
usos E PRODUCTOS
A carne da sarigueia da Virgínia constituo para os negros um ali-
mento. Os europeus não supportam esta carne por causa de um cheiro
repugnante de que se acha impregnada e que provem de duas glândulas
anaes.
A pelle d'este marsupial dá mantos ou coberturas de que fazem uso
os pastores.
410 HISTORIA NATURAL
AS SARIGUEIAS IMPROPRIAMENTE DITAS
Dislinguem-se do género precedentemente estudado no facto de não
possuirera uma bolsa marsupial completa, mas apenas duas pregas cu-
tâneas que a substituem.
O CANCRIVORO
É a maior espécie do género e mesmo da familia. Tem oitenta e
quatro centímetros de comprimento, dos quaes quarenta e quatro per-
tencem á cauda. É notável principalmente pelos péllos espinhosos, de
comprimento superior a oito centímetros, amarellos claros na raiz e tri-
gueiros escuros no resto da extensão. As partes lateraes do tronco são
amarellas; o ventre varia entre o trigueiro e o branco amarellado. Os
pêllos da cabepa são curtos e trigueiros escuros; dos olhos ás orelhas
estendem-se listras amarellas. As orelhas, os membros e a metade ante-
rior da cauda são negros. A metade posterior d'este ultimo órgão é
clara, quasi branca.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O cancrivoro encontra-se espalhado em toda a America tropical;
vive principalmente nas florestas do Brazil, junto dos pântanos.
mamíferos em especial 411
COSTUMES
Vive a maior parte do seu tempo sobre as arvores, d'onde não
desce a terra senão para caçar. A cauda prehensora permitte-lhe trepar
facilmente, agarrar-se a tudo quanto encontra; quando pretende repousar,
principia por enrolar a cauda a um solido ramo d'arvore. Em terra ca-
minha lentamente, com difflculdade ; no entanto sabe apanhar os peque-
nos mamiferos, os insectos, os crustáceos e principalmente os carangue-
jos, seu alimento favorito. O nome de cancrivoro significa mesmo animal
que come caranguejos. Nos ramos das arvores persegue as aves e des-
troe os ninhos; também come fructos. Ás vezes visita as capoeiras e são
então enormes os estragos que produz, destruindo gallinhas e pombos.
O ENEIANO
Este marsupial assemelha-se muito ao que acabamos de descrever;
de todas as espécies do género é esta a que possua as pregas marsu-
piaes menos completas. Tem este animal quinze centímetros de com-
prido sobre quatro de altura; a cauda mede dezenove. É pois mais pe-
queno que a ratazana domestica a que se assemelha muito. Tem o corpo
alongado, o pescoço curto e grosso, as pernas baixas, sendo as poste-
riores mais extensas que as anteriores; a planta dos pés é desnudada,
de dedos separados e munidos de unhas curtas, pouco recurvas e ace-
radas. Nas patas posteriores ha um poUegar opponente, desprovido de
unha e ligado ao segundo dedo por uma pequena membrana extensível.
A cauda é comprida, fina, arredondada, ponteaguda, coberta de péllos á
raiz, mas desnudada e escamosa no resto da extensão; este órgão é pre-
412 mSTORIA NATURAL
hensor. O dorso é pardo e o ventre branco amarellado. Os olhos são cir-
cuitados por uma pequena mancha escura; a fronte, o dorso do nariz, as
faces e as patas são de um branco amarellado.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O eneiano vive a Noroeste do Brazil, habitando ahi as planícies bai-
xas, cobertas de florestas virgens.
COSTUMES
O género de vida, os hábitos do eneiano são os do cancrivoro. Vive
nas arvores como elle e é, como elle também, muito pouco ágil em terra.
É nocturno; esconde-se durante o dia e só depois de desapparecer o sol
é que procura alimento.
Só na epocha do cio é que se encontram reunidos macho e fêmea;
em todo o outro tempo vivem inteiramente isolados.
A fêmea pare de cada barriga cinco a seis filhos informes que se
prendem aos mamillos como fructos ás arvores. Logo que se cobrem de
péllo, destacam-se das tetas e agarram-se ao dorso da mãe enrolando as
caudas na d'ella. Mas, como todos os marsupiaes, estes, mesmo depois
de poderem prescindir do leite materno, ainda por muito tempo se re-
fugiam ao menor. perigo no dorso da mãe que os conduz a logar seguro;
d'aqui vem o nome de eneianos dado a estes marsupiaes por confronto
com o heroe da Eneida. Em casos de susto o eneiano erriça o pêllo e
espalha em torno de si um cheiro insupportavel.
mamíferos em especial 413
usos E PRODUGTOS
Os negros comem a carne do eneiano. É o único producto que se
aproveita.
A SARIGUEIA LONTRINA
Este animal, apezar de conhecido ha muito tempo, está ainda hoje
mal estudado. Buffon, illudido pelas membranas interdigitaes, conside-
rou-o uma lontra e denominou-o mesmo pequena lontra da Guyana. Ou-
tros naturahstas chamaram-lhe lontra de Dumerara^ obdecendo á mesma
illusão; os inglezes conservaram-lhe o nome indígena de yapocte.
CARACTERES
A sarigueia lontrina é um marsupial curiosíssimo. Tem a phisiono-
mia de uma ratazana. Apresenta as orelhas grandes, ovaes, membra-
nosas e nuas. O corpo é alongado, cylindrico e repousa sobre membros
curtos. A cauda tem o comprimento do corpo; é susceptível de enro-
lar-se, ma? não é prehensil. O péllo é molle, liso e acamado. O manto
apresenta este pêllo ao lado de sedas compridas. A parte superior do
corpo é cinzenta e a parte inferior branca. Na cabeça existem seis lar-
gas fachas transversaes. A cauda e as orelhas são negras. As patas são
de um trigueiro claro na face dorsal e de um trigueiro escuro na planta.
O focinho é negro.
O animal adulto mede cincoenta centímetros de comprimento; a al-
tura é de dez centímetros.
414 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Vive n'uma grande parte da America do Sul. Encontra-se ao longo
das costas desde o Rio de Janeiro até Honduras. É muito difficil de apa-
nhar; por isso é raríssimo nas nossas coUeçÕes.
COSTUMES
A raridade d'este marsupial sob o domínio do homem, a diíTiculdade
com que se observa, faz com que a sua historia deixe muito a desejar.
Vive nas florestas perto dos regatos, occulto de ordinário n'um bu-
raco ou toca junto das margens. Nada com grande facilidade e rapidez
e procura alimentos tanto de dia como de noite.
Nutre-se principalmente de peixes e pequenos animaes aquáticos.
Pode em casos de necessidade adaptar-se a um regime vegetal.
O numero de filhos dados á luz em cada parto é de cinco. Nada
mais se conhece relativamente á reproducção.
CAÇA
Raras vezes se dá caça a este marsupial. O tiro quasi nunca se em-
prega, mas sim as redes, onde elle se prende, morrendo assim affogado.
mamíferos em especial 415
OS PERAMELIDEOS
A grande desegualdade dos dedos é um dos caracteres mais salien-
tes d'estes marsupiaes.
Nas patas anteriores apresentam cinco dedos, sendo o interno e ex-
terno como que atrophiados, reduzidos a um tubérculo; os trez dedos
médios são, pelo contrario, muito grandes, livres e armados de unhas
fortes, recurvas em forma de fouce e apropriadas a escavar. Nas patas
posteriores o dedo pollegar é atrophiado; o segundo e o terceiro dedos
são soldados até á unha.
O corpo é n^estes marsupiaes refeito, relativamente volumoso. A ca-
bepa é ponteaguda, as orelhas são ou de media grandeza ou muito com-
pridas e a cauda é em geral curta e pouco pelluda.
O numero de mamas é oito. A dentição é a dos didelphos propria-
mente ditos com a única differenpa de que nos peramelideos não existem
mais que trez incisivos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Todas as espécies conhecidas d'esta vasta familia pertencem à Aus-
trália.
COSTUMES
•
Os marsupiaes comprehendidos n'esta familia habitam as montanhas
elevadas e frias; cavam tocas onde, ao menor perigo, se refugiam.
Ás vezes encontram-se estes animaes perto das plantações e dos le-
gares habitados; de ordinário porém, fogem do homem.
A maior parte das espécies são sociáveis e tecm hábitos nocturnos.
Os movimentos são rápidos; não trepam e a sua marcha consiste em uma
serie de saltos mais ou menos extensos. Gomem insectos e vermes e ao
416 HISTORIA NATURAL
mesmo tempo substancias vegetaes. Levam á bocca os alimentos com as
patas anteriores, conservando-se meio erguidos e apoiados sobre os mem-
bros posteriores e sobre a cauda.
Todos estes marsupiaes são desconfiados, timidos e irmocentes: fo-
gem dos perigos e evitam a proximidade do homem.
Os estragos que produzem são muito grandes, ás vezes; porque
para acharem raízes acontece de remexerem inteiramente um campo.
CAPTIVEIRO
Supportam bem o captiveiro e domesticam-se facilmente.
usos E PRODUGTOS
Cremos que nenhuma utilidade se tira d'estes animaes. Brehm aíTirma
que nem se lhes utiUsa a pelle, nem se lhes come a carne. Outros natu-
rahstas que consultamos nada referem sobre este ponto nem na genera-
lidade, nem na especiahdade.
O PERAMELIDEO NASICO
Este animal parece-se ao mesmo tempo com o coelho e com o mu-
saranho, como vamos vêr estudando-o morphologicamente.
mamíferos em especial 417
CARACTERES
Tem o focinho ponteagudo; o nariz excede muito o lábio inferior,
as orelhas, curtas e pelludas, são largas em baixo, mas terminadas supe-
riormente em ponta, os olhos são pequenos, o corpo alongado, a cauda
é de comprimento médio, coberta de péllos curtos e os membros são
fortes e tão compridos os de diante como os de traz.
O manto é formado de pellos de duas ordens: um curto, raro e fi-
níssimo, outro comprido e sedoso.
A parte superior do corpo apresenta uma côr que é uma verdadeira
mistura do pardo, trigueiro e negro. O ventre é branco amarellado e a
parte superior das patas de traz amarello-trigueira um pouco clara. A
cauda é de um trigueiro muito escuro na parte superior e mais claro na
inferior.
O animal adulto mede sessenta centímetros de comprimento, incluida
a cauda que tem dezeseis; a altura é de dez centímetros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O peramehdeo nasico habita as altas e frias montanhas da Austrá-
lia. Falta nas planícies quentes; desce porém algumas vezes até a beira
do mar.
COSTUMES
Cava na terra grandes buracos que lhe servem de alojamento; es-
ses buracos communicam entre si por meio de corredores. Assim é que
nos togares habitados por este animal o sub-solo encontra-se completa-
mente minado. As unhas compridas e fortes permitem-llie cavar facil-
mente; e a forma especial do focinho coadjuva tamboni esta natural dis-
posição.
VOL. III 27
418 HISTORIA NATURAL
O peramelideo alimenta-se de animaes e vegetaes; come vermes e
insectos, mas ao mesmo tempo procura raizes e para as encontrar alarga
constantemente os buracos e corredores subterrâneos. Nos batataes faz
ás vezes estragos consideráveis; o mesmo acontece se tem occasião de
penetrar nos legares em que se arrecadam os cereaes. Em taes condi-
ções é tão prejudicial como os ratos. Como porém o peramelideo nasico
não possue os dentes doestes roedoreS;, o plantador consegue com certas
precauções evitar-lhe as visitas; a conslrucção de muros profundos é
sufflciente para que se alcance o desejado fim.
A marcha d'este marsupial assemelha-se um pouco á do coelho.
Pousa alternativamente sobre o solo as patas de traz e as de diante em
vez de segurar-se exclusivamente sobre aquellas como fazem os kangu-
rus. Leva os ahmentos á bocca com os membros anteriores, sentando-se
sobre os de traz e sobre a cauda.
Só se faz ouvir quando ferido. A voz consiste n'uma espécie de as-
sobio análogo ao dos ratos.
A fêmea pare uma só vez por anno, dando á luz trez a seis filhos.
CAPTIVEIRO
Uma vez subjeito ao dominio do homem, o peramehdeo nasico perde
toda a timidez do estado selvagem e torna-se confiante, inoff^ensivo, dó-
cil. No entanto é raro ver-se em captiveiro este marsupial.
usos E PRODUCTOS
Ha naturahstas que afíirmam que a carne do peramehdeo nasico
se come na Austrália; outros porém, negam o facto.
mamíferos em especial 419
O PERAMELIDEO RAIADO
Mede quarenta e Irez centimelros de comprimento, pertencendo dez
á cauda. Tem as orelhas grandes e a cauda pouco coberta de péllo. O
manto é negro e amarello, dominando esta côr aos lados do tronco e o
negro sobre o dorso. A parte posterior do tronco é dividida por listras
transversaes, escuras umas, outras claras. Ao longo da cauda na parte
superior d'este órgão existe uma linha muito escura; o resto do órgão é
amarellado. Na cabeça, no pescoço e nas patas apparece o pardo de
mistura cora o negro e o amarello.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O peramelideo raiado habita uma grande parte do este e sul da
Austrália, principalmente as montanhas pedregosas extensas e desertas
do interior do continente.
COSTUMES, usos E PRODUCTOS
Sobre os costumes d'este marsupial sabe-se muito pouco ou quasi
nada. Deve ser incluído no grupo dos marsupiaes carnívoros. A marcha
é semelhante á do coelho. Eis o que se conhece.
Os indígenas comem a carne d'este animal.
420 HISTORIA NATURAL
OS CHEROPOS
Pelas formas geraes do corpo, estes mamíferos recordam muito os
macroscelidos. Os caracteres genéricos podem resumir-se assim: um
corpo delgado, repousando sobre membros finos e altos dos quaes os
posteriores são mais compridos que os anteriores; um focinho pontea-
gudo; orelhas compridas; uma cauda de mediana extensão, pouco pel-
luda; dois dedos pouco extensos, eguaes, armados de unhas curtas, mas
solidas nas patas anteriores e nas posteriores um só dedo grande, sendo
os outros atrophiados.
Da disposição das patas deriva o nome de cheropos que em grego
significa pé de porco.
O género comprehende uma espécie única de que vamos occu-
par-nos.
O CHEROPO SEM CAUDA
Não se tome á lettra o nome d'este animal; não se pense realmente
que elle é desprovido de órgão caudal. O nome, que não corresponde á
reahdade, tem uma historia que Brehm conta nos seguintes termos.
«Thomaz Miguel que descobriu a espécie, apanhou vivo o primeiro e
único individuo que encontrou na cavidade de uma arvore em que es-
tava refugiado; d'ahi o tirou com grande espanto seu e dos indígenas
que declararam nunca ter visto animal semelhante. A ausência de cauda
no animal impressionou o naturahsta que, attendendo a isso lhe deu o
nome quahficativo de sem cauda. Mais tarde porém foram enviados à
Europa outros exemplares nos quaes existia uma cauda de quatorze cen-
tímetros de comprimento. O primeiro individuo apanhado perdera eviden-
temente aquelle órgão por accidente ou por qualquer outro motivo. Gray
mamíferos em especial 421
observando que a designação sem cauda consagrava um erro, propoz
que ella fosse substituída pela de castanho, attenta a cor do animal. Em
historia natural porém, é uso respeitar tanto quanto possível o nome
mais antigo; e é por isso que este marsupial é ainda hoje conhecido
pelo nome de cheropo sem cauda. >) *
CARACTERES
Este marsupial tem pouco mais ou menos as dimensões de um coe-
lho pequeno; tem trinta centímetros de comprido, não contando a cauda
cuja extensão é, como acima dissemos, de quatorze centímetros. O pêllo,
comprido e molle, é pardo escuro sobre o dorso e branco ou branco
amarellado no ventre. As orelhas são grandes, cobertas de pôllos de um
escuro fuliginoso e de outros negros. As patas anteriores são brancas,
as posteriores ruivas desmaiadas, os dedos claros e a cauda negra na
face dorsal e trigueira clara na face inferior e na extremidade.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O cheropo sem cauda habita principalmente a Nova-Galles do Sul
{New-south- Walles) .
COSTUMES
Prefere as planícies cobertas de hervas altas. Os seus costumes re-
cordam os dos peramelídeos. Construo um ninho com folhas e hervas
seccas nos legares cerrados em que a vegetação abunda e sabe tão bem
occultal-o que um caçador experimentado lem diííiculdade em desco-
1 Brehm, Obr. ciL, vol. 2.o, pg. 24.
422 IIISTOniA NATURAL
bril-0. Alimenta-se simultaneamente de vegetaes e de insectos. Eis o que
se sabe de bem averiguado sobre o género de vida d'este animal.
OS PHALANGISTAS
Os animaes comprehendidos n'esta familia são notáveis pelas formas.
São em geral de pequenas dimensões; raras espécies attingem sessenta
centímetros de comprimento. A cabeça é curta e o lábio superior fendido
como nos roedores. Os membros são todos de egual comprimento; o nu-
mero de dedos é cinco em cada pata, sendo o interno das patas posterio-
res o mais grosso e formando um pollegar opponente, desprovido d^unha.
A cauda é geralmente comprida e prehensora; falta porém n'um género.
As fêmeas teem duas a quatro mamas na bolsa marsupial. A dentição
comprehende seis grandes incisivos na maxilla superior, dois na maxilla
inferior, falsos mollares rombos e verdadeiros mollares em numero de
trez ou quatro, erriçados de tubérculos; os caninos ou faltam ou não
teem a forma cónica característica e são rombos. A columna vertebral
apresenta doze a treze vértebras dorsaes, seis ou sete lombares, duas
sagradas e até trinta caudaes. O estômago é simples, glanduloso*; o cé-
rebro não apresenta circumvoluções.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habitam a Austrália e algumas ilhas da Ásia do Sul.
mamíferos em especial 423
COSTUMES
Habitam as arvores e não se encontram, por isso mesmo, senão nas
florestas. Só muito excepcionalmente descem a terra; a maior parte das
espécies vivem constantemente nos cimos das arvores.
Com poucas excepções, os phalangistas são animaes nocturnos. Dor-
mem a maior parte do dia ou mesmo o dia inteiro; só ao cair da tarde
despertam e procuram então os fructos, as foUias, as aves, os insectos
e os ovos que lhes servem de alimento. Assim, como se vê, não são es-
tes animaes exclusivamente carnívoros, mas antes omnívoros, dando até,
segundo alguns auctores, preferencia aos vegetaes. Os que se alimentam
de raízes, cavam tocas onde passam a estação dos frios.
Sob o ponto de vista dos movimentos, as espécies differem muito
umas das outras. Umas teem a marcha vagarosa, prudente, rastejante
quasi; outras, ao contrario, são rápidas, excessivamente ágeis. Todas
trepam maravilhosamente e algumas dão saltos consideráveis. A pre-
sença em algumas espécies de uma cauda prehensora e de uma mem-
brana aliforme são indícios seguros de agilidade. Todas as espécies são
plantigradas.
Quasi todos os phalangistas são sociáveis e vivem aos pares.
N'umas espécies o numero de filhos é de quatro, n^outras apenas
de dois ou de um só.
Todos os animaes d'esta família são innocentes e timidos. Quando
se sentem vivamente perseguidos, suspendem-se de um ramo pela cauda
e ahi se deixam ficar immoveis por largo tempo simulando-se mortos. É
este, diz Brehm, o único signal de intelHgencia que dão estes marsu-
piaes.
CAPTIVEIRO
Gonservam-se longo tempo em captiveiro e são fáceis de alimentar.
Raros são os que chegam a distinguir o dono d^outras pessoas.
424 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODUGTOS
Alguns d'estes marsupiaes invadem as plantações, causando prejuí-
zos; em compensação porém, fornecem-nos a carne e o manto. Pode pois
dizer-se que os estragos que produzem em vida são neutralisados pela
utilidade que tiramos dos seus productos, depois de mortos.
OS PETAURISTAS
Entre todos os marsupiaes trepadores são os petauristas os mais
ágeis. Assemelham-se muito aos esquilos voadores, diíTerindo todavia
d'elles pela dentição. Teem uma membrana aliforme coberta de péllos,
que forma como que uma franja ao tronco entre os membros anteriores
e posteriores. N'estes marsupiaes o corpo é alongado, a cabeça pequena
e o focinho ponteagudo; os olhos são grandes, salientes e as orelhas le-
vantadas, mais ou menos ponteagudas. A cauda é comprida e coberta de
pêllos abundantes. O péllo é molle e fino.
Geralmente não excedem estes animaes o comprimento de trinta
centímetros.
Este género tem sido dividido, attentas a dentição, a forma das
orelhas, a membrana aliforme e a cauda, em três grupos : os petawris-
tas-esquiloSy os petauristas propriamente ditos e os acrobatas. Passamos
a occupar-nos de cada um d'estes grupos genéricos e das espécies que
conteem.
mamíferos em especial 425
OS PETAURISTAS-ESQUILOS
Teem as orelhas nuas, compridas, chanfradas no bordo externo, a
membrana aliforme interfemoral estendida até ao dedo minimo do mem-
bro anterior e emfim quatro pares de dentes mollares gemiformes infe-
riores.
O PETAURISTA-ESQUILO
Por ser a única do género, esta espécie tomou o nome d'elle. Tem
o porte e as dimensões do esquilo da Europa. O corpo é fino e delgado,
parecendo comtudo espesso pela presença da membrana aliforme que se
estende entre os membros. O pescoço é curto, volumoso, a cabeça chata,
o focinho pouco comprido, a cauda arredondada, pendente e abundante-
mente coberta de pêllos; as orelhas são grandes, os membros curtos, os
dedos das patas anteriores separados, e os dedos segundo e terceiro das
patas posteriores soldados um ao outro. Todos os dedos são armados de
unhas recurvas, excepto o pollegar que é desprovido d'ellas. A bolsa da
fêmea é completa. O manto é espesso, abundante, de pêllo fino e macio.
A parte superior do corpo é cinzenta, a membrana ahforme trigueira e
bordada de branco e o ventre branco com reflexos amarellados. De uma
orelha a outra e passando por diante dos olhos estende-se um traço largo
de um trigueiro fuUginoso; um outro da mesma côr encontra-se sobre o
nariz, a região frontal e o dorso. A cauda é cinzenta clara na raiz e ne-
gra na ponta.
O animal adulto mede vinte e seis centímetros de comprimento
sobre nove a dez de altura; a cauda mede vinte e sete, isto é apre-
senta maior extensão que todo o resto do corpo.
426 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O pelaurista-esquilo habita em Nova-Galles do Sul, em Nova-Guiné
e na ilha Norfolk.
COSTUMES
O petaurista-esquilo é um animal sociável que vive em pequenas
famílias, que se alimenta de substancias vegetaes e de insectos e que
faz das arvores o seu domicilio único. Tem hábitos nocturnos: occulta-se
durante o dia nos cimos mais espessos das arvores, enrolando-se, co-
brindo-se com a membrana ahforme e dormindo. Ao cair da noite, des-
perta. Então principia para elle a vida activa em contraste com a abso-
luta falta de animação que o caracterisa durante o dia. De noite trepa
aos ramos com prodigiosa rapidez e para saltar abre a membrana ali-
forme que lhe serve como de pára-quedas. De dia se desperta e se move,
é somente para procurar ahmento; mas caminha com a cabeça baixa
para evitar os raios do sol e a marcha é pezada e vacillante como a de
todos os animaes nocturnos durante o dia. Mas de noite o contraste é
perfeito, completo: não ha macaco ou esquilo que o excedam em agili-
dade, em rapidez de movimentos. Dá saltos enormes de arvore a arvore;
«saltando, diz Brehm, de uma altura de dez metros pode attingir uma
arvore distante vinte e cinco ou trinta metros.)) * Durante o salto pode
á vontade mudar de direcção, servindo-se para isso da cauda como de
um leme.
Nada se sabe sobre a reproducção doeste marsupial.
1 Brehm, Loc. ciL, vol. 2.o, pg. 27.
mamíferos em especial 427
CAÇA
A caça ao pelaurista-esquilo que durante a noite seria diíficillima,
é, pelo contrario, de uma extrema facilidade durante o dia. Basta então
que um homem trepe a uma arvore e um outro fique em baixo: o que
subiu consegue geralmente apanhar o animal; mas se isto se não dá, se
o petaurista acordou e procurou fugir então o homem continua a perse-
guil-o, até que elle oíTuscado pela luz, perca a certeza do salto e caia nas
mãos do companheiro que ficou junto á base da arvore.
GAPTIVEIRO
O petaurista-esquilo é um animal encantador em captiveiro. É inof-
fensivo, dócil, fácil de domesticar e vivíssimo de noite, embora conserve
sempre uma tal ou qual timidez. Vive em boa harmonia com os outros
animaes domésticos e chega a aííeiçoar-se ao homem. Não é intehigente;
mas a docilidade, a graça e a alegria compensam a falta d'aquelle pre-
dicado. Habitua-se facilmente a toda a ordem de alimentos, mostrando
sempre uma decidida predilecção pelos fructos, pelos insectos e pelas
coisas doces. É o que affirma Bennett que possuiu uma fêmea e a trouxe
á Europa.
428 HISTORIA NATURAL
OS PETAURISTAS PROPRIAMENTE DITOS
Differem dos petauristas-esquilos em o bordo externo das orelhas
ser inteiro e não chanfrado e em a membrana aliforme se estender ape-
nas do carpo ao joelho.
O TAGUAN
É este o nome que ao animal dão os colonos; também é conhecido
pelas denominações de phiJandra volante e de petaurista taguanoide. É
o maior dos marsupiaes voadores. O corpo mede pouco mais ou menos
um metro de comprimento, incluída a cauda que tem metade exacta-
mente. A cabeça é pequena, o focinho curto e agudo e a cauda abun-
dantíssima; as orelhas são largas, espessas e largamente cobertas de
péllo, os olhos muito grandes e as patas armadas de unhas fortes, agudas
e recurvas. O pêllo do manto é comprido e macio.
A cor é muito variável; mas o caso mais geral é ter o taguan o
dorso trigueiro escuro, a cabeça trigueira, a membrana aliforme com si-
gnaes brancos, o focinho, o mento e as patas negras e a cauda negra
também ou castanha mais clara na raiz que no resto da extensão. O
peito e o ventre são brancos.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O taguan habita a Nova-Hollanda. Abunda principalmente nas gran-
des florestas que ficam entre Port-Philippe e Moreton-Bay.
mamíferos em especial 429
COSTUMES
É o taguan, como todos os outros marsupiaes da família, um animal
nocturno que se conserva dormindo o dia inteiro nos troncos carcomidos
das arvores onde se encontra ao abrigo dos inimigos.
Os movimentos d'este marsupial são ágeis e precisos; dá saltos
prodigiosos, trepa com pasmosa rapidez e atira-se a grandes distancias
de arvore em arvore. Raríssimas vezes desce a terra.
CAPTIVEIRO
A diííiculdade extrema que existe de apanhar este animal vivo ex-
plica a razão por que é raríssimo em captiveiro e por que mal se tem
podido observar as diíTerenças de costumes que apresenta na transição
da liberdade para o dominio do homem.
CAÇA
O indígena da Nova-Galles do Sul, sollicitado pela fome passa o seu
tempo constantemente á espreita de alguma presa. N'este exercício apren-
deu a reconhecer com admirável perícia os legares em que o taguan
constituiu o seu domiciho. Uma ligeira fenda n'uma arvore, alguns pcl-
los caídos á entrada do buraco em que o animal penetrou são-lhe indí-
cios bastantes e seguros de que o animal está em tal ou tal ponto; o
indígena distingue ainda se se trata de um domicílio abandonado ou com
habitantes. Uma vez certificado que é d'este ultimo caso que se trata,
elle trepa á arvore com a velocidade de um macaco, introduz o braço
na cavidade em que o animal se encontra, apanha-o pela cauda, parte-
Ihe immediatamente a cabeça contra um ramo e atira a terra o cadáver.
O indígena procede assim, porque sabe perfeitamente que o animal se
430 HISTORIA NATURAL
Late c defende corajosamente, usando dos dentes e das garras com
desespero e valentia. O europeu nunca tenta a caça do taguan sem a
companhia de alguns indígenas; só estes, com effeito, sabem encontrar
o animal, só elles são capazes de o extraírem do seu escondrijo com a
rapidez indispensável para que elle não possa empregar as garras e os
dentes.
OS ACROBATAS
Teem as orelhas pouco cobertas de pello, a membrana aliforme muito
larga, estendendo-se apenas até ao carpo e os pellos da cauda dísticos,
isto é dispostos em duas hnhas.
O PEQUENO ACROBATA
É o menor de lodos os marsupiaes voadores. Tem as dimensões de
um ratinho e quando está sentado, por isso que a membrana aliforme
se une intimamente ao corpo, parece exactamente este roedor; é esta a
razão por que lhe foi dado o nome vulgar de ratinho voador. Tem ape-
nas quinze centímetros de comprimento, pertencendo metade á cauda.
O péllo é curto e macio, pardo trigueiro sobre o dorso e branco amarel-
lado no ventre; os olhos são circuitados de negro e as orelhas, negras
adiante, são claras posteriormente. A cauda é de um pardo trigueiro na
face superior e desmaiado na inferior. A membrana aliforme apresenta
uma como bordadura branca.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 431
DISTEIBUIGAO GEOGRAPIIICA
Este marsupial pertence á Nova-Galles do Sul.
COSTUMES
Alimenta-se de folhas, de fructos, de rebentos ou renovos e de in-
sectos. É ágil e vivo como todos os outros representantes da familia.
Como estes, elle pode também dar enormes saltos, percorrer considerá-
veis extensões com auxilio da membrana aliforme; muda no ar de direc-
ção, graças á cauda que lhe serve como de leme.
GAPTIVEIRO
Dizem alguns naturahstas que perto de Port-Iackson, os colonos e
mesmo os indígenas captivam e domesticam muitas vezes este marsupial.
Talvez seja verdade; o que é certo porém, é que não possuímos ainda
hoje dados precisos sobre a reproducção e a vida em captiveiro do
animal.
432 HISTORIA NATURAL
OS cuscos
Formam na família dos phalangistas ura género perfeitamente dis-
tincto. Os animaes que o representam teem dimensões relativamente no-
táveis, uma cauda pelluda na raiz, nua e papilosa no resto da extensão,
orelhas sempre curtas e ás vezes mesmo não apparentes, a cabeça arre-
dondada, o focinho ponteagudo, a pupilla vertical e o pêllo abundante,
espesso, mais ou menos lanoso.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Encontram-se estes animaes nas florestas de Amboina, de Banda e
da Nova-Guiné.
COSTUMES
São animaes nocturnos, lentos, preguiçosos, em cuja alimentação
entram os fructos. Conhecem-se ha muito, mas nem por isso a sua his-
toria deixa de oíTerecer lacunas e obscuridades consideráveis.
Vamos estudar a especie-typo.
mamíferos em especial 433
O PHALANGISTA MALHADO
Este animal é também conhecido pelo nome menos próprio de pfd-
landra do Oriente.
Tem as dimensões de um gato : o corpo mede de comprimento oi-
tenta e seis centímetros, não incluindo a cauda cuja extensão é de meio
metro. O péllo é lanoso, espesso e de cor muito variável. O animal de-
pois de velho é de ordinário branco, com reflexos amarellados ou par-
dos e grandes manchas irregulares negras ou de um trigueiro accen-
tuado que desapparecem na face externa dos membros; no animal ainda
novo as manchas são cinzentas e passam pouco a pouco ao castanho claro
e depois ao castanho escuro. O ventre é sempre de um branco uniforme;
as pernas são de uma côr fuliginosa. A cauda é branca com raras man-
chas. A parte que circuita os olhos e a fronte são de um amarello fuli-
ginoso nos animaes novos e de um amarello vivo nos velhos. As orelhas
são muitas vezes brancas e as partes desnudadas apresentam um ruivo
variável. ♦
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
Vive nas ilhas Molucas e particularmente em Amboina.
costumes
Habita as florestas e passa o seu tempo principalmente nas arvores
de fructo a cujos ramos se suspende pela cauda. Dá saltos prodigiosos,
como todos os marsupiaes congéneres; mas, como é preguiçoso, con-
some geralmente o tempo suspenso das arvores, immovel. Quando não
come ou não dorme, lambe-se e ahsa o péllo, como fazem os gatos.
A fêmea pare dois a quatro filhos que conserva largo tempo na bolsa
marsupial.
VOT- TTT 28
434 HISTORIA NATURAL
USOS E PRODíJCTOS
A peJle d'esle mamifero é estimada. Em algumas regiões os indige-
nas comem a carne.
AS PHILANDRAS
Estes animaes parecem estabelecer a transição de certos carniceiros
para certos roedores; uns assemelham-se ás martas, outros aos rapozos,
mas todos ao mesmo tempo aos esquilos. Se lhes faltasse a bolsa have-
ria uma verdadeira impossibihdade de saber-se onde collocal-os na divi-
são taxonomica.
Entre os marsupiaes o caracter dominante das philandras consiste
na soldadura até á ultima phalange dos segundos e terceiros dedos das
patas posteriores. O dedo pollegar em todas as patas é opponente. A
cauda, largamente coberta de péllo comprido e extenso, é prehensora.
A dentição é intermédia à dos carnívoros e dos roedores : os incisi-
vos são alongados como os d'estes, mas seguidos de caninos e de falsos
mollares.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
Habitam a Austrália, as ilhas visinhas e as Molucas.
mamíferos em especial 435
COSTUMES
São animacs noclurnos, vagarosos e estúpidos que passam a vida
nas arvores, no seio das florestas espessas.
A PHILANDRA RAPOZEIRA
É esta a espécie mais conhecida. Reúne ás dimensões do gato bravo
o porte da rapoza e a graça do esquilo. O comprimento do corpo é de
sessenta e seis centimetros, não incluindo a cauda que tem quarenta e
cinco. O tronco éjelegante, o pescoço curto e delgado, a cabeça alonga-
da, o focinho curto e terminado em ponta e o lábio superior fendido; as
orelhas são de media grandeza, ponteagudas e os olhos lateraes. A planta
dos pés é nua e as unhas comprimidas e recurvas, excepto as dos pol-
legares que são achatadas.
A fêmea apresenta uma bolsa incompleta, representada apenas por
uma prega cutânea. O manto compõe-se de péllos sedosos, curtos e ri-
jos. A parte superior do corpo ó de um pardo com reflexos trigueiros ou
castanhos e ruivos; a parte inferior é amarella clara. O peito e o ventre
são de um ruivo fuliginoso, o dorso, a cauda e os bigodes negros, as
orelhas mias interiormente e cobertas por fora de péllos amarellos cla-
ros. Os recem-nascidos são de um cinzento claro misturado aqui e além
de negro. De resto, as variações de cor são grandes.
436 HISTORIA NATURAL
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
A philandra rapozeira habita a Nova-llollanda e a terra de Van-Dié-
men; é um dos marsupiaes mais vulgares.
COSTUMES
Vive a philandra rapozeira quasi exclusivamente nas florestas e so-
bre as arvores. Tem hábitos nocturnos; não abandona o seu retiro senão
duas ou trez horas depois do pôr do sol. Trepa bem; mas ainda assim
os seus movimentos são vagarosos e pouco precisos relativamente ao
dos esquilos. A cauda prehensora presta-lhe grandes serviços; nunca dá
um passo nas arvores sem previamente se segurar a este órgão. Em
terra marcha muito mais lentamente do que nas arvores.
Alimenta-se de vegetaes e simultaneamente d'aves ou outros peque-
nos animaes que consegue apanhar. Antes de matal-a, atormenta muito
tempo a presa, revolvendo-a entre as patas e batendo com ella de en-
contro aos ramos; a primeira coisa que devora é o ce^rebro.
Um bom trepador consegue facilmente apanhar a philandra rapozeira.
Quando um perigo a ameaça, pendura-se pela cauda a um ramo d'arvore
e conserva-se perfeitamente immovel.
A parturição produz dois filhos que a mãe conserva muito tempo na
bolsa e mais tarde sobre o "dorso.
GAPTIVEIRO
Domam-se facilmente as philandras rapozeiras, e teem quasi todos
os jardins zoológicos da Europa alguns exemplares. São animaes pacífi-
cos e dóceis, mas preguiçosos e estúpidos. É preciso tel-os em gaiolas
largas e dar-lhes alimento em abundância; se se não fizer isto roerão a
mamíferos em especial 437
madeira da prisão. É fácil alimental-os com pão, carne, fructos e raizes.
Espalham um cheiro de camphora que os torna insuportáveis em capti-
veiro.
usos E PRODUCTOS
Os indígenas comem a carne da philandra rapozeira, a despeito do
cheiro camphorado que a torna insuportável ao paladar europeu. Utili-
sam também a pelle do animal que apreciam tanto como nós a da marta
e de que fazem mantos. No dizer dos entendedores essa pelle é boa e
deve cedo ou tarde tornar-se um importante artigo de commercio pela
riqueza do péllo que a cobre.
OS COALAS
Constituem na família dos phalangístas um género caracterisado as-
sim: corpo refeito, pernas baixas, cabeça volumosa, focinho curto, ore-
lhas grandes e peitudas, cauda reduzida a um tubérculo occulto, cinco
dedos em cada pata, sendo os dois internos das patas anteriores reuni-
dos e susceptíveis de opporem-se aos trcz outros, as plantas nuas, as
unhas aceradas, compridas e recurvas, excepto nos poUegares posterio-
res que não possuem estes appendices, trez pares de incisivos superio-
res muito desiguaes, um pequeno canino único na maxilla superior e
cinco pares de mollares em cada maxilla, sendo os quatro últimos mul-
ti-tuberculosos.
Este género é representado por uma espécie única.
438 HISTORIA NATURAL
O COALA CINZENTO
Este marsupial conhecido também pelos nomes de womhat e de
urso indígena que lhe dão os colonos da Nova-IIollanda, tem as dimen-
sões de um glutão; mede sessenta e seis centimetros, pouco mais ou
menos, de comprimento e trinta e trez de altura. A cabeça volumosa, as
pequenas orelhas distantes e muito pelludas, os olhos brilhantes e o fo-
cinho largo e obtuso dão-lhe um aspecto muito particular, tornado ainda
mais estranho e mais singular pela ausência de cauda e pela forma das
patas. O pêllo é comprido e espesso, quasi crespo, mas fino, macio e la-
noso. Tem o nariz e o focinho desnudados, a parte superior do corpo
cinzenta, a parte inferior branca amarellada e o lado externo das orelhas
cinzento escuro.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIICA
O coala cinzento habita as florestas da Nova-Galles do Sul, mas não
é muito commum.
COSTUMES
Encontra-se aos pares. Trepa ás arvores mais altas, mas com um
vagar que lhe conquistou o nome de 'preguiçoso da Austrália. O que lhe
falta em rapidez, possue-o em prudência e na attenção com que executa
todos os movimentos; sobe aos ramos mais delgados. Só muito raras ve-
zes e quando a isso é forçado pela falta de alimento é que abandona as
mamíferos em especial 439
arvores e desce a terra onde progride com mais vagar e mais desele-
gancia; descendo a terra não o faz senão para attingir uma outra arvore
que lhe promette novos alimentos.
Os hábitos de vida d'este marsupial são quasi nocturnos. Com effeito,
é geralmente ao fim da tarde que principia para elle a vida activa, a
vida do movimento.
O coala cinzento, a despeito de uma apparencia feroz que o cara-
cterisa, é um animal pacifico, dócil, que raras vezes se encolerisa e que
se conserva de ordinário indiíTerente ao que em torno d'elle se passa.
E mesmo quando se encolerisa, não pensa em arranhar ou morder.
A fêmea dá á luz um filho único que, ainda depois de saído da
bolsa, carrega por muito tempo sobre o dorso e ao qual testemunha uma
viva aflfeição profunda.
CAÇA
O coala cinzento é conhecido dos europeus desde 1803. Os indíge-
nas caçam-o com verdadeiro ardor para lho obterem a carne que para
elles é das melhores, das mais preciosas.
GAPTIVEIRO
O coala cinzento apanha-se com facilidade. Dá-se bem em captiveiro
e ahmenta-se sem difficuldade. Para comer, senta-se sobre os membros
posteriores e leva á bocca os ahmentos com as patas de diante. Em re-
pouso a postura do animal é a do cão quando se deita. Do resto, não
off"erece grandes attractivos, porque é estúpido.
440 HISTORIA NATURAL
II
MARSUPIAES herbívoros
os KANGURUS
São animaes saltadores e os maiores da ordem. São notáveis pelas
formas particulares que apresentam. A partir da cabeça, o tronco au-
gmenta rapidamente de grossura, sendo a parte mais volumosa a região
lombar, o que é devido ao enorme desenvolvimento dos membros pos-
teriores. A cabeça e a parte anterior do tronco parecem atrophiados. Os
membros anteriores servem apenas muito secundariamente a estes ani-
maes para a marcha e para a prehensão dos alimentos. A parte poste-
rior do corpo é que propriamente se destina aos movimentos, o que ex-
plica o seu desenvolvimento extremo. Com os extensos membros poste-
riores e a forte cauda, os kangurus podem dar saltos prodigiosos e com
rapidez egual á dos veados. A forma das pernas e a cauda são caracte-
rísticas. A coxa é muito forte, a tibia comprida e o tarso extraordina-
riamente prolongado; os dedos em numero de quatro apenas, pela au-
sência do pollegar, são muito fortes e compridos e o do meio apresenta
uma unha em forma de casco. A cauda é mais comprida e mais grossa
que a de qualquer outro mamífero das mesmas dimensões; os seus mús-
culos são vigorosíssimos. Ao lado d'este desenvolvimento exagerado, os
membros anteriores parecem atrophiados, rachiticos, embora na reali-
dade o não sejam, porque o seu desenvolvimento está em relação com
os movimentos que executam. Estes membros anteriores, terminados por
cinco dedos armados de unhas arredondadas, servem para a prehensão
dos alimentos; os kangurus servem-se d'estas patas dianteiras como de
mãos. A cabeça pela forma especial que aíTccta parece intermediaria á
do veado e da lebre.
mamíferos em especial 441
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
A Austrália é a pátria dos kangurus.
COSTUMES
Dos kangurus uns habitam as vastas planicies cobertas de hervas,
outros vivem de preferencia nas brenhas; alguns procuram as monta-
nhas pedregosas, muitos as florestas mais impenetráveis onde são obri-
gados para acharem passagem a partir ramos e a arrancar raizes, ou-
tros ainda as arvores.
Vivem quasi todos sohtarios; só muito raras vezes e accidental-
mente é que se encontram alguns reunidos n'um mesmo logar, quando
a alimentação é ahi abundantíssima; são porém sociedades fortuitas, me-
ramente temporárias, essas a que nos referimos. O viajante depois de
ter visto oitenta ou cem kangurus reunidos n'um ponto, decorridas pou-
cas horas não encontra no mesmo local um único.
Quasi todos estes marsupiaes são diurnos; as pequenas espécies po-
rém são nocturnas e passam o dia dormindo em togares occultos. Alguns
habitam fendas de rochedos d'onde não sáera senão para procurar ali-
mento, voltando para lá logo que se ejicontram saciados.
«Os hábitos e género de vida dos kangurus, diz Brehm, merecem a
nossa attenção, porque tudo n^elles é curioso: movimenlos, repouso, re-
gime, reproducção, desenvolvimento e intenigencia.» *■ Do auctor que
acabamos de citar, o mais completo sobre o assumpto em questão, ex-
traímos as informações que seguem.
O movimento dos kangurus quando pastam consiste em um salto
pezado e deselegante. N'estas condições elles apoiam toda a mão sobre
o solo e collocam as patas de traz perto das de diante ou mesmo entre
ellas. Apoiam-se ao mesmo tempo sobre a cauda; como porém, uma tal
posição é extremamente fatigante, pouco tempo a conservam. Para o ar-
Brehm, Obr. cit., vol. 2.", pg. 37.
442 HISTORIA NATURAL
rancamcnto de plantas, sentam-se sobre a cauda e as patas posteriores,
deixando cair os membros de diante; desde que apanliam uma, erguem-se
para a comer. O corpo parece então repousar-llies sobre uma tripeça
cujos ramos são representados pelos membros posteriores e pela cauda.
Raras vezes se apoiam contra o solo sobre trez patas ao mesmo tempo
e sobre a cauda; isto acontece apenas quando os animaes teem qualquer
coisa a fazer no chão com uma das mãos. Quando se encontram meio sa-
tisfeitos, deitam-se por terra, estendendo os membros posteriores; se se
lembram de continuar a comer, levantam-se apenas muito ligeiramente e
apoiam-se sobre os curtos membros anteriores. Para dormirem, as pe-
quenas espécies sentam-se sobre os quatros membros com a cauda es-
tendida para traz; esta posição permitte-lhes rapidamente fugir.
Ao mais ligeiro ruido, os kangurus levantam-se sobre a extremidade
das patas de traz e olham em torno de si; se vêem alguma coisa de sus-
peito, deitam immediamente a fugir. É então que se vé bem a agilidade
de que dispõem. Pulam exclusivamente sobre os membros posteriores e
dão saltos como nenhum outro animal. Unem os membros anteriores con-
tra o peito, estendem a cauda para traz, encurvam-se, depois estendem
bruscamente com toda a força dos músculos femoraes os membros pos-
teriores extensíveis e projectam-se no ar como frechas, descrevendo uma
curva. Uns, ao saltar, conservam o corpo em posição horisontal e outros
em posição oMiqua. Quando nada os perturba, os kangurus dão saltos de
dois metros e meio de extensão; se se apavoram por um motivo qual-
quer, então os saltos attingem uma extensão dupla ou tripla. Nunca caem
em cheio sobre as patas anteriores, mas apenas de quando em quando
sobre as extremidades dos dedos. Algumas espécies durante o salto en-
costam os membros anteriores ás partes lateraes do tronco; outras cru-
zam-os sobre o peito.
A perseguição dos kangurus pelos cães é muito difficil, o que muito
bem se comprehende recordando que aquelles podem dar saltos de
oito a dez metros de extensão, vencendo obstáculos que os cães são for-
çados a costear com grande perda de tempo.
De todos os sentidos dos kangurus o mais perfeito parece ser o ou-
vido; a vista é fraca e o olfato obtuso.
A inteUigencia d'estes marsupiaes é pouco desenvolvida. São des-
confiados, curiosos, timidos e tão fáceis de excitar como de calmar. São
desprovidos de memoria e este facto explica naturalmente a falta de pru-
dência que os caracterisa e bem assim o não chegarem no captiveiro a
distinguir o dono e a affeiçoar-se-lhe. A curiosidade é nos kangurus um
attributo característico e extraordinariamente desenvolvido. Ás vezes,
perseguidos pelos cães, correndo ou antes saltando vertiginosamente,
cheios de justificado terror, nem por isso deixam de ceder ás sollicita-
mamíferos em especial 443
ções da curiosidade, voltando a cabeça para verem os perseguidores;
não é raro acontecer então que vão bater violentamente de encontro a
uma arvore, caindo aturdidos.
O regime alimentar dos kangurus é variadíssimo. Alimentam-se de
hervas, de folhas, de raizes, de cascas d'arvores, de rebentos e de fru-
ctos. Contra a opinião de alguns auctores antigos que julgaram os kan-
gurus ruminantes, dizem os modernos, os mais conscienciosos, que nunca
n'estes marsupiaes encontraram indicio de ruminação. O erro dos anti-
gos foi decerto originado pelo facto de mastigarem os kangurus os ali-
mentos por largo espaço de tempo.
O cio, pelo menos a julgar pelos indivíduos captivos, tem epochas
determinadas. Os machos dão-se combates violentos pela posse das fê-
meas; os membros posteriores e a cauda são as principaes armas. As
pequenas espécies são as que se excitam mais; o ardor genésico leva-as
a arrancarem os pêllos a regiões inteiras do corpo.
Os kangurus não são muito fecundos. As grandes espécies quasi
nunca produzem mais que um filho por parto. A gestação não é demo-
rada; a do kanguru gigante, por exemplo, não dura mais de "trinta e
nove dias. Doze horas depois de nascido, o kanguru gigante tem apenas
trinta e dois milllmetros de comprido: é uma pequena massa moUe,
transparente, vermiforme, de nariz e orelhas mal indicadas ainda, de
membros informes e de olhos cerrados. O aleitamento e a permanência
na bolsa materna duram oito mezes. É extrema a dedicação das fêmeas
pelos filhos.
CAÇA
Os indígenas e os colonos da AustraKa caçam apaixonadamente os
kangurus. Os processos empregados pelos primeiros são principalmente
a armadilha e os laços. Multas vezes fazem grandes caçadas em que ura
certo numero de homens se escondem em determinados togares ao passo
que outros tratam de espantar os kangurus e de os cercarem de modo
que o unlco caminho livre que lhes reste seja o que conduz aos pontos
em que os outros caçadores se occultaram. Estes, quando os marsupiaes
se approximam, lançam-lhes habilmente laços á cabeça.
Os colonos Inglezes empregam multo na caça dos kangurus uns cer-
tos cães, productos do cruzamento do braço Inglez e do bull-dog, notá-
veis pela força, pela coragem e pela perseverança. De ordinário, trez a
quatro cães d'cstes bastam para apanhar um kanguru ou pelo menos
444 HISTORIA NATURAL
para o collocar ao alcance cie uma arma de fogo. Esta caça nem sempre
é destituída de perigos; ás vezes os kangurus fazendo uso dos membros
posteriores e das unhas vigorosíssimas fazem face aos cães e até ao ho-
mem, deixando-os feridos. Perto dos cursos d'agua, os kangurus chegam
a bater-se vantajosamente com os cães mais valentes. Como são muito
altos, tomam pé em togares em que os cães são forçados a nadar; esta
é a vantagem. Quando um cão se approxima, os kangurus deitam-lhe as
patas anteriores e mergulham-o até o matarem por asphyxia. Procedem
de egual modo em relação a um segundo, a um terceiro e aos mais que
vêem vindo, de modo a fazerem face, muitas vezes, a uma grande ma-
tilha.
GAPTIVEIRO
Todas as espécies supportam com facilidade o captiveiro. Alimen-
tam-se de folhas, de raizes, de grãos e de pão. ,No inverno reclamam
um aposento muito quente. Bem tratados reproduzem-se. Ha muitos nos
principaes jardins zoológicos da Europa.
usos E PRODUCTOS
Os kangurus são animaes mais úteis do que nocivos. A carne d'es-
tes marsupiaes é um bom alimento. É precisamente esta a razão por
que alguns nalurahstas teem lembrado a conveniência de fazer multipli-
car na Europa estes mamíferos, creando-se assim uma famosa caça abun-
dantíssima em carne. N'esta multiplicação encontraríamos ainda a vanta-
gem de uma vasta producção de boas pelles, importante artigo de com-
mercio. Os estragos ,que estes animaes poderiam causar seriam insigni-
ficantíssimos e nem mesmo valeria entrar com elles em linha de conta
para os confrontar com a utiUdade que seriam capazes de naturalmente
produzir.
mamíferos em especial 445
O KANGURU GIGANTE
É o maior animal da familia; d'ahi a designação especial por que
é conhecido. Os colonos dão-lhe também o nome de boomer. Um macho
adulto, sentado, tem a altura de um homem regular. Dois melros é o
comprimento total; noventa centímetros pertencem á cauda. A fêmea é
mais pequena um terço, pouco mais ou menos, doestas dimensões.
O péllo é abundante, espesso, nso,.molle e quasi lanoso, de um tri-
gueiro misturado de pardo. O antebraço, a perna e o tarso são de um
trigueiro-amarello claro, os dedos negros; a cabeça é mais clara anterior-
mente do que aos lados e o lábio superior é muito claro. As orelhas são
trigueiras na face externa e brancas interiormente. A cauda desde a raiz
até á parte media é da côr do dorso e depois negra até á extremidade.
DISTRIBUIÇÃO GE0GRAPHICA
O kanguru gigante foi descoberto em 1770 por Gook nas costas da
Nova-Galles do Sul.
costumes
Vive nas extensas pastagens ou nos togares cobertos de arvoredo
copado, tão abundantes na Austrália. É para os togares arborisados que
elle se retira no estio para escapar aos raios ardentes do sol.
Com quanto o kanguru gigante se encontre em pequenos grupos de
trez a quatro indivíduos, nem por isso se pode dizer com os antigos
que eUe seja sociável: com eíFeito os membros de cada bando vivem
uma vida perfeitamente egoista, indifferentes á sorte reciproca. Ás vezes
juntam-se muitos indivíduos n'um certo local onde os pastos abundam;
desde o momento porém em que o alimento falta ou escassea, sepa-
ram-se rapidamente. Os antigos acreditaram que os bandos tinham uma
446 IlISTOUIA NATURAL
organisapão e que n'elles os machos representavam o papel de chefes
ou directores. Esta opinião, como o teem provado as observações ulte-
riores, é perfeitamente errónea.
Como todos, o kanguru gigante é timido e desconfiado; raras vezes
consente que o homem se lhe approximc.
CAPTIVEIRO
Houve tempo em que o kanguru gigante era mais commum nas
collecções zoológicas ou ménageries do que é agora. Ainda então a caça
não era tão activa como é hoje. O numero tem decrescido sensivelmente
e muitos individues teem sido repellidos para o interior das terras, onde
é difíicil apanhal-os.
O kanguru gigante dá-se bem em captiveiro. Citam-se casos de
individues que teem vivido dez e quinze annos captivos na Europa.
O kanguru gigante porém, não chega nunca a domesticar-se comple-
tamente; nunca perde a timidez nativa e nunca chega a habituar-se aos
guardas.
OS HYPSIPRYMNOS
Estes mamíferos a que muitos dão também o nome de kangurus-
ratos, são os mais pequenos dos marsupiaes saltadores. Distinguem-se dos
kangurus não só na corporatura que é menor, mas ainda na cauda que
é mais curta e no lábio superior que é fendido. Teem orelhas redondas
como as dos pequenos ratos e um par de caninos de curta extensão na
maxilla superior.
mamíferos em especial 447
O KANaURU-RATO
É esta a espécie typo do género. Tem as dimensões de um coeliio,
os pêllos muito compridos e pardos-trigueiros, o dorso negro e claro e
o ventre branco ou amarellado. O ultimo terço da cauda é coberto de
péllos compridos, negros, formando tufo. Mede de comprimento total ses-
senta e seis centímetros, dos quaes trinta pertencem á cauda.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
O kanguru-rato habita a Nova-Galles do Sul.
COSTUMES
Gould escreve o seguinte sobre os hábitos de vida doesta espécie :
c(0 kanguru-rato cava no solo um buraco onde forma o ninho, que se
confunde com o meio ambiente por maneira tal que é impossível desco-
bril-o, se se lhe não presta a máxima attenpão. Escolhe um logar entre
as hervas, perto de uma brenha. O animal conserva-se todo o dia dei-
tado ahi, só ou com a fêmea, completamente occulto á vista dos que pas-
sam, porque tem o cuidado de fechar a abertura que conduz ao ninho.
Os indígenas porém, não se deixam enganar.
« É curioso ver este animal apanhando a herva precisa para a cons-
trucção do ninho. Serve-se para isso da cauda que é prehcnsora. En-
volve com ella um tufo de herva, arranca-a e transporta-a ao logar con-
veniente. No captiveiro transporta egualmente ao seu poiso diversos ma-
teriaes: era isto, pelo menos, o que faziam alguns indivíduos que lord
Derby possuía no seu parque de Knowseley em condições tão semelhan-
tes quanto possível ás dos que vivem em liberdade.
<( Na Austrália habita as planícies seccas e as coHinas cobertas de ar-
448 HISTORIA NATURAL
vores e de brenhas mais ou menos espaçadas. Não vive habitualmente
em bandos; todavia cncontram-se sempre alguns indivíduos reunidos nos
mesmos togares. Só ao cair da noite é que o kanguru-rato procura ali-
mentos. Gome liervas e raizes que habilmente sabe desenterrar. Os bu-
racos abertos perto das brenhas denunciam aos caçadores a presença
d'esle animal. Quando alguém o perturba durante o dia, corre com ra-
pidez surprehendente para o buraco mais próximo, para uma fenda ou
para o tronco occo de uma arvore que primeiro encontra e ahi se es-
conde.» *
O POTORU-RATO
Tem a cabeça alongada, as patas curtas e a cauda semelhante á dos
ratos. Mede quarenta centímetros de comprimento e quatorze de altura;
a cauda tem a extensão de vinte e oito centímetros. Tem o corpo re-
feito, o pescoço curto, os dedos das patas anteriores separados, o se-
gundo e o terceiro das patas posteriores soldados um ao outro até á ul-
tima phalange. Todos estes dedos são armados de unhas compridas e
recurvas. A cauda é comprida, chata, muito forte, escamosa e coberta
de pêllos curtos e espalhados. Em geral o péllo é comprido, um pouco
brilhante, de um castanho escuro misturado de negro e de um castanho
claro no dorso, de um branco sujo ou amarellado no ventre. A raiz e a
face superior da cauda são trigueiras, os lados e a face inferior negros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
O potoru-rato habita a Nova-Galles do Sul e a terra de Van-Díemen.
É commum em Port-Jackson.
Citado por Brehm, Ohr. cit., vol. 2.o, pg. 44.
mamíferos em especial 449
Durante o cio o potoru excita-se extraordinariamente. O macho per-
segue a fêmea durante toda a noite, mordendo-a, batendo-lhe. Um dos
machos que possue o jardim zoológico de Hamburgo, diz Brehm, chegou
mesmo a matar uma fêmea e com ella um filho já bastante crescido que
andava na bolsa.
A COLIMA Ç AO
«Haveria, diz Brehm, indubitavelmente uma grande vantagem em
acclimar entre nós este animal curioso. N'um grande parque bem fechado
poderia crear-se um certo numero de indivíduos, que depois se poriam
em liberdade e se deixariam entregues a si mesmos. Assim, sem pre-
juízo, se creariam peças de uma caça sem duvida attrahente.
OS PHASCOLOMIOS
Os marsupiaes comprehendidos n'este género caracterisam-se perfei-
tamente pela dentição que é a dos roedores. Não teem com eíTeito senão
incisivos e mollares. Dos incisivos existe um par somente em cada ma-
xilla. São plantigrados e n'elles os membros anteriores e posteriores teem
a mesma extensão.
VOL. III
29
450 mSTORIA NATURAL
O TEIXUGO DA AUSTRÁLIA
Este animal é também conhecido pelo nome de rato de bolsa. É ne-
cessário porém advertir que nenhum dos nomes que lhe são dados ex-
prime uma semelhança real. Elle não se parece, com effeito, nem com
o teixugo, nem com o rato. Tem o typo dos roedores, é verdade, mas
dos roedores mais pezados e mais preguiçosos.
COSTUMES
Procura os logares arborisados e evita as pastagens descobertas.
Cava um buraco entre as hervas, tapeta-o cuidadosamente de folhas sec-
cas e ahi se junta com alguns companheiros para dormirem durante o
dia. O potoru-rato é com effeito um animal nocturno que não vagueia
senão depois do por do sol. O buraco ou poiso é disposto com habilidade
tal que escapa facilmente á vista do europeu, mesmo á curta distancia
de dois passos; só o olhar penetrante do indígena o descobre.
O potoru-rato é urti marsupial saltador; mas pulando diífere dos
outros saltadores, dos kangurus, por exemplo, porque em vez de esten-
der os membros posteriores ambos ao mesmo tempo, estende-os um de-
pois do outro. Esta circumstancia em nada prejudica n'este animal a ra-
pidez do salto que é prodigiosa.
Alimenta-se este marsupial principalmente de tubérculos, bolbos e
raizes que desenterra. Gomprehende-se por isto quanto será prejudicial
ás plantações onde chega a penetrar.
CAPTIVEIRO
Existe em quasi todos os jardins zoológicos da Europa. Gontenta-se
com uma alimentação muito simples e não reclama cuidados especiaes.
MAMÍFEROS EM ESPECIAL 451
Quando lhe não dão ou lhe não preparara uma habitação, elle próprio
cava um buraco que forra de feno e de folhas seccas.
Como animal nocturno, o potoru-rato não gosta que o perturbem
durante o dia, não gosta que o acordem; de noite, pelo contrario, mos-
Ira-se curioso, olhando attentamente quantos se lhe approximam. De
noite deixa-se acariciar, ao passo que de dia responde aos aífagos com
demonstrações de mao humor, chegando a morder.
Segundo alguns auctores, o potoru-rato seria um animal excessiva-
mente timido; segundo Brehm tal opinião é errónea, porque em quantos
viu e observou de perto notou uma coragem muito superior á dos maio-
res kangurus. O naturahsta citado aíTirma que os machos, principalmente,
são audaciosos e mãos; não temem o homem, antes o atacam impruden-
temente quando são por elle perseguidos. Os machos velhos são ainda
hostis para os novos, dos quaes não poucos succumbem aos mãos tratos.
É um marsupial curioso. Mede oitenta centímetros a um metro de
comprido e trinta centímetros de altura. Poucas vezes peza menos de
trinta kilogrammas; o péllo é espesso, molle, claro no ventre e castanho
passando ora ao amarellado ora ao pardo no dorso. As orelhas, largas e
pequenas, são de um trigueiro fuhginoso externamente e brancas por
dentro. Os dedos são de uma cor fuhginosa e os bigodes negros.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A terra de Van-Diemen e as costas meridionaes da Nova-Galles do
Sul são a pátria do marsupial que estamos descrevendo.
COSTUMES
O teixugo da Austrália vive nas florestas mais espessas onde cava
uma toca que lhe serve para dormir durante o dia. É um animal no-
cturno; e, como tal, só depois do pôr do sol é que a vida activa princi-
pia para elle, é só então que vagueia em procura de ahmentos. Estes
consistem em folhas, raizes que desenterra e em herva dura semelhante
ao junco e que cobre vastos espaços.
452 HISTORIA NATURAL
O teixugo da Austrália é um animal deselegante e de movimentos
vagarosos, embora seguros. índiíTerente e estúpido, raras vezes se per-
turba; percorre o seu caminho, sem que o faça parar qualquer obstá-
culo. Contam os indígenas que este marsupial nas excursões nocturnas
cáe ás vezes, rolando como uma pedra, ao rio cujas margens percorre,
mas que sem se perturbar prosegue a marcha no leito do rio, atlinge a
outra margem e continua como se nada lhe tivesse acontecido. Brehm diz
que nenhum animal o eguala em obstinação; o que uma vez emprehen-
deu, leval-o-ha a cabo, mao grado todos os obstáculos. Se tiver come-
çado uma toca, recomeçal-a-ha cem vezes com inalterável paciência, se
cem vezes lh'a obstruírem. Os colonos australianos dizem que este mar-
supial é pacifico e que de ordinário se deixa apanhar sem dar provas
de inquietação ou descontentamento, mas que, se se lembra de resistir,
se torna um adversário serio, fazendo mordeduras perigosas. Brehm con-
firma estas asserções, baseado sobre o que conhece dos costumes de um
individuo captivo no jardim zoológico de Hamburgo.
CAPTIVEIRO
Como quasi todos os animaes australianos, este supporta muito bem
a privação de liberdade. Quando o tratam e o ahmentam bem, parece
prosperar em captiveiro. Habitua-se ao homem até ao ponto de ser pos-
sível deixal-o percorrer livremente a casa. A indifferença nativa que o
caracterisa faz-lhe esquecer facilmente a escravidão e supportar sem re-
sistência o destino que o homem lhe impõe; nunca tenta fugir. Em Van-
Diemen é o companheiro habitual dos pescadores; roda em torno das
cabanas como um cão. No entanto não chega a ligar-se á nossa espécie
por laços Íntimos de affeição; o homem é para elle tão índiíTerente como
qualquer outro ser. O que ao teixugo da Austraha importa é ter ahmen-
tos em abundância; como o homem lh'os fornece, dá-se bem com elle
em captiveiro.
Na Europa alimenta-se o teixugo austrahano com hervas, raízes,
fructos e grãos; o leite é para este marsupial o alimento predilecto. É
preciso, observa Brehm, não lhe fornecer esta substancia em grande
quantidade por uma só vez, porque, se tal acontece, o animal procura
tomar banho dentro do vaso.
mamíferos em especial 453
O teixugo da Austrália lem-se reproduzido em captiveiro na Europa;
observou-se que a fêmea pare trez a quatro filhos e que cuida d'elles
com a máxima ternura em quanto contidos na bolsa marsupial.
agclimaçao
Tem-se tentado em França, e com bom resultado, ao que dizem,
acclimar o teixugo da Austrália.
usos E PRODUCTOS
A carne d'este marsupial é tida em conta de delicada na Austrália;
a pelle é também ahi aproveitada. Talvez que o paladar europeu não
julgue da mesma maneira que o indigena o sabor da carne.
No seguinte quadro schematico resumimos as divisões estudadas da
ordem dos marsupiaes:
45^
HISTORIA NATURAL
carnívoros
MARSUPIAES.
THYLACINO CYNOCEPHALO
O SAKCOPIIILO UR8INO
A DASyURA MALHADA
O TAPUI-TAFA
O ANTECHINO DE PATAS AMARELLAS
O MYRMECOBIO LISTRADO
A SARIGUEIA DA VIRGÍNIA
iO CANCRIVORO
'o ENEIANO
A SARIGUEIA LONTRINA
O PERAMELIDEO NASICO
O PERAMELIDEO RAIADO
O CHEROPO SEM CAUDA
O PETAURISTA-ESQUILO
O TAGUAN
O PEQUENO ACROBATA
A PHILANDRA DO ORIENTE
A PHILANDRA RAPOZEIRA
O COALA CINZENTO
herbívoros.
O KANGURU GIGANTE
O KANGURU-RATO
O POTORU-RATO
O TEIXUGO DA AUSTRÁLIA
-•-©so-«
OENITHORINCOS
CONSIDERAÇÕES GERAES
Estes mamíferos, bem como os echidnos de que adiante nos occu-
paremos, são animaes extremamente curiosos e singulares, cuja colloca-
ção laxonomica constituo ainda lioje um problema a que os naturalistas
dão diversíssimas soluções. Fazendo uma ordem aparte para os conter e
distínguindo-os profundamente dos echidnos, dístanceíamo-nos um pouco
da maioria dos auctores que costumam collocar uns e outros como duas
famílias de uma ordem única, a dos monotremos. Reservamos para de-
pois do estudo parcial dos ornithorincos e dos echidnos a justiflcação
do nosso procedimento, que consiste em fazer ordens onde muitos fazem
apenas famílias. É possível que o leitor não ache suíTicientemente pon-
derosas as razões que nos determinam no caso sujeito a aíTastarmo-nos
de Fíguier e de Brehm; nós lembramos no entanto que em pontos liti-
giosos de classificação é mais acceítavel dividir em nome mesmo de pe-
quenas dííferenças morphologícas do que agrupar em nome de seme-
lhanças muito geraes e diíTicílmente visíveis. Em obras da índole da
nossa, pelo menos, é o que se nos afflgura mais razoável. Talvez o ri-
gor scientiflco perca um pouco com este desmembramento, com esta di-
visão; o leitor porém, menos familiar ao estudo profundo da historia na-
tural, lucrará um pouco.
No entanto reservamos para mais tarde a discussão doeste ponto;
depois de estudados os ornithorincos e os echidnos, exporemos as opi-
niões existentes sobre o arranjo taxonomico, pleiteando então a nossa.
456 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
Os ornilhorincos lêem o corpo achatado, muito semelhante ao dos
castores e das lontras e os membros muito curtos, terminados por cinco
dedos reunidos por uma membrana palmar. As patas anteriores são
muito fortes, muito musculosas, próprias para nadar e para cavar; a
membrana que une os dedos é muito flexivel, muito extensível também
e pode dobrar-se para traz quando o animal cava. As patas posteriores
recurvam-se para traz e para fora como as das phocas e a membrana
palmar, mais estreita que nas patas anteriores, não excede a raiz das
unhas que são longas e aceradas. Nos individues velhos a face inferior
das patas é desnudada; nos novos, pelo contrario, é bem provida de
pêllos.
A cabepa tem uma conformação particularíssima. É pequena, acha-
tada e terminada por um largo bico de pato em cujo extremidade se
abrem as narinas. A membrana córnea que cobre os dois maxillares pro-
longa-se para traz formando uma espécie de escudo que cerca a base
do bico. Existem em cada maxilla quatro dentes córneos; na maxilla su-
perior o primeiro da frente é comprido, fino, agudo e o ultimo largo e
chato em forma de mollar. Os olhos, situados na parte superior da ca-
beça, são pequenos. Perto do angulo externo dos olhos abre-se o canal
auditivo. A lingua é carnuda, coberta de verrugas córneas; atraz apre-
senta uma dilatação que fecha completamente a parte posterior da bocca
no ponto em que esta cavidade communica com a pharynge.
O bico representa o papel de um verdadeiro philtro como nos patos;
permitte ao animal como que peneirar a agua, separar as partículas ah-
mentares e collocal-as n'umas espécies de depósitos que ficam situados
aos lados da cabeça e onde o animal arrecada o que encontra quando
mergulha.
O macho apresenta, além dos attributos que lhe são communs a elle
e á fêmea, um apparelho particular composto de uma glândula, de um
canal excretor e uma unha ou esporão.
Descrevamos.
A glândula encontra-se situada sob um musculo cuticular, na face
externa do fémur; é grande, triangular, convexa superiormente, lisa,
composta de diíTerentes lóbulos, revestida por uma membrana fina, mas
firme; é de uma cor acastanhada. Nasce d'ella um pequeno canal de pa-
redes espessas, largo ao principio, que desce por traz da coxa e da perna
mamíferos em especial 457
e que adelgaça para terminar n'um pequeno sacco situado na excavação
da pata. Este sacco, de quatro a cinco millimetros de diâmetro, é um
reservatório no qual se accumula o producto segregado. Da parte media
do sacco parte um outro canal muito pequeno e membranoso que commu-
nica com o órgão da inoculação, que não é mais do que um esporão,
grosso, cónico, ponteagudo, caniculado e preso ou ligado ao tarso. Com-
põe-se de uma lamina córnea e de um osso. O ourificio está no vértice
sobre a face convexa.
Segundo Varreaux, o esporão serviria para facilitar o acto sexual.
•oso-«
mamíferos em especial 459
ORMTHORINCOS EM ESPECIAL
A ordem dos ornithorincos comprehende um só género e este uma
espécie única.
O ORNITHORINCO PARADOXAL
É no dizer de Brebm e de Figuier o mais extraordinário dos mamí-
feros vivos. Bennett fez uma viagem á Austrália expressamente para o
observar. O que se sabia até ao tempo d'esta viagem era destituído de
precisão; os costumes conheciam-se mal, por informes vagos. Sabia-se
que o ornitborinco vivia na agua e que os indígenas o perseguiam com
ardor e lhe comiam a carne com prazer. A estes dados deficientes jun-
tavam-se phantasias, descripções fabulosas dos indígenas. Dizia-se, por
exemplo, que o ornitborinco punba ovos e os chocava como os patos;
fallava-se das propriedades venenosas do esporão.
A primeira viagem de Bennett realísou-se em 1832 e uma segunda
em 1838; o. resultado das observações feitas foi em 1860 consignado
em livro especial, publicado em Londres; é o que ha de melhor e de
mais completo a consultar. Brebm extrata d'ahi o que ha de mais impor-
tante e de mais apropriado para dar uma idéa do animal.
Os colonos dão ao ornilhorinco paradoxal o nome de toupeira da
agua.
4G0 HISTORIA NATURAL
CARACTERES
Mede meio metro, pouco mais ou menos, de extensão, incluída a
cauda que tem approximadamente quatorze centimetros. O macho é
maior que a fêmea.
É coberto de sedas espessas, grosseiras, de um castanho escuro
com reflexos de branco argênteo. Por baixo d'estas sedas ha um péllo
fino, pardo, semelhante ao da phoca. Os pêllos do peito e do ventre são
finos, sedosos, curtos, mas espessos. As sedas são sempre duras, largas
e lanciformes. O manto assim formado convém admiravelmente á vida do
animal.
A cor é variável; o dorso, por exemplo, é ora claro, ora escuro, o
que primitivamente fez pensar aos naturalistas n'uma multiphcidade de
espécies. As patas são de um castanho arruivado. A base do bico é de
um pardo escuro em toda a volta, apresentando numerosos pontos cla-
ros. A extremidade da maxilla superior é cor de carne ou ruiva des-
maiada; a da maxilla inferior é branca ou manchada.
Os animaes novos distinguem-se pelos bellos péllos finos e argên-
teos da face inferior da cauda e dos membros; pelo attrito, estes pêllos
caem e nos individues velhos já se não encontram.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHIGA
A área de dispersão do ornithorinco paradoxal é muito limitada,
restricta. Encontra-se apenas na costa oriental da Nova-IIollanda, nos ri-
beiros e nas aguas tranquillas da Nova-Galles do Sul e no interior das
terras. Muito commum em alguns d'estes pontos, elle é raro n'outros;
parece faltar a norte e a sul da Austraha.
mamíferos em especial 4G1
COSTUMES
Pela natureza da organisação que o caracterisa, o ornithorinco pa-
radoxal procura, sempre que ha logar para preferencias, as margens
dos pequenos cursos d'agua ou dos lagos em que crescem numerosas
plantas aquáticas e onde existe constantemente uma sombra projectada
por arvores copadas. É n'estes pontos que estabelece domicilio. A pri-
meira toca que viu Bennett era aberta sobre uma riba escarpada, em
meio das hervas e perto do nivel da agua. Essa toca era composta de
um corredor sinuoso de seis metros de extensão, approximadamente, e
de um vasto compartimento em que o corredor ia terminar. Plantas aquá-
ticas seccas tapetavam toda a toca.
De ordinário, cada toca offerece duas aberturas, uma superior e ou-
tra inferior ao nivel d'agua. A extensão do corredor ou corredores é de-
terminada pela necessidade de collocar o aposento principal fora do al-
cance das aguas; é por isso que ao lado de corredores de seis metros
apparecem outros de doze e mesmo de dezesete.
Os hábitos de vida do ornithorinco paradoxal teem mais de noctur-
nos que de diurnos; não obstante é impossível classificar o animal de
nocturno, por isso que muitas vezes procura alimentos durante o dia.
Quando a agua é límpida seguem-se com facihdade os movimentos
do ornithorinco, ora mergulhando ora emergindo para respirar. No en-
tanto é raro encontrar o animal n'estas condições; de ordinário procura
a agua turva, os legares próximos da margem e onde a vasa agitada,
toldando o liquido, o põe a coberto de observações perigosas. Parece
que o instincto o aconselha no sentido da reserva e da prudência.
A ahmentação principal do ornithorinco compõe-se de moUuscos e
de pequenos insectos aquáticos.
Acerca da reproducpão do ornithorinco existiam, antes das viagens
de Bennett, as mais disparatadas informações. Dizia-se muito a sério que
a fêmea punha ovos como fazem as aves; d'aqui a resistência justificada
dos naturahstas antigos a coUocarem o ornithorinco na classe dos mami-
feros. Bennett destruiu todas as fabulas: descobrindo mamas ao animal,
reconheceu desde logo que se tratava de um viviparo e procurou pa-
cientemente saber como a parturição se realisava e qual o modo por que
os filhos eram ahmentados. Esta ultima investigação não era, como á pri-
meira vista poderá parecer, ociosa, porque, embora o animal apresen-
tasse mamas, e d'ahi se devesse concluir que aleitava os filhos, não dei-
462 IIISTOIUA NATUBAL
xava de ser um problema saber o mocJo como esse aleitamento se fazia,
visto que as mamas eram desprovidas de mamillos e o naturalista inglez
não lograra extrair d'ellas qualquer quantidade de leite. Segundo as
observações de Bennett, de Varraux e d 'outros naturalistas dislinctos, o
parto realisa-se no ornithorinco de um modo perfeitamente análogo ao
de todos os mamíferos; os íilhos são expulsos vivos do útero materno.
Nunca ninguém viu um ornithorinco mamar, nem isso parece possivel
pela circumstancla de não existirem mamillos nas tetas. A crer nas in-
formações tidas como mais exactas, o aleitamento produzir-se-hia de um
modo inteiramente curioso e singularissimo : a fêmea, nadando, iria len-
tamente derramando o leite na agua e os filhos, seguindo-a de perto,
il-o-hiam sorvendo.
Das observações de Bennett resulta que o ornithorinco paradoxal
não pode viver muito tempo debaixo d'agua. Esta conclusão enuncia pre-
cisamente o contrario do que em outro tempo se acreditou geralmente.
O animal quando mergulha precisa de tomar pé; é por isso que intro-
duzindo o ornithorinco n'um meio túnel d'agua, elle morre. O ornitho-
rinco forçado a estar quinze minutos sob a agua, retira-se d'ella morto
ou quasi morto. Tudo isto prova que se não pode dar ao animal a desi-
gnação de aquático.
GAPTIVEIRO
Eis o que escreveu Bennett acerca de um ornithorinco que elle re-
duziu ao captiveiro: «No momento em que foi apanhado na toca, o medo
fez-lhe expulsar os excrementos que espalhavam em torno um cheiro dos
mais fétidos. Não fez ouvir um único som, nem mesmo procurou defen-
der-se; apenas me arranhou um pouco a mão no momento em que ten-
tou fugir. Era uma fêmea adulta; os pequenos olhos brilhavam-lhe, abria
e fechava alternativamente os ouvidos e pude observar que o coração
lhe batia precipitadamente. Pareceu habituar-se rapidamente á sua sorte,
com quanto ainda tentasse vagamente escapar. Eu não podia segurar este
ornithorinco pelo manto que era de pêllo muito molle. Metti-o dentro de
uma pipa cheia de vasa, de hervas e de agua. Tentou sair; vendo porém
que eram baldados todos os seus esforços n'este sentido, resignou-se,
ficou socegado, deitou-se e pareceu adormecer. Passou comtudo a noite
muito agitado, arranhando constantemente com as patas anteriores como
mamíferos em especial 463
se procurasse cavar uma toca. No dia seguinte, de manhã, vi-o profun-
damente adormecido, enrolado sobre si mesmo, com a cabeça encostada
contra o peito; quando o acordei, rosnou como um pequeno cão. Passou
o dia inteiro tranquillamente; á noite porém, fez tentativas para evadir-se
e rosnou sem cessar. Os europeus meus visinhos, que muitas vezes ti-
nham visto o ornithorinco morto estavam agora encantados de ver um
exemplar vivo. Era esta, creio eu, a primeira vez que um europeu to-
mara posse de ornithorinco e observara uma toca.
«Quando parti, colloquei o animal n'uma gaiola pequena com hervas
e levei-o comigo. Para distrail-o, prendi-lhe a uma pata uma correia
comprida e colloquei-o perto da agua. Penetrou desde logo no liquido,
nadando contra a corrente e procurando os legares em que mais abun-
davam as plantas aquáticas. Depois de ter nadado sufficientemente, vol-
tou á margem, deitou-se na herva e principiou a catar-se e a alisar o
pêllo com verdadeira voluptuosidade. Servia-se para isso das patas pos-
teriores, dobrando o corpo com flexibilidade extraordinária. Tudo isto
durou pouco mais ou menos uma hora. Depois d'este trabalho de aceio,
o ornithorinco parecia mais bello e mais brilhante do que antes. Dei-
xou-se então acariciar por mim.
«Alguns dias depois, fll-o tomar um segundo banho, mas d'esta vez
em agua limpida, onde podia seguir-lhe os movimentos. Mergulhou até
ao fundo da agua, demorou-se ahi alguns instantes e voltou á superfície.
Nadava ao longo das margens e servia-se do bico como de um órgão
delicadíssimo de tacto. Parecia encontrar com que nutrir-se, porque, de
cada vez que retirava o bico da agua, principiava a mover as maxillas
lateralmente como quando come. Não perseguiu os insectos que se agi-
tavam em torno d'elle, ou porque não os via, ou porque dava a preferen-
cia aos aUmentos que ia encontrando. Depois de comer, deitou-se na
herva que cobria a margem, com o corpo meio dentro, meio fora da
agua; catou-se e ahsou, como da primeira vez, o péllo. Voltou á prisão
forçado e com um visivel desprazer, não socegando um momento. Toda
a noite o ouvi arranhando a gaiola, que de manhã fui encontrar vasia.
O ornithorinco tinha consiguido destacar uma taboa e evadir-se. Tor-
nou-se assim impossível toda a observação ulterior.
O mesmo naturahsta, referindo-se a uns pequenos ornithorincos
que apanhou, continua: «Deixava-os livremente correr no meu quarto,
sem inconveniente. A minha pequena famiha de ornithorincos viveu al-
gum tempo e eu pude observar bem os seus costumes. Muitas vezes pa-
reciam sonhar que andavam nadando e moviam os membros anteriores
de um modo apropriado. Se os collocava no chão durante o dia, procu-
ravam um logar escuro para se deitarem e dormirem; preferiam no en-
tanto o logar onde habitualmente estavam. Outras vezes abandonavam
464 HISTORIA NATURAL
por capricho a antiga cama c iam cleitar-sc n'oulro logar escuro. Quando
estavam profundamente adormecidos, era possivel tocal-os sem que des-
pertassem.
«Á tarde os meus dois ornithorincos favoritos comiam a sua sopa e
principiavam a brincar como cães, attacando-se com o bico, erguendo
as patas posteriores, trepando um pelo outro, etc. Se um d'elles caia,
em vez de se erguer e de continuar o combate, deixava-se ficar tran-
quillamente deitado, coçando-se, cm quanto o companheiro esperava pa-
cientemente que elle recomeçasse a brincar. Eram muito vivos; os pe-
quenos olhos brilhavam-lhes e as orelhas abriam-se e fechavam-se alter-
nativamente e rapidamente. Não gostavam que se lhes deitasse a mão.
«Os olhos, por isso que se achavam collocados muito superiormente,
não podiam ver para diante e acontecia que os animaes batiam muitas
vezes de encontro aos objectos e os deitavam por terra. Baixavam repe-
tidamente a cabeça para verem o que em volta d'elles se passava. Ás
vezes brincavam comigo; eu acariciava-os, fazia-lhes cócegas e elles da-
vam pronunciados signaes de contentamento. Mordiam-me brandamente
os dedos e comportavam-se exactamente como pequenos cães. Quando
tinham o pêllo húmido, aUsavam-o, penteavam-o, como os patos fazem
ás pennas. Tornavam-se então mais bellos e mais brilhantes. Se os col-
locava n'um vaso profundo, cheio d'agua, procuravam rapidamente sair
d'elle; mas se a agua era pouco alta e no vaso havia hervas, então dei-
xavam-se ficar, parecendo estarem muito á vontade. Recomeçavam a
brincar na agua; quando se cançavam, deitavam-se sobre a herva e
anediavam-se. Uma vez hmpos e aceiados, corriam um pouco pelo
quarto e chegavam por, fim ao logar em que habitualmente dormiam.
Raras vezes se conservavam mais de dez a quinze minutos na agua.
Durante a noite faziam-se constantemente ouvir, parecendo que brinca-
vam; de manhã encontravam-se sempre tranquillamente adormecidos.
«Estive tentado, ao principio, a consideral-os animaes nocturnos;
convenci-me porém rapidamente da inexactidão d'este modo de ver, por
isso que os ornithorincos repousavam tanto de dia como de noite e a ho-
ras muito differentes. Ao pôr do sol pareciam mais vivos, mais dispos-
tos ao movimento; e isto acontecia tanto com os novos como com os ve-
lhos animaes. Mas também é certo que velavam ou dormiam de dia ou de
noite, indififerentemente. Muitas vezes dormia um em quanto o outro cor-
ria; o macho era ás vezes o primeiro a abandonar o ninho, ficando a
fêmea a dormir, vindo deitar-se, depois de fatigado de correrias, no mo-
mento em que a fêmea despertava para sair. Algumas vezes também
despertavam simultaneamente. Uma tarde em que os dois andavam cor-
rendo, a fêmea soltou um grito, como para chamar a attenção do com-
panheiro, que se escondera n'um canto qualquer; respondeu-lhe um
mamíferos em especial 465
grito semelhante e a fêmea correu immediatamente ao logar d'on(le ello
partia.» * Para treparem, os ornithorincos encostam o dorso contra uma
parede e as patas contra um objecto próximo, subindo então rapidamente,
graças aos vigorosos músculos dorsaes e ás unhas agudas.
AGGLIMAÇAO
Em captiveiro os ornithorincos alimentam-se facilmente. Bennett dava
aos que possuiu pão humedecido em agua, ovos e carne.
Teem sido até hoje infructiferas todas as tentativas feitas no sentido
de conservar vivos na Europa alguns ornithorincos. Retirados do paiz
natal, definham, perdem o brilho do péllo, adoecem e dentro de pouco
tempo morrem.
usos E PRODUGTOS
A carne do ornithorinco serve de ahmento na Austrália. O paladar
de um europeu diíTicilmente se lhe habituaria, porque a impregna um
forte e penetrante cheiro de secreção oleosa. Como justamente observa
Brehm, os australianos comem toda a ordem de alimentos, desde os mais
delicados até aos mais repugnantes; não causa por isso estranheza que
os satisfaça a carne do ornithorinco paradoxal.
-•-c@o-«
Citado por Brehm, Ohr. cif., vol. 2.», pg. 292.
. IIT oO
-a^-<^(§>>^-
ECHIDNOS
CONSIDERAÇÕES GERAES
A propósito da formação de uma ordem para conter os echidnos que
muitos naturalistas consideram ao lado dos ornithorincos como uma sim-
ples família dos monotremos, relembramos ao leitor as observações fei-
tas nas paginas precedentes. Ahi dissemos e n'este logar repetimos que
reservamos para depois do estudo parcial de cada um dos grupos a jus-
tificação do nosso procedimento.
CARACTERES
Os echidnos teem o corpo pezado, refeito, um tanto achatado, o
pescoço curto continuando-se insensivelmente com a cabeça e com o
tronco, a cabeça alongada, relativamente pequena e terminada por uma
espécie de bico fino, alongado, cyliridrico e em cuja extremidade se en-
contra um ourificio boccal muito pequeno e estreito. A maxilla superior
excede um pouco nos echidnos a inferior; as narinas são pequenas e
468 HISTORIA NATURAL
ovaes. A pelle nua que reveste as narinas é tenra e gosa de uma certa
mobilidade.
Os olhos são pequenos, encovados, lateraes e munidos de uma
membrana subjacente ás pálpebras e análoga á das aves. O ouvido não
apresenta pavilhão exterior, nem mesmo rudimentar. O canal auditivo
externo abre-se na parte posterior da cabeça; é largo internamente, mas
a abertura de entrada reduz-se a uma fenda em forma de S, coberta por
uma prega cutânea que o animal abre e fecha quando quer.
O tronco é superiormente coberto de picos. Os membros são curtos,
fortes, espessos e todos da mesma extensão; os posteriores são forte-
mente recurvos para fora e para traz e os exteriores rectos. Todas as
patas teem cinco dedos, de pouca mobihdade, ligados por pelle até á
origem das unhas, que são próprias para cavar e portanto muito com-
pridas e muito fortes, principalmente as das patas posteriores. No macho
as patas de traz apresentam um esporão córneo de um centímetro de
comprido, pouco mais ou menos, forte, ponteagudo, tendo um ourificio
e communicando com uma glândula particular, do volume approximado
de um grão de hervilha. Este esporão, considerado como uma arma de-
fensiva do animal, tem sido injustificadamente comparado ao dente vene-
noso das serpentes.
A cauda dos echidnos é perfeitamente rudimentar e apenas se re-
conhece pela forma e disposição dos picos. A lingua, coberta à raiz de
verrugas espinhosas, ponteagudas, dirigidas para traz, pode sair seis
a oito centímetros fora das maxillas; é coberta de um inducto viscoso
segregado por glândulas salivares volumosas e que é de uma grande
utilidade aos animaes d'este grupo para apanharem e reterem as sub-
stancias alimentares. A abobada palatina apresenta sete ordens trans-
versaes de pequenas escamas córneas, duras, ponteagudas, dirigidas
para traz, correspondendo ás papilas linguaes e substituindo dentes. As
glândulas mamarias apresentam cerca de seiscentos canaes excretores.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA
Habitam o continente australiano.
mamíferos em especial 469
COSTUMES
Visto a ordem conter um género só e uma só espécie, fallaremos
d'este ponto na especialidade.
USOS E PRODUCTOS
Por motivo idêntico ao que acima produzimos, reservamo-nos para
fallar doeste ponto quando tratarmos da única espécie da ordem em
questão.
—-CxSO-»-
mamíferos em especial 471
ECHIDNOS EM ESPECIAL
A ordem comprehende um só género e esta uma espécie única.
O ECHIDNO ESPINHOSO
A este animal foi primitivamente dado o nome de formigueiro espi-
nhoso, que era em verdade muito significativo, mas que oíferecia o in-
conveniente fundamental de permittir a confusão d'este mamífero com
os formigueiros. Os colonos da Austrália denominam-o um pouco impro-
priamente ouriço, attendendo ao manto erriçado de espinhos agudos e
perfurantes.
caracteres
O echidno espinhoso adulto mede approximadamente meio metro da
extensão e dezeseis centímetros de altura; a cauda tem, quando muito,
quatorze millimetros. Os dois sexos diíTerem apenas pelo esporão, cuja
presença é exclusiva ao macho. Os indivíduos novos distinguem-se dos
que o não são pela existência de picos mais curtos.
47â IlISTOUIA NATURAL
Os picos cobrem toda a parte superior do corpo, a partir do occi-
pital; são muito espessos e pouco mais ou menos de egual comprimento
até ás nádegas. N'este ponto separam-se e formam dois feixes entre os
quaes se encontra a cauda. Os do dorso são um pouco mais curtos que
os dos lados do tronco. Uns e outros, não excedendo trez a seis cenli-
metros de comprido, são cercados na raiz por péllos curtos, de quinze
millimetros de extensão e que se não vêem senão afastando os picos.
Taes pêllos existem apenas na cabeça, nos membros e no ventre; são
rijos, sedosos e de um castanho escuro. Os picos são brancos amarella-
dos, de ponta negra. A pupila é negra, a iris azul e a lingua de um ver-
melho vivo.
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPIIIGA
O echidno espinhoso habita todo o continente australiano.
COSTUMES
Habita mais as montanhas do que as planícies; prefere as florestas
seccas onde cava tocas por entre as raizes das arvores. Subindo nas
montanhas, attinge uma altura de mil metros acima do nivel do mar.
O echidno espinhoso é um animal de hábitos nocturnos; como tal,
occulta-se durante todo o dia e só depois do sol posto vagueia em pro-
cura de alimentos. Marcha muito vagarosamente e baixando sempre a
cabeça até junto do solo. Quando cava, o que, segundo Brehm, faz ma-
ravilhosamente, os seus movimentos são vivos e muito rápidos. Trabalha
simultaneamente com as quatro patas e desapparece n'um momento de-
baixo da terra.
Na obscuridade é difficil vêr o echidno, porque a cor geral d'este
mamífero confunde-se com a do solo.
O echidno espinhoso não cava somente para fazer tocas^ mas ainda
para encontrar alimentos; examina cuidadosamente cada fenda, cada bu-
raco e desde que vô ou fareja qualquer substancia que lhe sirva para
comer, cava para alargar o ouriflcio e apanhar essa substancia. O ali-
mento principal do mamífero que estamos estudando, consiste era vermes
mamíferos em especial 473
e em insectos, especialmente formigas e termes. Procura-os com a ex-
tremidade do focinho ou bico que é muito sensivel e que parece mais
um órgão de tacto que de olfação. Para apaniiar os insectos de que se
alimenta, faz como os formigueiros : estende a lingua e recolhe-a preci-
pitadamente desde que a ella adherem os animalculos, presos na visco-
sidade do órgão. Gomo os formigueiros, elle ingere também areia e pe-
quenos fragmentos de madeira secca; no estômago encontrara-se-lhe
sempre estas substancias.
O echidno espinhoso, sentindo-se perseguido, enrola-se, como o ou-
riço cacheiro, e torna-se então diííicil apanhal-o, porque os picos são
muito acerados, agudissimos. N'estas condições, o melhor modo de o
apanhar é segural-o pelas patas posteriores. Quando o animal se tem re-
colhido a uma toca ou buraco de alguns centímetros apenas de profun-
didade, é diíTicillimo tiral-o para fora, porque, á maneira dos tatus, elle
agarra-se com as fortes unhas ás paredes e applica contra ellas os pi-
cos. O animal faz o mesmo em relação a todas as cavidades pequenas.
Diz Bennett: «Deram-me um dia um echidno. Metti-o dentro de uma caixa
de herborisação para melhor podel-o transportar; chegando porém a
casa, vi que elle adherira ao fundo da caixa como um caracol a uma pe-
dra. Não se via mais que um montão de picos de tal modo acerados que
era impossível alguém tocal-os sem se ferir. Eu não podia destacal-o da
caixa; foi-me preciso introduzir-lhe lentamente uma espátula debaixo do
corpo e levantal-a depois com força. O echidno podeter-se na mão que
é perfeitamente inoíTensivo.» *
Os indígenas acreditam que o macho fere os inimigos com o esporão
e lança na ferida um hquido venenoso; as observações dos naturalistas
provaram que era absolutamente falsa uma tal asserção. O echidno de-
fende-se como o ouriço cacheiro, enrolando-se em esphera ou, se tem
tempo para isso, cavando na terra uma toca em que se occulta. No en-
tanto é frequentemente victima do thylacino que o devora, mesmo com
os picos.
Quando inquieto, o echidno faz ouvir um ligeiro grunhido.
De todos os sentidos d'este mamífero os mais desenvolvidos são a
vista e o ouvido; todos os outros são obtusos. A intelhgencia é rudi-
mentar.
Sabe-se muito pouco relativamente á reproducção. A fêmea dá á
luz em Dezembro alguns filhos que aleita durante muito tempo.
Os naturalistas, com quanto o não aíTirmem seguramente, sentem-se
todavia dispostos a crer que o echidno espinhoso tem um somno hyber-
* Citado por Brehm, Loc. ciL, vol. 2.», pg. 286.
474 HISTORIA NATURAL
nal. Fundam-se para dar este facto como provável em que raras vezes
se encontra o animal durante os mezes de seccura e em que quando a
temperatura abaixa, ainda mesmo ligeiramente, elle cáe n'uma espécie
de lethargia.
CAPTIVEIRO
o que sabemos da vida do echidno captivo é principalmente devido
a Garnot, Quoy e Gaimard. Estes últimos observadores possuíam um ma-
cho vivo em Hobarttown. Parecia insensível e estúpido. Conservava-se
todo o dia occulto, com a cabeça entre as patas, com os picos erriçados,
embora não enrolado, e procurava os logares obscuros. Os esforços que
fazia para sair da gaiola em que o haviam collocado, demonstravam o
seu amor pela liberdade. Quando o depunham n'uma caixa cheia de
terra, cavava, servindo-se das patas e do focinho, e dentro em dois mi-
nutos, ou ainda em menos tempo, escondia-se inteiramente. Mais tarde
principiou a lamber os alimentos que lhe davam e acabou por comer
uma espécie de pasta semi-liquida, feita com agua, farinha e assucar.
Morreu em consequência de um banho excessivamente prolongado.
Garnot comprou um echidno em Port-Jakson a um homem que lhe
aíTirmou tel-o alimentado durante dois dias somente com vegetaes e que
lhe affirmou que o animal comia em Uberdade pequenos ratos, etc. Fun-
dado n'estes dados, Garnot fechou o echidno dentro de uma caixa com
terra e deu-lhe legumes, sopa, carne fresca e moscas; o animal porém
não tocou em nenhuma d'estas substancias. Limitava-se a beber agua
com extraordinária avidez; viveu assim, aíTirma Brehm, durante trez me-
zes, até ser transportado a Mauricia. Ahi deram-lhe formigas e minhocas,
que se recusou também a comer; parecia gostar muito do leite de coco.
Esperava-se trazel-o á Europa, mas foi encontrado morto trez dias antes
da partida.
Este curioso mamífero dormia não menos de vinte horas por dia;
no outro tempo, de resto bem diminuto, vagueiava. Quando, cami-
nhando, encontrava qualquer obstáculo, procurava aíTastal-o e não se
desviava senão depois de perfeitamente convencido da inutilidade de to-
dos os seus esforços.
No quarto em que dormia, escolhera um canto para depositar n'ene
os excrementos; um outro canto, do lado mais escuro, era occupado por
uma caixa onde elle repousava. Muitas vezes parecia impôr-se uns de-
terminados hmites, caminhando por aqui e por além sem nunca os ultra-
mamíferos em especial 475
passar. Caminhava com a cabeça baixa; c embora a marcha parecesse
penosa, é certo que percorria doze a quatorze metros por minuto. O na-
riz duro e movei parecia servir-lhe de guia.
Para escutar abria os ouvidos. Era aífeiçoado a caricias, mas muito
timido; ao mais hgeiro ruido enrolava-se n'uma bola, como fazem os ouri-
ços caclieiros. Quando perto d'elle se punha um pé no sobrado, só pas-
sado muito tempo depois de dissipado o ruido assim feito é que come-
çava a desenrolar-se.
Um certo dia deixou de passeiar; Garnot foi buscal-o ao canto em
que costumava deitar-se e sacudiu-o. Movia-se tão pouco, tão lentamente
que parecia moribundo; Garnot collocou-o ao sol e friccionou-lhe o ven-
tre com um panno quente, retomando o echidno rapidamente a antiga
alegria. Mais tarde conservou-se quarenta e oito horas, depois setenta e
duas e por fim oitenta sem se mover; mas ninguém lhe perturbou o
somno. Só se tornava verdadeiramente activo quando acordava esponta-
neamente; se o despertavam, recaía na somnolencia primitiva. Ás vezes
vagueiava de noite, mas tão silenciosamente que ninguém o perceberia
se não acontecesse, como acontecia, de vir bater de encontro ás pernas
do dono.
O echidno quando novo alimenta-se perfeitamente com leite; cres-
cendo porém, e desde que os picos principiam a apparecer, reclama ou-
tro género de alimentação. É preciso então deixal-o ir de quando em
quando até um formigueiro ou dar-lhe branco do ovo coagulado com
uma certa quantidade de areia addiccionada.
É provável, diz Brehm, que ainda vejamos um dia o echidno espi-
nhoso na Europa, por isso que os mamíferos de somno hybernal suppor-
tam bem as longas viagens.
usos E PRODUCTOS
Os australianos assam o echidno com a pelle, como fazem os bohe-
mios ao ouriço, e comem-o; os colonos europeus aíTirmam que, assim
preparado, é um prato excellente. É esta a única utilidade conhecida do
echidno espinhoso.
476 HISTORIA NATURAL
Alguns naturalistas teem admittido ainda uma outra espécie, o echi-
d7\o sedoso. No entanto os modernos observadores não reconhecem tal
espécie, limitando-se a fazer d'esse grupo uma simples variedade.
Os ornithorincos e echidnos que acabamos de estudar, são, como o
leitor viu, singulares animaes cuja coUocação taxonomica na vasta escala
zoológica tem sido e é ainda hoje objecto de controvérsias entre os
observadores e naturahstas mais distinctos. A razão d'estas controvér-
sias, a plena justificação d'ellas encontra-as facilmente quem leu os ca-
racteres morphologicos e os hábitos de vida de uns e outros d'estes ma-
míferos. Elles foram com effeito alternativamente incluídos nas ordens
dos desdentados e dos marsupiaes e posteriormente relacionados sob a
designação commum de monotremos ou ornithodelphos.
Nós, reconhecendo inteiramente a existência de caracteres communs
aos ornithorincos e echidnos, separamol-os em ordens em vez de fazer-
mos d'elles simples famílias de uma ordem única, porque nos pareceu
que sob o ponto de vista da vulgarisação, que é o nosso, os caracteres
morphologicos e dynamicos que os distinguem são porventura mais nu-
merosos e mais facilmente reconhecíveis que aquelles que os asseme-
lham. Com effeito, ao lado de quahdades que tendem a collocar ornitho-
rincos e echidnos n'uma única ordem, quahdades que abaixo estudamos,
ha outras, senão mais importantes, pelo menos mais apreciáveis, mais
visíveis que tendem, pelo contrario, a separal-os. N'este ultimo caso es-
tão, por exemplo, a natureza do manto, a forma do bico, o aspecto ge-
ral do corpo, o modo de aleitamento, a natureza do terreno habitado e
ainda e sobretudo o género de vida. É o que já vimos. O manto dos or-
nithorincos é de um pêllo sedoso, o dos echidnos de picos agudos, pe-
netrantes, como o dos ouriços; o bico dos ornithorincos é largo e acha-
tado, como o dos patos, o dos echidnos estreito e arredondado; o aspe-
cto dos ornithorincos é de patos a que alguém tivesse tirado as pennas
para as substituir por péllos e tivesse collocado quatro membros em vez
de dois; o aspecto dos echidnos é o de ouriços cacheiros, com que á
primeira vista se seria tentado a confundil-os; o modo por que os orni-
thorincos aleitam os filhos é verdadeiramente excepcional na classe dos
mamíferos, o que se não dá com os echidnos; os ornithorincos procuram
de preferencia os logares húmidos, a vasa, as visinhanças dos cursos
d'agua, ao passo que os echidnos buscam os terrenos seccos, os logares
altos, as florestas nas montanhas; finalmente uns, .os ornithorincos, teem
mamíferos em especial 477
hábitos aquáticos e alimentam-se principalmente de vermes e molluscos,
em quanto que os outros, os ecliidnos, lêem hábitos de vida subterrâ-
nea e preferem a toda a alimentação as formigas e os termes. Estes ca-
racteres distinctivos, numerosos e importantes, pesaram sobre o nosso
espirito, sollicitando-nos no sentido de formarmos duas ordens distinclas
onde outros vêem apenas famihas de uma ordem única. N'um ponto em
que se não chegou ainda a uma conclusão definitiva e em que se deba-
tem opiniões, ninguém estranhará a apparição de uma outra, distincla
das existentes, parta ella d'onde partir, seja qual for, auctorisada ou
obscura, a sua origem. Demais, não esqueça o leitor que, tendo em toda
a conta o rigor scientifico, nos propomos sobretudo vulgarisar. Dada a
unanimidade de convicções dos naturalistas sobre os legares dos orni-
thorincos e echidnos, ao auctor d'este despretencioso trabalho restava
somente seguir o que estava decidido, acatar o que se resolveu no su-
premo tribunal da sciencia, onde os juizes são — os grandes observado-
res e as provas — os documentos vivos, a própria natureza. Não exis-
tindo porém uma tal unanimidade, o auctor não tinha decisões a acatar
e julgou-se auctorisado pelas razões acima expostas a dividir em duas
ordens os ornithorincos e echidnos.
Como este não seja porém o modo de ver de muitos naturaHstas
que, em vez de separarem, approximam os mamíferos em questão, para
que o leitor avahe por si qual a opinião mais justa, sentimo-nos obriga-
dos a estabelecer os caracteres da ordem dos monotremos ou, como dizia
Blainville, dos ornithodeljphos, em que Figuier e Brehm agrupam orni-
thorincos e echidnos.
OS MONOTREMOS OU ORNITHODELPHOS
Brehm antes de apresentar os caracteres d'esta ordem, explica a
diííiculdade em que se teem visto os naturahstas para chegar a determi-
nal-a. As palavras com que o faz, envolvendo uma nota justíssima sobre
a fauna australiana, merecem ser transcriptas : «Os monotremos repre-
sentam a Austraha no que ella tem de mais singular e independente. A
descoberta da America alargou consideravelmente o quadro da zoologia;
mas nunca os naturahstas se viram em difficuldade para classificar sys-
478 mSTDlUA NATURAL
tematicamente os animaes d'esta parte do mundo, por isso que as suas
formas se não affastavam das que caraclerisam os do antigo continente.
Não acontece o mesmo relativamente á Austrália. Os marsupiaes já nos
forneceram uma prova do que aífirmamos e comtudo não são elles ainda
assim os seres mais estranhos d'estas regiões.» * O auclor tinha em
vista n'estas ultimas palavras referir-se aos monotremos, por isso que
em seguida cita as palavras seguintes de Giebel: «Entre os animaes
extraordinários, são os monotremos os mais singulares; todas as irregu-
laridades que encontramos nos desdentados vamos vél-as de novo n'esses
mamíferos, mas n'um grão muito mais alto.»
Brelim continua ainda: «Quando se lança a vista sobre um ornitho-
rinco ou sobre um echidno, pergunta-se desde logo e naturalmente a que
classe pertencerão; não é pois de admirar que as primeiras pelles im-
portadas para a Inglaterra fossem attribuidas á phantasia de um char-
latão. Appareciam pelles de toupeira com bicos de patos e só com diííi-
culdade e com repugnância é que se tornou possivel admittir a idéa de
que taes seres existiam realmente.» ^
Os monotremos teem dos caracteres exteriores de mamíferos apenas
a pelle ou o manto; nas restantes propriedades morphòlogicas externas
separam-se inteiramente de todos os outros representantes da grande
classe. Um bico córneo substitue n'elles a bocca, e os órgãos genito-uri-
narios vão dar a ura ourificio único, uma cloaca, como nas aves. Por
esse ouriíicio commum se evacuam a urina, os excrementos e os produ-
ctos de gerapão. O nome de monotremos dado aos ornithorincos e echi-
dnos por E. Geoffroy Saint-Hillaire exprime esta particularidade de orga-
nisapão, porque, derivado de dois vocábulos gregos, significa um buraco
único. Esta disposição encontra-se também em alguns reptis.
Os monotremos assemelham-se aos marsupiaes na conformação dos
ossos da bacia; mas não teem como estes a bolsa marsupial, nem tra-
zem comsigo os filhos. Não podem pois considerar-se uma ramificação
dos marsupiaes, como alguns auctores teem pretendido. Dos desdentados
approximam-se pelo caracter negativo da ausência dos dentes.
Figuier escreve também a propósito dos monotremos : «Não existem
nos seres organisados as divisões nitidamente estabelecidas que os na-
turalistas imaginaram para facilitar os estudos. Na creação tudo se en-
cadea, tudo se hga. Os seres passam insensivelmente, sem hiatos, da
organisação mais simples á mais complicada, da mais grosseira á mais
delicada. A natureza faz as transições com uma arte infinita; suavisa por
1 Brehm, Obr. cit., vol. 2.°, pg. 283.
2 Brehm, Obr, cit., vol. 2.o, pg. 284.
mamíferos em especial 479
cambiantes intermediarias, o que poderia haver de duro na opposição
de caracteres muito differentes.
«Encontramos nos monotremos uma eloquente confirmação d'estas
idéas. Elles teem simultaneamente alguma coisa dos mamíferos, das
aves e dos reptis.» * E com efleito elles possuem das aves e dos reptis
a cloaca^ como dissemos atraz, tendo dos mamíferos os caracteres mais
essenciaes. Approximam-se ainda, como também já dissemos, dos des-
dentados, e das aves possuem o bico. Dos reptis tem ainda um caracter
importante — a clavícula dupla.
Pelo que acabamos de transcrever e de expor, avaliará quem ler se
é conveniente admittir uma ordem — a dos monotremos — com duas fa-
mílias, ornithorincos e echidnos, ou se, como pensamos, será mais ra-
zoável fazer duas ordens distinctas, embora a cada uma d'ellas fique
pertencendo apenas um género só e uma só espécie.
FIM DO terceiro VOLUME
L. Figaier, Obr, cit., pg. 9.
índice do terceiro volume
mamíferos
RUMINANTES EM ESPECIAL
(Continuação)
Pag.
OS MoscHos — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti-
veiro — Usos e Productos 1-7
o ALMiscARKiRo — Considcrações históricas — Caracteres — Distribuição geo-
graphica — Costumes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . 7-10
o MoscHo MENOR OU MÍNIMO — Caractcrcs — Distribuição geographica — Cos-
tumes— Captiveir^i — Usos e Productos 11-12
os VEADOS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti-
veiro— Usos e Productos 13-15
os ALCES — Caracteres geraes 15-lG
o ALCE MAIOR — Caractcrcs — Distribuição geographica — Costumes — Ini-
migos — Captiveiro — Usos e Productos 16-19
o ALCE ORIGINAL — Caractcrcs — Costumes — Distribuição geographica —
Caça — Captiveiro — Usos e Productos 20-22
os RANGiFERos — Distribuição geographica 22
VOL, III 31
482 índice
Pag.
o RANGiFERO DA AMERICA — Caractcros 23
o RANGiFERo DA EUROPA — CaracterGS — Distribuição geographiea — Costu-
mes — Caça — Inimigos — Captiveiro — Usos c Productos . . . 23-31
os GAMOS — Caracteres gcraes 31
o GAMO — Caracteres — Distribuição geographiea — Costumes — Caça —
Captiveiro — Usos e Productos -. 32-3á
os VEADOS PROPRIAMENTE DITOS — Caractcrcs geraes 35
o VEADO ORDINÁRIO — Caracteres — Distribuição geographiea — Costumes —
Inimigos — Caça — Captiveiro — Doenças — Usos e Productos . . 35-39
o VEADO DA BARBARIA — Carsctercs — Distribuição geographiea ... 40
o VEADO DE BENGALA — Caracteres — Distribuição geographiea . . . 40-41
o VEADO AMERICANO — Caractcrcs — Distribuição geographiea ... 41
os zoRLiTos — Caracteres — Distribuição geographiea 41-42
o zoRLiTo coMMUM — Caractcrcs — Distribuição geographiea — Costumes —
Caça — Inimigos — Captij^eiro — Usos e Productos 42-46
AS GIRAFAS — Caractcrcs geraes 47
A GIRAFA AFRICANA — Caractcrcs — Distribuição geographiea — Costumes —
Captiveiro — Usos e Productos 47-51
AS ANTÍLOPES — Caracteres — Distribuição geographiea — Costumes — Ca-
ptiveiro — Usos e Productos . 51-53
A cERvicABRA — Distribuição geographiea — Costumes — Caça — Captiveiro
— Usos e Productos - . . . 54-56
A SAíGA — Caracteres — Distribuição geographiea — Costumes — Inimigos
— Caça — Captiveiro 57-59
A cERvicABRA DE PATAS NEGRAS — Caractcrcs — Distribuiçâo geographiea —
Costumes . • 59-60
AS GAZELLAs — Caractercs geraes 60-61
A GAZELLA — Caractcres — Costumes — Distribuiçâo geographiea — Caça
Inimigos — Captiveiro 61-66
AS cAMURÇAs — Caractercs geraes 66
índice 483
Pag.
A CAMURÇA DA EUROPA — CaracterGS — Distribuição geograpliica — Costu-
mes — Inimigos — Caça — Captiveiro — Usos e Productos . . . 66-74:
A coNDOMA — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça
— Captiveiro — Usos e Productos . . ' 74-77
A antílope negra — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes . 77-78
AS antílopes oryx — Caracteres geraes 78
A antílope leucory — Caracteres — Costumes — Caça — Captiveiro —
Usos e Productos — Distribuição geographica 78-81
o NYLGÓ — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça —
Captiveiro. , . . 81-83
o GNou — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça —
Captiveiro — Usos e Productos 83-86
AS CABRAS — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Usos e
Productos . . . . • 86-88
o BODEQuiM DOS ALPES — Caractcres — Distribuição geographica — Costu-
mes — Inimigos — Caça — Captiveiro 88-93
o BODEQUIM DA HESPANHA — Caractcres . 94
AS CABRAS PROPRIAMENTE DITAS — Caiactcres goraos 94
A CABRA SYLVESTRE — Caractcrcs — Distribuição geographica — Costumes
— Caça 94-97
A CABRA ANÃ — Caractores — Distribuição geographica — Costumes . . 97-98
A CABRA DE ANGORA — Caractcros — Distribuição geographica — Costumes
— Usos e Productos — Acclimaçâo 98-101
A CABRA cACHEMiRA ■ — Caractcros — Distribuição geographica — Usoa e Pro-
ductos — Acclimataçâo 101-103
A CABRA DA THELAiDA — Caractercs — Distribuição geographica — Captiveiro 103-104
A CABRA DOMESTICA OU VULGAR — Caractores — Distribuição geographica —
Costumes — Usos e Productos 101-107
os CARNEIROS -— CaractorGS — Distribuiçno geographica — Costumes — Ca-
ptiveiro — Usos e Productos lOS-110
484 índice
Pag.
o MUFLÃo AFRICANO — Caractcres — DÍ8tribuição geographica — Costumes
— Caça — Captiveiro — Usos e Productos 110-113
o MUFLÃO EUROPEU — Caracteros — Distribuição geographica — Costumes —
Caça — Captiveiro 113-116
o ARGALi — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça —
Captiveiro — Usos e Productos 116-118
o MUFLAO AMERICANO — Caractoros — Distribuição geographica — Costumes
— Caça — Usos e Productos 118-120
os CARNEIROS PROPRIAMENTE DITOS — Caractcies — Origcm .... 120-123
o CARNEIRO MERINO — Caracteres — Distribuição geographica. . . . 12á-125
o CARNEIRO DE CORNOS poNTEAGUDOs — Caractcrcs — Distribuição geogra-
phica 125
O CARNEIRO DE GRANDES NÁDEGAS — Caracteros — Distribuição geogra-
phica . . . . • 125-126
os B0VIDI08 — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti-
veiro — Caça — Usos e Productos 126-130
o BOI ALMiscARADo — Caractcrcs — Distribuição geographica — Costumes
— Caça — Usos e Productos 130-133
os lACKS — Caracteres geraes . . . . • 133
o lACK GRUNHiDOR — Caractcres — Distribuição geographica — Costumes^ —
Caça — Captiveiro — Usos e Productos — Doenças 131-137
os BÚFALOS — Caracteres — Distribuição geographica 137-138
o BÚFALO BA cAFRARiA — Caractcies — Distribuição geographica — Capti-
veiro 138-140
o BÚFALO ABNi — Caractcrés 140-141
o BÚFALO ORDINÁRIO — ^^ Caractcres — Distribuição geographica — Costumes
— Caça — Combates — Domesticidade — Usos e Productos . . . 141-146
os BISONTES — Caracteres geraes 146
O BisoNTE DA EUROPA — Caracteros — Costumes — Inimigos — Caça — Ca-
ptiveiro — Usos e Productos 147-151
índice 485
Paer.
o BisoNTE DA AMERICA — Caracteres — Distribuição geographica — Costu-
mes — Caça — Captiveiro — Usos e Productos 151-157
os BOIS — Caracteres geraes — Divisões 157
I. BOIS SELVAGENS 157
o GAYAL — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Caça . 157-159
o GAURO — Caracteres — Distribuição geographica — Costumes — Capti-
veiro 159-160
II. BOIS QUE SE TORNARAM SELVAGENS 161
O TOURO HESPANHOL — Caractcrcs 161-163
III. BOIS DOMÉSTICOS 164
O BOI GEBo — Caracteres — Distribuição geographica 161:-165
o BOI ORDINÁRIO— Origcm — Caracteres — Distribuição geographica